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Homens têm segredos, mas não mistérios

Por Felipe Leal

Noites de cetim branco

que nunca chegam ao fim

(The Moody Blues – Nights in White Satin)

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Pode se dizer d’Os Amores da Casa de Tolerância (L’Apollonide – Souvenirs de la Maison Close, 2011) que há uma fluidez diegética típica à duplicidade que costuma se atribuir à “grande arte”: simultânea e perfeitamente bem, ora o que se vê é a decadência entrópico-biológica das cortesãs de uma casa de prostituição na passagem do século XIX ao XX, ora há uma evidência da trajetória do desejo e do lugar social masculino perante àquelas que, por percurso trágico (ou tardiamente trágico), são escolhidas para servir de bonecas especializadas às descargas pulsionais desses que, em público, jamais ousariam assumir o corpo por inteiro. Em outras palavras, certamente vulgares: há uma crítica a algo da ordem do “real”? Há uma ficção desamarrada de pujança social, ainda que ligeiramente? A questão, que não demoraríamos a perceber como moral, encontra para vias de intensificação deste elemento um punho fabular melancólico, posto que àquelas mulheres não há relação ou uso que não passe por um espelhamento sob a lógica de uma torre de Quasímodo: o tanto que sonham com a liberdade, com a compra de suas propriedades físicas, corporais, é o tanto que devem pagar, literalmente, atuando qualquer fantasia até que se tornem quase rijas como bonecas, funcionais como a materialidade correspondente do cruel excedente masculino. Moldáveis, sagazes – mas mortas.

O fabular É. Se encerra num baque e, no seu sentido, produz sentido: a situação que lhe provoca aquilo do lecionável opera por lugares cuja fixidez é obrigatória e se dá por repetência, sem que isso seja pejorativo, apenas da ordem do micro-cósmico; fixo porque a mobilidade de seus elementos é pré-registrada (não se fala necessariamente de uma causa-consequência, mas de algo do trágico para alguns, saliente para outros, uma vez que alguém deve pagar um custo para que um terceiro saiba, se exceda e aprenda), repetido, seriado, porque propriamente mitológico, cada qual encarna seu lugar no jogo da história que só aparenta ceder liberdades na progressão que Bonello peculiarmente chama de Crepúsculo à Aurora. Como num sistema mercantil apodrecido, todas eventualmente se endividarão com a matrona para pagar por aquilo (perfumes, loções, antissépticos) sem o que não podem trabalhar – para se endividar mais. A realização fantasiosa que as garante a miserável estabilidade é também o motivo do bocejo e do cansaço: têm de repetir o que os homens não podem exigir às esposas até que a corrente de papéis não lhes faça entrever outra opção que não fantasiar a própria saída – a liberdade que nunca será dada, consumada, por quem precisa que elas existam. Mas o nó fabular já acusa seu teor agravante na catapulta que as lança da esperança sorridente ao choro extático coletivo. Não há impossibilidade, só perpetuação.

Bonello faz de qualquer plano inicial o assombro e a epítome de sua esteira: num corredor iluminado, alaranjado, de frestas e buracos escuros como que vazantes, uma cortesã enlaça a outra: “Não se preocupe, hoje você vai ser escolhida para a liberdade”, e ambas somem no negrume replicado que acusa segredos e casulos, continuando o caminho para o salão onde são selecionadas, jogam, ouvem histórias e se embriagam, ou adentrando as redomas fetichistas que diversas vezes nos aparecem como split screen: quatro quadros de um trabalho de Sísifo, interpretado como uma vitrine de natal repetente. Quase nada mais é filmado em termos de arestas do que estes corredores, quartos ou pequenos salões. Como na cápsula de vidro que tão bem caracteriza a obra-prima de Silvia  Plath, uma relação entre o estranho e o cognoscível, o explicitamente contratual (à luz do aceitável) desponta como a sustentação de uma espinha fantasmática. O exercício daqueles que as contratam é dar forma àquilo que sequer conhecem, o exótico do desejo que, se pronunciado na rua, causaria quiçá mortes literais – e não assombrará que “as negras custem 100 [da moeda] a mais” –; a constatação das mais lúcidas, ou ousadas, é que o melhor é “se entregar direta e rapidamente à gonorreia” ou às drogas, acelerar a morte que é o único destino ao horizonte.

Um acelera a morte daquele sem o qual não conseguirá (sobre)viver.

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E todos entram em seus paradoxos: eles fingindo não se importar que a sobrevivência daquelas casas depende de um quesito cada vez mais financeiro, ao mesmo tempo em que recusam a ajudá-las ou assumi-las além da luminosidade pública, elas adiando a ação que romperia o sistema que as torna mais endividadas e menos passíveis de exercer qualquer liberdade até mesmo de individuação. Mas há algo naquelas mulheres que as faz exceder, para além do óbvio protagonismo cênico e narrativo, por natureza, qualquer domínio que aqueles sobre elas parecem ter: talvez porque privadas de uma vida “no fora”, inerentemente cegas à concepção de algo além dos corpos e mensagens vagas, pois, portanto, mestras no ofício do transformismo, são todas ainda assim as que adivinham, conduzem, ou seja: criam, dão forma, são O prazer, O faltante, O contínuo do outro. E não faltarão planos, porque aliás todos se compõem sob esta elegia à parte-pelo-todo, em que os coletivos de seios e clavículas, ou de coletes e pelos pubianos, se mostrem duplamente singulares e misturados. Todo corpo é, sozinho, e também por conta dos outros, sejam estes semelhantes ou antagônicos. No jogo de carteado que as anuncia um futuro que querem saber e sobre o qual cospem em descrença, mandíbulas trêmulas, unhas roídas e pupilas enfadadas entoam o mesmo desejo. Cada homem chega praticamente nas mesmas vestes e se desdobra numa especificidade delicada de realização em cada secreto quarto.

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Os artifícios e joalherias das prostitutas centuplicam o espectro conhecido de cores, mas por que é mais fácil lembrar, e curiosamente longe do dualismo, da completa escuridão das câmaras e dos corpos iluminados? Porque, como ordenam os sonhos, a fantasia, o excesso, o ficcional, isso que escorre entre os homens melhor acontece numa caixa preta da qual só lembramos por iluminuras. O filme desponta com a questão: “Você se lembra com frequência dos seus sonhos?”, ao que A Mulher Que Ri, pela negativa, sofre a tragédia do lampejo de um preenchimento (sonha que ele goza e ela é tão inundada que lacrimeja sêmen) seguido de dois rasgões na pele do rosto que era seu pão. Fadada a rir eternamente, cumprir-lhes a plenitude que vêm buscar na caverna dos sonhos, à força. Mas por que Bonello nos lembra que é simplíssimo recorrer à heterogeneidade de mulheres e à simplificação dos homens numa só figura? Os muitos séculos de mal contada história o provam, e ainda mais ironicamente o metteur-en-scène: dobrado numa icônica passagem de século, o risível do “progresso” fica melhor eternizado. Uns caçam, outras coletam e cuidam? Uns trabalham, outras zelam pelo fruto do emprego daquele? Uns melhor indicam, norteiam, outras se apresentam menos capacitadas? Assim a ciência o produziu em literatura: Samira, a árabe exo/erotizada, se debruça em prantos com o livro emprestado de antropometria cefálica que a diz que prostitutas e criminosos possuem crânios menores pelo menor uso das capacidades cerebrais.

