Tempo, de M. Night Shyamalan: O tempo do Fim

Por Luiz Soares Júnior

Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até o tempo do Fim. Muitos andarão errantes, e a iniquidade aumentará.

Daniel, 12: 4 

Todos os estágios do conhecimento devem ser buscados no seio da Natureza.

Leon Battista Alberti, Della pittura 

O resort climatizado, o hotel cosmopolita são vetores de jouissance gregária através dos quais o nosso tempo prolonga e sistematiza a mais-valia luxuosa dos tempos privados de férias em uma espécie de kairos global e multicultural, experimento in vitro vorazmente aterrador em seu simulacro de acolhimento tépido da diferença, porque a tudo integra mais eficientemente ao mesmo: sob o cartão-postal asséptico da praia de Tempo, sub jaz um laboratório-panóptico que enfeixa o filme como o experimento do experimento, como aquilo que deve ser desconstruído em seu arremate como simulacro mabusiano diabólico (sim, de uma origem que nos solicita novamente no fim, como em toda genealogia digna de seu destino), cujo objeto ontológico é a experiência humana, de que somos mais e mais deficitários em tempos virtuais. Este é apenas o clímax, em matéria de narrativa, de cenário e de estrutura, de um processo subterrâneo de erosão, agora mais evidente em obras como Tempo, do sujeito e da experiência significativa de que este é tributário, em suma, de elisão da possibilidade, candente mesmo em tempos de uma arte de tecnologia extrema como o cinema, de contar a própria história: é esta impossibilidade o objeto do filme de Shyalaman.

A experiência aqui é para um outro tecnológico, central e registro computacional behavorista, talvez o arqui-dispositivo por detrás de tudo. Tempo é um título sintético e sincrético, pois com os personagens decaímos antes do apogeu, e portanto não possuímos mais o tempo de uma experiência teleológica progressiva, de uma experiência propriamente dita: a caducidade de uma obra muito nova, já que encimada por uma cúpula modernista (o olho en abîme do cineasta M. Night é para você, e isto apesar de jamais abandonarmos o plateau do filme, apesar da fissura diegética que só nos entreabre outra dobra da mesma narrativa refratada),e  ao mesmo tempo muito velho, porque atravessado de coordenadas modernas, a tardia e nascitura anáclase do cinema de Shyamalan. 

Para modus operandi de sua compreensão mais estrutural, Tempo coteja trabalhando dois partis pris pós-modernos (o simulacro, o dispositivo, ou a praia vigiada e o laboratório) sem jamais abandonar as coordenadas do cinema moderno, cinema para o qual aliás o tempo, tematizado exclusivamente enquanto tal por Tempo,  foi o rincão, o privilegiado projeto de descrição (um cinema mais descritivo de estados de coisas e de almas que narrativo, como nos mostraram as caminhadas videntes dos personagens do Rossellini da guerra pelos escombros da cidade desolada, embora finalmente virgem de valores para uma primeira vez). Com uma complicação suplementar, essencial à face de Janus complementar e reciprocamente implicante do filme: a experiência do “cinema moderno” agora é, mesmo que de maneira endo-diegética, aberta às escaramuças do simulacro, do poder vivissecante do significante, da ronda vertiginosa da interpretação do espectador, na medida em que o filme solicita a memória,a  percepção e a inteligência nossas (como igualmente a dos personagens e  isto em uma mesma rota unívoca) para saber recordar e integrar à diegese in memoriam uma “garrafa lançada ao mar” que será essencial na compreensão de tudo, em sua decifração espectatorial; em que sentido escrevo endógena-diegética? No sentido de que Tempo jamais abandona a abóbada do próprio filme, interditando a exterioridade radical, tão comum em obras mais assumidamente pós-modernas, do trabalho crítico integrado à configuração da própria obra, como parte constitutiva de sua matéria imaterial;  porque jamais saímos de dentro de Tempo para intentar uma supra-análise crítica de seus conteúdos, mesmo e sobretudo quando a infração suprema ao codex clássico se encena expressamente para nós,quando da revelação do simulacro pelo próprio diretor, agora personagem: há ainda um terceiro e decisivo ato de arremate para que o contrato da crença clássica, apesar da fresta entreaberta pela presença da câmera e do olhar de M. Night para o espectador, possa ser reconstituído no laboratório com que o jogo do encoberto e do desvelado se encerra, deux ex-machina que ao princípio reencontra a origem diegeticamente, na mensagem cifrada e agora salvífica da criança para a qual tudo converge e solicita enfim reconciliação; aliás, é para este esconde-esconde típico de obras que permanecem na Origem que o filme encontra um norte decisivo: um filme sobre o cronos entrópico do fim reencontra o Kairos sintrópico da origem e na metade de Tempo já vamos sapiencialmente aprender a morrer, como o casal protagonista nos ensina à beira da fogueira e ao lado dos filhos, decalque do leito de morte com candelabro na mão e chiaroscuro no fundo dos Greuze e Fragonard da história da arte para um cenário de cinema moderno; no máximo, o que é exigido ao espectador e à estrutura do próprio Tempo é decifrar a mensagem abscôndita da infância, e não o engendramento de estripulias intelectuais com que se deleitaria por exemplo um Peter Greenaway ou Lars Von Trier.

Se Tempo pode ser considerado uma obra modernista como estou fazendo aqui é apenas na medida em que M. Night  é antes de tudo o intérprete de um destino-herança (Schicksal) do cinema moderno, mas só o é legitimamente na medida em que seu cinema também se mostra atento aos usos e leituras da contemporaneidade, em que se justapõem e implicam esta herança e seu herdeiro futuro, agora presente; Tempo tão cedo não vai correr o risco de ser um espécime caduca ou anacrônica de leitor de seu tempo, ultrapassado por este, porque sabe equilibrar a justa balança de ser o lugar de um apelo do passado que se engendra no presente de sua substância atual, e por esta razão solicita o cinema in extremis do nosso tempo apenas na medida em que sabe  sopesar a ideal medida de ser o locus de acolhimento do passado, um tipo oposto em matéria de paradigma à experiência intempestiva do aprendiz de feiticeiro de Goethe, que desencadeia e leva à emergência da superfície  fórmulas de abracadabra e forças mágicas que ele não sabe controlar. Esta, aliás, talvez seja a falaz virtude de que Tempo possa vir a ser objeto, para um espectador do futuro do imperfeito (alguém para quem o passado conta como impressão de fantasma sobre o futuro): seu excessivo refinamento de autocontrole estrutural pode vir a perdê-lo, porque são aqueles cineastas que menos recuam e eclipsam (menos semeiam elipses, para o fora de campo do espectador preencher ou enervar), que mais manietam o filme em nome de um projeto artístico que o suplanta em direção à totalidade da obra ou a fatalidade da herança, que podem sofrer a ação de um processo de envelhecimento, um tanto ironicamente aqui porque à imagem e semelhança do aceleramento ontológico perverso sobre o qual Tempo se debruça; esta é apenas uma hipótese de trabalho, a que farão jus ou não os pósteros do filme de Shyamalan.

