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O zumbi da História – Ecos de Calibã e a Bruxa em George Romero

Por Bernardo Moraes Chacur

 

Todas as histórias antigas, como disse uma das nossas belas mentes, são apenas fábulas convencionadas; e para os modernos, um caos que não pode ser desvendado.

Voltaire, Jeannot et Colin

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Bruegel, o velho, O Triunfo da Morte, 1562 (detalhe)

Na historiografia tradicional, o surgimento do capitalismo é representado como um progresso natural, a vitória do pragmatismo econômico sobre o feudalismo e as trevas. Nessas narrativas, a miséria e a pilha de mortos acumuladas durante a transição costumam ser retratadas como incidentes lamentáveis, mas periféricos, da grande marcha evolutiva. Essa versão oficial é contestada em Calibã e a Bruxa, de Sílvia Federici, que identifica a violência e a expropriação como elementos indispensáveis para o estabelecimento da nova ordem. A conquista da América e o tráfico negreiro foram, afinal, os grandes financiadores da revolução industrial, que exigiu por sua vez uma força de trabalho empobrecida e disciplinada pela repressão às revoltas camponesas, pela perseguição aos hereges, por um novo sistema de criminalização e pelo cerceamento à liberdade feminina. Sangue e sofrimento permearam cada etapa do processo.

Mas na obra, Federici não se limita em perfilar uma longa sequência de injustiças, dedicando igual atenção ao extenso histórico de revoltas que marcou o fim da era feudal. Para a autora,

O capitalismo foi uma resposta dos senhores feudais, dos mercadores patrícios, dos bispos e dos papas a um conflito social centenário que chegou a fazer tremer seu poder e que realmente produziu “uma grande sacudida mundial”. O capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal — possibilidades que, se tivessem sido realizadas, teriam evitado a imensa destruição de vidas e de espaço natural que marcou o avanço das relações capitalistas no mundo.[1]

A transição pacífica rumo ao capitalismo é, portanto, uma fábula convencionada, omitindo a intensidade e potencial subversivo dessa grande sacudida. Essa mesma omissão foi perpetuada pelo cinema, um dos grandes vetores do nosso imaginário histórico. Há, certamente, filmes sobre a luta contra a tirania ambientados no mesmo período abrangido por Federici. Essas histórias costumam assumir, contudo, tons vagos e moderados, esquivando-se de aproximações desconfortáveis entre os carrascos de então e seus herdeiros contemporâneos. Basta lembrar que o protagonista preferencial desse tipo de enredo é o nobre renegado que enfrenta os usurpadores da autoridade legítima: nessas tramas, o problema da ordem constituída é sempre seu desvirtuamento, nunca sua fundamentação. Enquanto consumimos revisões periódicas do mito de Robin Hood, histórias como a Rebelião de Kett (encabeçada por um servo) ou a insurgência de “37 mulheres, lideradas por uma tal Capitã Dorothy[2] (ambas contra os cercamentos na Inglaterra), seguem na obscuridade, a exemplo de dezenas de outros casos elencados ao longo de Calibã e a Bruxa.

Para além dessa lacuna, também poderíamos questionar a aptidão de um roteiro clássico (centrado em heróis e heroínas individualizados) para representar esse histórico de insurgências coletivas. Essa questão já havia sido levantada por cineastas do bloco soviético, que tentaram retratar a multidão como protagonista da História (como por exemplo, Miklós Jancsó em Salmo Vermelho, de 1972). Mas, salvo exceções, a massa indiferenciada costuma ocupar uma posição bastante diversa na caracterização cinematográfica, onde a contraposição entre personagens principais e uma multidão ameaçadora é uma constante desde, pelo menos, O Nascimento de uma Nação. E, assim como no filme de Griffith, essa distinção orienta-se frequentemente por coordenadas raciais: os nativos da América, África e Ásia como obstáculos para a “missão civilizatória” dos europeus e seus descendentes, reproduzindo nas telas uma retórica mobilizada a cada novo projeto de expansão territorial-econômica. O clichê presta-se igualmente a criminosos, terroristas, exércitos inimigos ou qualquer outro grupo apresentado de forma homogênea e sub-humana.

***

À primeira vista, os zumbis pareceriam a continuidade dessa longa tradição, a massa desumanizada por excelência. Mas na obra de George A. Romero, o grande arquiteto do gênero, os mortos-vivos nunca receberam tratamento simplista. Pelo contrário, os filmes compreendidos entre A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e Terra dos Mortos (2005) são algumas das explorações mais interessantes já produzidas pelo cinema sobre o conflito entre alteridade e identificação e sobre o potencial colapso de uma ordem ainda mais assassina do que os canibais que a destroem.

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A Noite dos Mortos-Vivos, 1968

O fim da civilização já era um espectro recorrente no terror e ficção científica quando o primeiro filme da série foi lançado em 68, mas o desenlace mais comum para esse tipo de enredo ainda era a superação da ameaça, preferencialmente por meios científicos – a vitória do racionalismo contra a face sombria da Natureza. Noite também parece terminar com a reafirmação do status quo, mas o reestabelecimento da ordem passa inequivocamente pela ignorância e truculência: caipiras armados exterminam os zumbis que encontram pelo caminho e, no processo, executam o herói negro, identificando-o como um dos monstros – desenlace já prenunciado pelo início da trama, quando o grupo (branco) de sobreviventes hesitava entre considerar Ben um aliado ou um risco.

A “vitória” revela-se apenas temporária em O Despertar dos Mortos (78), no qual acompanhamos o agravamento do caos precipitado pelos zumbis, mas consumado pela brutalidade dos vivos. Seguindo o padrão histórico, a resposta das autoridades ao clima de instabilidade é direcionar seu aparato de violência aos guetos: a trama começa com a invasão de policiais a um bairro de negros e hispânicos, produzindo mais uma pilha de cadáveres na declarada intenção de reestabelecer a paz. E ao final do filme, a fortaleza estabelecida pelos personagens não é rompida pela horda de mortos-vivos, mas por um grupo de saqueadores humanos. Na imaginação de Romero, a lógica – política e cinematográfica – do “nós contra eles”, é habilmente subvertida.

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O Despertar dos Mortos, 1978

Nesse segundo episódio se manifesta uma fascinação pelo apocalipse, o êxtase do abandono do trabalho e do passeio pelo shopping center em um mundo em que o dinheiro perdeu o valor, evidenciando o caráter arbitrário e contingente de uma organização social que tendemos a considerar natural e imutável. Esse esvaziamento de sentido é levado adiante em Dia dos Mortos (1985), em que militares e cientistas tentam aplicar as soluções tradicionais – violência e instrumentalização – a uma situação além de qualquer controle. No segundo grupo, o Dr. Logan defende a conversão dos mortos em força de trabalho, um adestramento que exige recompensas (“eles precisam ser recompensados, Capitão. Caso contrário, como irão fazer o que queremos?”) – que no caso, só pode significar alimento. O exército, contudo, enoja-se com a perspectiva de ter que sacrificar (literalmente) a própria carne. Na falta de consenso, os zumbis invadem a base e despedaçam quem encontram pelo caminho, na sequência mais brutal da série. No desfecho do filme, Bub, a principal cobaia do Dr. Logan reafirma sua dignidade, enquanto o Capitão Rhodes, líder truculento e antipático, é destroçado sem despertar qualquer simpatia.

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Dia dos Mortos, 1985

Romero retornou a esse universo duas décadas depois em Terra dos Mortos (2005). Desta vez, somos apresentados a um condomínio de luxo cujo conforto é sustentado por servos iludidos pela promessa de ascensão social e pelo saque dos subúrbios habitados pelos mortos. Depois de uma dessas incursões violentas, um grupo de zumbis decide organizar-se e retaliar a predação, concretizando a possibilidade de um ponto-de-vista zumbi já sugerido no filme anterior. O deslocamento narrativo acompanha a tomada de consciência por parte dos “monstros”: facilmente ludibriados nas primeiras cenas, solidários e alertas na conclusão da saga.

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Terra dos Mortos, 2005

***

Mas qual é, afinal, a conexão entre Calibã e a Bruxa e a tetralogia dos Mortos? Há, certamente, pontos de contato entre as obras: tanto a historiadora quanto o cineasta descrevem cenários de calamidade e anarquia acompanhados de repressões violentas. Ambos articulam, cada um ao seu modo, indignação contra injustiças sociais inseparáveis de desigualdades econômicas. Cada um é, à sua maneira, otimista, ou pelo menos afirmativo: Federici resgata insurreições que alcançaram vitórias importantes, ainda que parciais ou provisórias. Romero imagina uma realidade em que os detentores do poder são vencidos, apesar de toda sua violência, ou justamente por causa dessa violência. Os exercícios de memória e imaginação envolvem, como sempre, posturas políticas.

Todo esse preâmbulo me prepara para admitir que, afinal, não há conexão direta entre Calibã e Bruxa e a tetralogia dos Mortos. Nada sugere que Romero estivesse pensando em alegorias históricas quando conseguia esporadicamente os recursos para retornar a esse universo. Seria, além disso, simplista reduzir uma obra tão rica a uma leitura unívoca. Ainda assim, lendo Federici, deparei-me com situações e imagens que me remeteram a esses quatro filmes.

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Jacques Callot, Os horrores da Guerra, 1633

Como lembra a autora, “a transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para os trabalhadores na Europa[3]. A privatização de terras coletivas desestabilizou a produção de alimentos, cuja distribuição também passou a ser condicionada por um novo fluxo comercial. A pressão combinada dessas e outras mudanças reduziu parte expressiva da população à indigência. Legiões de desnutridos assombravam as estradas e batiam desesperados nos portões das cidades.

(…) as principais armas que os pobres tinham à sua disposição na luta pela sobrevivência eram seus próprios corpos famintos, como nos tempos em que as hordas de vagabundos e mendigos cercavam os mais abastados, meio mortos de fome e doentes, empunhando suas armas, mostrando-lhes suas feridas e forçando-os a viver num constante estado de medo frente à possibilidade de contaminação e à revolta.[4]

A indignação e repulsa não se dirigiu, entretanto, às causas da crise, redirecionando-se contra os mais atingidos, conforme atesta o comentário de um médico lombardo em 1630:

O ódio e o terror engendrados por uma multidão enlouquecida de gente meio morta, que assedia as pessoas nas ruas, nas praças, nas igrejas, nas portas das casas, que torna a vida intolerável, além do fedor imundo que emana deles e do espetáculo constante dos moribundos […] só pode acreditar nisso quem já o tenha experimentado.[5]

Em situações extremas, ameaças de canibalismo compuseram o panorama das revoltas, “já que os trabalhadores rebeldes às vezes demonstravam seu desprezo por aqueles que vendiam seu sangue, ameaçando comê-los[6]. Em Nápoles em 1585, “durante um protesto contra os altos preços do pão, os rebeldes mutilaram o corpo do magistrado responsável pelo aumento e colocaram à venda pedaços da sua carne[7]. O espectro da antropofagia fez parte da demonização dos revoltosos. No mesmo período, o arquétipo do canibal foi indispensável para caracterizar a suposta selvageria dos habitantes das novas colônias. As vítimas sofreram assim uma dupla violência: de um lado, a desestruturação total de seu modo de vida e de outro, a imposição do estigma de monstros. Esses dois movimentos se retroalimentaram:  a imagem de sub-humanidade justificava novas espoliações, que engendraram por sua vez mais miséria.

“A grande multidão dos homens”, escreveu Henry Power, um seguidor inglês de Descartes, “se parece mais com o autômato de Descartes, já que carece de qualquer poder de raciocinar e [seus membros] apenas podem ser chamados homens enquanto metáfora” (…) Os da “melhor classe” concordavam que o proletariado era de uma raça diferente. A seus olhos, desconfiados pelo medo, o proletariado parecia uma “grande besta”, um “monstro de muitas cabeças”, selvagem, vociferante, dado a qualquer excesso (…).[8]

Na concepção que se difundiu, o ser humano é uma combinação – separável – entre razão e animalidade. Às mulheres, aos camponeses, aos africanos e indígenas escravizados, cabia apenas a segunda parte: corpos sem intelecto. E na mesma linha do Dr. Logan em Dia dos Mortos, o pensamento europeu converteu esses corpos em objeto de estudo, visando a sua utilização para fins produtivos. Vivissecções eram realizadas publicamente em “teatros anatômicos”, preferencialmente em condenados.  Mas enquanto a ciência buscava explicar o corpo como uma máquina,

Entre a população se difundiu uma concepção mágica do corpo, segundo a qual este continuava vivo depois da morte e esta o enriquecia com novos poderes. Acreditava-se que os mortos tinham o poder de “regressar” e levar a cabo sua última vingança contra os vivos. Acreditava-se também que um cadáver tinha virtudes curativas.[9] 

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William Hogarth, A recompensa da Crueldade, 1751

Essa crença relaciona-se com a popularização do canibalismo medicinal na Europa dos séculos XVI a XVIII, “envolvendo carne humana, sangue, coração, crânio, medula óssea e outras partes do corpo, não (…) limitado a grupos marginais: era também praticado nos círculos mais respeitáveis[10]. Ironicamente, imagens de banquetes antropofágicos foram peças-chave da propaganda que qualificou os ameríndios como criaturas bestiais.

