Festival de Brasília: Mostra Competitiva de curtas – Parte 2

Por Kênia Freitas
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As melhores noites de Veroni (2017), Ulisses Arthur

Tentei (2017), de Laís Melo

Esses dois curtas trazem o corpo feminino como temática e como forma de exploração material do filme. As protagonistas femininas em ambos colocam as relações de afeto e poder que perpassam as vidas das mulheres em evidência. Em As melhores noites de Veroni, de Ulisses Arthur, esse corpo – o corpo da protagonista Veroni – está em impasse: de um lado a clausura de um apartamento apertado, da vida familiar e de um relacionamento em crise com o marido caminhoneiro quase sempre ausente; de outro, as aulas de canto e a performance na noite. O curta de apartamento, usa desse espaço limitado para aumentar o efeito de aproximação com Veroni e o seu cotidiano trivial. Interessa, assim, menos a resolução das incertezas da personagem ou a imposição bem delineada de um conflito narrativo e mais um aproximar afetivo desse corpo feminino e dos seus deslocamentos.

Em Tentei, de Laís Melo, os procedimentos iniciais de entrada no filme são semelhantes: o espaço íntimo de um quarto, vemos inicialmente um casal (homem e mulher) na cama e  acompanhamos os gestos mínimos e silenciosos dessa mulher que se arruma para sair de casa. O procedimento então se altera completamente, estamos no espaço impessoal de uma repartição pública, que descobriremos ser uma delegacia policial. O filme orquestra então de forma engenhosa um plano e contraplano entre Glória (a mulher que vimos sair de casa) e o funcionário público que a atende. Embora ambos ocupem a mesma sala, cada um dos personagens existe em uma pulsação de vida diferente. O atendente segue protocolarmente os procedimentos para registrar a denúncia de abuso e estupro marital de Glória, o seu discurso conforma-se no registro institucional. Glória pouco consegue expressar-se pelas palavras, o seu discurso é aquele que não consegue ser formulado de forma adequada ao protocolo. Plano e contraplano colocam o espectador entre duas imagens que não poderão se encontrar de fato na tela. Por fim, diante da impossibilidade, na sequência final do curta, a esse corpo que não consegue produzir discurso sobre a violência que sofre, o que resta é voltar-se contra si e também contra a câmera, contra a sua transformação em imagem.

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Peripatético (2017), de Jéssica Queiroz

Nada (2017), de Gabriel Martins

Chico (2016), dos Irmãos Carvalho

Peripatético, Nada e Chico trazem para a tela os corpos e questões da juventude negra, uma juventude que nos filmes negocia entre a própria possibilidade de existir no mundo e os desejos que atravessam uma existência mais plena (menos precária e com significado). Nada, de Gabriel Martins, mergulha na crise existencial da Bia. A jovem de família de classe média e as portas de prestar vestibular, manifesta o seu desejo profundo de não fazer nada: de não escolher uma profissão e não entrar na máquina de moer pessoas da vida adulta.  Equilibrando as diversas reações  (da família, da escola e da amiga) diante do desejo de Bia, o curta tem as suas melhores cenas quando entrega-se plenamente as formas de apreensão do mundo por Bia – no travelling de abertura com o deslizar da câmera nas ruas acompanhado pela trilha musical, na cena em que Bia canta rap no quarto e a câmera entra na coreografia com ela, nos corredores da escola quando a banda sonora do filme fica nos fones de ouvido da jovem em detrimento aos sons do mundo exterior. No fim, após a fuga da garota, o filme devolve aos espectadores um lugar do julgamento ou da absolvição com um “valeu a pena?” que não será respondido.

Chico, dos irmãos Carvalho, nos desloca para uma narrativa de futuro: estamos em 2029, em um regime de exceção em que jovens negros e pobres podem ser presos preventivamente pelos crimes que supostamente irão cometer. Chico é um desses jovens, carregando nos tornozelos a marca desse destino. Embora futurístico, é difícil classificar o filme como uma distopia estando este tão próximo das representações e das discussões sociais do nosso presente (a redução da maioridade penal e o encarceramento em massa, para falar dos temas mais óbvios). As escolhas da direção de arte e da encenação são fundamentais também no sentido de inscrever esse futuro como um registro familiar do nosso presente. Na encenação, temos um registro naturalista dos acontecimentos, sobretudo nas relações familiares afetivas e francas entre avó, mãe e filho. Os elementos futurísticos inseridos para marcar cenograficamente esse futuro são sutis (como a tornozeleira prateada de Chico) reforçando essa relação direta com o presente. Então, de fato o deslocamento maior do filme vem não de sua temporalidade, mas da sua resolução pelo cruelmente e amorosamente mágico na cena final.

Peripatético de Jéssica Queiroz acompanha os amigos Simone, Thiana e Michel. Simone quer arranjar um emprego, Thiana estuda para passar no vestibular e Michel está tranquilo jogando videogame. A narrativa pulsa no ritmo da correria de Simone, é preciso deslocar-se pela cidade, usar sapatos e passar por inúmeras entrevistas que não dão certo. Situando-a para além da sua vizinhança e núcleo de amigos, o filme apresenta também uma série de outros candidatos a vagas de emprego (de idade, raça e classe social diversos). Abrindo a subjetividades diversas a busca da personagem. No entanto, a narrativa divertida e de influências pop é bruscamente interrompida pela realidade histórica. As imagens televisivas nos situam então em 2006 no dia em que o protesto de uma facção criminosa e a reação policial contra a periferia da cidade rasgaram São Paulo (e no filme a vida de Michel). O curta se depara assim com um paradoxo de existência semelhante ao dos seus jovens personagens: o desejo de ser e pulsar em um ritmo, e as demandas concretas de precisar existir em outro registro.