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E o duplo engano o tempo inteiro ululando na sedução: nem todas as capacidades são racionais (sobretudo aquelas pelos quais os tolos e bestas mais anseiam), nem aquilo que a inteligência elaborou se sustenta sem aquilo que ela não conseguirá jamais conceber: se existem as putas é, também, porque algo de sistêmico e facilmente tornado negócio ameaça a inexistência mesma do estrato que as encerrou nas casas e agora as relega às ruas. Poderia Bonello ter acendido a fagulha de uma previsão desastrosa? Assim como aquela que Ri sonha com seu assassino mascarado, a prótese terá, no seu início pelo corpo, evoluído das máscaras aos anonimatos contratuais totais? Fala-se do capitalismo exaustivamente como um lobo, mas terá outro modo de troca um potencial de epidemizar mais o adoecimento do corpo até que este seja pura boneca escorrendo um líquido que mata, ao invés de nutrir? Findam todas exaustas em noites de cetim, todas “menos uma”, a que participa do choque anafilático temporal que é a cartada premonitória. A redoma de vidro pode muito ter virado a própria atmosfera, então, porque deste mundo é preferível nunca ter participado.

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Valerie e sua semana de deslumbramentos: para se perder em uma fábula

Por Chico Torres

 

Livre de qualquer responsabilidade, a fantasia pura se entrega a esses jogos cromáticos.

(Walter Benjamin em Livros infantis antigos e esquecidos).

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As Fábulas de La Fontaine representam uma das lembranças mais significativas de minha infância: mais do que “a moral da história” contida nas adaptações feitas pelo autor francês, o que ficou verdadeiramente gravado em minha memória foi o modo como aquelas breves narrativas eram ilustradas pelas gravuras em preto e branco de Gustave Doré. Hoje sei que as fábulas, assim como o conto de fadas, estão historicamente ligadas a qualidades do universo infantil fundamentais: primeiro a oralidade, depois a ilustração.

Então, me surge a questão: é possível construir uma fábula através de um filme? É possível compor uma “fábula cinematográfica”? Se por questões óbvias, o cinema não é capaz de reproduzir fielmente os efeitos de uma fábula oral/livresca, conseguiria ao menos se aproximar, através de uma composição ou reconstituição, da fábula nos moldes tradicionais? Talvez nesta edição da Multiplot! alguns textos contemplem filmes que vão nesta direção. Por outro lado, penso que o cinema, em seu natural antropofagismo, surge para estabelecer crises em tudo aquilo que toca. No território inimigo do cinema, é possível que a fábula, portanto, seja posta ao avesso e sirva como lastro para a construção de narrativas que podem, inclusive, serem metáforas sobre a própria impossibilidade de se contar histórias como antigamente.

Este parece ser o caso de Valerie e sua semana de deslumbramentos (1970), filme de Jaromil Jires. O diretor, que fez parte da instigante New Wave Tcheca (cito aqui alguns filmes que me vêm à memória: As pequenas margaridas, de 1966; Trens estreitamente vigiados, de 1966; Marketa Lazarova, de 1967), arquitetou um filme que faz jus à sua fonte de inspiração, o romance homônimo de Vítezslav Nezval, escritor ligado ao surrealismo. Por outro lado, o aspecto vanguardista do filme torna-se mais significativo ao se desenvolver sob o pano de fundo da fábula e do conto de fadas: Valerie é uma jovem que vive com sua avó em uma pequena cidade aparentemente feudal. Em um plano maquiavélico, a mulher resolve entregar sua neta a um monstro que em troca promete lhe devolver a juventude perdida. Nesse sentido, há no filme diversas características que remetem ao universo da fábula e do conto de fadas: a presença diabólica e do encantamento por magia; o bucolismo medieval e renascentista, que geralmente compõe o universo fantástico dessas histórias (certamente as fábulas se desenvolveram com mais intensidade nesses períodos); o excesso de cenários e do aspecto pictórico dos planos, reiterando a presença das ilustrações e das cores, elementos característicos do universo infantil.

Valerie parece estar além e ao mesmo tempo aquém em suas intenções simbólicas, não se constituindo nem como fábula e nem como obra propriamente surrealista, encontrando-se em um limiar raramente explorado na história do cinema. Ainda que as associações simbólicas se constituam de forma frágil, suspeita e quase gratuita, através de uma narrativa nonsense que ironicamente pretende dar uma direção, tais associações compõem um filme que consegue ser extremamente crítico, no conteúdo e na forma.

Certamente, o elemento chave da obra é a conscientização de Valerie sobre sua sexualidade. Presenciamos o momento em que, enquanto caminha entre flores e pedras, ela menstrua pela primeira vez e mais adiante confessa: “Eu não sou mais criança, vovó”. A jovem possui um par de brincos que representa um jogo de “perde e ganha”, o que pode significar o lugar de transição no qual ela se encontra (entre a criança e o adulto), passando a compreender que seu corpo se constitui como objeto de desejo. É magistral a forma como se dá a construção desse lugar de Valerie, um misto de ingenuidade e curiosidade sexual que faz com que ela consiga ser o verdadeiro elemento transgressor do filme, já que seus perseguidores são vampiros que escondem desejos perversos sob o aval da religião.

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Com exceção de Orlik, personagem que serve como par romântico e testemunha ocular das desventuras de Valerie, todas as figuras masculinas do filme são monstruosas e ameaçadoras. Valerie vive imersa nesse mundo de criaturas quase mortas, mas sua curiosidade e identificação estão voltadas para outra camada social: a de indivíduos que parecem viver num paganismo que se afirma através de uma vivência sexual sem pudores. Essas personagens aparecem de forma quase sempre alegórica e, basicamente, têm como função expor o voyeurismo de Valerie (todas as cenas de sexo desse grupo se dão em ambientes abertos e quase sempre são testemunhadas pela adolescente), servindo de contraste ao moralismo religioso, representado no filme por figuras monstruosas e perversas.

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No entanto, na segunda metade do filme se evidencia mais nitidamente seus aspectos, como não acho outro termo mais adequado, surrealistas: a obra se torna extremamente confusa, com um entrelaçar de situações e ambientes que provocam um incômodo que só pode ser sanado pela sempre impecável direção das cenas. Ainda que durante todo o filme a linearidade narrativa seja subvertida, não obedecendo a uma lógica espaço-temporal, nesta segunda parte a obra deixa transbordar seu desejo de nos provocar de modo radical, de elaborar seu caráter crítico mais especificamente em relação à forma. Se nós esperávamos, mais ou menos confortáveis, o desfecho da estranha fábula, somos jogados em uma história que deixa de comunicar qualquer relação razoável entre os acontecimentos, aprofundando seu aspecto irônico e iconoclasta. Valerie se encaminha para um desfecho em que todas as figuras arquetípicas se integram, literalmente, numa dança surrealista dentro da floresta.

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Não há mais o bem e o mal. Não importa se Valerie será salva das garras dos monstros ou não. Ela agora está integrada a eles, integrada a tudo que é profano e a tudo que é sagrado. A crítica presente no início do filme se dilui em imagens deslumbrantes, em entrega ao que é dado sem julgamentos morais ou elaborações racionais no sentido cartesiano. Valerie é um filme belo e desconcertante que nos mostra, ao mesmo tempo, a subversão de uma tradição e as mazelas que estão em suas origens, e a impossibilidade de reconstituir aquilo que já não pode mais ser moralizado. Valerie é, antes de tudo, uma fábula amoral.