Em um de seus textos, Jean-Claude Biette, a propósito de um panegírico a um dos últimos filmes clássicos fecundos em termos de enunciação- e talvez não por acaso se trate de uma obra de fantasia, como em Shyalaman de fantástico, “nosso último Logos”: o díptico indiano de Fritz Lang, falava desta língua universal, mas oca que se substituira à linguagem comunicativa do cinema clássico, língua esta que não fala muita coisa de autêntico senão do esvaziamento do sujeito/auteur em nome de um vernáculo informatizado, com a consequente vitória do algoritmo sobre o emblema da experiência, o significante/plano de cinema, que o cinema havia paciente e sistematicamente urdido desde os anos 30: “(…) a língua do cinema internacional é uma espécie de compromisso estético entre a modernidade dos hollywoodianos e a dos europeus das recentes gerações. Uma língua que toma emprestado ao mesmo tempo à eficiência do telefilme americano, ao pragmatismo preguiçoso do audiovisual europeu (de que Rossellini foi o infeliz predecessor) e às novas línguas restritas e referenciais do comércio (pubs) e do espetáculo (clips), para se constituir em pretenso instrumento de comunicação universal , enquanto que não passa de uma retórica oportunista, prestes a capitalizar não importa qual nova técnica”. E esta língua sem horizonte nem espessura realmente comunicativos, sem objeto ou conteúdo senão o seu próprio balbucio asséptico avaro de sentido – e, portanto, sem compromisso com a verdade outrora habitante de um “plano de cinema”, com todas as suas mediações contidas/conjugadas -, língua esta de que o clip constitui a forma de representação mais pertinente, possui hoje seus objetos aclimatados, e ei-los objetivamente encarnados nos dois cenários complementares/superpostos de Tempo, o simulacro e o dispositivo: a praia e o laboratório, representações respectivamente do paraíso (reencontrado porque perdido: a impossibilidade de contar esta história, rápida demais para ser capturada pela palavra humana) e do inferno para-si do laboratório a partir do qual, no rewind da experiência reconquistada do vídeo, tudo se reconstrui; no primeiro caso , a praia é um corpo que nasceu decrépito, pois oculta en abîme uma dobra tecnológica e distóptica pensante, que só ao final será completamente desarmada: seguindo à la lettre a reflexão de Biette, Madonna ou um rapper famoso poderiam ter lançado neste hotel seu novo clip, aqui todo o bric à brac da indústria cultural bem assentaria seu palco e bastidores, como assenta diegeticamente no filme, mesmo que no arrière-plan a ser desvelado num final grandiloquente no qual o Tempo como dispositivo se revela e se desarma,  se engendra e se encena todo experimento inumano, pós-humano em nome da humanidade sofredora, cooptação pelo julgamento moral da dualidade de que o filme de M. Night é debitário: aqui, a mise en scène eugenista do nazismo e a inefabilidade da bella figura clássica deságuam com propósitos humanitaristas perversos, mas tudo é prestidigitação para manter intocável a estrutura à parte do filme de experiência/experimento clássico, neste caso é claro com uma essência de fantástico que melhor encobre para tudo suturando  ao cabo advir à cena: o des-cobrimento espetacular do dispositivo final pouco serve para legitimar os encobrimentos e retoques de que os travellings indexados inseridos por Shyamalan com propósito de desmascaramento subliminar (a princípio, a câmera com a stylo dos travellings apenas aponta ou sublinha, deixando em geral entrever de forma sub-reptícia que no próximo contracampo vai advir algo de monstruoso ou aberrante, enquanto que no découpage tudo corre escorreito e lábil, pelo menos até que a ameaça onimosa no fora de quadro se revele claramente) estabelecem.

Tempo precisa deste mecanismo de refração, em que o filme de experiência/experimento moderno, com um cenário e personagens articulados como se partes do mesmo corpo exangue, na verdade encobre um dispositivo pós-moderno que em nada deixa a dever aos seus espécimes mais turbulentos ou histéricos, só que agora à la Shyamalan: uma superfície íntegra apenas em aparência, pois se estimulada pelo bisturi do olho do espectador em seus pontos vitais vai descobrir uma ferida profunda e candente, que estrutura o filme e consequentemente a recepção; Esta é a estrutura-mater indispensável a filmes como Tempo e A visita, este é o destino do cinema que Shyamalan trabalha e legitima, fornecendo uma resposta fecunda, mas sempre provisória (a dimensão experimental de seu cinema, que subjaz à arquitetura neo-clássica) à questão endereçada pelo passado: o filme de gênero é um simulacro que encobre o verdadeiro simulacro, manipulação virtual do panóptico áudio-visual televisivo como aqui ou a telinha do celular em A visita. Não por acaso M. Night escolheu para sua alegoria transparente de febre do inferno, alegoria distópica de ficção científica filmada enquanto tal (as condições da representação, que assolam à cena do filme no final: o laboratório, a câmera de registro e o aparelho de edição, o staff da filmagem e o clin d’oeil não extra, mas  infra-diegético do diretor para a câmera) sobre o fim dos tempos ou o tempo do fim – término da experiência como re-conhecida pelo ocidente até então, pela lógica “aceleração de partículas” do travelling lateral extemporâneo ou travelling avanti de insert-, estes decores terminais de uma civilização que já não sabe morrer senão aclimatada pelo labirinto vítreo e customizado de suas galeras de prisioneiros da caverna cuja sombra foi usurpada por uma tela plana, uniforme e portátil de celular que nada reflete senão o seu próprio e outro vacuum: qual a relação precisamente entre a entropia ontológica- o éden virado ao avesso descrito pelo filme, em que a velhice praticamente coincide com o acme da juventude, em que tudo se torna contemporâneo e hodierno, anulando-se a experiência teleologicamente orientada do princípio, meio e fim – e a assepsia pós-moderna de um décor e uma língua que já não precisam falar pela mesma cartilha do humano para serem identificados como pós-modernos? Sim, M. Night nos oferece um filme sobre  a pós-modernidade sem abandonar nenhuma coordenada da narrativa, figura e fundo clássicos, com a exceção dos sublinhados acima descritos (os travellings ilusórios de um Méliés que integrou o ethos da transparência dos 40 às suas estripulias de proscênio…).