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Carneiro de Ouro (2017), Dácia Ibiapina

O filme de Dácia Ibiapina começa por nos apresentar o personagem de Dedé Monteiro, um realizador do Sertão do Piauí que produz cinema popular com poucos recursos, contando histórias fantásticas e de aventura, com muito efeitos especiais inusitados. De início, o documentário trabalha em um registro padrão de entrevista com o personagem e algumas imagens do seu processo de produção. Mas o grande movimento do filme de Dácia Ibiapina é quando este permite-se o gesto de fazer ready made com o cinema de Dedé Monteiro. O curta então perde-se (no melhor dos sentidos da criação livre) nas imagens do cinema do cinema de Dedé e torna-se ele próprio esse cinema popular escrachado de efeitos especiais absurdos e cativantes. Mais do que um filme dentro de outro filme; trata-se de um cinema (o francamente popular) dentro de outro cinema (o do registro documental legitimado por festivais e crítica). Sendo um belo gesto de crença e amor às imagens do cinema.

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Festival de Brasília: Mostra competitiva de curtas – Parte 1

Por Camila Vieira

 O Peixe 1O Peixe (2016), de Jonathas de Andrade

Há algo de perturbador no modo como a duração dos planos de O Peixe evoca a persistência do olhar para um gesto ambíguo de dominação e docilidade. O ritual de pescadores que abraçam os peixes logo após a pesca é encenado em posição frontal à câmera, com zoom que se aproxima dos corpos. A ambientação sonora do mangue repousa sobre a calmaria de cantos de pássaros, chiados de cigarras, barulho das águas em movimento, ruído de folhas que balançam ao vento, entre tantos outros sons da natureza que se harmonizam. De um plano a outro, a ação ritualística se repete com pequenas variações, acompanhando cada processo de morte lenta dos peixes envoltos pelos braços vigorosos de pescadores, que usam a força física para manter uma luta corporal com o animal que agoniza. É um belo filme sobre a relação homem e natureza, mediada pelo toque que produz uma pulsação erótica.

Inocentes 1Inocentes (2017), de Douglas Soares

Compor a imagem com corpos masculinos também é o foco de Inocentes, mas a partir de uma chave de aproximação com o trabalho fotográfico homoerótico de Alair Gomes. Em preto e branco, os planos contemplativos da paisagem dão lugar ao ponto de vista de alguém olhando a praia da janela de um prédio. Homens passam protetor solar, conversam, tomam banho de mar, fazem exercícios. O olhar voyeurístico acompanha o movimento dos corpos, capturados também em instantes fotográficos. Em voz off, um homem imagina narrativas a partir dos rapazes que observa à distância. Mesmo incluindo um rapaz negro – não há registro fotográfico de negros no trabalho de Alair Gomes –, existe uma beleza que Douglas procura preservar em homenagem ao fotógrafo, a partir da opção de filmar apenas jovens com padrão de corpos sarados, deixando de lado a possibilidade de um olhar mais diversificado.

Baunilha 1Baunilha (2017), de Leo Tabosa

O início de Baunilha apresenta uma explicação do mestre Brenno Furrier sobre a máscara na prática de BDSM: um objeto que despersonifica, tira a identidade e o aspecto humano de quem a usa, podendo também manter o sigilo do dominador ou do submisso. Tomando esta imagem da máscara como ponto de partida formal, o curta faz um retrato de Furrier, apenas com planos que mostram fragmentos de seu corpo, sem jamais revelar o rosto do personagem. No começo, a entrevista detalha como funciona a prática, desconstruindo o olhar do senso comum, em contraponto ao sexo baunilha (feito de maneira convencional). Quando o desvelamento do rosto de Furrier para o entrevistador acontece no fora de campo, o documentário dedica-se a um perfil do personagem, explicitando não só as motivações que o levaram a buscar o BDSM, mas também suas relações amorosas e anseios sentimentais no cotidiano.

A Passagem do Cometa 1A Passagem do Cometa (2017), de Juliana Rojas

Em comparação com outros filmes de Juliana Rojas, A Passagem do Cometa mantém um registro seco, sem elementos sobrenaturais ou de horror. Ao tratar do aborto em uma clínica clandestina como tema, o curta optou por ser econômico e direto na narrativa, contextualizada nos anos 80. Por outro aspecto, o filme aprofunda tensões desencadeadas pela própria situação: a entrega do dinheiro, a espera da amiga que chega atrasada, as perguntas da médica, o exame do corpo na maca. O procedimento cirúrgico é explicado de forma científica pela médica, mas há uma elipse que salta para o momento pós-cirurgia, quando parece haver uma sensação de vazio, de falta, sobrepondo as imagens dos objetos da sala com animações em cores neon, que figuram partes do corpo da mulher. Pontuado por um acontecimento que rompe a tranquilidade da clínica, o curta propõe uma indagação para o futuro.

Mamata 1Mamata (2017), de Marcus Curvelo

Diferente da maioria dos filmes interessados em pensar as urgências do nosso tempo histórico diante da conjuntura política brasileira, Mamata não tem a pretensão de seriedade tampouco de afirmação de uma tese. Pelos recursos da comédia e da precariedade do registro caseiro, o filme é a expressão de uma juventude em crise, que vive o próprio fracasso e aponta para o impasse do país. Curvelo se coloca em cena como este jovem solitário, sem saber muito o que fazer diante do próprio fracasso, mas rindo de si mesmo. A ironia e o sarcasmo também mobiliza a montagem inventiva do curta, a partir do uso de imagens e sons que se viralizaram na internet e que, ao serem colocados em uma só sequência, dão conta de momentos absurdos e inusitados, como o hino nacional cantado por Vanusa, junto à imagem do pato, à cambalhota do Vampeta na rampa do Planalto e o choro de David Luís na derrota do time brasileiro na Copa.