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Théodore de Bry, Canibais na Amazônia, 1578

Calibã e a Bruxa abrange muito mais que os episódios e temas periféricos que reuni nesses últimos parágrafos. Espero, no entanto, que esses poucos exemplos indiquem como diferentes discursos foram – e continuam sendo – mobilizados para justificar desequilíbrios, exclusões e fomentar o medo. O cinema acaba sendo mais um componente dessa engrenagem, por inércia ou deliberação. Parte da originalidade de Romero (e de Federici) é justamente a desestabilização desse tipo de narrativa.  A cada iteração, o diretor nunca perdeu de vista os piores monstros, sejam os fictícios ou suas contrapartes no mundo real: das milícias que executam o herói negro no primeiro filme aos magnatas manipuladores da última parte, que se beneficiam do ciclo de morte sem jamais sujarem as mãos.

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Durante a elaboração desse texto tive em mente a resenha de A Noite dos Mortos-Vivos publicada pela Multiplot em 12 de junho de 2018, escrita por Kênia Freitas (http://multiplotcinema.com.br/2018/06/a-noite-dos-mortos-vivos-night-of-the-living-dead-george-romero-1968/). Espero que ninguém a culpe por isso.

[1] Federicci, Silvia. Calibã e Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax, São Paulo, Elefante, 2007, p. 44

[2] p.143

[3] p. 155

[4] p. 158

[5] p. 158

[6] p. 318

[7] p. 319

[8] p. 278

[9] p. 263

[10] p. 388

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Crimes e orixás: O Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos

Por João Pedro Faro

o amuleto de ogum

O cinema brasileiro é, historicamente, um cinema de chavões, sendo dos mais recorrentes os tais “filmes sobre o povo”. Eles percorrem desde as chanchadas até a pós-retomada, o que também torna histórico que ser “sobre o povo” quase nunca significa ser verdadeiramente popular. Não apenas o popular no sentido de cinemão de shopping, de sala lotada e de ator global, mas na representação fiel desse tal povo como uma existência humana concretizada, complexa, rica. Felizmente, esse popular pode existir graças à certos raros e ocasionais brilhantismos. Exemplo: Jards Macalé, na abertura de O amuleto de Ogum (1974), cercado de três malandros armados e confiando em sua própria odisseia oral para poder sobreviver. Junto com ele, um Nelson Pereira dos Santos cansado dos cinemanovismos, revendo seu próprio significado enquanto cineasta e buscando novas identificações com o popular, deixando seu papel de autor o menos intrusivo possível para elevar em tela o que dificilmente havia sido elevado anteriormente e, nesse processo, criando um dos mais essenciais trabalhos da filmografia nacional. No processo de experimentação em tomar certa rigidez como princípio, Amuleto encontra a liberdade possibilitadora que Nelson Pereira desejava.

Todo o projeto de O Amuleto de Ogum converge para que seu ponto de partida em conseguir lidar com a cultura do candomblé e com as crenças de raiz popular seja atingido. A lenda cantada do jovem nordestino Gabriel (Ney Santanna) protegido por um amuleto que o torna o criminoso perfeito, de corpo fechado, inatingível, consegue tomar e compreender cinematograficamente complexidades sociais e religiosas justamente por se ater a um universo muito próprio e reduzido. A escolha de Nelson Pereira de fazer um filme de gênero assumido, um gângster clássico todo completo em sua estrutura, permite uma abertura por caminhos antes inimagináveis tanto no cinema de gênero quanto no cinema nacional: os arquétipos do tipo servem muito bem às novas contextualizações umbandísticas e as sobras formais do Cinema Novo se ajustam às particularidades narrativas da obra. Através dessas misturas, vai surgindo uma personalidade fílmica que de fato renova toda a forma de enquadrar religiões de matriz africana no cinema brasileiro. Entre o que havia sido tomado como “realismo”, os exageros inevitáveis do filme de crime e as transições etéreas coloridas do tropicalismo, Amuleto de Ogum consegue firmar a natureza mística da religião como uma verdade irrefutável da obra. Gera uma potência em toda manifestação presente desse místico, pois ele existe no mesmo plano da realidade, desde a consagração do amuleto até a cena em que a gangue descobre o poder que Gabriel carrega, tudo é enquadrado de forma tão direta que o que antes seria fantasia torna-se pura realização terrena.

o amuleto de ogum

Quando é dada a essa cultura marginalizada o poder de sua realidade no cinema, as complexidades do contexto aliadas à objetividade do gênero tomam caminhos muito maiores. Anos antes de Glauber ser acusado de “deixar de ser marxista pra virar cristão” em A Idade da Terra (1980), Nelson em Amuleto já torna o poder da religiosidade como braço da inversão de hierarquias e terrorismo de classes. O verdadeiro temor do chefão branco Severiano (Jofre Soares) é perceber-se num universo onde a crença do povo que domina tem poderes muito maiores do que ele poderia ter. Após a fortíssima cena em que recebe um orixá e ajoelha-se diante de um pai de santo, percebendo sua inferioridade perante o alcance espiritual de um negro, Severiano logo em seguida renega tudo que passou e coloca todo o caso com Gabriel, o Amuleto e tudo mais como absurdismo. Nelson pode estar tratando de uma especificidade por conta do gênero que trabalha, mas não poderia ser mais claro em mostrar como a validação concretizada de uma religião nascida pelas formas de opressão colonial ainda abalariam e desmantelariam qualquer relação de poder ainda estabelecida. São os orixás contra a autoridade.

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Quando essa crença é apropriada para os fins do comando vigente, como no arco de Severiano buscando um pai de santo trambiqueiro para conduzir a situação, ela ocupa um estado falso, mesquinho, muito distante dos ápices espirituais vividos por Gabriel (especialmente em suas cenas no terreiro pouco antes do embate final). E a todo momento que Gabriel é tentado aos terrores desse sistema de opressão, a própria religião invalida as suas verdades (sua amante, ex-mulher de Severiano, comparando-o ao ex-marido justamente antes das coisas começarem a dar errado para o protagonista).

o amuleto de ogum

o amuleto de ogum

Amuleto só alcança essa qualidade quase totalizadora justamente porque nunca se atém a nada que não seja seu próprio universo. Até por ser um filme onde Nelson Pereira reavalia seu próprio cinema, é uma obra que constantemente está atrás de limitações e de reduções para poder se engrandecer. Já no título fica marcado: mesmo sendo espacialmente interessado pela Baixada Fluminense, é batizado por um objeto, não por toda uma cidade como em Rio, 40 Graus (1955), um filme que faz o caminho oposto, pois toma proporções enormes para acabar tratando do mínimo. Mais um ponto preenchido de seus interesses iniciais, é uma certeza que Nelson conseguiu a libertação desejada de querer totalizar-se já no começo. Indo mais além para renegar esses costumes de um cinema velho, Amuleto dá fim à estética da fome. Não à toa, uma de suas passagens mais emblemáticas é um banquete suburbano filmado todo no improviso.

Sem querer cercar qualquer sofrência, Amuleto trata o marginalizado através de uma lente celebratória, que não priva nenhuma exposição das camadas repressoras, mas que está muito mais interessada na resistência através da celebração da força de toda essa cultura. Poucas obras concentraram em si tanta vontade pelo que é realmente novo, pelo que jamais pode ser visto da forma que é mostrado aqui (tendo completa noção dos motivos dessas novidades serem tão temidas). Desde a trilha do Macalé que torna o canto popular em relato genuíno até o plano final de Gabriel que revive das águas pela presença de suas raízes migratórias, Amuleto de Ogum é a lenda que também é documentário, é o produto final de uma luta pela própria existência da tradição de toda uma gente. É simplesmente sobre o que existe e sobre o que resiste. Ou seja, sobre o povo. E não dá para fazer nada sobre o povo que não acredite no que cantam por aí.

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O sabre de madeira, o pássaro azul, o espelho fragmentado e a luz que parte

Por Diogo Serafim

Se ha llenado de luces
Mi corazón de seda,
De campanas perdidas,
De lirios y de abejas,
Y yo me iré muy lejos,
Más allá de esas sierras,
Más allá de los mares
Cerca de las estrellas,
Para pedirle a Cristo
Señor que me devuelva
Mi alma antigua de niño,
Madura de leyendas,
Con el gorro de plumas
Y el sable de madera.¹

Federico García Lorca, Balada de la Placeta

                Não há filme mais belo na história do cinema que a adaptação de Maurice Tourneur do teatro de Maeterlinck. Avez-vous ici l’herbe qui chante ou l’oiseau qui est bleu?² Eu não tenho conhecimento da grama que canta, mas creio que seja suficiente que encontremos o pássaro azul para a minha filha doente. Sabendo ser perigoso crer e não crer, o filme de Tourneur exige de nós um retorno, mesmo que inconsciente, para uma condição primordial da experiência, essencialmente um salto de fé, olhar no rosto misterioso dos abismos e perceber ali a natureza mítica de tudo que é.

                Como é da natureza de todas as fabulações que iniciam com uma súplica de “quem dera assim fosse!”, a fábula termina por se tratar de um veículo que trabalha mais em uma instância delirante de onirismo velado que propriamente em um plano associativo da realidade. Assim, o filme de Tourneur é um filme infantil no sentido lato do termo, mais filme dos sonhos que filme de realidades sociais, mais experiência visual que palestra motivacional, mais deleite espiritual que laboração mental. É a materialização da nossa constituição fundamental, nosso ímpeto basilar rumo à felicidade, nossas inquietações mais inocentes, nossos sinos roucos e nossos pássaros aleijados que não permitimos sair à luz do dia ou sequer florescer internamente quando afastados de nossos solilóquios noturnos.

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                O filme de Tourneur apresenta claramente um apuramento visual que funciona em duas instâncias. Primeiramente em um nível puramente estético, composições que trabalham a priori em uma lógica vertical, mas que possui tantos picos nessa organização que aparenta ser homogeneamente horizontalizada no seu virtuosismo, forte uso de silhuetas, sombras e véus, adornos e artifícios excessivos, tudo que há de mais impactante e grandioso visualmente, mas que encontra nos seus mais simples e singelos gestos toda a sua potência. Em segundo plano, o filme possui um cuidadoso uso de frases perfeitamente incrustadas na matéria poética do filme, não só pelo seu lirismo espontâneo, mas também pela forma como elas parecem brotar com uma simplicidade e uma claridade poucas vezes encontrada no cinema. É um filme de uma tonalidade fabular essencialmente anti-esopiana, longe de chegar em uma conclusão moral reveladora, Tourneur trabalha com uma abordagem dialeticamente anterior que aparenta tentar florescer por si própria, uma certa resignação retórica que parece encontrar na sua passividade, no seu onirismo anunciado, toda a beleza da vida.

                Há no filme um anacronismo dialético que faz da natureza epistemológica humana não uma instância que necessariamente acumula em uma lógica construtiva, mas uma que se confunde, que se perde nesse sistema; pretensa epistemologia que alcança o estado final no empírico imediato, o fim da dialética platônica está na sua gênese, a essência de todas as coisas materiais é de faculdade inata. A alma dos elementos é de natureza conflitante, e esse mundo heraclitiano é retrato desse conflito constante, desse embate perene entre todas as entidades impulsivas por essência.

pássaro azul

                Encontramos o pássaro azul. Est-ce qu’il est assez bleu?³ Não sei dizer, mas o compartilho com quem precisa mais que eu – talvez aí repouse a felicidade, no compartilhamento da experiência, passando o nosso pássaro azul para o vizinho doente. Enquanto indagamos se é aquilo mesmo o que buscamos, a nossa conquista material foge do nosso alcance, seja por desleixo, por soberba, ou até mesmo pela erosão dos anos. O filme termina com uma perda mas também com um último grito de esperança – mas será que isso basta? Pasolini em uma de suas entrevistas certa vez desabafou: “e o que eu quero com a esperança? De que ela me serve?”. Ela pode servir como força motriz das nossas vidas e desejos, mas também como desilusão e condescendência inerte. Não se pode viver apenas de sonhos.

pássaro azul

                Ainda que Sócrates e Fedro suplicassem aos deuses por auxílio na busca pela beleza interior e ainda que eles fossem capazes de harmonizar o exterior com essa beleza espiritual, nós ainda precisamos de pães e bolos para nos mantermos em pé. Imaginá-los às vezes não basta – enquanto os anos passam e vou envelhecendo, meu corpo decadente me recorda inclemente o fardo daquele meu espelho, aquele espelho que continua sendo o mesmo ponto de inflexão lacaniano entre a minha consciência e o Outro. E mesmo que a reminiscência me ludibrie com os resquícios do que um dia foi sentido, imbuído da satisfação delirante dos sonhos daquilo que não o foi, meu corpo ainda anseia por aquele átimo fugaz, lacônico e sintético na sua transcendência, no qual a fabulação se reconcilia com o físico. Nossa memória é porosa para o esquecimento, inerte na sua dinâmica. Nosso corpo é desmoronamento, dinâmico na sua inércia. Se há o senso de realidade, e ninguém duvida da sua justificada existência, o que me resta é o de possibilidade, e a ardência pungente que acompanha cada instância de contentamento, cada quimera claudique que me provoca um sorriso segmentário, cada pássaro azul que me faz cantar e me lembra de quando dançamos sob a luz daquelas estrelas com as quais sonhávamos. Estamos sempre no aguardo mudo para nascer de novo.