Tempo é um filme sobre o pós-moderno, o pós-humano (admitindo-se a modernidade filosófica como aquele movimento cujo princípio coincide com o grund do sujeito da fenestra aperta de Alberti e do espelho de Brunelleleschi, que subsume a todo ente sob seu olho onisciente) sob o ponto de vista de uma margem ainda clássica onde o homem não coopta e domina tudo das alturas de sua manipulação representacional, e sim ainda é um ente criado ( ens creatum, segundo Leibniz e Lumière) ou personagem diegético da ficção endógena do filme: os devires acelerados mas perceptíveis enquanto tais apenas se cotejados com o movimento realista de um corpo humano que se desloca pelo espaço do plano de cinema, o fondu au noir onde se susta a cronologia diegética da jouissance e se gesta uterinamente um tempo da danação, o plano frontal mas atento aos deslocamentos paralelos que acompanha os movimentos e os coordena entre si e contra o fundo do décor: M. Night filma Tempo a um  só tempo, uma experiência e sua antítese – pós-humana, pós-sujeito e portanto pós-moderna de dentro da praia diegética, de coordenadas clássicas e subjetivistas do grande décor absorvente de fascinação dos tristes trópicos entrópicos.

Não precisamos ser talmudistas ou filósofos da diferença francesa para pensar, segundo o Louis Marin de A palavra comida (La parole mangée), semiólogo e crítico de arte terrorista inspirado pela gramática de Port Royale, que talvez não haja melhor palavra senão o oxímoro para exprimir o paradoxo onde a verdade, dádiva infinita, se experimenta outra e se revela integralmente numa partícula finita: começamos com o sol negro de Rimbaud,e por que não terminar com o Inferno tropical do panóptico rigidamente manipulado, ‘audiovisual’ com que se encerra Tempo? Por que não imaginar termos e coordenadas a partir dos quais o apocalipse, o fim dos tempos, nos apareça sob a face consetudinária das férias de verão- um tempo a mais, esvaziado ou pleno, segundo o ponto de vista mediatório do trabalho ou da fruição integral-, e a máscara onimosa de sua demanda de morte coincida com uma oferta surpreendente de jouissance oferecida pela instituição predatória capitalista por excelência, ao lado do banco? Um experimento, certo, legitimado a posteriori  pelo fito salvífico de abreviar o sofrimento humano, mesmo que o quid da experiência, cuja essência especular é o tempo, seja o mais precioso dom a ser aqui cooptado e desperdiçado; sob a égide do Divino, pelo menos enquanto este existiu (fase serena, acidentada aqui e ali apenas ao custo de reecontrar-se una ao final , mas sobretudo teleologicamente orientada da estética clássica, inspirada pela crença onto-teológica numa entidade superior que asseguraria, ao cabo e portanto ao princípio, sentido a tudo), os homens foram submetidos a experimentos semelhantes, mas estes concidiam com a urdidura do próprio filmes e jamais virariam a  câmera de volta para nós: aqui, é Justamente M. Night quem se incumbe de representar este papel de revelador en abîme, sem que no entanto o filme enquanto tal, repartido de parte em parte com uma estrutura endógenamente auto-centrada, sofra jamais o estilhaçamento tumultuoso de tantas obras mal polidas e desorientadas da pós-modernidade: este diamante cindido e cerzido em dois pelo para-si do panóptico “diegético” do arremate de Tempo se parece, em sua polidez e cerzi-dura (excetuada a resolução final, que precisamente o cinde em dois) com outro espécime neo-clássico de sua carreira, o The Happening (Fim dos tempos), que não por acaso tinha como objeto um devir igualmente crepuscular, lá talvez mais espetacular, mais propriamente apocalíptico, talvez porque não objeto de um experimento científico controlado sob condições de temperatura e pressão. Mas isso é objeto especulativo para outro texto.

De te fabula narratur (A Fábula fala de ti): este conto do avarento monstruoso de Horácio nos repugna pelo que há de Mesmo na alteridade do monstro  (eu, tu e o monstro: questão de grau, sempre) em cada um de nós, como pensavam igualmente o Freud das pequenas diferenças e o Sibony de Sobre o anti-semitismo; todas as fábulas falam incansavelmente de nós – e talvez as alegóricas sejam as mais adequadas para as crianças, porque lhes oferece um organograma opticamente expressionista à grandeur de vue  sobre os labirintos da vida, como Tempo o é para o espectador mainstream -, mas como são obras clássicas, feitas de filtros e filigranas, já que o classicismo foi uma arte da absoluta discreção, o fazem grunhindo com a máscara do Minotauro ou reluzindo pedra lazúli com o escudo com que Teseu venceu a Medusa; De Esopo a La Fontaine, de La Fontaine a Lewis Carrol e de Lewis Carrol a Jodorowski a fábula foi este conto necessário para instilar um julgamento moral em seres ainda inocentes mas que precisavam ser precavidos dos horrores do mundo, já que até então tinham unicamente à sua disposição as ofertas epifânicas daquiilo que é, como as crianças que escalam o canyon e se banham no mar sem saber que já não cabem nos braços da mãe; as fábulas nos injetavam anticorpos, porque segundo o mecanismo vitorioso da vacina precisamos cultivar um que de atroz da alteridade em nossa própria derme, para que nosso encontro com a mesma não nos seja fatal; não é isto o que Old faz, não nos instila anticorpos contra um uso falaz e histérico da pós-modernidade, espécimes de que nos vemos circundados como em uma arquibancada de neo-bárbaros sem noção da herança a que nós, contemporâneos, temos antes de tudo de prestas contas e préstimos? 