Torre 1Torre (2017), de Nádia Mangolini

Usando a técnica da animação para realizar um documentário, Torre parte dos relatos de quatro irmãos da família Gomes da Silva, cujo patriarca Virgílio é considerado o primeiro desaparecido político da ditadura militar brasileira. Os entrevistados narram o que recordam da infância e de que modo a ausência do pai e a prisão da mãe afetaram cada uma de suas vidas. Compondo com o figurativo, o traço se desfaz e se refaz a partir das lembranças que permaneceram e as que escapam. A estrutura fragmentada em quatro partes do curta é intercalada pelos nomes dos filhos por ordem crescente de idade e os blocos de narrativa vão ganhando uma progressão maior de detalhes do traço e cores mais vivas, de acordo com o que cada um consegue relatar. O que impressiona é o modo como o curta procura dar conta do desaparecimento do pai, a partir do uso expressivo do branco e de rastros que se dissolvem.

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Festival de Brasília: Arábia

Quem conta sua história?

Por Camila Vieira

O começo de Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans, acompanha o adolescente André, andando de bicicleta em longo plano sequência. Nas cenas posteriores, a presença constante do jovem no centro da trama nos interpela como possível protagonista do filme. O garoto chega em casa, na Vila Operária, bairro próximo a uma fábrica de alumínio em Ouro Preto, Minas Gerais. Ele cuida do irmão pequeno, que está doente. A mãe só volta de viagem no fim do mês. A tia Marcia ajuda os dois nas tarefas domésticas. Ela é enfermeira em um hospital comunitário e é amiga de Cristiano, um operário que se acidenta na fábrica e acaba sendo internado. Ao encontrar um caderno deixado por Cristiano, André entra em contato com a escrita em primeira pessoa desse trabalhador e, a partir daí, a narrativa do filme se reposiciona: somos mergulhados na história de Cristiano, que se torna o personagem principal de Arábia.

Deixar André de lado e abrir a porta para acessar Cristiano, mediante sua própria voz, acena para duas estratégias: possibilitar que a vida de um personagem de origem humilde, um operário, seja narrada por ele mesmo e engrandecer o relato de alguém comum que costuma não ter importância dentro da ótica das grandes narrativas oficiais. Se antes escutamos do menino Marcos que “o mundo só tem matação, tiro, morte; não tem milagre”, a trajetória épica de dez anos de Cristiano aponta para o pequeno milagre de um operário que vivencia o cotidiano árduo do trabalho e da migração de cidade em cidade em busca de sobrevivência.

Diferente de outros tantos filmes que usam a voz off como forma de sublinhar ou reforçar o que é visto em uma cena, o relato aprofunda a subjetividade de Cristiano pela sua relação com o passado e adiciona um caráter romanesco às imagens construídas na relação direta com o real. O filme desenvolve a saga do personagem que, após sair da cadeia, não quer mais voltar ao seu bairro em Contagem. Ele decide pegar a estrada a procura de pequenos trabalhos, que lhe garantem o mínimo de trocados para seu sustento. O deslocamento de um lugar a outro faz com que Cristiano se adeque à dinâmica de cada trabalho: coletor e vendedor de mexerica, peão na construção civil, transportador de cargas, mecânico de tecelagem, operário de fábrica de alumínio.

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Em cada um dos espaços de trabalho, os encontros com outros colegas são pontuados por intervalos em que uma espécie de irmandade acontece. A conversa com o caminhoneiro produz um vínculo a ser partilhado: eles comparam qual a carga mais árdua e difícil de carregar – algo que permite ao espectador entender o quão duro é aquele trabalho. Há momentos em que todos cantam juntos, como a cena em que o grupo de operários entoa os versos de “Cowboy Fora da Lei”, de Raul Seixas. Outras músicas ajudam a dimensionar a relação afetiva do personagem com os espaços e as pessoas, em especial “Três Apitos”, de Noel Rosa, na voz de Maria Bethania; e “Raízes”, de Renato Teixeira.

Arábia parte da história de um personagem para compor um retrato do trabalhador brasileiro em uma conjuntura histórica que perpassa uma década. O interesse não é procurar entender as causas das desigualdades sociais e econômicas dentro da experiência de mundo do personagem, que antes acreditava “não ter nada de importante para contar”. O olhar da direção vai para outro caminho: aproximar-se do modo de vida desse trabalhador, das pessoas que ele conhece – inclusive Ana, o grande amor de sua vida –, e do despertar diante de sua condição como parte da engrenagem que integra a alienação do trabalho.

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Festival de Brasília: Era Uma Vez Brasília

Por Kênia Freitas

O que fazer do Era uma vez Brasília de Adirley Queirós? O filme é o sucessor evidente de Branco Sai, Preto Fica (2014) na proposta de mesclar o documentário e a ficção cientítica a partir das histórias de vida dos personagens reais da Ceilândia/DF. No entanto, Era uma vez Brasília substitui o provocativo “da nossa memória fabulamos nóis mesmos” do antecessor por algo como: “o futuro distópico já está sendo e somos nós”.

Temos assim, a partir das histórias reais de Wellington (preso por invadir um lote para construir uma casa), do Marquim da Tropa (personagem também de Branco Sai…, que levou um tiro após uma violenta batida policial e ficou paraplégico) e de Andreia (uma ex-presidiária em liberdade condicional) a ficcionalização de uma distopia que coincide também com o cenário macropolítico nacional. Nessa trama de sci-fi, Wellington será WA4, preso em 1959 por fazer um lotamento ilegal e mandando para o futuro com a missão de assassinar o presidente Juscelino Kubitschek. Sua nave perde-se no tempo e espaço e cai na Ceilândia de 2016. Nesse presente distópico, entrecortado pela narrativa real do golpe parlamentar que impediu a presidenta Dilma Roussef, WA4, Andreia e Marquim encontram-se para formar um exército.

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A forma de condução dessa narrativa porém é a da diluição da trama. Os fragmentos que nos situam e explicam o enredo estão entrecortados pelo vagar ou paralização dos corpos e das paisagens de Brasília, Ceilândia e Samambaia. Há uma escolha deliberada pela não fruição narrativa tradicional. Uma opção de negação do prazer diagético do espectador. Mais do que contato ou crença, o que Era uma vez Brasília oferece ao espectador é a frustração. Frustração dos corpos inertes, que contemplam paisagens sombrias que se repetem (a passarela, o metrô, a esplanada). Corpos despontecializados até mesmo quando em deslocamento pelo metrô ou pela nave espacial, em um vagar que não chega a lugar algum. Corpos que atiram contra o congresso e não provocam estrago algum ao poder estruturado. Temos assim, não mais a história dos que se vingam (como em Branco Sai…), mas apenas dos que não morrem.