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Fantasmas e reminiscências – as formas de diálogo entre tempos nas Hong Kongs de Stanley Kwan e Wong Kar-Wai

Por Gabriel Papaléo

No início de Dias Selvagens, segundo filme dirigido por Wong Kar-Wai, Yuddy, o personagem vivido por Leslie Cheung diz para Lai-Chung, vivida por Maggie Cheung: “Por conta de você, lembrarei desse minuto para sempre.” Em Rouge, de Stanley Kwan, o espírito da personagem Fleur vivida por Anita Mui se apaixona pelo marido arranjado sem saber do destino que os aguarda. A construção da mitologia da memória é feita com fantasmas palpáveis, e o cinema de Kar-Wai e Kwan nesses filmes se baseia na relação que seus personagens têm com a ciência dos sentimentos que contém e que emanam. O tempo fugidio é como um catalisador de olhares, e a noção do fim que torna os personagens em Dias Selvagens nostálgicos é a mesma que falta na fantasma de Mui em Rouge, e que faz dela uma errante.

Essa galeria de personagens perdidos em seu presente pelos desencontros amorosos que experimentam complexifica as ideias de romantismo aderidas por ambos os diretores, o do relacionamento surgido por motivações sociais e sacralizado pela tragédia inerente ao romantismo em Rouge, e as promessas impossíveis e falta de cotidianos divididos em Dias Selvagens – esse último um reflexo direto de certa tradição pelo gestual de mulheres que sofrem com seus amores egresso do melodrama chinês que Wong Kar-Wai preza por, algo visto mais diretamente em Amor à Flor da Pele (2000) e Hua yang de nian hua (2001), curta do diretor composto exclusivamente por trechos de longas chineses antigos selecionando danças, beijos e cantos das personagens que reverencia, e veio a trabalhar nas suas próprias narrativas.

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Em Rouge, o amor construído sobre os signos do romantismo, dos gestos políticos do casamento, contém o luxo que se espera de tal sociedade de rituais – ritual esse que leva à aproximação de Fleur e seu amado. Todo o lastro emocional construído nesse prólogo na conversa franca com o amor impossível dos grandes gestos é devastado pelo plano de Hong Kong dos anos 80, no escuro da cidade, na noite dos abandonados à metrópole. A cidade do presente, com os empregos burocráticos, com os encontros em restaurantes a céu aberto sem o glamour, vivendo de fabulações esgotadas, testemunhadas pela fantasma vivida por Anita Mui, refém de um olhar de seu passado morto.

Ou estariam esgotadas de fato as fabulações românticas? O estado suspenso de Fleur, à deriva e à descobrir as traduções contemporâneas dos gestos do amor, bate de frente com o ideal fabuloso e fabulesco da sua memória de casal. Na cena do ônibus, ela constroi e desfaz toda a tensão com Yuen ao passar por lugares que lembram seu amado, mas não estão mais por ali – como um travelogue de experimentar o desfazer das memórias afetivas, uma legítima experiência de transporte coletivo dos trânsitos de cidade. É ao se deparar com a namorada de Yuen, e com a simplicidade do apartamento do casal, e sua cumplicidade afetuosa, que Fleur se entende no 1987 do filme. Aprende ali com o cotidiano desse novo amor diante da nova Hong Kong, o casal com roupas simples e pouco caracterizadas dentro de uma cultura chinesa, cujo apartamento guarda diferenças arquitetônicas irreconciliáveis com a opulência da residência do passado de Fleur – e que mesmo assim, e talvez por isso, se une para ajuda-la. Os pequenos atos de esforços de afeto se renovam conforme gerações.

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O que se renova em gestos, no entanto, não é atualizado na ansiedade juvenil pelo fulgor do aqui e agora. Em Dias Selvagens, a fuga como sinal do amadurecimento que afasta os amados é a mesma de Yuddy da mãe, do relacionamento com a personagem vivida por Carina Lau, e também da sua amizade de circunstâncias com o Tide de Andy Lau. Muitos são os relógios ao longo do filme, todos singelos no ambiente mas em quadro, por vezes altos em símbolo, por vezes baixos em volume – o amor está passando, a juventude também, os tempos mudarão.

A tentativa de projetar futuros onde eles não existem, paisagens que mudam com a frequência que apenas uma fuga propicia. O não criar dos laços emocionais com lugares parece a base errante desses personagens fadados a nostalgia, principalmente no protagonista masculino de Dias Selvagens. Yuddy vive de trambiques e embarca em relacionamentos com fins muito demarcados concomitantemente à busca por alguma realeza talvez herdada do pai ausente, nas Filipinas de florestas esverdeadas da fotografia de Christopher Doyle, um lugar estrangeiro diante dos olhos e cuja localização espacial é radicalmente diferente de Hong Kong; mais um terreno propício a desencontros, a uma viagem em busca de respostas que traz apenas novas perguntas e desarranjos. Nos espaços vazios que filma, na investigação de Yuddy, Kar-Wai imagina as historias ali contidas e não acessadas por distanciamento historico, cultural, de país, enquanto organiza um final de esperas por futuros não consumados, de chuva e silêncios, de Lai-Chung aprendendo sob a distância do afeto.

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O cinema surge portanto como forma de reencantar a rotina ao redor para tornar imagem a distância de corpos. Em Dias Selvagens, sob relação mais abstrata, na forma que Wong Kar-Wai se apropria do suspense, do road movie, do filme de luta no segmento das Filipinas, para trafegar seus personagens incertos pelos lugares. Em Rouge, na literal visita a um set de filmagem, a despedida de dois enamorados, uma jovem fantasma e seu amante que sonhou ser um velho, para o beijo derradeiro ser o mais poderoso gesto diante dos voos graciosos e contemplativos do wuxia filmado nos arredores. É como se o poder dos grandes gestos que o cinema fantástico produz ressignificasse – e sobretudo potencializasse – a afetividade que testemunhamos em tela, cheia de peso histórico e contexto, como a Hong Kong que visitamos, como o amor através dos séculos, como o voo dos lutadores.

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A fabulação trabalha sob a estrutura do melodrama nos dois filmes, como um véu fantasioso além vida diante dos eventos e desencontros que acometem os casais fadados a últimos encontros e frustrações. Essa talvez seja a forma tanto de Kwan quanto de Kar-Wai de encapsular suas obras em tempos presentes cortantes, desviados, sempre despidos diante da nostalgia; saudar o passado com os futuros que poderiam ter acontecido mas não o foram é esse ato de romantismo fugidio que os jovens que eles filmam aderem tanto, por noção das escolhas pessoais que os formarão, pelo amadurecimento que sentem chegar longe e o abraçam de formas inevitáveis, no fluxo da vida que por vezes nos chega sem esquemas, sem precisões. Que esses personagens saibam fazer as escolhas difíceis que vemos em Rouge e Dias Selvagens ilumina a inteligência emocional daqueles atos, e portanto ajuda a renovar as noções de romantismo que a literatura, a música, a pintura, e o cinema falam há tantos séculos. A passagem do tempo existe, e quem percebe esse fluxo pode entender melhor as decisões que toma; o abraço a nostalgia facilitadora raramente coexistirá com o presente nos quais vivem as crias de Kwan e Kar-Wai, personagens amargurados, frustrados, mas nunca resignados ou desprovidos de sonhos de futuros.

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Fantasmagorias do Presente

Por Bernardo Oliveira

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No império da opinião, a fabulação toma, por vezes, a forma de uma performance: é na base de stories, posts, podcasts e videocasts que a doxa circula na atualidade. Ainda assim, o ato de fabular parece corresponder inevitavelmente à arte de (re)contar velhas histórias e, como consequência, cristalizar representações correntes. Ordenando-as sobre o diagrama de uma temporalidade contínua, obtém-se a conservação do dinamismo cronológico, garantindo à fabulação o poder de fixar mitos do passado, reforçando tradições precárias em evidente descompasso com fendas abertas pela carga de desorientação acumulada no presente. Tal procedimento acaba por declivar para uma espécie angustiante e abstrata de “futuro”: o futuro moral, com toda sua carga de egoísmo, consequência e expiação, uma perspectiva de futuro que herdamos de forma muito variada da religião, da guerra, da ciência, do capitalismo… Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?