Não um panegírico a priorístico do passado, pois isto equivaleria a uma obra passadista, masturbatória-idealista e anacronista, mas um reconhecimento de que sem este não haverá futuro, de que tudo percorre a mesma e outra linha de destinação de que o homem é o agente testemunhal e o promotor de criação; assim, Tempo não foge desta lógica paranoica que desconfia do homem no comando da representação daquilo que é, porque esta é a lógica de nosso tempo, na política, costumes ou artes: a fábula é um panegírico ‘desconfiado’ do encantamento do mundo que no fim de uma era ( em tempos, como se diz, de modernidade líquida) vem solicitar também nossa atenção e nosso dedo em riste para os perigos de uma cooptação do encantamento do que é pela tecno-ciência, tentáculo vastamente urdido com o propósito de estancar as fontes apofânticas do que nos aparece, de dar à sua fruição uma destinação algorítmica, à experiência um telos semiótico, encobrir o ser com a teia e tela dos conceitos e dos registros, dos teoremas e das sistemas; o éden paradisíaco do avesso onde a experiência sofre um golpe fatal em Tempo poderia ser um simulacro de Lars Von Trier ou desaguar num dispositivo de Peter Greenaway, mas o cinema de M. Night contém ainda e sobretudo a fascinação  dos solilóquios, o eudaimonismo dos gestos últimos em família, o combate sempiterno entre o antagonista racista e seu inevitável destino, os tormentos da vida em grupo e a comunidade que só pode ser empreendida a partir destes tormentos (sapiência dos deslocamentos e intumescência dinâmica dos planos de conjunto) , a condensação do crepúsculo e a rarefação da aurora, formas ontológicas de resistir num plano de cinema ao reino fantasmático das imagens pós-modernas da melhor maneira para se fazer isso: perversamente, se servindo do simulacro e do dispositivo da modernidade líquida para triunfar sobre seu sepulcro; para mim, a vitória do plano de cinema sobre o algoritmo do clip ainda é uma batalha a ser ganha, e Tempo é certamente um belo espécime para pensar esta contenda salvífica para toda uma História do cinema que ainda está aí à porta para nos desafiar. 

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Sessão Bruta (2021) de As Talavistas e ela.ltda

Por Natália Reis

Se eu pudesse nomear dois padrinhos para o momento da concepção de Sessão Bruta, eles seriam Marlon Riggs e Hélio Oiticica. De um lado, a investigação poética de trajetórias, corpos, gêneros e sexualidades à margem da margem. De outro, a noção de vida e arte como vetores indistinguíveis entre si e a experimentação cinematográfica como forma de se manter no limiar do cinema,  no quase-cinema. Se Oiticica falava da necessidade de assumir uma condição “subterrânea” para trilhar a produção artística no Brasil, o coletivo mineiro LGBTQIA+ “As Talavistas” vai reinventar o conceito pela via da “clandestinidade”, parte constituinte das identidades radicalizadas de suas integrantes e força motriz que faz com que o próprio processo de produção do filme se afaste de qualquer normatização.

Sessão Bruta vai abrir com uma cena totalmente adorável: no aconchego de um quarto cor de rosa, um grupo de amigas conversa através de uma caixa de som potente com a assistente virtual do Google. Em alguns momentos as perguntas (sobre drogas, terrorismo, etc.) feitas à inteligência artificial vão gerar respostas incoerentes, equívocos, falhas engraçadas; em outros, a voz feminina robotizada simplesmente prefere se calar e é desafiada pela sua interlocutora a se retratar. A situação toda é guiada por um humor provocativo, do tipo que faz você querer conhecer melhor essas personagens igualmente adoráveis. E é exatamente isso que vai acontecer nos próximos 80 minutos de filme. 

Através de depoimentos, performances, discussões acirradas sobre gênero, classe e raça e momentos escrachados de diversão, o longa vai se estruturar como uma espécie de apresentação do coletivo, explorando ainda histórias individuais e as possibilidades de cor, texturas e ruídos oferecidas pela manipulação de imagens de arquivo captadas por uma câmera Mini-DV e distribuídas pelo intervalo de cerca de quatro anos de registro.  Ao partir de uma ideia de obra em transição ou “um filme por fazer”, a montagem tenta empreender uma fragmentação intuitiva que nem sempre consegue se ater à proposta experimental que a articulação do material bruto pode oferecer, caindo por vezes em cenas puramente didáticas e arrastadas que acabam prejudicando o dinamismo e a força das demais. Ainda assim, o filme é um interessante exercício de reflexão sobre o próprio processo da experimentação coletiva como fortalecimento das redes e existências clandestinas. Muita coisa, coisas maravilhosas e poderosas, estão acontecendo sem que tomemos nota, e Sessão Bruta é um convite para abrirmos os olhos a elas.

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Seis parágrafos sobre cinco curtas

Sobre cinco curtas visto em Tiradentes 2022 que continuarão comigo por um tempo.

Por Geo Abreu

A discussão sobre as vantagens e desvantagens de acompanhar um festival de cinema online tem sido recorrente e esse texto não traz novidades a respeito, apenas a constatação de que mergulhar numa sessão na sala de cinema é sempre uma experiência mais rica, de corpo e atenção envolvidas. Apesar disso, seguem abaixo os curtas que, mesmo vistos na tela de um computador, conseguiram permanecer por aqui ou talvez queiram ser mantidos por perto.

Ladeira não é rampa – Antônio Ribeiro e Sandro Garcia

Na quarta revisão e ainda descobrindo detalhes que mantém o filme em movimento ascendente. Belford Roxo tinha cinco pistas de skate públicas que foram desativadas e nenhuma sala de cinema. Desafiando os carros, Antonio desce a ladeira com seu skate. Usando calça e camisa social, enrola um pouco de camomila para fumar enquanto pensa sobre a próxima ação. O filme não dissimula, não apela para nenhum salto de fé ou suspensão da descrença: “Onde ele vai ser exibido?”, é a pergunta feita a certa altura. Ao respondê-la, a história executa uma manobra perfeita, um giro sobre si: amanhece descendo a ladeira e anoitece sendo exibida num cineclube, com crianças, cerveja e realizadoras presentes. Onde os equipamentos públicos são sucateados por pura ganância, a política do “faça você mesmo” floresce em coletivo e, nesse caso, atende pelo nome de Baixada Cine.

Manhã de Domingo – Bruno Ribeiro

Tem sido um prazer viver na mesma época que Bruno e seus curtas, acompanhar o amadurecimento de um realizador tão jovem e já tão afinado na regência: a história de Manhã de Domingo vibra a partir do piano de Gabriela, nos mantém atentas, nos atira contra a dor daquela perda, a angústia que antecede o primeiro grande recital, a repetição da história da criança prodígio que tem ouvido absoluto. A economia da forma existe para que o som preencha tudo e assim nos aproxime do que a protagonista não diz, ou diz através de sua música. O rigor da professora que no recital se atira sobre o instrumento, fazendo com que ele fale por vias incomuns é também o incômodo da filha que se mantém de pé mesmo perturbada por uma grande saudade. Um belo filme, de movimentos elegantes e fortes, seja ao piano, na expressão da atriz ou na quebra de expectativa após uma cena gigante.