Essa condução narrativa é imposta, longe de qualquer negociação ou jogo que perpassam os longas anteriores de Adirley Queirós. Como em uma instalação de arte contemporânea, esses corpos desolados e solitários pousam para a plasticidade da câmera e ocupam a tela em planos longos e lentos. Mas diferente da fruição dessas instalações no espaço do museu, o dispositivo cinema obriga aos espectadores permanecerem diante do filme sem respiro. Dispositivo de frustração espectatorial ampliado na exibição do filme em Brasília pelo contato direto com os curtas que abriram a sessão. Chico (dos Irmãos Carvalho) e Carneiro de ouro (de Dácia Ibiapina) são filmes que apostam no poder e na crença de novas narrativas – a do cinema negro e de favela, no caso do primeiro, e a do cinema popular, no segundo.

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Nesse dispositivo de frustração, Era uma vez Brasília aprisiona os espectadores assim como as cidades-prisões do filme aprisionam os personagens. Nesse sombrio luto de 2013, o sol não irá nascer, as balas não atingirão o seu destino, o ruído incessante não dimunuirá. Nessa distopia do presente, no último plano do filme os personagens encaram o espectador e nos jogam na pergunta que abre esse texto: o que, afinal, fazer dessas imagens e desse filme? Um encerramento que parece resumir a sua carta de intenções: Bem-vindo ao Brasil 2017: não há saída!

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Festival de Brasília: O Nó do Diabo

A origem do mal

Por Camila Vieira

A estrutura narrativa do longa-metragem O Nó do Diabo (2016), de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, é dividida em cinco capítulos, que são separados e nomeados por anos específicos, seguindo uma cronologia decrescente do futuro até o passado. A estratégia procura pensar uma dramaturgia em que cada capítulo seguinte encadeia eventos trágicos que, de algum modo, estão conectados ao que já foi apresentado no capítulo anterior. Parece existir uma componente genealógica dentro deste esforço de alinhavar as diferentes tramas, de modo a compor uma grande narrativa em torno das relações de poder e de dominação entre brancos e negros. O espaço é uma fazenda canavieira e o tempo é o intervalo de dois séculos, em que uma espiral de acontecimentos se desdobra em torno da escravidão, do racismo e da propriedade.

Ao desenvolver os conflitos em cada um dos capítulos pela chave do oponente a ser eliminado ou exterminado, O Nó do Diabo parte da construção de dois polos dentro da dinâmica de quem ameaça e de quem se sente ameaçado. De um lado, Vieira é o branco latifundiário, que detém os títulos de propriedade da terra e a força de exploração. Ele é o único personagem presente em todos os capítulos; sua premissa é de uma entidade eterna, como um vampiro que cruza diferentes tempos. Do outro lado, os personagens negros são transitórios de um capítulo a outro, mas eles são convocados a uma força de resistência contínua que passa de geração em geração.

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Enquanto Vieira é o corpo que se mantém intacto e impermeável ao tempo, os corpos dos negros que se revoltam estão transmutados, metamorfoseados como figuras monstruosas, que carregam um mal original, o tal nó do diabo. Ao se deixar seduzir pelos códigos do gênero de horror, em especial pela construção do fantástico que apela para a iconologia da monstruosidade (os mortos-vivos, os fantasmas de olhos vermelhos, a jovem incendiária), a insurgência parece se identificar menos com uma problemática de fundo histórico e mais com uma justificativa de gênese do mal. “A terra come tudo. A alma não descansa nunca”, diz o mentor do escravo fugitivo no penúltimo capítulo.

Há eficácia no modo como é explorada a linguagem do cinema de gênero de horror, como o uso do zoom para provocar um efeito, a música com graves que enfatizam a tensão da cena, o sangue gráfico do gore. De um capítulo a outro, os mesmos códigos são pontuados, mas a necessidade de se servir deles apenas aponta para a harmonização de um todo, que não gera dissonâncias capazes de surpreender. A subversão no próprio caráter de estranhamento das figuras monstruosas parece estar inserida no mesmo grau de importância entre tantos outros elementos que o filme abarca.

Mas se existe um embotamento da subjetividade dos personagens insurgentes pelas forças do mal que eles carregam, a existência deles não está separada do tom excessivo e espetacular da perpetuação da violência em O Nó do Diabo. A eliminação do outro e o derramamento de sangue são apenas instrumentos que contribuem para o bom funcionamento e para a eficiência dos códigos do horror na economia narrativa e de mise-en-scène do filme.

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Festival de Brasília: Por Trás da Linha de Escudos

Ambição e ingenuidade

Por Camila Vieira

Por Trás da Linha de Escudos, de Marcelo Pedroso, é o fracasso de um projeto que ambicionou ser maior do que realmente é. Ao fazer um documentário dentro do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, o grande desafio era encontrar uma maneira de escutar os policiais, pelo gesto de se posicionar do outro lado do front de batalha, já não mais dos manifestantes que protestam nas ruas. Se, para Jean-Louis Comolli, filmar o inimigo é de alguma forma se colocar do lado dele e compartilhar a mesma cena, Pedroso parte da mesma premissa e toma a decisão espinhosa de não partir para o confronto.

No entanto, a postura de não confrontar precisa caminhar junto com a necessidade de desmontar o inimigo em sua própria história e conseguir descrevê-lo com suas contradições para que possa aparecer como tal. Ao longo do filme, Pedroso indaga os policiais, procurando compreender suas motivações dentro da dinâmica de trabalho, enquanto acompanha os diversos treinamentos da tropa e operações habituais do exercício da função. As perguntas jamais são colocadas em tom de ataque, mas de curiosidade em relação a como funciona o efetivo. A fragilidade do filme não repousa na opção pelo não confronto, mas em não conseguir encontrar estratégias que apontem para a complexidade de ser um policial militar dentro do atual contexto histórico do Brasil.