By a departing light
We see acuter, quite,
Than by a wick that stays.
There’s something in the flight
That clarifies the sight
And decks the rays.4

Emily Dickinson, By a Departing Light

  1. Meu coração de seda
    Está cheio de luzes,
    Com sinos perdidos,
    Com lírios e abelhas.
    Irei bem longe,
    Mais longe que aquelas colinas,
    Mais longe que os mares,
    Para perto das estrelas,
    Para pedir ao Cristo nosso Senhor
    Que me devolva a alma que tinha
    Antigamente, quando era criança,
    Amadurecida com lendas,
    Com um boné emplumado
    E uma espada de madeira.
  1. Você tem aqui a grama que canta ou o pássaro da cor azul?
  2. Seria ele suficientemente azul?
  3. À uma luz evanescente
    Vemos mais agudamente
    Que à da candeia que fica.
    Algo há na fuga silente
    Que aclara a vista da gente
    E aos raios afia.

 

 

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EDITORIAL – A poética da fabulação

Por Camila Vieira

A relação entre cinema e fábula envolve de saída um impasse bastante recorrente e pertinente dentro de uma certa tradição teórica historiográfica. Nos anos 1920, o jovem Jean Epstein vaticinava em seu texto Bonjour Cinéma: “O cinema é verdade. Uma história é uma mentira”. Era como se a arte de narrar histórias estivesse restrita a um legado literário aristotélico (de orquestrações ordenadas de ações) e precisasse ser colocada em um lugar distinto, longe da desordem da vida que o cinema parecia buscar a partir da técnica com a câmera. “A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para um fim concreto, apenas situações abertas em todas as direções”, escreve Rancière na tentativa de compreender o gesto de Epstein. A arte cinematográfica deveria estar neste lugar de excelência da inversão da racionalidade da trama.

Mas Rancière acaba por reconhecer que a visão de Epstein é de um tempo distinto do nosso na contemporaneidade. É uma visão do cinema carregada de uma nostalgia por insistir na separação entre a presença íntima das coisas do mundo e o universo da fábula. Também é uma visão condescendente por compreender o cinema como arte a partir de um dispositivo técnico que poderia colocar em prática uma utopia estética, política e científica daquele contexto histórico. A partir da reflexão sobre tais limitações do texto de Epstein, Rancière procura afirmar a fábula como elemento constitutivo do cinema como experiência.

Mas o que seria do cinema de Epstein sem a fábula, que faz com que ainda possamos sonhar com esta imagem sobreposta do rosto de uma mulher com a selvageria das ondas do mar em Coeur Fidèle (1923)?
Mas o que seria do cinema de Epstein sem a fábula, que faz com que ainda possamos sonhar com esta imagem sobreposta do rosto de uma mulher com a selvageria das ondas do mar em Coeur Fidèle (1923)?

Nem a fábula se restringe à mera contação de tramas ordenadas, tampouco o cinema se restringe aos efeitos de real que podem aproximá-lo de uma certa autenticidade da vida. Para esta nova edição da Multiplot!, pouco interessa a velha distinção entre verdade e mentira, que parecia ser tão cara a Epstein. O que nos interessa como críticos na contemporaneidade é escapar das dicotomias que figuram cordas lançadas pelas teorias e que, muitas vezes, são capazes de sufocar elas mesmas. O gesto a ser feito é mergulhar nos procedimentos estéticos que determinados realizadores lançam mão a favor de dramaturgias em vizinhança com as potencialidades da fábula, aqui defendida em suas diferentes nuances e matizes do sonhar e do imaginar que já estão presentes desde o início do cinema. De que maneira o cinema ainda é capaz de apostar na crença da fabulação?

Pensamos aqui as vontades de alguns realizadores contemporâneos em construir narrativas com zonas de contato mais próximas de fábulas tradicionais, como os contos de Charles Perrault, ressignificados pela postura da leitura ativa de Catherine Breillat, em Barba Azul e A Bela Adormecida. Ou mesmo a peça infantil de Maeterlinck que se transfigura em uma artesania imagética pelo olhar de Maurice Tourneur em O Pássaro Azul.

Alguns cineastas buscam se ancorar na radicalidade da fábula para enfrentar mais diretamente os modos de produção da indústria cinematográfica hollywoodiana, como é o caso da trilogia do ridículo de Alex Cox, ou fazer uma crítica contundente ao status quo capitalista, por meio dos filmes de zumbi de George Romero.

Diretores representativos de movimentos cinematográficos abraçam curvas singulares em suas cinematografias, em grande parte devido à sedução pela fábula. Nelson Pereira dos Santos enfrenta as limitações realistas do paradigma cinemanovista com a ressignificação fabular da força mítica dos terreiros de candomblé e de umbanda em O Amuleto de Ogum. Roberto Rosselini também subverte os meandros neo-realistas com as fábulas indianas que compõem India: Matri Bhumi.

Valerie e sua semana de deslumbramentos, de Jaromil Jires, se alimenta de personagens fantásticos em que o despertar da sexualidade é uma debochada crítica às instituições patriarcais, enquanto L’Apollonide, de Bertrand Bonello, mergulha no nó fabular de cortesãs de uma casa de prostituição do século XIX que procuram burlar a melancolia que encarna seus lugares no jogo da história.

Outros cineastas são convocados ao longo desta edição da Multiplot!, em textos que não pretendem traçar uma linha temporal historiografia de produção entre os filmes. A virada se dá na aposta das intensidades. O intervalo de um texto a outro pretende friccionar olhares diversos, compondo uma grande tessitura de gestos fílmicos tocados pela poética da fabulação. O jogo está posto.

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Fabulações críticas em curta-metragens negros brasileiros

Por Kênia Freitas

No livro Afro-Fabulations The Queer Drama of Black Life, Tavia Nyong’o questiona se “uma poética da afro-fabulação poderia suplementar, ou mesmo suplantar, a política da representação?”. Tais estratégias de afro-fabulação para Nyong’o seriam formas de tirar o pesa que as artes negra e queer carregam a partir das lógicas identitárias e representacionais, apontando, no lugar, para formas expressivas mais fugitivas e performáticas. Essa estratégia expressiva passa também pela proposta de fabulação crítica da historiadora Saidiya Hartman.

Partindo de um processo leitura crítica dos arquivos históricos do Atlântico Negro, Hartman diante da incontornável e insuportável violência destes arquivos, assume a impossibilidade da representação (que apenas poderia reproduzir e/ou atualizar o processo violento). A historiadora manifesta assim, como alternativa, a necessidade da encenação na pesquisa e interpretação dos arquivos. O que Hartman incorpora ao processo de veridicção histórica é o elemento imaginativo, o subjuntivo do passado, o “e se” – não em um sentido falsificante (ou seja, oposto ao verdadeiro), mas fabulatório (que não pode e não quer ser verificado).

Mais do que uma resposta, a pergunta de Nyong’o e a abordagem historiográfica de Hartman nos abrem outras relações críticas possíveis com a produção negra contemporânea. E será a partir delas que nos aproximaremos de três trabalhos de artistas negras contemporâneas. Os curtas discutidos neste texto possuem modos de produção e realização bastante diversos entre si, mas cada um à sua maneira, parte de uma relação direta do fazer cinematográfico com os campos da performance e das artes visuais. E os três curtas também afastam-se de estratégias representacionais mais comuns da experiência negra no cinema.

Elekô (Mulheres de Pedra, 2015): corpos especulativos

Na primeira cena do filme coletivo Elekô, cinco mulheres negras movem-se em conjunto e lentamente. Duas luzes de uma construção parecem guiar os gestos das mulheres e ao fundo ouve-se o barulho do mar, metais que tilintam e um canto em lamento. A aproximação da câmera nos revela as lágrimas que escorrem. Esse corpo corpo-conjunto, embora situado nas ruínas das obras em andamento do centro do Rio de Janeiro, é transportado por sons, as vestimentas das mulheres e os seus movimentos para o meio do oceano. Assim, em poucas sequências estamos entre o Rio de Janeiro contemporâneo dos grande eventos (e consequente processos de higienização e remoção das populações pobres e pretas) e a travessia de escravizados no Atlântico Negro. Se concretamente o cenário do Rio contemporâneo se impõe na imagem, a performance desse corpo-conjunto negro fabula um outro tempo e espaço no presente a partir da fusão entre memória e história. O porto que recebia os escravizados no passado projeta-se sobre a região portuária do presente.

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Em outro momento, duas mulheres negras de torso nu fazem uma performance com um punhado de terra. As mãos com terra erguem-se em direção ao céu, enquanto alguns grãos escorregam. A terra é espalhada nos braços e barrigas, criando uma nova camada de marrom nos corpos. Nesta sequência, se os tambores parecem compor harmoniosamente um ritual sagrado, a leitura da declaração oficial da abolição da escravatura no Brasil coloca novamente em operação uma politemporalidade. Uma temporalidade múltipla que não anula os seus elementos (passado colonial escravocrata e presente da expressão artística negra), mas os sobrepõem.

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Seguindo a lógica dessas duas sequências mais delineadas discursivamente, as outras performances musicais, sonoras e corporais que se somam no filme compõem uma sobreposição de narrativas femininas negras que se articulam no presente, mas apontam para experiências coletivas de passado e de futuro. Os menos de sete minutos da obra manipulam uma experiência sensorial de intensidades e fragmentos de vivências negras femininas múltiplas.

Se um jogo de coletividade se anuncia na performatividade do corpo-conjunto, os closes e a montagem em paralelo de narrativas múltiplas dispersam ou complicam essa promessa. Assim, no filme, enquanto uma mulher escreve subindo a ladeira, outra anda pelas ruas enchendo sacos de plástico do fôlego de desconhecidas. As duas podem co-habitar a mesma obra, mas seguem existindo em temporalidades próprias, específicas. O filme não parte de um princípio de performances com início, meio e fim, mas por um atravessamento destes momentos. Assim, as narrativas negras que fabulam o/no filme atuam menos no sentido de fechar a obra, mas de abri-la para entradas e experiências espectatorial diversas.

O filme encerra-se em uma roda musical e de dança de celebração das mulheres negras. Dança que se faz a partir de um canto tradicional alegre que pede licença para cantar. A construção dessa celebração nos remete ao que Tavia Nyong’o chamou de criação de um corpo especulativo feito das contra-narrativas que desarranjam as linhas temporais históricas. Os corpos negros especulados na escravização (comprados, vendidos, estuprados, abortados, torturados…) tornaram-se corpos especulativos. Se uma grande maioria das expressividades negras diaspóricas pós-escravização fez-se a partir da necessidade de reconstrução histórica e do realismo, a especulação como expressividade negra coloca-se como uma contraposição constante.

Em Elekô, é possível se estar no Rio de Janeiro e na travessia do Atlântico, na abolição e no presente histórico, em uma roda de gira de ontem e de amanhã. As mulheres negras historicamente especuladas, especulam no cinema os seus corpos (e as relações e sentidos que estes podem e desejam criar). Nesse processo fabular, o filme não apaga os processos históricos ao que remete, mas soma-os a sua criação performativa.

 

Experimentando o Vermelho em Dilúvio II (Michelle Mattiuzzi, 2016): politemporalidade negra

Em Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism, Grada Kilomba discute a máscara do silenciamento. O instrumento colonial de tortura era utilizado para tapar a boca dos escravizados, impedindo-os de comer e, sobretudo, Kilomba defende, impedindo-os de  falar. A análise da máscara leva Kilomba ao levantamento de conjecturas no passado “O que poderia o sujeito Negro dizer se ela ou ele não tivesse sua boca selada? E o que o sujeito branco teria que ouvir?” (KILOMBA, 2016 – tradução de Jessica Oliveira de Jesus). O que o falar e ouvir movimentam são relações de poder. E também, como Kilomba esmiúça, o que se operava com o uso da máscara como forma de controle e tortura era o processo psicanalítico de recusa e repressão dos sujeitos brancos. Diante da sua agência violenta no processo colonizador e escravização, os sujeitos brancos não poderiam correr o risco de ouvir.