Não Vim Ao Mundo Para Ser Pedra – Fabio Rodrigues Filho

Atravessando a relação estabelecida entre o personagem épico criado por Mário de Andrade e o ator Grande Otelo, responsável pela interpretação de Macunaíma no cinema, o filme de Rodrigues Filho se debruça sobre o livro mais do que sobre o filme, em busca de homenagear o ator e seu talento frente aos papéis que lhe eram confiados. Baseado em pesquisa e reativação de imagens de arquivo, o curta inventaria gestos – modulados entre altivez e preconceito – e discursos que fortalecem a relação entre ator e personagem, até quase descobrir-se que o personagem tenha sido feito de encomenda para aquele grande ator. Grande Otelo chega a pontuar ser preciso voltar aos arquivos de um certo jornal em busca de crítica escrita por Mário de Andrade e anterior a publicação do livro. Prova de que o autor tenha descoberto o ator e vislumbrado Macunaíma? Mais do que reavivar essa história através da pesquisa e da montagem, o filme também emoldura a trajetória de Grande Otelo, uma homenagem delicada e merecida. Ao fim desse parágrafo me sinto devedora da beleza que ilumina este filme.

Olho Além do Ouvido, Bruna Schelb Correa e Luis Bocchino

Assim como a discussão sobre festivais de cinema online, as características de filmes pandêmicos ou filmes de pandemia – aqueles que vem sendo realizados em condições de isolamento – tem sido outro ponto de interesse da crítica. Olho Além do Ouvido faz parte da Trilogia do Papelão, pesquisa desenvolvida por Bruna Schelb e Luis Bocchino em torno das condições de produção de filmes durante as restrições exigidas pela pandemia, em que o papelão é utilizado como elemento narrativo. No caso específico de Olho Além, as diretoras produzem uma fábula baseada no teatro de sombras para falar de um mundo onde se escolhe abordar a realidade de olhos fechados, até que uma garota que resolve questionar isso. Apesar de acompanhar as produções pandêmicas em vários aspectos como equipe reduzida, revezamento de funções e locação única, Olho Além do Ouvido encara as contingências, como  diria Roberto Santos, transformando a falta de condições em elemento de criação.  Reelaborando objetos do cotidiano e trabalhando o jogo de luz e sombras cenicamente, o filme discute temas como desinformação programada e a pesquisa de fontes confiáveis de crítica sobre o mundo de maneira lúdica.  A narração de Bruna dá o tom de oralidade, roda de contação de história, e embala as aventuras da menina curiosa que muda o seu mundo.

Tito, uma videopera pop do cerrado mineiro em chamas – Fernando Barcellos

Enquanto muitos filmes se baseiam no textão e na vontade de lacrar maiores que o desejo de filmar, Tito consegue articular seu discurso a partir de batalhas de dança e dublagem, transpondo para o cinema os realities shows e séries, populares justo pelas performances e figurinos, mas também pelas personagens que apresentam. Shakespeare é evocado e reconhecido por todo som e fúria, em meio à figuração de violência, para lembrar quão agressivo é o mundo para alguns corpos, representados em cada ato do filme: homossexualidade e negritude, heterossexualidade compulsória, mulheres masculinizadas e os homens afeminados, todes juntes disputando espaço para respirar e performar suas verdades, muitas vezes precisando guerrear entre si para se afirmar e se por em evidência. No fim, o número ao som de Marina Lima apazigua temporariamente as diferenças. Divertido e embalado por uma trilha de sucessos, Tito e sua videopera pop lacram demais, entregando entretenimento e audiovisual de qualidade.

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Grade (Lucas Andrade, 2022)

Por João Lucas Pedrosa

“O gosto camp atual apaga ou contradiz frontalmente a natureza. E a relação camp com o passado é sentimental ao extremo”. É certo que o “atual” camp discorrido por Sontag era o dos anos 1960, oriundo de outra realidade. Acaba sendo sempre tortuoso discorrer sobre o tema por conta de consistir numa forma específica de sentir (ao invés de estetizar) objetos e pessoas, e por haver confusões, quando não uma convergência direta, entre ele e um maneirismo estético. Mas acredito que muitos pontos levantados pela autora sobre essa forma de sensibilidade – encontram-se com a recente obra de Lucas Andrade exibida na Mostra Aurora da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes. 

“Grade” acompanha vários internos da APAC, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, em São João del Rei. É um tipo diferente de centro penitenciário, em que os prisioneiros organizam os recintos e as atividades, lavam sua louça e sua roupa, administram a própria segurança. Basicamente, são os próprios policiais. É um cotidiano rígido, com hora obrigatória de oração e trabalho. Existe hierarquia entre os condenados, e alguns que estão há mais tempo e ocupam posições mais elevadas de chefia. A escolha por estar lá é facultativa: assine um papel e volte para a prisão, se assim preferir. Interessantemente, há quem prefira; lá é mais hostil, mas tem-se outras escolhas (como a de não rezar o tempo todo). Há espaços de debate e solução de atritos pessoais (picuinhas individuais) e coletivos (brigas pelo tempo de televisão), mas os conflitos nunca chegam ao físico pelo recorte de Andrade. Se surgem por fala, são solucionadas com um terno e sorridente abraço entre os dois brigados. A APAC é, necessariamente, um espaço inteiramente masculino, dado que é prisão; mas é, interessantemente, apresentada por Andrade como um espaço onde parece predominar uma sensibilidade mais feminina, onde as pulsões de violência, e até mesmo de sexualidade, quase nunca citada em filme (mas chegaremos à forma que é citada), são sublimadas não só por atividades laborais, mas também artísticas: tricô, canto, pintura. O fim que justifica os meios é uma decisão pessoal pela mudança de vida, de comportamento. Isso envolve, naturalmente, a mudança de postura para com o mundo.