O dispositivo de escuta de Pedroso em Por Trás da Linha de Escudos leva a dois caminhos igualmente problemáticos: a repetição exaustiva dos argumentos dos policiais dentro do discurso oficial (eles sempre respondem que estão cumprindo normas e leis, como braços do Estado, e que não existe espaço para emoção) e a observação do modus operandi dentro do batalhão na linha da aprendizagem de como se tornar um bom policial. O que se obtém nas filmagens parece seguir uma abordagem institucional ou não escapa de perguntas que a própria polícia já se acostumou a ouvir (não é a toa que o primeiro coronel entrevistado não consegue distinguir a equipe de cinema de uma equipe de imprensa qualquer).

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Se ao lado do batalhão não se produz nada além do oficialesco e do institucional, resta forçar uma pretensão crítica em outro lugar: intercalar com os registros do confronto da polícia com os manifestantes no Movimento Ocupe Estelita em 2014 e com imagens icônicas a serviço de uma certa leitura simbólica do país (a bandeira do Brasil repleta de carrapatos, bonequinhos de manifestantes e polícia em um jogo tabuleiro, o céu da bandeira que se torna escudo com a faixa de “ordem e progresso”). No entanto, o esforço de crítica é acomodado em uma sucessão de imagens que não provocam qualquer ruído no que já foi dito.

Mesmo nos trechos em que se acena um contraponto, como é o caso da sequência em que Pedroso está na ilha de edição e coloca lado a lado a foto de um manifestante sangrando e outra de uma mulher sorridente com os policiais, o olhar é apenas de ingenuidade. Parece que é aí que o cinema abdica da crença em sua capacidade de produzir desvio. O reforço da pose do diretor ingênuo e em crise com o material que tem em mãos é agravado pela arrogância de acreditar que está compreendendo o lado humano do batalhão de choque. Um dos policiais se enxerga como um cidadão comum que também sofre. Mas se o filme não se interessa em investigar isso e se limita a ouvir o policial e não a pessoa para além de sua missão profissional, a busca pelo humano fica só no discurso.

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Festival de Brasília: Café com Canela

Por Kênia Freitas

Sankofa = “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”

Provérbio tradicional Akan da África Ocidental (Gana, Togo e Costa do Marfim)

“Ao produzir e dirigir seus filmes, diretoras negras brasileiras têm edificado um modo de fazer cinema cuja referência é a história e a cultura dos povos negros. Seus trabalhos e suas práticas fílmicas constroem uma cinematografia fora da estereotipia, revelam visões de mundo, incentivando, assim, leituras afetivas, políticas e geográficas sedimentadas no desenvolvimento humano, na corporeidade como possibilidade de ressignificar conceitos de amor, afetos e identidade”.

Edileuza Souza da Penha

 

Dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio, “Café com canela” nos joga  de início em duas imagens festivas de famílias negras. A primeira, codificada pelas dimensões mais quadradas e pelas interferências na transmissão da imagem, simula o registro videográfico amador da festa de aniversário de uma criança, Paulinho. Na intermitência desse registro encontramos a figura de Margarida, anfitriã e mãe do aniversariante. Margarida e Paulo (o seu marido) registram-se em momento de euforia. Essa simulação da imagem amadora finge organizar o transcorrer do acontecimento, ao mesmo tempo em que o reconfigura pela presença da câmera. Nesses registros do passado, o filme nos apresenta também a personagem de Violeta, menina de idade próxima a Paulinho, chamada por Margarida a compor o núcleo de proximidade familiar no momento do parabéns. A bateria da filmadora acaba e o registro interrompe-se bruscamente no auge da celebração.

A segunda imagem de festa familiar nos coloca em outro fluxo de registro, o do tempo contemporâneo do transcorrer do filme: o quadro amplia-se, as imagens estão nítidas e sem interferência. Estamos em um churrasco na casa de Violeta (agora uma jovem adulta, casada e com dois filhos). Além da sua família, estão presentes poucos amigos próximos: Cidão (a melhor amiga de Violeta), Ivan (o vizinho amigo que acaba de perder o marido, Adolfo) e Margarida (que nos informam, não está mais com Paulo).

É entre essas duas imagens de celebração familiar que a narrativa do filme transcorrerá, situando a segunda imagem de encontro festivo, a do churrasco, como o lugar de chegada, o restabelecimento de uma comunidade como núcleo familiar recomposto entre os personagens presentes. Na colagem dessas duas imagens o filme entrega já no seu começo o seu arco narrativo completo: do aniversário de Paulinho ao churrasco anos mais tarde. Café com canela propõe assim aos seus espectadores um pacto narrativo não teleológico, visto que início e fim estão desde sempre dados. No lugar, o pacto proposto é o de uma circularidade temporal, no qual as diferentes temporalidades (o passado da festa infantil, a atualidade do churrasco e o futuro daqueles personagens) estão em permanente contato e em retroalimentação. Pacto esse que é selado também no bloco inicial de apresentação do filme, no momento em que a sua câmera encara frontalmente os moradores de Cachoeira (cidade do Recôncavo Baiano na qual o filme foi gravado) e estes encaram a câmera de volta. Esse olhar implica e convida diretamente aos espectadores ao percurso narrativo circular do filme de forma não omissa.