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Esta “segunda pele” sobrepôs-se à fabulação comum, que, atualizada pela vida bioconectada, revelou uma legião manipulável de espectros opinativos. O “era uma vez” da fabulação comum se alastrou como incêndio na rede, abrindo precedente para uma versão reduzida da comédia humana, reproduzida por engrenagens semelhantes as que fabricam o boato, a fofoca, a autodepreciação e, como não poderia deixar de ser, a notícia jornalística. Desde que os presidentes dos Estados Nacionais resolveram se comunicar com a população por frases bombásticas disseminadas em rede, o caráter estrategicamente auto-depreciativo da fabulação cínica — a mais tenebrosa contração do populismo — adquiriu colorações ainda mais torpes. Os recentes capítulos da novela política brasileira indicam que permanecemos estranhamente desatrelados tanto das evidências trágicas do passado quanto das promessas de um futuro cada vez mais oscilante e imprevisível. A internet como a contraditória auditora de uma falsa universalidade, aniquilou a “metanarrativa” e expôs, muitas vezes sob a forma da certeza moral, o histriônico fracasso da aldeia global. Em comum desacordo com o coro trágico da opinião terraplanista, eclodiram, aqui e ali, os vaticínios calamitosos, as teorias do fim do mundo: o Antropoceno, o esgotamento, o “acabamento”… Em meio à desorientação multifária produzida através das redes, a fabulação teria ainda o poder de criar um presente desembaraçado de todo fatalismo? 

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O cinema, contudo, parece manter a confiança na fabulação, pelo menos como um meio para abrir os caminhos a outras experiências do presente. A chamada “estética do fluxo” visava identificar experiências calcadas na captação de um escoamento aleatório em oposição a uma ordenação narrativa organizada cronologicamente. Como um ativador eficaz , o cinema provoca uma outra sorte de desorientação, distinta daquela que percebemos hoje na alagmática da informação. Uma desorientação ativa e programada apta a cavar desequilíbrios em meio a um aqui-e-agora excessivamente texturizado pelo tempo cronológico. Não apenas desconstruindo a memória que se atualiza de forma errática na proliferação, por exemplo, do linchamento virtual, mas também refabulando as memórias de um futuro que foi cancelado e se alastra como uma legião de malin génies extraviados. Há, como contraexemplo, uma memória muscular que, sendo póstuma e simultânea ao gesto, desdobra a centralidade do presente em outros possíveis — como quando tocamos automaticamente os acordes e sequências harmônicas em um instrumento musical. Neste caso, a memória faz um duplo movimento, fabulador e transindividual: emana dos corpos, incide sobre os corpos, ativando e atualizando uma pluralidade de fiapos soltos, vivências incompletas cuja continuidade deixamos a cargo da imaginação. O cinema atualiza resquícios que fazem parte de um campo de possíveis, de forças que desfiam-se e proliferam no instante, esculturas temporais revestidas por uma superfície porosa através dos quais penetram os fluidos da imaginação. Uma saraivada de tempo: temporada.

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Penumbra. Um casal acordando, o plano frontal enquadra a cama. Com a garganta ainda ressecada, uma voz sussurra “bom dia”. Outra responde, inicia-se um diálogo, trocam-se amenidades, alguém observa uma insônia… Passaram a noite juntos, mas o diálogo permite entrever um acréscimo de cuidado no tom, na escolha das palavras. Um casal cujo encontro se deu muito recentemente, pois há um grau moderado de intimidade. Posso abrir a janela? Pode. Ele está na casa dela. Ele se move e abre a janela. A luz invade, ele vai de encontro à luz, observa um galpão. Uma transportadora, que, segundo ela, costumava fechar às 22h, mas agora “vai direto”. Ele olha o prédio em frente: uma construção inacabada, enquanto ela emenda a pergunta: “posso te mostrar uma coisa? Fecha a porta do banheiro e a cortina, bem fechada.” Ele fecha e, ao olhar para cima, repara que o reflexo invertido da rua, graças ao efeito de câmera escura. Ele conta como descobriu essa técnica, na TV Minas ainda no final dos anos 90. Um feitiço técnico, um dispositivo egresso do campo de mutações constituintes do cinema, libera toda uma fantasmagoria do atual: reminiscências desprovidas de solenidade, contadas na beira da cama, misturam-se a evidências quase imperceptíveis sobre a situação da cidade, da política, do trabalho… Em simétrica oposição à “estética do terror” de Friedrich Kittler, que consistia em projetar “uma imagem fantasmagórica de nosso presente como futuro”, André Novais instala um regime de fabulação difusa, extraindo uma espectralidade dilatada que adere a tudo aquilo que a câmera torna atual.

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Mas ainda não se pode entregar tudo de bandeja à uma lógica do acontecimento sem que nos lembremos do devir, do escoamento inexorável, como “instrumento de uma clínica fina da existência concreta e sempre singular.” O quanto estamos presentes e distantes quando fabulamos uma atualidade? É assim que o presente do acontecimento presenciado e experimentado pelos indivíduos em suas relações transindividuais, resguarda também uma “espiritualidade vivida”, uma dimensão que não diz respeito somente às formas abstratas e míticas da espiritualidade religiosa: “Se não houvesse essa adesão luminosa ao presente, essa manifestação que dá ao instante um valor absoluto, que o consome em si mesmo, sensações, percepções e ações, não haveria significação da espiritualidade”. Vislumbramos em um segundo a eclosão parcial do acontecimento. O espectro do passado sobrevém sob a forma de uma tensão presente que, por sua vez, se expressa como acúmulo de experiências e demais ressonâncias no plano psico-coletivo. Retemos de seu impacto psíquico e sensorial toda uma carga espectral de sensações, possibilidades, mistérios, hesitações…  As forças não se esgotam nesse presente indeterminado, ao contrário, oscilam para todos os lados, absorvem todos os sentidos em bloco. 

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Imagem-enigma: vemos uma esquina, posto de gasolina, carros e ônibus passam. Periferia, a noite cai. Outra imagem, desta vez uma imagem sonora, mas totalmente fora do quando: dois amigos conversam amenidades. A imagem-enigma prossegue, a imagem sonora também. Amenidades. Uma pergunta: “o que você está fazendo?” A resposta, “nada”, lacônica. “Cara, isso é uma câmera, bicho!? O que você está filmando ai? Pra quê isso?” Então, tomamos conhecimento de que se trata de uma filmagem caseira, aparentemente descolada do diálogo que ocorre fora do plano. Alguns registros desarticulados: o plano da esquina, o diálogo e a realidade psicológica de quem filma. Ocorre então um acoplamento que transforma a imagem-enigma, um registro caseiro, em dispositivo dramático, reunindo todas as pontas outrora fragmentadas. Isto ocorre não por captura de uma imagem previamente determinada (mise-en-scène), mas por conexão entre registros de ordem diferentes. A câmera se transforma numa máquina de produzir convergências: os fios soltos e desencapados do espaço-tempo cinematográfico são ativados por um acoplamento entre quadro e extra-quadro. A cena ocorre no plano e fora do plano, o fora habitando o plano e vice-versa. Um provendo ao outro todo o seu movimento, motivo, relação e contexto. Cinema como criação de um dispositivo tecno-dramático, tanto pela decomposição de elementos de narrativa (sincronia, unidade do plano), como por isolamento das linhas (o plano-enigma, a faixa sonora e, enfim, pela “narrativa” e seu teor dramático). O cinema, máquina de esculpir o tempo, engata outra voltagem. 