Em Experimentando o Vermelho em Dilúvio II, Michelle Mattiuzzi nos convoca em seu filme-performance a nos questionar as reminiscência subjetivas e literais da máscara no presente. Na performance do curta, utilizando uma versão da máscara de silenciamento (amarrada por fitas vermelhas e pregadas por alfinetes grandes que perfuram o rosto) e um vestido branco, a artista caminha pelas ruas do centro do Rio de Janeiro em direção à estátua de Zumbi dos Palmares. Visualmente a extrema brancura do vestido e o tom vivo do vermelho ganham intensidade em contato com o tom de pele escuro de Michelle Mattiuzzi. A composição elaborada impecavelmente contrasta com o caos habitual das ruas e dos passantes. Os olhares dos transeuntes fitam a máscara, a artista, suas vestimentas e muitas vezes a câmera que a acompanha a uma curta distância.

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Concluindo a caminhada, a artista pára diante do monumento, alinhando-se à mesma direção de olhar de Zumbi para a avenida. Sem pressa, ela desfaz os nós da fita vermelha e começa a retirar os alfinetes que furam a sua pele. Mais uma vez o vermelho, agora do sangue escorrendo sobre o rosto de Mattiuzzi aparece como elemento de destaque. Sob a máscara, descobrimos ainda mais uma camada de dor: alfinetes que prendem diretamente os extremos da boca da artista.

Neste momento do filme, o desfazer performativo mescla-se com o seu preparar. Sequencialmente, os alfinetes estão sendo retirados e vemos o sangue; colocados e vemos às lágrimas e, novamente, retirados. As temporalidades históricas também mesclam-se: ao fundo o busto de Zumbi dos Palmares, em primeiro plano os punhos cerrados de Mattiuzzi. A ação (performance e filme) opera a ideia de politemporalidade negra. Aqui não apenas sobrepondo o passado no presente, mas complexificando a duração fabular da performance. A linearidade não interessa: colocar e retirar os alfinetes são atos não consequentes, mas cíclicos. A politemporalidade, como um entendimento do tempo mais denso e expandido, assim se contrapõe com uma ideia do tempo universal, neutro e transparente (Nyong’o, 2018).

Neste sentido, é importante pensarmos o vermelho do título. O vermelho aparece não apenas nas fitas que seguram a máscara e caem sobre a cabeça de Mattiuzzi, mas também na transição entre os blocos (no lugar de um fade out preto tradicional). O vermelho assim torna visível a montagem do filme, em um movimento semelhante ao que Ana Pi desenvolverá depois com o azul em NOIRBLUE – Deslocamentos de uma dança (2018). Mais do que apenas uma mudança cromática do preto para o vermelho (ou o azul), o efeito desnaturaliza convenções de (in)visibilidade na linguagem cinematográfica. Em Experimentando o Vermelho em Dilúvio II a cor vermelha como elemento de transição assume um lugar de base, fundamento, da materialidade da obra e do seu processo. E o sangue da artista (o último tom de vermelho a ser mostrado no filme) desloca essa materialidade da obra audiovisual para os corpos negros. Assim, o que a afro-fabulação performativa de Michelle Mattiuzzi coloca em evidência é o sangue como elemento fundante das experiências negras no passado e no presente,

Pontes sobre abismos (Aline Motta, 2017): Reformulando o arquivo familiar

Atos de reformulação (redress), argumenta Hartman, baseiam-se em afetos de dor e fome, em necessidade e desejo. A história crítica (ou o que ela mais tarde chama de “fabulação crítica”) é definida (…) como “atos memoriais a serviço da reformulação”. A reformulação, eu reivindico, é uma teoria e prática psicanalítica e sociogênica negra para lidar com os fantasmas incorporados da cripta. (Nyong’o, 2018)

Em sua origem, Ponte sobre abismos foi uma instalação em multicanais e uma exposição fotográfica. Mas a obra de Aline Motta também foi montada como um filme de telatripartida – e é a essa realização da obra que nos ateremos a seguir.

A sequência final do curta-metragem concentra-se em uma narrativa sobre a origem do leopardo, na mitologia de África. O conto diz que em tempos remotos o leopardo (mostrado como uma animação, um bicho branco sobre um fundo preto) fez amizade com o fogo. Passado um tempo da amizade, a mulher leopardo manifesta o seu desejo de também quer conhecer o fogo e pede que ele convide o amigo para ir a sua casa. O fogo faz a visita. Ao ver sua casa em chamas, a mulher leopardo pergunta: “Este é o seu amigo?”. E foi assim que os leopardos ganharam as suas manchas, o conto conclui.

Este conto que localiza a origem de uma característica marcante do leopardo (as manchas) em uma experiência afetiva traumática e fundante. A origem do leopardo encerra (sem concluir) o percurso do filme (que passa pelas áreas rurais do Rio de Janeiro, Portugal e Serra Leoa) em busca das origens e arquivos familiares da artista. A busca é motivada pela revelação feita por sua avó de nunca haver conhecido o próprio pai. O bisavô da artista era o filho adolescente e branco dos patrões da sua bisavó negra. Na concepção de Nyong’o de afro-fabulação há uma aposta performativa e expressiva de se “viver com a ambivalência” (com a morte, o trauma, as feridas que constituem a experiência negra contemporânea pós-escravização e colonização). Essa ambivalência nos parece se mostrar na obra pelo resgate e reapagamento da figura ausente/presente do bisavô e pela reformulação e afirmação das figuras da avó e bisavó.

Assim, se na breve narrativa familiar e nos arquivos existentes (como a certidão de nascimento assinada pelo tio materno da criança na ausência de um pai) subentende-se o assédio, estupro, abuso e abandono daquela jovem mulher negra e da sua filha, o processo da obra empenham-se na reformulação de suas imagens e dos seus arquivos. Por fotos plotadas em tecidos, papéis e estruturas diversas, as duas mulheres negras, Doralice e sua mãe Mariana Francisca, circulam em águas de continentes diversos (América, Europa e África). As suas imagens e de seus documentos ampliados reivindicam a sua existência. A fluidez das fotos e documentos tremulando na água e no ar, dão novamente uma ideia de movimento vivo ao arquivo e à memória familiar.

Enzo, o bisavô “desconhecido” também é retomado por uma foto ampliada e pela recuperação de suas aparições nas colunas sociais e de esporte dos jornais da época. Como a narração em voz over anuncia,  a descoberta dos rastros dele existentes no jornal marcam o nascimento de uma nova família. Como as manchas do leopardo, ausência (de relação concreta) e presença (pela herança genética) são marcas constitutivas inapagáveis. Mas ao contrário das figuras femininas, o bisavô reencontrado sobretudo nos arquivos de jornais tem o seu registro riscado pela edição do filme. A sua reformulação no arquivo familiar não é pela permanência de uma imagem perdida ou pouco vista, mas pelo apagamento deliberado do arquivo oficial.

Assim, no curta, a busca da bisneta em arquivos históricos por traços de sua presença não se move para um reencontro ou uma resolução (compensação ou reparação). Os seus vestígios são mostrados para serem logo em seguida apagados, riscados. Há portanto no processo performativo da obra mais a ideia de reformulação, do que de compensação ou reparação. Nyong´o definirá esse processo de reformulação como o de “uma articulação da perda” sempre imensurável. Assim, encontrar os resquícios de Enzo no jornal não reestabelece ou cria laços afetivos, mas cria uma agência possível na arte fabular da bisneta sobre ele. Um processo também de fabulação crítica do arquivo familiar que redimensiona (para maior ou menor) a importância dos sujeitos históricos, invertendo a dominância do homem branco para as mulheres negras.

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India Matri Bhumi: fábulas indianas narradas em documentário

Por Carla Oliveira

o amestrador de macacos

India: Matri Bhumi (1959), inédita no Brasil até ser apresentada na mostra 6x Rossellini: Uma Homenagem à Cineteca de Bologna (no Festival do Rio de 2014), é uma obra única na filmografia de Roberto Rossellini. Exaltada por Godard, que comparou seu formato documental enriquecido com segmentos ficcionais que abordam mitos e costumes do país retratado a obras-primas do gênero como Tabu (Tabu: a story of the south seas, 1931), de Murnau, Que viva México! (¡Que Viva Mexico! Da zdravstvuyet Meksika!, 1979), de Eisenstein, e É tudo verdade (It’s all true, 1993), de Orson Welles, é ainda pouco vista e discutida.

Depois de ter realizado filmes — Alemanha, ano zero (Germania anno zero, 1948), Stromboli (Stromboli, terra di Dio, 1950) e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) — nos quais seus protagonistas se deslocam para países (Alemanha e Itália) que haviam sido devastados pela Segunda Guerra, deparando-se com o fantasma da violência, a força da natureza e sua própria humanidade, Rossellini decide empreender uma jornada própria para um país rico em narrativas, bastante distintas das europeias. O roteiro de India: Matri Bhumi, que contempla a faceta poética da Índia, sem deixar de lado as preocupações éticas e sociais que sempre assolaram a obra neorrealista de Rossellini, foi escrito por ele, junto à escritora Sonali Senroy Das Gupta (que se tornará sua esposa) e ao diplomata iraniano Fereydoun Hoveyda. Formado na  Sorbonne, o cinéfilo Hoveyda escreveu para a Cahiers du Cinema, entre 1955 e 1965. Era um apreciador do cinema do calcutaense Satyajit Ray e, na sua lista de melhores filmes elaborada para a mítica revista, destacou O tigre da Índia (Der tiger von Eschnapur, 1959), de Fritz Lang, como o melhor filme desse mesmo ano em que India: Matri Bhumi concorreu ao prêmio máximo no Festival Internacional de Cinema de Moscou.

Fritz Lang e Rossellini foram dois dentre vários cineastas europeus que lançaram seus olhares para a Índia no período posterior à sua independência em relação à Inglaterra (a qual se deu em 1947, como decorrência da segunda grande guerra). O tigre da Índia, de Lang, teve uma sequência: O sepulcro indiano (Das indische grabmal), lançada no mesmo ano. Ambos foram baseados em um livro de sua ex-esposa, Thea von Harbou, e narram o encontro e o espanto de um europeu com o exotismo da Índia, em uma história repleta de romance e aventuras. Lang fez várias viagens para a Índia, mas a realização dos filmes se deu na Alemanha. O pioneiro dentre esses cineastas, contudo, foi Jean Renoir, por quem Rossellini nutria grande admiração. O rio (The river, 1950), adaptado da obra da escritora Rumer Godden, é uma obra ficcional, que aborda temas humanistas igualmente caros a Rossellini e contém traços documentais, principalmente no retrato feito por Renoir das festas e cultos religiosos. Fiel a seus preceitos realistas, filmou em Bengala, às margens do Ganges. Pasolini, em 1961, empreendeu uma viagem à Índia na boa companhia de Alberto Moravia e Elsa Morante que resultou no livro O cheiro da Índia, não propriamente documental, e no filme sobre um filme: Appunti per un film sull’India (1968), no qual discute mitologia, costumes e realidade social. Louis Malle filmou um extenso documentário para a TV,  L’Inde fantôme (1969), onde se destaca o segmento Calcutta, focado nas crises políticas e sociais pelas quais o país passava. Marguerite Duras, na França, realizou India Song (1975), obra-prima experimental que retrata a decadência de europeus abastados que compunham a Índia branca colonial nos anos 30. Conflitos morais dos europeus na época colonial também foram abordados por David Lean em Passagem para a Índia (A passage to India, 1984), baseado no livro homônimo de E. M. Forster. Peter Brook e Jean-Claude Carrière fizeram numerosas viagens à Índia na preparação da peça Mahabharata, posteriormente adaptada para a série de televisão The Mahabharata (1989-1990).