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Esse percurso entre a imagem inicial e final já dadas, será o do reencontro e da recomposição dos afetos entre Violeta e Margarida. Encontro que não se dá apenas pelos corpos em presença das duas mulheres negras, mas também dos espaços em que esses dois corpos habitam e no qual se movimentam. Para Margarida esse espaço é o do enclausuramento de sua casa. Após a morte de Paulinho, ainda criança, ela enluta-se e se isola no lar vazio (sem o filho morto e posteriormente sem o marido que também parte, na impossibilidade de permanecer). A casa reflete e é refletida no tormento psicológico de Margarida: as paredes sangram, movem-se para confiná-la, mofam. O tempo nessa casa é o que não transcorre mais, apenas repete-se. Nessa estagnação de vida, os gestos possíveis são os da repetição cotidiana: acender o cigarro, frequentar o café, ir da mesa até o sofá, cobrir e descobrir o espelho, ir a porta do quarto do filho e nunca abri-la. Para Violeta, o espaço habitado é o da fluidez pela cidade, percorrer as ruas com a sua bicicleta vendendo coxinhas e encontrando as pessoas. Movimento contínuo de vida que transcorre ligeiro entre os filhos que vieram cedo demais, o dia a dia de correria compartilhado com o marido, o trabalho, os cuidados com a avó.

É nesse rompante do fluxo permanente que Violeta reencontra Margarida. Encontro que é a princípio violento, ainda que afetuoso. Como retribuição de um gesto de acolhimento no passado da sua então professora Margarida (no momento em que a menina tornou-se órfã dos país), Violeta não aceita aquele isolamento autoimposto. Os espaços e a pulsação das protagonistas chocam-se: as recusas insistentes da professora são respondidos pelos não menos insistentes chamados a vida: “Mas tem que respirar” da jovem. Resultando, por fim, em um primeiro movimento de aproximação de embate e vão. Se os gestos de contato, dessa vez mais sutis, de Violeta prosseguem – com as rosas deixadas em frente a porta de Margarida – é a morte (da avó de Violeta) quem religa as duas imagens (fechando o ciclo temporal e possibilitando enfim que os ritmos das protagonistas entrem em sintonia).

Esse desenvolvimento circular, a partir dos pontos iniciais e finais dados de começo e do transcorrer narrativo como percurso afetivo a ser compartilhado, dá ao filme a sua liberdade de criação. Tendo o espectador não como refém do suspense narrativo, mas como cúmplice do seu desdobrar. Inventividade que transparece em cenas como a inusitada e divertida subjetiva do cachorro, logo após a morte de Adolfo, ou como na conversa entre Violeta e Margarida sobre o que pode o cinema (que termina mais uma vez em uma interpelação direta aos espectadores do filme). Circularidade que nos faz pensar em modos de narrativas ancestrais negras e no provérbio akan Sankofa “Não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Um retorno ao passado que não é só possível, como é necessário para tornar-se cura. Retorno nos gestos singelos como os de finalmente ultrapassar as portas do quarto do filho morto e de saída para ganhar a rua. Retornos necessários para que a vida finalmente contamine a estagnação e torne-se dança. E necessários também para que o presente possa ser acessado, vivido, e algum futuro imaginado. Esse retorno ao passado (e as primeiras imagens do filme) que não será jamais individual, mas coletivo e compartilhado por Margarida e Violeta, e pela cumplicidade afetiva dos espectadores.

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Festival de Brasília: Construindo Pontes

Diferenças conciliáveis

Por Camila Vieira

Em determinado momento do longa-metragem Construindo Pontes, a diretora Heloísa Passos esclarece que seu documentário partiu do interesse de filmar um lugar de conflito e de convivência. A partir da relação com seu pai, a realizadora não se furta em expor as diferenças entre os dois, tanto de visões particulares de mundo quanto do pensamento sobre a política do Brasil. O pressuposto parece ser um abismo que existe entre Heloísa e Alberto, engenheiro que trabalhou em várias obras de infraestrutura durante o período da ditadura militar.

De início, Heloísa procura entender no passado as raízes do abismo com seu pai. Seu ponto de partida visual é a cachoeira de Sete Quedas, por meio de imagens registradas em Super-8 e dadas de presente pelo pai. A queda d’água desapareceu com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, uma das obras erguidas durante a ditadura, no final dos anos 70. Alberto não foi o engenheiro responsável pela construção da hidrelétrica, mas Heloísa toma o projeto como exemplo de um contexto histórico por meio do qual seu pai coordenou em 15 anos a criação de 22 obras espalhadas pelo Brasil que, segundo o olhar dele, se inserem dentro do único projeto político e econômico que trouxe benefícios para o país.

Enquanto Heloísa pede para Alberto traçar no mapa do Brasil a extensão das obras que participou e exibe imagens de arquivo com fotos da época, os conflitos entre ela e o pai vão surgindo, ainda que ela deixe claro que “a família é o não dito”. Ao tratar da situação política atual do Brasil, ela questiona a arbitrariedade de “um país sem lei”. Durante uma conversa em torno do mandato de condução coercitiva do ex-presidente Lula, Alberto insiste que ela “não se envolva emocionalmente” e reafirma que a ditatura tinha limites de corrupção, com regras rígidas de modernização a favor do sistema econômico.

Construindo Pontes 2

Na disputa de discursos entre pai e filha, Alberto aparenta impassividade e Heloísa mantém a postura de enfrentamento. Mas os desacordos entre os dois jamais são aprofundados e permanecem apenas na lógica do desequilíbrio perceptível de uso das palavras: “Ele fala moça. Eu falo presidenta. Ele fala revolução. Eu falo ditadura”. No momento em que Heloísa narra a história de sua saída de casa aos 22 anos, quando o pai descobriu que ela namorava uma menina, o filme parece apontar para uma ferida não conciliável entre ambos. No entanto, a presença da nova companheira, Tina, dentro da casa durante as filmagens é apenas periférica, sem resquício algum de que aquele acontecimento do passado ainda provoque qualquer incômodo ou dissenso.

Se mesmo a forma como Alberto quer interferir no filme não passa de sugestões como “ter um propósito” ou chegar a “uma concepção final”, as divergências entre ambos são sempre colocadas como exposição de pontos de vistas distintos, que jamais transbordam na constituição da cena. O propósito é a “boa sincronização” do lugar de conflito que até então tinha sido tomado como pressuposto do filme, mas que é inviabilizado pela felicidade estampada nas fotos do álbum de família e pela constatação do  “deixem que eu decida a minha vida” na voz de Belchior.