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No curta Quintal, por exemplo, o que há de aparentemente gratuito ao longo de toda narrativa, não é gratuito, mas latente. Os eventos paranormais e inusitados não parecem constituir uma espécie de suspensão provisória no corpo moribundo da rotina. Pelo contrário, é a rotina que bóia como mosca no leite cósmico do delírio. Idosos marombeiros, pornógrafos estudiosos, místicos e viajantes interdimensionais que se escondem, ocultos, em modos postiços e vidas emprestadas. Em Ela volta na quinta temos a emergência de uma imagem híbrida: modulações da imagem-fluxo, da imagem-torrente como em Sem essa Aranha ou Symbiopsychotaxiplasm, filmes que já mesclavam as cintilações inauditas e obscuras do espaço-tempo cinematográfico, incluindo aquilo que ficava de fora da economia global do plano. Gestos imperceptíveis que correspondem aos movimentos  dos corpos e objetos, estendo-se em uma temporalidade oscilante, variando entre o controle da encenação e o deixa-estar da atuação. O improviso como método, ou, como afirma o próprio diretor: “essa coisa de deixar a cena andar com um plano mais estático, talvez mais aberto, sem tanta interferência…” A familiaridade subjacente à relação entre os personagens transborda uma qualidade coloquial que distensiona cada momento. O prosaico, no entanto, se move de maneira cifrada, a meio caminho de uma narrativa em fluxo, de uma representação que se alimenta das relações familiais (a conexão imediata entre os amigos, a família, o trabalho) e de uma terceira qualidade que irrompe, sempre liberada por algum elemento cinematográfico técnico-gerativo, remetendo-nos simultaneamente à pluralidade do acontecimento e ao que podemos chamar de “origem” do cinema.

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O cinema de André Novais Oliveira encena um tipo de fabulação que se relaciona com essa “adesão luminosa ao presente”, que não atende nem à manutenção antiquária do passado, nem às promessas vazias de um futuro promissor, fincando seu ambiente naquilo que o filósofo Alfred N.Whitehead chamava “o presente insistente”: o presente em relação ao qual atualizamos, com as ferramentas da fabulação, todo um conjunto de experiências que se desdobram na atualidade. Fabular, porém, é também abrir a imaginação como que por infusão, como a erva desprende seu princípio sob efeito da água escaldante. A totalidade está interditada, apenas alguns elementos parecem eclodir, pequenos acontecimentos, microgestos, percepções incompletas… É no entorno desta liquidez apreendida de soslaio que André Novais Oliveira constrói a estrutura narrativa de suas fábulas. É neste grau de percepção da realidade, através do qual vislumbramos, num átimo, a fantasmagórica tessitura de expressões do instante presente, que seu filmes parecem extrair toda uma lógica do acontecimento.

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A Mula (Clint Eastwood, 2018)

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Autor-retrato.

Ao comentar as obras de Hollis Frampton, autor do cinema de vanguarda americano, a pesquisadora Patrícia Mourão sugeriu o pensamento da fotografia como uma vitória do homem sobre a transitoriedade do vidro ao abordar a autobiografia em (nostalgia) de 1971. E complementa: “Tornar-se cineasta, é abrir mão de falar “Eu”; mas não por pudores moralistas ou humildade humanista, e sim por uma crença ética e estética de que os problemas mais interessantes da artes são formais e não subjetivos”. Em devidas proporções, obviamente, este pensamento é recorrente em A Mula, pois temos o autorretrato de Clint Eastwood tirado e exibido no além-superfície de um vidro não material, num filme que elimina a substância e o utiliza apenas como manobra imediata para associações do que é do espírito.

Os primeiros minutos de A Mula servem como um breve acerto de contas de Clint Eastwood com toda sua filmografia e reverberação: enquanto apresenta seu personagem Earl, Eastwood resolve a culpa, guerra, regeneração, cinema, atritos de formas e principalmente arremata questões que acercam um possível discurso nacionalista que sempre foi levantado durante sua carreira. Daí por diante, habemus filme. Filme este que é menos envernizado, que aproveita dos nuances que o digital oferece para certa frontalidade e da imagem altiplana, assim como seu 15h17 – Trem Para Paris.

Mais ácido, ágil e incisivo com a chamada quarta parede, A Mula é ciente do caminho ardiloso a seguir. Na medida em que desenvolve uma trama muito básica, de duas vias paralelas que envolvem justiça e moral, o que está mesmo no foco de Eastwood é como entre luz e sombras das cenas seu autorretrato é exibido, numa espécie de ruptura entre a superfície e os comentários mais aprofundados sobre a simples presença de Clint Eastwood como homem-referência destes complementos amargos, ao contrário do Sniper Americano, filme pouco discutido e muito acusado na época de seu lançamento e por ora esquecido. Não se trata de justificar a ignorância de um senhor de 90 anos no encontro de uma nova era na busca por redenção e sim de se utilizar de um exemplo ciente da performatividade do uso deste caminho como o melhor eixo para discussão, como um simples ponto de partida que um gesto ou uma palavra surtem a exemplo da arma feita de dedos de Gran Torino.

Earl – ou melhor, Eastwood, novamente, – é a América. Essa que guarda o preconceito e a violência na própria bondade. Que se escora na hipocrisia para uma salvação relâmpago e que guarda a santidade para seu próprio louvor em momentos críticos. Portanto, o que há ao redor esbarra no pastiche dos filmes de tráfico e de perseguições policiais. Bradley Cooper como Colin Bates aprimora a noção de um país sério que busca por justiça, como um paralelo ao glossário da vitória que Eastwood derruba nos limites da possível implosão que diversas cenas entregam – são elas que salientam afinal sobre um acerto de contas filosófico de Eastwood com sua pátria-amada.

O impacto de um discurso laborioso sobre este espelho, pronto para duramente refletir imagens que a interpretação foge sua real compreensão é imenso. Surpreende que seja Eastwood ainda a fazê-lo com tamanha artimanha e potencialmente ciente do alcance errôneo que terá e sabe como ironizar sua crucificação – com a noção que a exposição nunca pagará o preço necessário para sua afirmação.

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Parque Oeste (Fabiana Assis, 2018)

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Por Gabriel Papaléo

Qual postura se toma diante do Estado e da iniciativa privada que com ele vem junto, para enfrentar a máquina destruidora de espaços? Em Parque Oeste, documentário de Fabiana Assis, as perguntas vem através de cuidado histórico importante para a contextualização dessas lutas, mas a preocupação em instaurar no espectador o estado emocional das perdas e restabelecimentos que vemos em tela é o que torna o filme algo além da etnografia de combates.

As imagens captadas em vídeo que abrem o filme, caseiras e com toda a visceralidade que o registro in loco traz, carregam toda a força destruidora da polícia no ato da remoção, um cenário de guerra cujo peso emocional para aqueles habitantes perdendo suas casas estão em cada plano desestabilizado, esgueirado pelos escombros, à procura da documentação visual mas também prezando pela sobrevivência de quem filma.