Onde entra, nisso, o camp? O longa começa numa sorte de cinema observacional, de câmera parada, com enquadramentos de profundidade. Tudo indica que o filme seguirá um convencional realismo psicológico e se fará de mosca na parede (como em algumas outras sequências procurará operar). Então, em determinado momento, um dos prisioneiros aparece voando sobre um tapete mágico, sobre uma paisagem claramente de chroma key, acenando e mostrando o dedo do meio para o mundo abaixo (pode haver um joguete com a prisão convencional, que eles costumam chamar de “lá embaixo”; mas pode também ser literalmente “o mundo todo”). A partir daí, inúmeras outras esquetes escritas e interpretadas pelos internos aparecerão de quando em vez, às vezes só inseridos em surreais – como no fundo do mar, ou dançando com outros colegas de prisão no campo -, mas, muitas vezes, performando um outro papel – um dentista carniceiro, uma irmã cafajeste, um padre adúltero, um marinheiro prestes a cair de um navio em mar revolto. Todas sempre humorísticas e, muitas vezes, cenicamente afetadas. É o que Sontag chamaria de “Ser-Como-Interpretar-Um-Papel”: no caso, papel e cenas que eles mesmos escolhem interpretar e, por meio deles, apresentar seu senso de humor, sua corporalidade performática em descontração. É um furo mais que bem-vindo (já iniciado em empreitadas mais antigas como A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa,ou A Cidade É Uma Só, de Adirley Queirós) num estilo que procura restringir indivíduos da camada popular ao “realismo”, acorrentá-los ao concreto da condição do entorno, despido de contradições, sonhos, fantasias, afetações.

Mas as esquetes também começam a contaminar as cenas de suposto “cinema direto”, quando alguns momentos cotidianescos apresentam ostensivas quebras de eixo, takes estilizados, conectam-se com as esquetes (o homem que faz o marinheiro tem na esquete um amigo embriagado sem condição de se segurar em meio à tormenta; após um corte para ele despertando, o que faz a cena parecer um sonho, sai procurando o amigo pelos dormitórios). Mesmo algumas sequências dramáticas começam a soar um pouco encenadas. Desconfiamos do realismo, do que é encenado e do que é captado enquanto acontecimento. Como não sabemos exatamente o que é escrito ou não pelos homens filmados, há beleza e tristeza em imaginar que a sequência de um deles desabafando com um padre no pátio da APAC  sobre a rejeição da família seja de sua própria escolha.

Eis que a forma de “Grade” se alimenta desse conflito em que a consciência da encenação infecta os momentos em que ela não é exibicionista, em que supostamente “se vê aquilo como é”. Ela liberta os prisioneiros por meio dos excessos cênicos guiados pelo arbítrio deles mesmos, emanando uma essência sua que só poderia ser acessada pela autoparódia em sua mais pura ingenuidade, e trazendo a descontração como tom geral de um filme que poderia ser bem mais pesado. Mas, claro, é um filme que quer ser sobre um grupo de homens, não sobre um grupo de prisioneiros.

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Panorama (Alexandre Wahrhaftig, 2022)

Por Natália Reis

Um dos conceitos explorados pelo pesquisador e realizador Jean-Louis Comolli nos seus estudos a respeito do cinema documentário é o da auto-mise-en-scène. A ideia parte da constatação de um gesto inerente ao objeto filmado, que, ao tomar consciência da câmera, passa a empreender uma forma de ficcionalização do próprio comportamento e da maneira como se porta e se coloca no mundo. Para Comolli, é quase inconcebível acreditar que um indivíduo ao ser observado nessas condições não entre também no jogo da representação. Em  Panorama, documentário sobre a gentrificação que engole cada vez mais uma comunidade de mesmo nome no bairro nobre Jardim Panorama, no Morumbi, o diretor Alexandre Wahrhaftig vai se valer da articulação da auto-mise-en-scène manifesta no depoimento dos moradores da região para traçar um mapa territorial e memorialístico de um espaço que existe sob a constante ameaça de desaparecimento pela especulação imobiliária.

Aqui, os relatos de figuras veteranas da favela tomam a dianteira da narrativa, pendendo ora para o naturalismo ora para a artificialidade de situações claramente propostas pelo diretor. O que, ainda que não interfira na pulsão nostálgica do filme ou na explicitação da relação dos moradores com o estatuto da incerteza no futuro, deixa de fora algumas informações que poderiam complementar a força desses momentos.  A imagem geral acaba sendo um tanto difusa, enfraquecida, perdendo-se numa estrutura simplista e num tratamento da linguagem documental que não busca em nada se afastar dos lugares-comuns, mas ainda assim podendo reservar instantes de beleza singela, como uma caminhada de dois velhos amigos pelos labirintos de construções (abandonadas? ainda inacabadas?) e vielas, a revisitação de um álbum de fotografias da juventude e as letras dos raps feitos anos atrás, que são evocadas entre uma conversa e outra numa constatação de que os sentimentos de pertencimento e incerteza sempre estiveram presentes na vida de quem habita o lado oculto do Jardim Panorama. 

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Bem Vindos de Novo (Marcos Yoshi, 2022)

Por João Lucas Pedrosa

Roberto e Yayoko Yoshisaki, pais do diretor Marcos Yoshi, voltam depois de 13 anos morando no Japão, onde trabalharam como operários de uma fábrica para poder sustentar a educação dos filhos. É se alimentando da súbita aproximação após essa abismal ausência que parte “Bem Vindos de Volta”. Os pais que apareciam apenas por imagens (VHS de viagens passadas, fotos e vídeos que eles mandavam periodicamente), agora são corpo presente. O que fazer agora? Criar as próprias imagens. Mas as imagens criadas não se apresentam como uma invenção ou molde dos pais segundo um sentimento prévio, alimentado pelos anos. O que existe é o vácuo, e é o que a produção tenta preencher: a câmera como desculpa para deles se aproximar demais e, assim, re-conhecê-los. Entender sua anatomia, seus olhares, as reações, as rugas, os poros. Como o dedo mindinho do pai sempre se levanta ao segurar algo; como as articulações das pontas dos dedos da mãe ficaram permanentemente inchadas por conta do trabalho. O trabalho, esse grande sacrifício em prol de um bem maior – a subsistência -, e que aparece tanto como salvador (utilitário) e assassino (afetivo). O labor braçal em longas jornadas surge hereditariamente, desde o pai japonês de sua vó, emigrado na época da guerra, chegando até Marcos e suas irmãs, que precisaram trabalhar por uns meses como operários no Japão quando o pai passou por uma retirada de tumor na cabeça. Foi quando entenderam que seus pais renunciaram na expectativa da formação dos filhos mais que a relação com eles: abriram mão da própria vida. 12h de trabalho manual para voltar a um quarto pequeno, desconfortável. Sobreviver o necessário para que o futuro dos filhos esteja garantido, mas o deles se mantenha instável. E o futuro, prometido na imagem das suntuosas, divinas montanhas japonesas, é uma ideia muito velha que, hoje em dia, se manifesta, mais que tudo, como um fracasso do presente. 