O Mahabharata e o Ramayana, que alimentam o imaginário ocidental, são os principais poemas épicos da Índia antiga. Junto aos Vedas, transmitem ensinamentos morais e são a base da mitologia hindu. Foram, inicialmente, transmitidos oralmente. Ainda hoje estão onipresentes entre os indianos, que desenvolveram ao longo de sua história apreço pela arte de contar. A música e o teatro indianos também muitas vezes se aproximam do mito e do sagrado, assim como o cinema, que já impressionava o ocidente desde que Raj Kapoor apresentou O vagabundo (Awaara, 1951), no Festival de Cannes de 1953, e Satyajit Ray, A canção da estrada (Pather Panchali, 1955) — primeiro filme da Trilogia de Apu — , no mesmo festival, em 1956. O cinema de Kapoor  estabelece o estilo de Bollywood: é romântico, tem temática social e utiliza canto e dança como elementos narrativos. Já o cinema de Ray é de cunho realista. Seus temas são também sociais e sua abordagem é bastante humanista.

trabalhador da represa

Em India: Matri Bhumi, Rossellini filma em cenários naturais e se vale da fábula e da poesia para oferecer uma contemplação sobre a Índia. Nos créditos iniciais, vemos imagens de deuses esculpidas na pedra: Shiva, com suas três faces, como um deus que pode assumir todas as formas; e Ganesha, um deus híbrido: tem corpo de homem e cabeça de elefante. Sons de instrumentos musicais indianos ajudam a dar significado às imagens mitológicas.

A seguir, cenas de Mumbai (antiga Bombaim): o porto à beira do mar arábico e a multidão. Um narrador bem humorado e generoso nos fala do cosmopolitismo da cidade, uma das principais portas de entrada para a Índia. Dentre os que caminham por suas ruas, em meio a vacas e variados meios de transporte, há pessoas de várias religiões, de grupos étnicos distintos, descendentes de todas as castas. O narrador as vê como um grupo pacificado e tolerante, em constante deslocamento rumo ao trabalho, ao descanso e ao divertimento. Rossellini não procura (ou explora) a miséria e a doença. Cartazes de filmes de Bollywood são vistos em toda parte.

Mudam o ritmo da música e a paisagem. O narrador parte em busca da Índia  profunda e tradicional. Sua fala, antes frenética, se torna pausada. Passamos a ouvir os sons da natureza. Planos longos acompanham o movimento dos animais e de um rio. Imergimos em uma jornada visual e sonora, como se a mudança do espaço nos levasse a uma viagem no tempo: um caminho ficcional, poético, fabular pelo qual Rossellini nos faz enveredar. Vemos paisagens do sul da Índia: templos, rios, lagos e florestas. Nessa localização, naquele momento, os elefantes eram utilizados como força de trabalho. A relação entre os condutores de elefantes e os animais é mostrada. Suas jornadas de trabalho comparadas. Então, acontece a transmutação do narrador: ele passa a ser um dos condutores de elefante. Passamos indiscutivelmente do documentário para uma fábula, que fala de trabalho, amor, costumes de família, casamento, gestação e nascimento. Isso porque ambos se enamoram simultaneamente, o elefante e o gentil condutor. Uma jovem cantora participante de um grupo de titereiros encanta o nosso narrador. Ele precisará de pausas na sua rotina extenuante de trabalho para viver esse amor. O elefante, também.

condutor de elefantes

Fim da primeira fábula, serão quatro. Volta o nosso primeiro narrador, admirando imagens do Himalaia, onde nasce o Ganges: rio que purifica, que significa a vida. Ele fala do karma, do peso dos nossos atos, discutido no Mahabharata. Passamos para imagens de uma construção de uma barragem em um rio paralelo ao Ganges. A narração passa a ser assumida pela voz de um dos trabalhadores, um migrante que precisou sair de Bengala Ocidental depois da partilha que deu origem ao Paquistão. Ele é um entusiasta da modernização e do progresso. Finda a obra, ele precisa partir para encontrar outro emprego, o que aborrece sua esposa que quer continuar vivendo na mesma terra onde teve seu filho. Ele sente orgulho por ter construído a represa. Acha que é uma construção muito mais grandiosa que um pequeno templo que terá que desaparecer. Toma banho no lago artificial da represa ao invés de purificar sua alma em um rio sagrado. Corpos de trabalhadores mortos são cremados às margens desse mesmo lago. É uma fábula que fala da interferência do homem na natureza e do desafio ao mito e às tradições.

A terceira fábula aborda a velhice. Em um povoado junto a uma antiga fortaleza muçulmana, o narrador, que agora é um senhor de 80 anos, se vê incapaz para o trabalho. Vivendo junto à família, próximo a uma floresta onde se escuta o canto de amor dos tigres, ele sente necessidade de uma vida contemplativa. A harmonia da paisagem e o cotidiano da família são abalados pela chegada de um grupo explorador de minérios. Com a mudança do ecossistema, um dos tigres ataca um homem, algo que nosso narrador nunca tinha visto em toda a sua longa vida. Ele fica ao lado do tigre, pois sempre viveu integrado à natureza.

Em uma região muito quente, um homem e sua macaca amestrada se dirigem a uma festa religiosa. Ele, que poderia ser o narrador desta quarta fábula, morre de calor. A macaquinha consegue se soltar do corpo morto de seu dono e vai só à feira, carregando um pedaço de sua corrente. O condutor principal da história, o narrador viajante, seguirá nos relatando os infortúnios do animal. Na feira, ela fará seus truques e recolherá moedas que não sabe para que servem. Ficará só. Ao tentar interagir com macacos selvagens, será repelida. Eles sentem o cheiro do homem nela. Sua única saída será encontrar um novo dono. Não escapará da domesticação e das correntes.

Rossellini documenta, em India: Matri Bhumi, a realidade contemporânea da Índia: suas questões sociais e morais, a modernização, a interferência do homem na natureza. Os fragmentos de vida relatados nas fábulas mostram o quanto havia de passado naquele presente. Os animais mais emblemáticos da Índia – as vacas, os elefantes, os tigres, os macacos – foram usados como partícipes da narrativa. Uma outra forma de relato, menos poética, não nos causaria o mesmo efeito.

 

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Homens têm segredos, mas não mistérios

Por Felipe Leal

Noites de cetim branco

que nunca chegam ao fim

(The Moody Blues – Nights in White Satin)

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Pode se dizer d’Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close, 2011) que há uma fluidez diegética típica à duplicidade que costuma se atribuir à “grande arte”: simultânea e perfeitamente bem, ora o que se vê é a decadência entrópico-biológica das cortesãs de uma casa de prostituição na passagem do século XIX ao XX, ora há uma evidência da trajetória do desejo e do lugar social masculino perante àquelas que, por percurso trágico (ou tardiamente trágico), são escolhidas para servir de bonecas especializadas às descargas pulsionais desses que, em público, jamais ousariam assumir o corpo por inteiro. Em outras palavras, certamente vulgares: há uma crítica a algo da ordem do “real”? Há uma ficção desamarrada de pujança social, ainda que ligeiramente? A questão, que não demoraríamos a perceber como moral, encontra para vias de intensificação deste elemento um punho fabular melancólico, posto que àquelas mulheres não há relação ou uso que não passe por um espelhamento sob a lógica de uma torre de Quasímodo: o tanto que sonham com a liberdade, com a compra de suas propriedades físicas, corporais, é o tanto que devem pagar, literalmente, atuando qualquer fantasia até que se tornem quase rijas como bonecas, funcionais como a materialidade correspondente do cruel excedente masculino. Moldáveis, sagazes – mas mortas.

O fabular É. Se encerra num baque e, no seu sentido, produz sentido: a situação que lhe provoca aquilo do lecionável opera por lugares cuja fixidez é obrigatória e se dá por repetência, sem que isso seja pejorativo, apenas da ordem do micro-cósmico; fixo porque a mobilidade de seus elementos é pré-registrada (não se fala necessariamente de uma causa-consequência, mas de algo do trágico para alguns, saliente para outros, uma vez que alguém deve pagar um custo para que um terceiro saiba, se exceda e aprenda), repetido, seriado, porque propriamente mitológico, cada qual encarna seu lugar no jogo da história que só aparenta ceder liberdades na progressão que Bonello peculiarmente chama de Crepúsculo à Aurora. Como num sistema mercantil apodrecido, todas eventualmente se endividarão com a matrona para pagar por aquilo (perfumes, loções, antissépticos) sem o que não podem trabalhar – para se endividar mais. A realização fantasiosa que as garante a miserável estabilidade é também o motivo do bocejo e do cansaço: têm de repetir o que os homens não podem exigir às esposas até que a corrente de papéis não lhes faça entrever outra opção que não fantasiar a própria saída – a liberdade que nunca será dada, consumada, por quem precisa que elas existam. Mas o nó fabular já acusa seu teor agravante na catapulta que as lança da esperança sorridente ao choro extático coletivo. Não há impossibilidade, só perpetuação.

Bonello faz de qualquer plano inicial o assombro e a epítome de sua esteira: num corredor iluminado, alaranjado, de frestas e buracos escuros como que vazantes, uma cortesã enlaça a outra: “Não se preocupe, hoje você vai ser escolhida para a liberdade”, e ambas somem no negrume replicado que acusa segredos e casulos, continuando o caminho para o salão onde são selecionadas, jogam, ouvem histórias e se embriagam, ou adentrando as redomas fetichistas que diversas vezes nos aparecem como split screen: quatro quadros de um trabalho de Sísifo, interpretado como uma vitrine de natal repetente. Quase nada mais é filmado em termos de arestas do que estes corredores, quartos ou pequenos salões. Como na cápsula de vidro que tão bem caracteriza a obra-prima de Silvia  Plath, uma relação entre o estranho e o cognoscível, o explicitamente contratual (à luz do aceitável) desponta como a sustentação de uma espinha fantasmática. O exercício daqueles que as contratam é dar forma àquilo que sequer conhecem, o exótico do desejo que, se pronunciado na rua, causaria quiçá mortes literais – e não assombrará que “as negras custem 100 [da moeda] a mais” –; a constatação das mais lúcidas, ou ousadas, é que o melhor é “se entregar direta e rapidamente à gonorreia” ou às drogas, acelerar a morte que é o único destino ao horizonte.

Um acelera a morte daquele sem o qual não conseguirá (sobre)viver.

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E todos entram em seus paradoxos: eles fingindo não se importar que a sobrevivência daquelas casas depende de um quesito cada vez mais financeiro, ao mesmo tempo em que recusam a ajudá-las ou assumi-las além da luminosidade pública, elas adiando a ação que romperia o sistema que as torna mais endividadas e menos passíveis de exercer qualquer liberdade até mesmo de individuação. Mas há algo naquelas mulheres que as faz exceder, para além do óbvio protagonismo cênico e narrativo, por natureza, qualquer domínio que aqueles sobre elas parecem ter: talvez porque privadas de uma vida “no fora”, inerentemente cegas à concepção de algo além dos corpos e mensagens vagas, pois, portanto, mestras no ofício do transformismo, são todas ainda assim as que adivinham, conduzem, ou seja: criam, dão forma, são O prazer, O faltante, O contínuo do outro. E não faltarão planos, porque aliás todos se compõem sob esta elegia à parte-pelo-todo, em que os coletivos de seios e clavículas, ou de coletes e pelos pubianos, se mostrem duplamente singulares e misturados. Todo corpo é, sozinho, e também por conta dos outros, sejam estes semelhantes ou antagônicos. No jogo de carteado que as anuncia um futuro que querem saber e sobre o qual cospem em descrença, mandíbulas trêmulas, unhas roídas e pupilas enfadadas entoam o mesmo desejo. Cada homem chega praticamente nas mesmas vestes e se desdobra numa especificidade delicada de realização em cada secreto quarto.

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Os artifícios e joalherias das prostitutas centuplicam o espectro conhecido de cores, mas por que é mais fácil lembrar, e curiosamente longe do dualismo, da completa escuridão das câmaras e dos corpos iluminados? Porque, como ordenam os sonhos, a fantasia, o excesso, o ficcional, isso que escorre entre os homens melhor acontece numa caixa preta da qual só lembramos por iluminuras. O filme desponta com a questão: “Você se lembra com frequência dos seus sonhos?”, ao que A Mulher Que Ri, pela negativa, sofre a tragédia do lampejo de um preenchimento (sonha que ele goza e ela é tão inundada que lacrimeja sêmen) seguido de dois rasgões na pele do rosto que era seu pão. Fadada a rir eternamente, cumprir-lhes a plenitude que vêm buscar na caverna dos sonhos, à força. Mas por que Bonello nos lembra que é simplíssimo recorrer à heterogeneidade de mulheres e à simplificação dos homens numa só figura? Os muitos séculos de mal contada história o provam, e ainda mais ironicamente o metteur-en-scène: dobrado numa icônica passagem de século, o risível do “progresso” fica melhor eternizado. Uns caçam, outras coletam e cuidam? Uns trabalham, outras zelam pelo fruto do emprego daquele? Uns melhor indicam, norteiam, outras se apresentam menos capacitadas? Assim a ciência o produziu em literatura: Samira, a árabe exo/erotizada, se debruça em prantos com o livro emprestado de antropometria cefálica que a diz que prostitutas e criminosos possuem crânios menores pelo menor uso das capacidades cerebrais.