Essa urgência incômoda, organizada com consciência, confere todo o lastro para a dimensão fantasmagórica dos registros observacionais da equipe no presente fílmico, com as protagonistas filmadas entre terrenos baldios e os prédios enormes do condomínio no qual suas residências antes existiam. Após uma contextualização didática dos momentos de caos e descaso público que lidaram, o olhar atenta para o que vem depois, como reagir da maneira que dá para permanecer lutando.

É ao retratar o cotidiano atual das moradoras que assumiram uma liderança diante das autoridades na comunidade realocada que o filme revela sua estrutura mais arriscada: a segunda metade se concentra nas formas de resistência micropolíticas, no dia a dia de reuniões nas casas das mulheres e nas ações com a comunidade para resolver problemas quaisquer que apareçam em suas casas compulsórias, não desejadas mas nunca desprezadas.

A vontade de reconstruir memórias e culturas como forma de preservar onde todos moravam, e como isso pode ser um projeto contínuo nessas novas habitações, é das maneiras mais pungentes visto pelas mulheres dali contra o protocolo de isolamento e descentralização de lideranças comunitárias, que desloca pessoas unidas pelo perigo que elas organizadas oferecem, e com isso estabelecem uma política de ideias que resiste nas ações mais cotidianas. Cotidiano esse de lembrar terras antigas sequestradas pelo estado para ressignificar os espaços que sobraram para habitar.

Visto na na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Um Filme de Verão (Jô Serfaty, 2019)

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De costas para o mar

Há entre os limites de Um Filme de Verão uma reflexão sobre o verdadeiro significado de um feel good movie. Os fins que a diretora Jô Serfaty traça colocam o filme num caminho muito significativo sobre a representação do jovem periférico – o verão para eles é completamente diferente daquele vendido pelo cinema, de praia e diversão despudorada.

E como estes limites são muito bem estabelecidos, o filme vem numa espécie de fluxo de cenas, sem obedecer a uma ordem cronológica e sim numa representação fugaz dos momentos que nada mais são que a espera para um novo período de aulas. Em Rio das Pedras, próximos à praia da Barra, o acesso a ela é só no fim da tarde para estes jovens; o dia é feito para procurar empregos, sonhar com uma vida melhor e aproveitar seus dispositivos eletrônicos, no qual Serfaty usa como um registro muito peculiar de momentos intrínsecos ao verão, como as chuvas fortes, enchentes e falta de luz.

Entre eles, a imaginação destes jovens, de gostos voláteis e longe de qualquer certeza, faz de Um Filme de Verão o que mais próximo chegamos a Prazeres Desconhecidos de Jia Zhang-Ke até o momento, com a orquestração da liberdade cênica, da noção de dominância do espaço e como ele é capaz de oferecer novas procedências, inclusive estéticas – a sequência do sonho japonês fica como maior exemplo por ser a mais explícita, porém há diversos momentos no filme no qual as vielas e lajes ganham novas representações.

Permeando este mundo de signos, há o princípio do que é de fato um filme de verão no Brasil, muito mais próximo do calor do asfalto e de piscina de plástico do que praias paradisíacas e quartos luxuosos. É prazeroso ver como estes signos se complementam nas associações – ao exemplo das fugas deste ócio como os tipos diferentes de endeusamento, às figuras religiosas aos músicos e às drogas. E na mesma medida, Um Filme de Verão martela sempre uma realidade distinta do que é vendido, numa analogia simples à beleza do Rio de Janeiro que em suas costas esconde zonas periféricas e uma rotina de caos – pouco comentada no filme explicitamente, mas pulsante na relação com a cidade – e se complementa como um grande filme político.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Vermelha (Getúlio Ribeiro, 2019)

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A grande novela masculina

O resgate da identidade da Mostra Aurora durante a 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes veio como um óvni: Vermelha, na medida em que remete às obras que regeram o cinema nacional contemporâneo e que confirmaram a força do evento nos últimos anos, tem particularidades inerentes a este cinema, enquanto boa parte dos filmes até então se entregavam à oralidade e a força da palavra, o filme de Getúlio Ribeiro entrega-se ao cotidiano com propostas coligadas a este tipo de cinema.

A principal estranheza de Vermelha vem na forma: duas metades, a primeira, inclinada a enxugar ações e planos, como ode ao cancioneiro masculino e ao imaginário feminino – as novelas, vindas em capítulos e que constroem seus mistérios pela montagem em blocos, com ações incompletas submissas ao corte. A segunda metade segue o caminho oposto, as cenas são elásticas, seus personagens vêm e vão como num teatro do cotidiano, no qual o bairro filmado serve como um espaço muito útil de representação da intimidade além dos muros – ou melhor, do telhado.

Outro relevante detalhe é como Getúlio deixa os comentários para o seu dispositivo. A câmera, verdadeira dona da casa, que passeia por todos os cômodos com liberdade, tece os comentários sempre bem humorados sobre esta família; é como uma sombra que assiste a TV, escuta música sertaneja e acompanha os jogos de futebol. Este é um detalhe muito importante para o filme e que remete a uma parcela importante para a Mostra de Cinema de Tiradentes, que é o bloco de filmes feitos pela produtora Filmes de Plástico, em especial os filmes de André Novais Oliveira, da união do humor ao cinema de gênero, sempre interligados à rotina como uma grande ponderação que envolve discursos pessoais sui generis.

Vermelha, antes de tudo, é um filme sobre a falta de contato, sobre o afeto fantasma, que homens e mulheres não se encontram, mas são sempre citados, pela certeza do não dito numa barreira que o cotidiano coloca a ponto de uma briga ser banalizada e o filme resolvê-la com deboche – uma das grandes cenas do filme. Portanto, aqui pouco importa a estirpe de cada personagem: o que importa a Getúlio Ribeiro é a apresentação mais pura de cada um deles, longe de uma capa de adjetivos e sim mais próximos da possibilidade de mutação entre as cenas, de humor e postura voláteis e como eles afetam o dia-a-dia. Da força do abraço ao silêncio cortante, o lado humano pulsa fortemente.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Desvio (Arthur Lins, 2018)

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O outro lado da ponte

Como um transeunte nas próprias memórias, Pedro, protagonista de Desvio, representa bem os caminhos possíveis e tomados por Arthur Lins, diretor do filme, como maneira de controlar analogias e simbioses. Há um limite muito claro de tempo e de como os personagens serão delineados como representações de sentimentos distintos. Ainda que tudo pareça muito controlado e polido, Desvio apresenta alguns atritos muito interessantes.

A julgar pelo primeiro ato – e atrito – do filme, quando se apresenta como uma proto-trama de superação, o que vem em seguida é um encontro frontal com o passado, um desejo de retomada de um ponto da vida e que permeia por algum tempo a narrativa. Outro atrito muito interessante criado por Desvio é mais uma sugestão de um novo filme, um slacker feito por punks, que conversam e usam drogas e criam um mundo próprio e conivente com seus desejos. Logo este filme também será abolido por Arthur Lins para mais uma sugestão de trama.

Nestes constantes encontros e descartes, o filme parece estar sempre dentro de um limite para que as emoções sugeridas estejam sempre em primeiro plano; são raros os momentos no qual a imagem ganha da palavra e curiosamente estes são os melhores momentos do filme, como por exemplo, nas cenas de shows de punk e como o olhar de Pedro dirige-se ao palco carregado de nostalgia e certo sentido de superação.

Há o senso de legado que é a chave do filme. Se Pedro representa em diversas vias o equívoco e o arrependimento, há por trás a ideia da mutação do tempo e que tudo pode ser novo e diferente. Nesta linha narrativa, Arthur Lins enfim preserva suas pontas e faz uma cartografia de sentimentos juvenis, da revolta ao sonho da vida adulta, enquanto transforma o envelhecimento em cinzas e exemplo sempre questionável. Se falamos de extremos, Pâmela, uma jovem punk é a representação ideal para o outro lado da ponte e extermina qualquer intenção moral sobre seus personagens.