E o fazer cinematográfico aparece como uma resistência ao trabalho. A câmera de Yoshi não entra na fábrica, pois o labor aqui é vilão, e a ela interessa o contato humano que os intervalos do fim da jornada permite. O poder olhar. O cinema possibilita que esse olhar se estenda, pois ainda que corpos presentes, a sombra da ausência dos pais (passada e futura) se mantém, como um espectro. Inventariar os pais como no “Katatsumori”, de Naomi Kawase, em que a diretora põe a câmera numa proximidade invasiva do rosto da avó (que a criou) e fica tocando-o, acariciando-o; a vó questiona e ri estranhando, mas a câmera não sai de perto. Porque, se pudesse, Kawase talvez a engoliria, para mantê-la sempre perto de si. Filmar para aproximar, filmar para não afastar. Filmar pelo pavor da partida.   

Eis que numa cena Yoshi pede ao pai para inventariá-lo com as próprias mãos. “Posso tocar sua cabeça?”, e o pai de primeira entende que ele quer falar uma verdade para mexer em sua opinião. Ia permitir isso também, mas estava nervoso, e é meio nervoso que recebe as mãos do filho nos ombros. Eles se olham fixamente, e Marcos começa a tocar a cabeça do pai. As mãos do filho, enfim, conseguem burlar a prisão laboral. O pai fecha os olhos e relaxa, recebendo o toque como afago. Provavelmente o único momento em que relaxa no filme. 

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Os Primeiros Soldados, de Rodrigo de Oliveira: Os deuses que chegam para morrer

Por Luiz Soares Jr.

“Eu descobri que a AIDS é uma doença estranha (…) É uma doença que nos dá tempo de morrer, e à morte o tempo de viver;” esta é a garrafa lançada ao mar em off de Johnny Massaro para encimar com o hors champ virtual do som o plano de seu corpo conspurcado por úlceras em pose de David, olvidados o mármore , o ósculo de Donatello e a poeira dos séculos; sim, o objeto de Os Primeiros Soldados é o tempo que urge, mais descrito em interjeição exclamativa cassavetiana modulada pelo suspense temporal do furacão pialatiano que narrado ‘pace dies irae’ de vela na mão e filhos em torno dos Greuze e Fragonard neo-clássicos moribundos; em Os Primeiros Soldados, este filme inspirado pelos estertores de écriture da página testamentária manchada de fluidos últimos; como descrever, na carne maculada e no gesto invocativo de personagens que sofrem ativamente a própria experiência/experimento do fim (o vídeo testamentário do terço final, que nada faz senão arrematar em chave para-si, tematizada enquanto tal, a experiência/experimento dos fins últimos, e portanto enfim objetos de narrativa, que estrutura o próprio filme) , senão gritando e mordendo , hipérbole paroxística dos corpos em combustão, contra a inimiga à porta? 

Tudo o mais no filme de Rodrigo de Oliveira é pace distendido, vinheta alegorista (o começo, o fim), unção ritual, da capo apaziguado, neutralidade do découpage: uma rigorosa e extenuada écriture a manchar de névoa o negrume lazúli do crepúsculo; aqui, cabe sobretudo aos corpos dos atores o som e a fúria que os incitam a viver e finalmente a morrer, consequência mais causal impossível a que, na vida como na arte, os dionisíacos e  os barrocos sempre fizeram jus: naturalismo fatigado de Clara Choveaux, picardia melancólica de Johnny Massaro, exaltação demiúrgica de Renata Carvalho, Meyerhold para crianças de Vitor Camilo, todos no entanto vibrados segundo o diapasão cool agonístico da iminência de um acontecimento inclemente, não necessariamente a Morte como é tematizado expressamente no filme, e sim algo prenhe de revelações existenciais sobre si mesmos, de radicais diferenças abertas como crateras no seio do Mesmo; este crédito, este pacto in extremis, esta fé herética, esta aposta visceral no corpo do ator, sigificante-mor a ser celebrado, é herdeira de Cassavetes e de Pialat, como dito acima, mas também nasce de uma conversão muito idiossincrática do diretor em pegar os pelos, os suores, as úlceras e os beijos salivados de seus entes possuídos (lembro-me agora de um texto de Narboni sobre Flammes de Arrieta, em que ele compara o corpo do ator ao da prostituta, pois ambos se utilizam da mesma matéria excremencial dos fluidos, aqui contaminados, mas sigamos) e transformá-los em significantes claros e límpidos num filme que deve ao plano o seu fundamento de estrutura mais sólido,e  portanto ao pano de fundo da stylo bailarina de incrição dos corpos em um disegno de paradoxal combustão, como se ao corpo do plano e ao corpo do ator pré existisse uma consanguinidade uterina que ao filme basta atualizar: um filme velado e expiado pelos anjos da Morte se dedica a maior parte de seu tempo in extremis a nos de-mostrar corpos e processos  desenhados contra o fundo do abismo do tempo, corpos que emergem à superfície apesar de e com o abismo?