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E o duplo engano o tempo inteiro ululando na sedução: nem todas as capacidades são racionais (sobretudo aquelas pelos quais os tolos e bestas mais anseiam), nem aquilo que a inteligência elaborou se sustenta sem aquilo que ela não conseguirá jamais conceber: se existem as putas é, também, porque algo de sistêmico e facilmente tornado negócio ameaça a inexistência mesma do estrato que as encerrou nas casas e agora as relega às ruas. Poderia Bonello ter acendido a fagulha de uma previsão desastrosa? Assim como aquela que Ri sonha com seu assassino mascarado, a prótese terá, no seu início pelo corpo, evoluído das máscaras aos anonimatos contratuais totais? Fala-se do capitalismo exaustivamente como um lobo, mas terá outro modo de troca um potencial de epidemizar mais o adoecimento do corpo até que este seja pura boneca escorrendo um líquido que mata, ao invés de nutrir? Findam todas exaustas em noites de cetim, todas “menos uma”, a que participa do choque anafilático temporal que é a cartada premonitória. A redoma de vidro pode muito ter virado a própria atmosfera, então, porque deste mundo é preferível nunca ter participado.

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Valerie e sua semana de deslumbramentos: para se perder em uma fábula

Por Chico Torres

 

Livre de qualquer responsabilidade, a fantasia pura se entrega a esses jogos cromáticos.

(Walter Benjamin em Livros infantis antigos e esquecidos).

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As Fábulas de La Fontaine representam uma das lembranças mais significativas de minha infância: mais do que “a moral da história” contida nas adaptações feitas pelo autor francês, o que ficou verdadeiramente gravado em minha memória foi o modo como aquelas breves narrativas eram ilustradas pelas gravuras em preto e branco de Gustave Doré. Hoje sei que as fábulas, assim como o conto de fadas, estão historicamente ligadas a qualidades do universo infantil fundamentais: primeiro a oralidade, depois a ilustração.

Então, me surge a questão: é possível construir uma fábula através de um filme? É possível compor uma “fábula cinematográfica”? Se por questões óbvias, o cinema não é capaz de reproduzir fielmente os efeitos de uma fábula oral/livresca, conseguiria ao menos se aproximar, através de uma composição ou reconstituição, da fábula nos moldes tradicionais? Talvez nesta edição da Multiplot! alguns textos contemplem filmes que vão nesta direção. Por outro lado, penso que o cinema, em seu natural antropofagismo, surge para estabelecer crises em tudo aquilo que toca. No território inimigo do cinema, é possível que a fábula, portanto, seja posta ao avesso e sirva como lastro para a construção de narrativas que podem, inclusive, serem metáforas sobre a própria impossibilidade de se contar histórias como antigamente.

Este parece ser o caso de Valerie e sua semana de deslumbramentos (1970), filme de Jaromil Jires. O diretor, que fez parte da instigante New Wave Tcheca (cito aqui alguns filmes que me vêm à memória: As pequenas margaridas, de 1966; Trens estreitamente vigiados, de 1966; Marketa Lazarova, de 1967), arquitetou um filme que faz jus à sua fonte de inspiração, o romance homônimo de Vítezslav Nezval, escritor ligado ao surrealismo. Por outro lado, o aspecto vanguardista do filme torna-se mais significativo ao se desenvolver sob o pano de fundo da fábula e do conto de fadas: Valerie é uma jovem que vive com sua avó em uma pequena cidade aparentemente feudal. Em um plano maquiavélico, a mulher resolve entregar sua neta a um monstro que em troca promete lhe devolver a juventude perdida. Nesse sentido, há no filme diversas características que remetem ao universo da fábula e do conto de fadas: a presença diabólica e do encantamento por magia; o bucolismo medieval e renascentista, que geralmente compõe o universo fantástico dessas histórias (certamente as fábulas se desenvolveram com mais intensidade nesses períodos); o excesso de cenários e do aspecto pictórico dos planos, reiterando a presença das ilustrações e das cores, elementos característicos do universo infantil.

Valerie parece estar além e ao mesmo tempo aquém em suas intenções simbólicas, não se constituindo nem como fábula e nem como obra propriamente surrealista, encontrando-se em um limiar raramente explorado na história do cinema. Ainda que as associações simbólicas se constituam de forma frágil, suspeita e quase gratuita, através de uma narrativa nonsense que ironicamente pretende dar uma direção, tais associações compõem um filme que consegue ser extremamente crítico, no conteúdo e na forma.

Certamente, o elemento chave da obra é a conscientização de Valerie sobre sua sexualidade. Presenciamos o momento em que, enquanto caminha entre flores e pedras, ela menstrua pela primeira vez e mais adiante confessa: “Eu não sou mais criança, vovó”. A jovem possui um par de brincos que representa um jogo de “perde e ganha”, o que pode significar o lugar de transição no qual ela se encontra (entre a criança e o adulto), passando a compreender que seu corpo se constitui como objeto de desejo. É magistral a forma como se dá a construção desse lugar de Valerie, um misto de ingenuidade e curiosidade sexual que faz com que ela consiga ser o verdadeiro elemento transgressor do filme, já que seus perseguidores são vampiros que escondem desejos perversos sob o aval da religião.

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Com exceção de Orlik, personagem que serve como par romântico e testemunha ocular das desventuras de Valerie, todas as figuras masculinas do filme são monstruosas e ameaçadoras. Valerie vive imersa nesse mundo de criaturas quase mortas, mas sua curiosidade e identificação estão voltadas para outra camada social: a de indivíduos que parecem viver num paganismo que se afirma através de uma vivência sexual sem pudores. Essas personagens aparecem de forma quase sempre alegórica e, basicamente, têm como função expor o voyeurismo de Valerie (todas as cenas de sexo desse grupo se dão em ambientes abertos e quase sempre são testemunhadas pela adolescente), servindo de contraste ao moralismo religioso, representado no filme por figuras monstruosas e perversas.

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No entanto, na segunda metade do filme se evidencia mais nitidamente seus aspectos, como não acho outro termo mais adequado, surrealistas: a obra se torna extremamente confusa, com um entrelaçar de situações e ambientes que provocam um incômodo que só pode ser sanado pela sempre impecável direção das cenas. Ainda que durante todo o filme a linearidade narrativa seja subvertida, não obedecendo a uma lógica espaço-temporal, nesta segunda parte a obra deixa transbordar seu desejo de nos provocar de modo radical, de elaborar seu caráter crítico mais especificamente em relação à forma. Se nós esperávamos, mais ou menos confortáveis, o desfecho da estranha fábula, somos jogados em uma história que deixa de comunicar qualquer relação razoável entre os acontecimentos, aprofundando seu aspecto irônico e iconoclasta. Valerie se encaminha para um desfecho em que todas as figuras arquetípicas se integram, literalmente, numa dança surrealista dentro da floresta.

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Não há mais o bem e o mal. Não importa se Valerie será salva das garras dos monstros ou não. Ela agora está integrada a eles, integrada a tudo que é profano e a tudo que é sagrado. A crítica presente no início do filme se dilui em imagens deslumbrantes, em entrega ao que é dado sem julgamentos morais ou elaborações racionais no sentido cartesiano. Valerie é um filme belo e desconcertante que nos mostra, ao mesmo tempo, a subversão de uma tradição e as mazelas que estão em suas origens, e a impossibilidade de reconstituir aquilo que já não pode mais ser moralizado. Valerie é, antes de tudo, uma fábula amoral.

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Fantasmas e reminiscências – as formas de diálogo entre tempos nas Hong Kongs de Stanley Kwan e Wong Kar-Wai

Por Gabriel Papaléo

No início de Dias Selvagens, segundo filme dirigido por Wong Kar-Wai, Yuddy, o personagem vivido por Leslie Cheung diz para Lai-Chung, vivida por Maggie Cheung: “Por conta de você, lembrarei desse minuto para sempre.” Em Rouge, de Stanley Kwan, o espírito da personagem Fleur vivida por Anita Mui se apaixona pelo marido arranjado sem saber do destino que os aguarda. A construção da mitologia da memória é feita com fantasmas palpáveis, e o cinema de Kar-Wai e Kwan nesses filmes se baseia na relação que seus personagens têm com a ciência dos sentimentos que contém e que emanam. O tempo fugidio é como um catalisador de olhares, e a noção do fim que torna os personagens em Dias Selvagens nostálgicos é a mesma que falta na fantasma de Mui em Rouge, e que faz dela uma errante.

Essa galeria de personagens perdidos em seu presente pelos desencontros amorosos que experimentam complexifica as ideias de romantismo aderidas por ambos os diretores, o do relacionamento surgido por motivações sociais e sacralizado pela tragédia inerente ao romantismo em Rouge, e as promessas impossíveis e falta de cotidianos divididos em Dias Selvagens – esse último um reflexo direto de certa tradição pelo gestual de mulheres que sofrem com seus amores egresso do melodrama chinês que Wong Kar-Wai preza por, algo visto mais diretamente em Amor à Flor da Pele (2000) e Hua yang de nian hua (2001), curta do diretor composto exclusivamente por trechos de longas chineses antigos selecionando danças, beijos e cantos das personagens que reverencia, e veio a trabalhar nas suas próprias narrativas.

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Em Rouge, o amor construído sobre os signos do romantismo, dos gestos políticos do casamento, contém o luxo que se espera de tal sociedade de rituais – ritual esse que leva à aproximação de Fleur e seu amado. Todo o lastro emocional construído nesse prólogo na conversa franca com o amor impossível dos grandes gestos é devastado pelo plano de Hong Kong dos anos 80, no escuro da cidade, na noite dos abandonados à metrópole. A cidade do presente, com os empregos burocráticos, com os encontros em restaurantes a céu aberto sem o glamour, vivendo de fabulações esgotadas, testemunhadas pela fantasma vivida por Anita Mui, refém de um olhar de seu passado morto.

Ou estariam esgotadas de fato as fabulações românticas? O estado suspenso de Fleur, à deriva e à descobrir as traduções contemporâneas dos gestos do amor, bate de frente com o ideal fabuloso e fabulesco da sua memória de casal. Na cena do ônibus, ela constroi e desfaz toda a tensão com Yuen ao passar por lugares que lembram seu amado, mas não estão mais por ali – como um travelogue de experimentar o desfazer das memórias afetivas, uma legítima experiência de transporte coletivo dos trânsitos de cidade. É ao se deparar com a namorada de Yuen, e com a simplicidade do apartamento do casal, e sua cumplicidade afetuosa, que Fleur se entende no 1987 do filme. Aprende ali com o cotidiano desse novo amor diante da nova Hong Kong, o casal com roupas simples e pouco caracterizadas dentro de uma cultura chinesa, cujo apartamento guarda diferenças arquitetônicas irreconciliáveis com a opulência da residência do passado de Fleur – e que mesmo assim, e talvez por isso, se une para ajuda-la. Os pequenos atos de esforços de afeto se renovam conforme gerações.

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O que se renova em gestos, no entanto, não é atualizado na ansiedade juvenil pelo fulgor do aqui e agora. Em Dias Selvagens, a fuga como sinal do amadurecimento que afasta os amados é a mesma de Yuddy da mãe, do relacionamento com a personagem vivida por Carina Lau, e também da sua amizade de circunstâncias com o Tide de Andy Lau. Muitos são os relógios ao longo do filme, todos singelos no ambiente mas em quadro, por vezes altos em símbolo, por vezes baixos em volume – o amor está passando, a juventude também, os tempos mudarão.

A tentativa de projetar futuros onde eles não existem, paisagens que mudam com a frequência que apenas uma fuga propicia. O não criar dos laços emocionais com lugares parece a base errante desses personagens fadados a nostalgia, principalmente no protagonista masculino de Dias Selvagens. Yuddy vive de trambiques e embarca em relacionamentos com fins muito demarcados concomitantemente à busca por alguma realeza talvez herdada do pai ausente, nas Filipinas de florestas esverdeadas da fotografia de Christopher Doyle, um lugar estrangeiro diante dos olhos e cuja localização espacial é radicalmente diferente de Hong Kong; mais um terreno propício a desencontros, a uma viagem em busca de respostas que traz apenas novas perguntas e desarranjos. Nos espaços vazios que filma, na investigação de Yuddy, Kar-Wai imagina as historias ali contidas e não acessadas por distanciamento historico, cultural, de país, enquanto organiza um final de esperas por futuros não consumados, de chuva e silêncios, de Lai-Chung aprendendo sob a distância do afeto.