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Festival de Brasília: Pendular

Oscilar e mudar

Por Camila Vieira

Usado como instrumento para estudar o tempo e o movimento, o pêndulo é composto por dois elementos mecânicos: uma superfície imóvel e uma linha que oscila. Talvez uma forma de aproximação inicial para pensar o longa-metragem Pendular (2017), de Julia Murat, é perceber as diferentes forças que emergem de um ponto fixo. A situação já posta é a relação de um jovem casal e será desta aparente estabilidade determinada que algo irá se modificar, oscilar e produzir movimento. Os personagens sem nome já trazem em si e no próprio ofício a dinâmica do tensionamento pendular: o homem é escultor e trabalha com objetos pesados, grandes, sólidos e rígidos; a mulher é dançarina e dispõe seu corpo ao movimento, à instabilidade, à leveza.

Dentro da existência de uma desigualdade que já está colocada como base da constituição dos dois protagonistas, há um espaço que necessita ser ocupado: o galpão abandonado de uma estamparia. Para estar junto e conseguir trabalhar, o casal necessita estabelecer regras de ocupação a partir da delimitação do território por uma faixa laranja que divide o espaço. É a partir daí que a narrativa de Pendular irá se desenvolver em quatro partes, que estruturam o roteiro (escrito em parceria com Matias Mariani, marido de Murat): A Chegada de Alice, O Ímpeto, A Ação e A Contra-Ação.

Na primeira parte, a relação entre os dois parece ser iluminada e solar. Esta sensação se materializa formalmente nas cenas iniciais pela incidência de luz branca nos rostos dos dois, enquanto estão juntos na cama. Cada um é instigado pela curiosidade de observar o trabalho criativo do outro: ela o vê suspender um objeto pesado de madeira e segue a linha de aço que sai do galpão até o poste de luz. Ele diz para os amigos que não colocou uma lona para dividir o espaço, porque “a graça é poder ver ela”. A cumplicidade faz parte do jogo de olhar e ser olhado.

Pendular 2

O segundo momento já inicia com a redistribuição do espaço: ela precisa ceder uma parte para que ele possa ampliar seu trabalho, com o argumento de que aquele pequeno território negociado “não vai fazer falta” para ela. Enquanto fica evidente em Pendular que a estratégia de etiquetação é “passível de renovação segundo o bom comportamento”, a invasão do espaço aponta não só para quem tem o poder de ocupar em prol da sobrevalorização do próprio trabalho – o homem deseja renovar suas bases criativas, ainda que não saiba direito o que está fazendo –, mas também incide sobre quem pode dominar o corpo do outro – ele quer ter filhos e ela não quer.

Julia Murat preenche seu filme de momentos intensos da relação do corpo com o espaço (as coreografias das danças performadas por Raquel Karro), do corpo com os objetos (as vibrações sonoras no contato com objetos metálicos, o barulho de máquinas de ar e ventiladores) e dos corpos com outros corpos (as cenas de sexo). É na ênfase do próprio corpo que se coloca a questão do que fazer diante do desequilíbrio de poder e da dominação na relação a dois. A terceira parte do filme já começa com as inseguranças de cada um ao ouvir as críticas negativas de seus trabalhos artísticos. A crise criativa se mistura à ocultação de segredos, em que ele parece querer desvelar a todo custo e ela esconde para tomar decisão por conta própria. O embate irá se prolongar na última parte de Pendular e, mesmo com a tentativa de querer compreender a subjetividade do outro, há algo que se transformou pela intensidade do que foi vivido. A ruptura da estabilidade entre os dois acena para um enigma do que poderá acontecer.

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Festival de Brasília: Música Para Quando as Luzes se Apagam / Vazante

De sensorialidades e narrativas

Por Camila Vieira

Não deixa de ser curioso o longa-metragem gaúcho Música Para Quando as Luzes se Apagam (2017) estar classificado como documentário em sua ficha técnica. Se é possível absorver uma vontade evidente de aproximação com o real pela materialidade indicial dos vestígios cotidianos nas tomadas caseiras de câmeras portáteis, a composição das personagens e a relação entre elas parecem apontar para gestos ficcionais, criados pelo olhar de Ismael Caneppele, que estreia na direção de longas. Trata-se do encontro da mulher vivida por Julia Lemmertz – cuja presença jamais é identificada no filme – com a jovem Emelyn, em um jogo de incorporação da persona de Bernardo.

O interesse mútuo das duas personagens pela transmutação performativa não só reside no modo como se forja outra aparência – para uma, o ato de colocar lentes de contato, mudar a cor do cabelo; para outra, vestir-se com roupas largas e masculinas –, mas na vivência de uma experiência no mundo que é atravessada pelo borramento das fronteiras da identidade de gênero. Como o filme se liberta da rigidez identitária que poderia aprisionar as personagens, a própria estrutura narrativa não pretende deixar nada conclusivo sobre as diferentes subjetividades que se colocam em cena, constantemente reposicionadas em zonas de indeterminação. No lugar de abrir chaves encerradas de interpretação, o filme prioriza modos de estar no mundo pelo transbordamento sensorial.

O espaço em que este fiapo de narrativa se desdobra é uma pequena vila no sul do Brasil, que é dotada de uma atmosfera de melancolia e isolamento, bem próxima de Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) – cujo roteiro é do próprio Caneppele. A emblemática frase “estar perto não é fisíco” está inclusive inscrita na parede do quarto de Emelyn, como se fosse o traço de um desdobramento daquela disposição sensorial explorada dramaturgicamente no filme de Esmir Filho. Em Música Para Quando as Luzes se Apagam, há ênfase no contato com a natureza: é nítida a amplificação de sons de grilos, sapos e cigarras nas derivas feitas à margem de pântanos. Dentro da imersão na paisagem, o filme abarca uma amplificação do potencial onírico dos encontros com outros corpos, como a longa sequência noturna com um bambolê de luzes neon.