Desvio, por mais controlado que seja, tem como base o fim do julgamento sobre o olhar da câmera, como se seus personagens estivessem acima da moral que a própria estabelece. Cabe a ela a observação, mais despudorada a partir do último ato e uma aproximação com o filosofia de vida de seus personagens, ou seja, um tipo de compreensão à fórceps que aniquila qualquer consideração antecipada.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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A Rainha Nzinga Chegou (Junia Torres e Isabel Gasparino, 2019)

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Entre as minúcias e o atropelo

A Rainha Nzinga Chegou é composto por dicotomias interessantes acerca de seu objetivo e de seus meios de produção. Na mesma medida em que é um filme indubitavelmente etnográfico e com o peso do pensamento de preservação da história e da cultura, o filme tende a criar um jogo de proximidades e distâncias entre atos que é inevitável que o olhar não se desvie para esta extremidade.

Dividido em três atos no qual a passagem do tempo é o alicerce, o filme vai da grande jogada de adormecer a presença da câmera ao oposto, quando a câmera submete atenção. O curioso é que o dispositivo está sempre à mostra no filme. Justificado pelo espaço filmado e pela linguagem, é possível ver a câmera, o operador e o restante da equipe em diversos momentos do filme, a justificar o momento único a ser registrado. Mas o peso da presença da câmera em cena é volátil – e mais interessante quando as diretoras Junia Torres e Isabel Gasparino conseguem nos entorpecer pelas alegorias.

O grande ajuste do filme é na certidão dos rituais, estes de uma força descomunal sem que palavras sejam ditas; neles, anos de história são arrematados, o discurso etnográfico e a força de resistência extrapolam a ideia de performance, que em muitos momentos do filme é colocada, principalmente quando a conversa é o ponto de largura para o discurso e suporte para o filme.

E se A Rainha Nzinga Chegou deixa de ser um filme-atropelo sobre milhares de anos em poucos minutos, sobram as minúcias que estão em cheque sobre suas reais funções: o que não foi dito pela imagem que as palavras deveriam reforçar? Estar entre os dois extremos pode ser uma zona de conforto e tentativa de manter o discurso intacto. Para o momento de extermínio de culturas mínimas, fica a relevância de um ricochete a tempo de consideração sobre o tema.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Trágicas (Aida Marques, 2019)

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Por Gabriel Papaléo

As primeiras cenas de Trágicas são bem reveladoras: um palco, com a luz estilizada teatral, e a interpretação grandiloquente da atriz que interpreta as três deusas gregas, seguidas de depoimentos de mulheres que perderam seus filhos na ditadura. Uma tentativa de interpretação metafórica entre duas questões díspares demais, a dor das tragédias gregas em consonância com mortes cujos rastros revelam um problema essencialmente social e estrutural. O letreiro com a palavra “Trágicas” em diversas línguas dá uma ideia da proposta por uma universalidade que a diretora parece buscar pelo filme, decisão delicada dado os temas.

O explicitar da metáfora através dos cortes entre os rostos das mulheres entrevistadas com a atriz performando no palco se repete pelos 70 minutos sem que exista uma progressão na reflexão do filme, apenas a repetição dos cacoetes de montagem colocando o off de uma mulher para comentar a da outra, aproximando perdas sem quaisquer parâmetro além da associação de morte, uma tese acadêmica filmada com mão pesada, e closes que recortam as bocas e olhos chorosos das mulheres em falas de impacto – o que só me faz lembrar dos planos abertos e médios de Chantal Akerman, que não queria “cortar as mulheres ao meio” para propósitos dramáticos explícitos demais.

Quando o foco vai para as entrevistadas que perderam seus filhos para a milícia ou para a polícia, uma miopia social e especialmente de classe tremenda em nivelar problemas de origens distintas aparece. A violência dos relatos é coberta sob olhos simbólicos e previsíveis da câmera, e a montagem entrecortada tira o impacto e só aumenta o desconforto de algo que poderia estar num programa jornalístico sensacionalista, e não num documentário cuja ética social passa pelo cuidado com quem está exposto na frente da câmera.

A tendência à exploração desconfortável das dores das mães que perderam seus filhos por suas etnias, descrevendo com riqueza de detalhes atos atrozes e que em nada se associam às dores de Medeia ou Electra, dizima qualquer contato emocional com um filme que parece cínico em suas associações, academicista ao triturar fatos sob a venda do bom gosto plástico. Colocar a mulher que matou seus filhos por vingança e fazer qualquer comparação com os mortos da ditadura, do genocídio negro ou étnico me parece condenável especialmente em 2019. No debate, o roteirista disse que os depoimentos foram filmados em close para se assemelhar com as máscaras do teatro grego, o tipo de relação ofensiva que privilegia a metáfora acerca do peso social da tradição oral do relato.

A estrutura investe nessa interminável associação entre ficção e realidade, entre palco e depoimentos, entre poéticas da metáfora e do relato oral, e não só subestima o espectador ao exaurir a já óbvia relação academicista e cansada como passa por cima de responsabilidades sociais através de uma suposta dialética do afeto que me parece tirar o protagonismo das palavras dessas mulheres vítimas da brutalidade estrutural da sociedade e do estado. O palco sempre parece ser o carro chefe do filme, e enquanto ambos estiverem na mesma narrativa e a interpretação mitológica embasada nas teorias mais superficiais se sobrepor às questões urgentes dos relatos brutais que precisam ser ouvidos além das páginas policiais exploratórias, haverá uma discrepância enorme nessa dialética que antes de tudo é um dever cívico.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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SESSÃO CURTAS PANORAMA – DIA 3

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Por Gabriel Papaléo
Verde Limão
Relato de fantasias e um histórico de resistências subjetivas e também políticas, é dos raros filmes da Mostra que conciliam sua proposta estética com um ativismo social frontal e combativo. O dispositivo das memórias da drag queen que protagoniza o filme propõe uma liberdade formal para cada memória que relembra no caminho para o que parece sua última performance. A paz com o corpo traz a paz de espírito que escapa nos cerceamentos sociais que interferem no projeto estético de cores e purpurinas, as vezes com os percalços do didatismo em um número musical, mas sem perder a honestidade e principalmente a sensibilidade do esforço de traduzir enfrentamentos em cenas e luzes.Princesa Morta do Jacuí
A armadilha da visão das memórias como ciclos intermináveis de busca e curiosidade que alcançam níveis de paranoia que sequestram o poder de escolhas nas ações é o que move essa ficção-científica especial, nos enquadramentos 4×3 do 16mm que conferem a fantasia fabular necessária as matas abandonadas desse pós-apocalipse industrial a ser visitado pelo arqueólogo protagonista. É um ambiente de pesadelo colonialista como Jauja e Zama, mas sob o filtro dos escombros, das memórias pessoais que interferem na narrativa como forma de difusão temporal, uma ilha dos desejos mais profundos como em Solaris, mas conduzida com o apego ao registro oral da narração que atravessa o curta inteiro. Estimula a criação de um mundo além das margens da imagens, sugere passados incompletos para o presente árido, e ainda deixa clara sua ideia da falência paradoxal do ato de descobrir terras – um progresso industrial enraizado na exploração colonialista que não parece ter fim.