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O cinema surge portanto como forma de reencantar a rotina ao redor para tornar imagem a distância de corpos. Em Dias Selvagens, sob relação mais abstrata, na forma que Wong Kar-Wai se apropria do suspense, do road movie, do filme de luta no segmento das Filipinas, para trafegar seus personagens incertos pelos lugares. Em Rouge, na literal visita a um set de filmagem, a despedida de dois enamorados, uma jovem fantasma e seu amante que sonhou ser um velho, para o beijo derradeiro ser o mais poderoso gesto diante dos voos graciosos e contemplativos do wuxia filmado nos arredores. É como se o poder dos grandes gestos que o cinema fantástico produz ressignificasse – e sobretudo potencializasse – a afetividade que testemunhamos em tela, cheia de peso histórico e contexto, como a Hong Kong que visitamos, como o amor através dos séculos, como o voo dos lutadores.

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A fabulação trabalha sob a estrutura do melodrama nos dois filmes, como um véu fantasioso além vida diante dos eventos e desencontros que acometem os casais fadados a últimos encontros e frustrações. Essa talvez seja a forma tanto de Kwan quanto de Kar-Wai de encapsular suas obras em tempos presentes cortantes, desviados, sempre despidos diante da nostalgia; saudar o passado com os futuros que poderiam ter acontecido mas não o foram é esse ato de romantismo fugidio que os jovens que eles filmam aderem tanto, por noção das escolhas pessoais que os formarão, pelo amadurecimento que sentem chegar longe e o abraçam de formas inevitáveis, no fluxo da vida que por vezes nos chega sem esquemas, sem precisões. Que esses personagens saibam fazer as escolhas difíceis que vemos em Rouge e Dias Selvagens ilumina a inteligência emocional daqueles atos, e portanto ajuda a renovar as noções de romantismo que a literatura, a música, a pintura, e o cinema falam há tantos séculos. A passagem do tempo existe, e quem percebe esse fluxo pode entender melhor as decisões que toma; o abraço a nostalgia facilitadora raramente coexistirá com o presente nos quais vivem as crias de Kwan e Kar-Wai, personagens amargurados, frustrados, mas nunca resignados ou desprovidos de sonhos de futuros.

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Fantasmagorias do Presente

Por Bernardo Oliveira

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No império da opinião, a fabulação toma, por vezes, a forma de uma performance: é na base de stories, posts, podcasts e videocasts que a doxa circula na atualidade. Ainda assim, o ato de fabular parece corresponder inevitavelmente à arte de (re)contar velhas histórias e, como consequência, cristalizar representações correntes. Ordenando-as sobre o diagrama de uma temporalidade contínua, obtém-se a conservação do dinamismo cronológico, garantindo à fabulação o poder de fixar mitos do passado, reforçando tradições precárias em evidente descompasso com fendas abertas pela carga de desorientação acumulada no presente. Tal procedimento acaba por declivar para uma espécie angustiante e abstrata de “futuro”: o futuro moral, com toda sua carga de egoísmo, consequência e expiação, uma perspectiva de futuro que herdamos de forma muito variada da religião, da guerra, da ciência, do capitalismo… Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?

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Esta “segunda pele” sobrepôs-se à fabulação comum, que, atualizada pela vida bioconectada, revelou uma legião manipulável de espectros opinativos. O “era uma vez” da fabulação comum se alastrou como incêndio na rede, abrindo precedente para uma versão reduzida da comédia humana, reproduzida por engrenagens semelhantes as que fabricam o boato, a fofoca, a autodepreciação e, como não poderia deixar de ser, a notícia jornalística. Desde que os presidentes dos Estados Nacionais resolveram se comunicar com a população por frases bombásticas disseminadas em rede, o caráter estrategicamente auto-depreciativo da fabulação cínica — a mais tenebrosa contração do populismo — adquiriu colorações ainda mais torpes. Os recentes capítulos da novela política brasileira indicam que permanecemos estranhamente desatrelados tanto das evidências trágicas do passado quanto das promessas de um futuro cada vez mais oscilante e imprevisível. A internet como a contraditória auditora de uma falsa universalidade, aniquilou a “metanarrativa” e expôs, muitas vezes sob a forma da certeza moral, o histriônico fracasso da aldeia global. Em comum desacordo com o coro trágico da opinião terraplanista, eclodiram, aqui e ali, os vaticínios calamitosos, as teorias do fim do mundo: o Antropoceno, o esgotamento, o “acabamento”… Em meio à desorientação multifária produzida através das redes, a fabulação teria ainda o poder de criar um presente desembaraçado de todo fatalismo? 

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O cinema, contudo, parece manter a confiança na fabulação, pelo menos como um meio para abrir os caminhos a outras experiências do presente. A chamada “estética do fluxo” visava identificar experiências calcadas na captação de um escoamento aleatório em oposição a uma ordenação narrativa organizada cronologicamente. Como um ativador eficaz , o cinema provoca uma outra sorte de desorientação, distinta daquela que percebemos hoje na alagmática da informação. Uma desorientação ativa e programada apta a cavar desequilíbrios em meio a um aqui-e-agora excessivamente texturizado pelo tempo cronológico. Não apenas desconstruindo a memória que se atualiza de forma errática na proliferação, por exemplo, do linchamento virtual, mas também refabulando as memórias de um futuro que foi cancelado e se alastra como uma legião de malin génies extraviados. Há, como contraexemplo, uma memória muscular que, sendo póstuma e simultânea ao gesto, desdobra a centralidade do presente em outros possíveis — como quando tocamos automaticamente os acordes e sequências harmônicas em um instrumento musical. Neste caso, a memória faz um duplo movimento, fabulador e transindividual: emana dos corpos, incide sobre os corpos, ativando e atualizando uma pluralidade de fiapos soltos, vivências incompletas cuja continuidade deixamos a cargo da imaginação. O cinema atualiza resquícios que fazem parte de um campo de possíveis, de forças que desfiam-se e proliferam no instante, esculturas temporais revestidas por uma superfície porosa através dos quais penetram os fluidos da imaginação. Uma saraivada de tempo: temporada.

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Penumbra. Um casal acordando, o plano frontal enquadra a cama. Com a garganta ainda ressecada, uma voz sussurra “bom dia”. Outra responde, inicia-se um diálogo, trocam-se amenidades, alguém observa uma insônia… Passaram a noite juntos, mas o diálogo permite entrever um acréscimo de cuidado no tom, na escolha das palavras. Um casal cujo encontro se deu muito recentemente, pois há um grau moderado de intimidade. Posso abrir a janela? Pode. Ele está na casa dela. Ele se move e abre a janela. A luz invade, ele vai de encontro à luz, observa um galpão. Uma transportadora, que, segundo ela, costumava fechar às 22h, mas agora “vai direto”. Ele olha o prédio em frente: uma construção inacabada, enquanto ela emenda a pergunta: “posso te mostrar uma coisa? Fecha a porta do banheiro e a cortina, bem fechada.” Ele fecha e, ao olhar para cima, repara que o reflexo invertido da rua, graças ao efeito de câmera escura. Ele conta como descobriu essa técnica, na TV Minas ainda no final dos anos 90. Um feitiço técnico, um dispositivo egresso do campo de mutações constituintes do cinema, libera toda uma fantasmagoria do atual: reminiscências desprovidas de solenidade, contadas na beira da cama, misturam-se a evidências quase imperceptíveis sobre a situação da cidade, da política, do trabalho… Em simétrica oposição à “estética do terror” de Friedrich Kittler, que consistia em projetar “uma imagem fantasmagórica de nosso presente como futuro”, André Novais instala um regime de fabulação difusa, extraindo uma espectralidade dilatada que adere a tudo aquilo que a câmera torna atual.

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Mas ainda não se pode entregar tudo de bandeja à uma lógica do acontecimento sem que nos lembremos do devir, do escoamento inexorável, como “instrumento de uma clínica fina da existência concreta e sempre singular.” O quanto estamos presentes e distantes quando fabulamos uma atualidade? É assim que o presente do acontecimento presenciado e experimentado pelos indivíduos em suas relações transindividuais, resguarda também uma “espiritualidade vivida”, uma dimensão que não diz respeito somente às formas abstratas e míticas da espiritualidade religiosa: “Se não houvesse essa adesão luminosa ao presente, essa manifestação que dá ao instante um valor absoluto, que o consome em si mesmo, sensações, percepções e ações, não haveria significação da espiritualidade”. Vislumbramos em um segundo a eclosão parcial do acontecimento. O espectro do passado sobrevém sob a forma de uma tensão presente que, por sua vez, se expressa como acúmulo de experiências e demais ressonâncias no plano psico-coletivo. Retemos de seu impacto psíquico e sensorial toda uma carga espectral de sensações, possibilidades, mistérios, hesitações…  As forças não se esgotam nesse presente indeterminado, ao contrário, oscilam para todos os lados, absorvem todos os sentidos em bloco. 

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Imagem-enigma: vemos uma esquina, posto de gasolina, carros e ônibus passam. Periferia, a noite cai. Outra imagem, desta vez uma imagem sonora, mas totalmente fora do quando: dois amigos conversam amenidades. A imagem-enigma prossegue, a imagem sonora também. Amenidades. Uma pergunta: “o que você está fazendo?” A resposta, “nada”, lacônica. “Cara, isso é uma câmera, bicho!? O que você está filmando ai? Pra quê isso?” Então, tomamos conhecimento de que se trata de uma filmagem caseira, aparentemente descolada do diálogo que ocorre fora do plano. Alguns registros desarticulados: o plano da esquina, o diálogo e a realidade psicológica de quem filma. Ocorre então um acoplamento que transforma a imagem-enigma, um registro caseiro, em dispositivo dramático, reunindo todas as pontas outrora fragmentadas. Isto ocorre não por captura de uma imagem previamente determinada (mise-en-scène), mas por conexão entre registros de ordem diferentes. A câmera se transforma numa máquina de produzir convergências: os fios soltos e desencapados do espaço-tempo cinematográfico são ativados por um acoplamento entre quadro e extra-quadro. A cena ocorre no plano e fora do plano, o fora habitando o plano e vice-versa. Um provendo ao outro todo o seu movimento, motivo, relação e contexto. Cinema como criação de um dispositivo tecno-dramático, tanto pela decomposição de elementos de narrativa (sincronia, unidade do plano), como por isolamento das linhas (o plano-enigma, a faixa sonora e, enfim, pela “narrativa” e seu teor dramático). O cinema, máquina de esculpir o tempo, engata outra voltagem. 

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No curta Quintal, por exemplo, o que há de aparentemente gratuito ao longo de toda narrativa, não é gratuito, mas latente. Os eventos paranormais e inusitados não parecem constituir uma espécie de suspensão provisória no corpo moribundo da rotina. Pelo contrário, é a rotina que bóia como mosca no leite cósmico do delírio. Idosos marombeiros, pornógrafos estudiosos, místicos e viajantes interdimensionais que se escondem, ocultos, em modos postiços e vidas emprestadas. Em Ela volta na quinta temos a emergência de uma imagem híbrida: modulações da imagem-fluxo, da imagem-torrente como em Sem essa Aranha ou Symbiopsychotaxiplasm, filmes que já mesclavam as cintilações inauditas e obscuras do espaço-tempo cinematográfico, incluindo aquilo que ficava de fora da economia global do plano. Gestos imperceptíveis que correspondem aos movimentos  dos corpos e objetos, estendo-se em uma temporalidade oscilante, variando entre o controle da encenação e o deixa-estar da atuação. O improviso como método, ou, como afirma o próprio diretor: “essa coisa de deixar a cena andar com um plano mais estático, talvez mais aberto, sem tanta interferência…” A familiaridade subjacente à relação entre os personagens transborda uma qualidade coloquial que distensiona cada momento. O prosaico, no entanto, se move de maneira cifrada, a meio caminho de uma narrativa em fluxo, de uma representação que se alimenta das relações familiais (a conexão imediata entre os amigos, a família, o trabalho) e de uma terceira qualidade que irrompe, sempre liberada por algum elemento cinematográfico técnico-gerativo, remetendo-nos simultaneamente à pluralidade do acontecimento e ao que podemos chamar de “origem” do cinema.

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O cinema de André Novais Oliveira encena um tipo de fabulação que se relaciona com essa “adesão luminosa ao presente”, que não atende nem à manutenção antiquária do passado, nem às promessas vazias de um futuro promissor, fincando seu ambiente naquilo que o filósofo Alfred N.Whitehead chamava “o presente insistente”: o presente em relação ao qual atualizamos, com as ferramentas da fabulação, todo um conjunto de experiências que se desdobram na atualidade. Fabular, porém, é também abrir a imaginação como que por infusão, como a erva desprende seu princípio sob efeito da água escaldante. A totalidade está interditada, apenas alguns elementos parecem eclodir, pequenos acontecimentos, microgestos, percepções incompletas… É no entorno desta liquidez apreendida de soslaio que André Novais Oliveira constrói a estrutura narrativa de suas fábulas. É neste grau de percepção da realidade, através do qual vislumbramos, num átimo, a fantasmagórica tessitura de expressões do instante presente, que seu filmes parecem extrair toda uma lógica do acontecimento.