Vazante 2

O longa-metragem Vazante (2017), de Daniela Thomas, comunga também do interesse pela sensorialidade das imagens, mas procura se ancorar na rigidez subjetiva de seus personagens, marcados por papéis sociais bem definidos, dentro do contexto histórico de um Brasil escravocrata no século XIX. Com imagens em preto e branco, a fruição sensorial de uma atmosfera carregada e caudalosa – os inúmeros planos com chuva – aliada à paisagem imponente do interior de Minas Gerais é a porta de entrada para o mergulho em uma história trágica que procura explicitar as relações de poder e de exploração econômica e racial que demarcaram a formação do povo brasileiro.

Antônio é o tropeiro de origem portuguesa que desbrava territórios em busca do lucro, carregando escravos negros. Ao voltar de uma de suas longas expedições, encontra a mulher morta após o parto. A casa grande é ocupada por Zizinha, a matriarca que, depois da morte da filha, fica em estado de letargia e recebe cuidados constantes da escrava Joana. Filho de Zizinha e irmão da falecida, Bartholomeu retorna ao casarão com a esposa e as filhas para acertar as dívidas com Antônio, que detém a pose da fazenda e precisa lidar com a crise da extração do garimpo e a possibilidade de investimento em plantações e criação de gado em sua propriedade. Bartholomeu cede a filha mais nova, Beatriz, para casamento com Antônio.

Ao alinhavar uma narrativa com poucos diálogos e construída com blocos de sequência que se sucedem pontuados por cartelas negras, Vazante prioriza elipses e silêncios, que valorizam o gestual dos corpos e os olhares dos personagens em suas disputas e tensionamentos que se avolumam ao longo da trama. No entanto, a partir do momento em que se coloca ao lado do ponto de vista da jovem Beatriz – sobretudo durante o desfecho de maior carga emocional –, o filme enlaça um nó de implicação política: o trágico da questão racial no Brasil colônia é mediado pelo olhar de uma menina branca, como se apenas por meio dela fosse possível o espectador perceber o horror do massacre dos negros.

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Festival de Brasília: Não Devore Meu Coração!

Dosar o estilo

Por Camila Vieira

Há dois pólos claramente definidos e distintos em Não Devore Meu Coração! (2017), de Felipe Bragança: os brasileiros e os indígenas paraguaios. Do lado dos brasileiros, há o predomínio da força patriarcal, marcada pela ocupação de território e pelo exercício da virilidade masculina. Do lado dos paraguaios, um povo que resiste às ameaças e valoriza mulheres como líderes guerreiras. O subtexto histórico é a memória da Guerra do Paraguai que, dentro da trama do filme, encontra reverberações nos conflitos às margens do rio Apa. Ao estabelecer diferenças radicalmente opostas entre os dois universos, a dramaturgia do filme está ancorada em uma alegoria mítica em que há uma disputa permanente entre partes que desde já são inconciliáveis.

Existe uma vontade de que algum laço seja possível entre Joca, o garoto brasileiro de 13 anos, e Basano, a menina indígena paraguaia de 14 anos. A pequena guerreira é quem rouba o coração do menino, que se apaixona e passa a procurá-la. Colocando como base o encontro entre os dois já mediado pelo fantástico, a estrutura dramática de Não Devore Meu Coração! assume uma narrativa em capítulos, onde cada desdobramento se reveste de tratamento poético grandioso. Algo já explorado desde A Fuga da Mulher Gorila (2009), primeiro longa de Bragança, em co-direção com Marina Meliande (que, neste novo filme, assina a produção), mas agora com encadeamentos que seguem uma linha menos fragmentada de narrar, procurando alinhavar os contos de Joca Reiners Terron, nos quais o filme se inspira.

Mesmo que busque uma ancoragem dramatúrgica mais tradicional e clássica, o filme é seduzido por determinados vícios formais que, se por um lado evidenciam a autoria de quem dirige, por outro acabam cristalizando intencionalidades enrijecidas. Ainda permanecem a reapropriação do gênero atravessada pelo acúmulo de referências cinematográficas (o encantatório de Apichatpong, os confrontos de faroeste, o clima de aventura de filmes juvenis dos anos 80, a iconografia dos super-heróis), a necessidade de trazer a fábula para o cotidiano, o predomínio da palavra, as atuações impostadas. Os usos de zoom in e zoom out e as ralentações das cenas são exemplos mais evidentes do esforço grandiloquente de demarcar o estilo da direção.

Não Devore 2

No entanto, há intervalos de respiro em que algo se transborda na cena e que parece ser de difícil controle. Os momentos de maior força de encenação pairam durante as reuniões do grupo de motoqueiros da Gangue do Calendário e o confronto com os adversários da República Guarani. Talvez as melhores cenas são construídas a partir do embate entre a índia Lucia e o brasileiro Fernando (a presença de Cauã Reymond parece sempre crescer nestes pequenos trechos). Em outras situações de confronto, há pouca envergadura emocional: os conselhos brutos de Fernando ao irmão Joca ou mesmo a conversa do agroboy com o pai não passam de frases prontas e ditas no automático, as distâncias e as aproximações de Joca e Basano carecem de vitalidade cinematográfica, ainda que sejam cuidadosamente construídas.

Diferente dos longas anteriores de Felipe Bragança da trilogia Coração no Fogo (A Fuga da Mulher Gorila, Desassossego e A Alegria – todos eles em parceria com Marina Meliande), é perceptível uma tentativa de construção cênica em Não Devore Meu Coração! que possa encontrar escapes às imposições do estilo de um autor. No entanto, a direção está longe de se libertar dos excessos de pretensão, que criam e acumulam estratégias formais engessadas, a ponto de apontar mais para a necessidade de marcar o filme com uma assinatura do que para contribuir na densidade do que está sendo narrado.

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