Liberdade
Quando exatamente existe a transição de povos na convivência entre estrangeiros em um lugar comum no qual eles não pertencem por completo? O segundo plano de Liberdade já dá o tom do filme, com a senhora japonesa que habita a casa que conhecemos com o bairro ao seu fundo, meio fora de foco, presente como paisagem mas soando como uma reminiscência de casa, espaço e humana nunca conciliados propriamente. Os diferentes registros das memórias, a família japonesa em fotos 35mm preto e branco, a família guinéu-equatoriana em fotos digitais coloridas bem mais recentes – todo um imaginário de congregações exibido apenas pela nostalgia de casa.

Bup
O fluxo de consciência doido de uma artista tentando organizar seus pensamentos enquanto atua apenas com o rosto para uma câmera em close, um tanto inquisidora, que parece guardar as expectativas de um público específico mesmo que Dandara esteja nervosa diante deles – e na ótima narração em off ela desarma totalmente a pose do que poderia cair num pomposo registro de processo da atriz. Uma adaptação curiosa de Lago dos Cisnes, meio na sátira, meio na franca zoeira, que parece entender que passar num festival às vezes é atender a expectativas e lidar com elas com senso de humor, sabendo dos códigos para então subverte-los, com a personalidade inquieta da diretora e atriz que se expõe com estilo diante daquele plano único.

Mesmo com tanta Agonia
Recortes difusos de uma rotina de combates cotidianos, de lutas quase invisíveis sob a banalidade do cotidiano. Do primeiro contato com o chefe homem na cozinha quase exclusivamente de mulheres até o potente final de luzes e trânsitos, a protagonista anda em meio a lentes de longa distância e o caos da cidade de São Paulo em uma rotina de poucos eventos, passando brevemente por momentos de brutalidade corporativa no metrô e a fuga através da linda cena da festa da filha. As lutas de uma mulher negra de classe média diante das opressões tão específicas e tão enraizadas na ideia de metrópole, justificadas pelo serventilismo e o machismo, e distantes de uma resolução mas não de confrontos possíveis.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Tremor Iê (Elena Meirelles, Lívia de Paiva, 2019)

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Acreditar na palavra

Um rápido pensamento durante a sessão de Tremor Iê remete a um comentário feito por Adirley Queirós sobre o seu Era Uma Vez Brasília há um ano atrás durante debate na 21ª Mostra de Tiradentes e a negação da fala no filme: eis aqui o seu complemento perfeito. Tremor Iê, assim como o filme de Adirley e Com os Punhos Cerrados da Alumbramento, é um filme destinado às ruas, mas que nega a performance como o grande catalisador de suas ideias.

Para Elena Meirelles e Lívia de Paiva, a palavra coloca o tão discutido futuro distópico no agora, na certeza do declínio da sociedade, na igualdade como um sonho distante e que atitudes – como um simples batucar – é um ato político. Portanto, o que se vê em Tremor Iê, como a construção de um filme de suspense, é um compêndio de lamentos; fala-se sobre a opressão do Estado e como a saída é inviável, também como passado e futuro estão numa espécie de curso amaldiçoado de repetições.

Quanto a isso, uma só ação é esperada e que dá na melhor sequência do filme, no qual um filme de assalto à banco é correspondente; Tudo que Adirley tomou por uma dormência como sentimento geral, ao filme de Elena e Lívia ainda há um respiro, a certeza de vida entre os muros da opressão. Contra tudo e contra todos, Tremor Iê é um filme do agora e para o agora, e se notarmos neste ciclo infinito de “agoras” que a política constrói (vide 1964 e 2019), será um filme reverberado por muito tempo.

A palavra, neste momento, é a arma notável contra toda truculência do Estado, por mais que pareça utópico; chegar ao mesmo nível é o atestado de fraqueza, é o momento de uma sagacidade que reverbera até o próprio fazer do filme – boa parte do longa se passa em locações-chaves de Fortaleza e que espelham esse diálogo do ciclo entre passado e futuro. E é disso que Tremor Iê é feito: para Elena e Lívia, observar o que está o redor é pretexto para maior, uma jogada-chave para fazer o coração voltar a bater e não de afirmar que o jogo está ganho. Falta muito para chegar lá e em Tremor Iê o batuque seguirá vivo.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Seus Ossos e Seus Olhos (Caetano Gotardo, 2019)

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De olhos fechados

A cena que abre Seus Ossos e Seus Olhos é essencial: lá está o diretor, roteirista e protagonista Caetano Gotardo munido de um telefone, com sua emoção aflorada. O telefone e a emoção são dois caminhos indispensáveis em seu formalismo. Ainda sobre o aparelho telefônico, vale dizer que o filme serve como uma bela analogia a uma conversa, sobre a oralidade e como ela é a espinha dorsal para a imaginação e não para uma verdade definitiva.

A definição do que se vê, como uma certeza absoluta, é quebrada pela montagem, na ideia que pela oralidade a verdade é pertencente a uma pessoa, que cria inconscientemente os detalhes do que se ouve, se desconecta de onde pisa para ir a um lugar impalpável. Aqui, primeiro se ouve, se analisa o prazer de ouvir e imaginar para depois absorver a posição de passividade que o espectador geralmente toma ao sentar numa poltrona de cinema.

E para todo esse exercício, que na casca parece simples, mas que carrega uma complexidade corpulenta, a base está na teatralidade, o grande suporte para a filmografia de Caetano Gotardo. É na agudez da mise en scène, nas declamações ou no simples jogo de corpo – e de cena – que se coloca o dia-a-dia como um grande tablado; de um simples tapete às ruas da cidade, os corpos estão a serviço de uma mensagem – construir narrativas.

Seus Ossos e Seus Olhos se resume a este emblema que leva a muitos córregos a se discutir, principalmente sobre a representação e suas variantes, como o teatro e a oralidade ainda são de extrema importância para o cinema em tempos de puro prazer visual. Caetano Gotardo arremata o filme nos closes e nos planos gerais, saídas básicas do cinema narrativo, sem levar sua câmera para os lados, sem tirá-la do tripé, como uma testemunha de um caminho a ser tomado ou um quadro a ser pintado.

Caetano Gotardo mostra que seu modus operandi é revitalizado em comparação a O que se Move (2013), seu último longa-metragem, mas que continua um realizador com olhar único no circuito por onde seus filmes passam. Na mesma medida em que se mostra apaixonado pelo fazer, o ver e o narrar ganham a mesma importância.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

tiradentes*

PARQUE OESTE (Fabiana Assis)
Gabriel Papaléo

UM FILME DE VERÃO (Jo Serfaty)
Pedro Tavares

VERMELHA (Getúlio Ribeiro)
Pedro Tavares

DESVIO (Arthur Lins)
Pedro Tavares

A RAINHA NZINGA CHEGOU (Junia Torres e Isabel Gasparino)
Pedro Tavares

TRÁGICAS (Aida Marques)
Gabriel Papaléo

SESSÃO DE CURTAS – PANORAMA, DIA 3
Gabriel Papaléo

TREMOR IÊ (Elena Meirelles, Lívia de Paiva)
Pedro Tavares

SEUS OSSOS E SEUS OLHOS (Caetano Gotardo)
Pedro Tavares

CALYPSO (Rodrigo Lima e Lucas Parente)
Pedro Tavares

INFERNINHO (Guto Parente e Pedro Diógenes)
Pedro Tavares

ILHA (Glenda Nicácio e Ary Rosa)
Pedro Tavares

OS SONÂMBULOS (Tiago Mata Machado)
Pedro Tavares

TEMPORADA (André Novais Oliveira)
Pedro Tavares

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