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A Mula (Clint Eastwood, 2018)

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Autor-retrato.

Ao comentar as obras de Hollis Frampton, autor do cinema de vanguarda americano, a pesquisadora Patrícia Mourão sugeriu o pensamento da fotografia como uma vitória do homem sobre a transitoriedade do vidro ao abordar a autobiografia em (nostalgia) de 1971. E complementa: “Tornar-se cineasta, é abrir mão de falar “Eu”; mas não por pudores moralistas ou humildade humanista, e sim por uma crença ética e estética de que os problemas mais interessantes da artes são formais e não subjetivos”. Em devidas proporções, obviamente, este pensamento é recorrente em A Mula, pois temos o autorretrato de Clint Eastwood tirado e exibido no além-superfície de um vidro não material, num filme que elimina a substância e o utiliza apenas como manobra imediata para associações do que é do espírito.

Os primeiros minutos de A Mula servem como um breve acerto de contas de Clint Eastwood com toda sua filmografia e reverberação: enquanto apresenta seu personagem Earl, Eastwood resolve a culpa, guerra, regeneração, cinema, atritos de formas e principalmente arremata questões que acercam um possível discurso nacionalista que sempre foi levantado durante sua carreira. Daí por diante, habemus filme. Filme este que é menos envernizado, que aproveita dos nuances que o digital oferece para certa frontalidade e da imagem altiplana, assim como seu 15h17 – Trem Para Paris.

Mais ácido, ágil e incisivo com a chamada quarta parede, A Mula é ciente do caminho ardiloso a seguir. Na medida em que desenvolve uma trama muito básica, de duas vias paralelas que envolvem justiça e moral, o que está mesmo no foco de Eastwood é como entre luz e sombras das cenas seu autorretrato é exibido, numa espécie de ruptura entre a superfície e os comentários mais aprofundados sobre a simples presença de Clint Eastwood como homem-referência destes complementos amargos, ao contrário do Sniper Americano, filme pouco discutido e muito acusado na época de seu lançamento e por ora esquecido. Não se trata de justificar a ignorância de um senhor de 90 anos no encontro de uma nova era na busca por redenção e sim de se utilizar de um exemplo ciente da performatividade do uso deste caminho como o melhor eixo para discussão, como um simples ponto de partida que um gesto ou uma palavra surtem a exemplo da arma feita de dedos de Gran Torino.

Earl – ou melhor, Eastwood, novamente, – é a América. Essa que guarda o preconceito e a violência na própria bondade. Que se escora na hipocrisia para uma salvação relâmpago e que guarda a santidade para seu próprio louvor em momentos críticos. Portanto, o que há ao redor esbarra no pastiche dos filmes de tráfico e de perseguições policiais. Bradley Cooper como Colin Bates aprimora a noção de um país sério que busca por justiça, como um paralelo ao glossário da vitória que Eastwood derruba nos limites da possível implosão que diversas cenas entregam – são elas que salientam afinal sobre um acerto de contas filosófico de Eastwood com sua pátria-amada.

O impacto de um discurso laborioso sobre este espelho, pronto para duramente refletir imagens que a interpretação foge sua real compreensão é imenso. Surpreende que seja Eastwood ainda a fazê-lo com tamanha artimanha e potencialmente ciente do alcance errôneo que terá e sabe como ironizar sua crucificação – com a noção que a exposição nunca pagará o preço necessário para sua afirmação.

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Parque Oeste (Fabiana Assis, 2018)

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Por Gabriel Papaléo

Qual postura se toma diante do Estado e da iniciativa privada que com ele vem junto, para enfrentar a máquina destruidora de espaços? Em Parque Oeste, documentário de Fabiana Assis, as perguntas vem através de cuidado histórico importante para a contextualização dessas lutas, mas a preocupação em instaurar no espectador o estado emocional das perdas e restabelecimentos que vemos em tela é o que torna o filme algo além da etnografia de combates.

As imagens captadas em vídeo que abrem o filme, caseiras e com toda a visceralidade que o registro in loco traz, carregam toda a força destruidora da polícia no ato da remoção, um cenário de guerra cujo peso emocional para aqueles habitantes perdendo suas casas estão em cada plano desestabilizado, esgueirado pelos escombros, à procura da documentação visual mas também prezando pela sobrevivência de quem filma.

Essa urgência incômoda, organizada com consciência, confere todo o lastro para a dimensão fantasmagórica dos registros observacionais da equipe no presente fílmico, com as protagonistas filmadas entre terrenos baldios e os prédios enormes do condomínio no qual suas residências antes existiam. Após uma contextualização didática dos momentos de caos e descaso público que lidaram, o olhar atenta para o que vem depois, como reagir da maneira que dá para permanecer lutando.

É ao retratar o cotidiano atual das moradoras que assumiram uma liderança diante das autoridades na comunidade realocada que o filme revela sua estrutura mais arriscada: a segunda metade se concentra nas formas de resistência micropolíticas, no dia a dia de reuniões nas casas das mulheres e nas ações com a comunidade para resolver problemas quaisquer que apareçam em suas casas compulsórias, não desejadas mas nunca desprezadas.

A vontade de reconstruir memórias e culturas como forma de preservar onde todos moravam, e como isso pode ser um projeto contínuo nessas novas habitações, é das maneiras mais pungentes visto pelas mulheres dali contra o protocolo de isolamento e descentralização de lideranças comunitárias, que desloca pessoas unidas pelo perigo que elas organizadas oferecem, e com isso estabelecem uma política de ideias que resiste nas ações mais cotidianas. Cotidiano esse de lembrar terras antigas sequestradas pelo estado para ressignificar os espaços que sobraram para habitar.

Visto na na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Um Filme de Verão (Jô Serfaty, 2019)

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De costas para o mar

Há entre os limites de Um Filme de Verão uma reflexão sobre o verdadeiro significado de um feel good movie. Os fins que a diretora Jô Serfaty traça colocam o filme num caminho muito significativo sobre a representação do jovem periférico – o verão para eles é completamente diferente daquele vendido pelo cinema, de praia e diversão despudorada.

E como estes limites são muito bem estabelecidos, o filme vem numa espécie de fluxo de cenas, sem obedecer a uma ordem cronológica e sim numa representação fugaz dos momentos que nada mais são que a espera para um novo período de aulas. Em Rio das Pedras, próximos à praia da Barra, o acesso a ela é só no fim da tarde para estes jovens; o dia é feito para procurar empregos, sonhar com uma vida melhor e aproveitar seus dispositivos eletrônicos, no qual Serfaty usa como um registro muito peculiar de momentos intrínsecos ao verão, como as chuvas fortes, enchentes e falta de luz.

Entre eles, a imaginação destes jovens, de gostos voláteis e longe de qualquer certeza, faz de Um Filme de Verão o que mais próximo chegamos a Prazeres Desconhecidos de Jia Zhang-Ke até o momento, com a orquestração da liberdade cênica, da noção de dominância do espaço e como ele é capaz de oferecer novas procedências, inclusive estéticas – a sequência do sonho japonês fica como maior exemplo por ser a mais explícita, porém há diversos momentos no filme no qual as vielas e lajes ganham novas representações.

Permeando este mundo de signos, há o princípio do que é de fato um filme de verão no Brasil, muito mais próximo do calor do asfalto e de piscina de plástico do que praias paradisíacas e quartos luxuosos. É prazeroso ver como estes signos se complementam nas associações – ao exemplo das fugas deste ócio como os tipos diferentes de endeusamento, às figuras religiosas aos músicos e às drogas. E na mesma medida, Um Filme de Verão martela sempre uma realidade distinta do que é vendido, numa analogia simples à beleza do Rio de Janeiro que em suas costas esconde zonas periféricas e uma rotina de caos – pouco comentada no filme explicitamente, mas pulsante na relação com a cidade – e se complementa como um grande filme político.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Vermelha (Getúlio Ribeiro, 2019)

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A grande novela masculina

O resgate da identidade da Mostra Aurora durante a 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes veio como um óvni: Vermelha, na medida em que remete às obras que regeram o cinema nacional contemporâneo e que confirmaram a força do evento nos últimos anos, tem particularidades inerentes a este cinema, enquanto boa parte dos filmes até então se entregavam à oralidade e a força da palavra, o filme de Getúlio Ribeiro entrega-se ao cotidiano com propostas coligadas a este tipo de cinema.

A principal estranheza de Vermelha vem na forma: duas metades, a primeira, inclinada a enxugar ações e planos, como ode ao cancioneiro masculino e ao imaginário feminino – as novelas, vindas em capítulos e que constroem seus mistérios pela montagem em blocos, com ações incompletas submissas ao corte. A segunda metade segue o caminho oposto, as cenas são elásticas, seus personagens vêm e vão como num teatro do cotidiano, no qual o bairro filmado serve como um espaço muito útil de representação da intimidade além dos muros – ou melhor, do telhado.

Outro relevante detalhe é como Getúlio deixa os comentários para o seu dispositivo. A câmera, verdadeira dona da casa, que passeia por todos os cômodos com liberdade, tece os comentários sempre bem humorados sobre esta família; é como uma sombra que assiste a TV, escuta música sertaneja e acompanha os jogos de futebol. Este é um detalhe muito importante para o filme e que remete a uma parcela importante para a Mostra de Cinema de Tiradentes, que é o bloco de filmes feitos pela produtora Filmes de Plástico, em especial os filmes de André Novais Oliveira, da união do humor ao cinema de gênero, sempre interligados à rotina como uma grande ponderação que envolve discursos pessoais sui generis.

Vermelha, antes de tudo, é um filme sobre a falta de contato, sobre o afeto fantasma, que homens e mulheres não se encontram, mas são sempre citados, pela certeza do não dito numa barreira que o cotidiano coloca a ponto de uma briga ser banalizada e o filme resolvê-la com deboche – uma das grandes cenas do filme. Portanto, aqui pouco importa a estirpe de cada personagem: o que importa a Getúlio Ribeiro é a apresentação mais pura de cada um deles, longe de uma capa de adjetivos e sim mais próximos da possibilidade de mutação entre as cenas, de humor e postura voláteis e como eles afetam o dia-a-dia. Da força do abraço ao silêncio cortante, o lado humano pulsa fortemente.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Desvio (Arthur Lins, 2018)

desvio filme

O outro lado da ponte

Como um transeunte nas próprias memórias, Pedro, protagonista de Desvio, representa bem os caminhos possíveis e tomados por Arthur Lins, diretor do filme, como maneira de controlar analogias e simbioses. Há um limite muito claro de tempo e de como os personagens serão delineados como representações de sentimentos distintos. Ainda que tudo pareça muito controlado e polido, Desvio apresenta alguns atritos muito interessantes.

A julgar pelo primeiro ato – e atrito – do filme, quando se apresenta como uma proto-trama de superação, o que vem em seguida é um encontro frontal com o passado, um desejo de retomada de um ponto da vida e que permeia por algum tempo a narrativa. Outro atrito muito interessante criado por Desvio é mais uma sugestão de um novo filme, um slacker feito por punks, que conversam e usam drogas e criam um mundo próprio e conivente com seus desejos. Logo este filme também será abolido por Arthur Lins para mais uma sugestão de trama.

Nestes constantes encontros e descartes, o filme parece estar sempre dentro de um limite para que as emoções sugeridas estejam sempre em primeiro plano; são raros os momentos no qual a imagem ganha da palavra e curiosamente estes são os melhores momentos do filme, como por exemplo, nas cenas de shows de punk e como o olhar de Pedro dirige-se ao palco carregado de nostalgia e certo sentido de superação.

Há o senso de legado que é a chave do filme. Se Pedro representa em diversas vias o equívoco e o arrependimento, há por trás a ideia da mutação do tempo e que tudo pode ser novo e diferente. Nesta linha narrativa, Arthur Lins enfim preserva suas pontas e faz uma cartografia de sentimentos juvenis, da revolta ao sonho da vida adulta, enquanto transforma o envelhecimento em cinzas e exemplo sempre questionável. Se falamos de extremos, Pâmela, uma jovem punk é a representação ideal para o outro lado da ponte e extermina qualquer intenção moral sobre seus personagens.

Desvio, por mais controlado que seja, tem como base o fim do julgamento sobre o olhar da câmera, como se seus personagens estivessem acima da moral que a própria estabelece. Cabe a ela a observação, mais despudorada a partir do último ato e uma aproximação com o filosofia de vida de seus personagens, ou seja, um tipo de compreensão à fórceps que aniquila qualquer consideração antecipada.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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