Como Encore de Paul Vecchiali, talvez o filme contemporâneo à emergência da AIDS que melhor soube extrair dos corpos decompostos como cavalos cinematografados de Muybridge pela doença um gênio coreográfico único em scope ( e, portanto, plástico como cinético, servindo-se do plano como de um invólucro para a marcha inexorável do Mal), Os primeiros soldados exalta o corpo do plano e o corpo do ator como entidades coexistentes para processos in extremis, de que a performance ( aparição extraordinariamente intempestiva e arquetípica em sua histeria feminil, descendo do ônibus e com os peitos em convulsão expostos , de Renata Carvalho, que já prenuncia o tom, diapasão e arremate do filme numa atuação plena de energia mas aberta igualmente às síncopes da agonia) é o evento melodramático, patético mor, de que a cena em que a travesti canta Gonzaguinha com trejeitos e meneios de dançarina de boulevard,decepcionando o público do réveillon, que esperava outra máscara e corpo, como talvez a plateia de festival esperasse outro filme sobre a experiência/experimento do fim?, menos espetacular que especular, como aqui..a interpretação de Renata Carvalho, moeda de Caronte encarnada para supra espasmos do corpo possuído por exaltações somáticas e metafísicas, imprime à diafaneidade de entretons neutros do découpage geral de Os primeiros soldados um flerte com o Infinito das libações trágicas; o equilíbrio atônico do filme encontra, no desespero somático de menino abandonado de Massaro ao descobrir o corpo ulcerado no espelho da câmera-sintomatológica, como também nos sobressaltos e projeções de voz artaudianas de Renata Carvalho, um veio a partir do qual o equilíbrio atônico de tudo ameaça soçobrar e  cair, mas este resvalo, “reparo” e sobressalto de rampa é apenas um biombo detrás do qual tudo- personas-máscaras, narrativas, eixos- se reorganiza para recomeçar outra vez, em outro diapasão: em alguns instantes, a câmera estaca muda e imóvel diante dos objetos, atomizada pelo progressivo esvaziamento nirvânico da voz narrativa pelo processo niilista do corpo que soçobra, e que portanto parece levar com ele para baixo e  para os fundos este filme tantas vezes sobre corpos em devir extático, para fora e para sempre, mas logo o seu eixo se endireita e retoma fôlego, foco, eixo; a performance em Os Primeiros Soldados, -de que a atuação de exterioridade pura de Carvalho é apenas a ponta de lança de processos de interpretação somática mais em surdina no caso dos outros atores, mas não menos intensa- é o buraco da fechadura da cena originária de Freud, o terceiro olho através do qual a  criança vai se intrometer na trepada do casal para investigar as potências possíveis do terceiro excluído, a fresta da indagação metafísica: é no buraco da Mãe que se escondem A Morte, Deus, o Nada? é este empoleirado pedaço de carne entre as pernas do Pai a lança de Tarquínio que vai penetrá-los, tirá-los de seu escaninho de reclusão para trazê-los à luz do ser?

Tudo, através da performance, como da interrogação sobre o invisível da criança diante da ultra-visibilidade do corpo humano, se torna complexo, multiforme, outro; morrer é agora não apenas ser abandonado pelo corpo,e  portanto, como pensava Berckley, abandonar a esfera do ser, que é ver e ser visto, mas também o processo, tantas vezes elíptico, elegíaco e machucado em Os primeiros soldados, de reinventar o corpo ainda ativo, ainda vidente como é visto no espelho paulino: Johnny Massaro filmado com suas úlceras pela câmera espelho se torna o objeto candente e a experiência impossível de alguém que advém novamente à vida ( ele morre um pouco antes do terço testamentário ‘em vídeo final) para dar voz, ritmo, textura a um cadáver “que ainda se agita”, como dizia Pascal da errata pensante, ressurreição só possível numa arte do present tense epifânico e do rewind memorialista; Renata Carvalho é este monstro de vitalidade mas também uma abertura taciturna de inervação mediúnica, onde o Feminino dolorido mas funcional de Clara Choveaux reencontra  as graças de uma potência deliberadamente impotente, à ausculta cúmplice maternal ou de irmã mais velha a velar pelas duas crianças grandes masculinas com suas pílulas milagrosas ( através da lógica da performance, morrer pode também ser visto como uma brincadeira seríssima  mas mesmo assim brincante, de qualquer modo uma alteridade convocada para enriquecer as possibilidades do corpo doente, disléxico e  patético: bastam apenas duas pílulas, e tudo vai cessar, talvez para recomeçar sob outra máscara, penso eu).

Os maneiristas inventaram, dos gestos esmaecidos e dos cinzelados empoeirados das esculturas da antiga Grécia, uma nova Grécia, que coincidiu com a morte da Idade Média: a bella ideia, que as manieri tão cariciosamente invocavam e erigiram em mármore, cores fúnebres e stacatti de árias barrocas era na verdade a terminal máscara para o  cadáver semi-embalsamado pela suntuosa múmia dos significantes maneiristas; foi a cerimônia fúnebre, foram seus codex cênicos, imagéticos e metafóricos o grande leitmotif da subtração preciosista da anamorfose maneirista, aquele que resgata a Cena originária da escultura e da arquibancada gregas para inoculá-la  com este insidioso veneno da maniera, à analogia do fantasista (em 1984) wishful thinking da vacina invocada por Renata Carvalho para Johnny Massaro, perto do final ; assim como a  vacina contém em seu cerne o corpo vitrificado, mortificado, mumificado do vírus para injetar a vida sob a máscara da Morte, a operação maneirista se serviu da arcaica Grécia de Praxíteles, Escopas e Lísipos para inaugurar a Renascença sob a inspiração do menino Jesus da Madona Sistina, velado pelos querubins mortuários que, segundo Daniel Arasse, tinham os rostos mortificados e os dedos emaciados de pungente melancolia porque sabiam que agora finalmente Deus ia morrer, uma vez que desde o monte Sinai Ele havia finalmente se encarnado num homem; toda esta elegíaca constatação fúnebre de que parte para não mais voltar eleva Os Primeiros Soldados à posição agonístca de ser um filme sobre os deuses que chegam para morrer; ao contrário das stars caducas de Femmes femmes (Vecchiali novamente), que dedicavam seu álbum de retratos e músicas demi-faisandés ao Camus de Jouez la comédie!, Rodrigo de Oliveira não precisa adular seus atores ou supra-encantar seu público com uma dedicatória empoeirada; mas é para as personas performáticas e fantasmáticas de Renata Cravalho, Johnny Massaro, Clara Choveaux, etc., como os processos, as ações e as inações que imprimem ao corpo de todo ator uma veleidade de posteridade, de in memoriam encarnado (como pensava o Daney de uma correspondência com Biette sobre Wim Wenders e o fantasma encarnado do ator que atravessa eras e envelhece com o cinema) que o filme é subliminarmente dedicado.

Contudo, eu não gosto do final de Os Primeiros Soldados, que me pareceu demasiado copia e cola do gênero “uma imagem exemplar, “redentorista”, para nos demonstrar que a vida, representada pelo casal jovem e erógeno dos dois meninos que se beijam, vence finalmente a morte, com a repetição/rima aqui da ejaculação fantasista da queima dos fogos, ontem com Suzano e hoje com seu sobrinho; para mim, o filme acaba idealmente muito antes, com o wishful thinking de Rose para Suzano de que daqui a dois anos ninguém nunca mais vai ouvir falar de Aids; é sobre a frágil haste desta esperança quase infantil que nos afastamos para ver melhor  e mais longe que o destino ideal para um filme é encarnar as potências oníricas dos pobres espectadores nestas imagens vertiginosas, feitas de sombra e de luz,que a projeção realiza; também nós, como os deuses,merecemos morrer para finalmente começar a sonhar.

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Anotações sobre Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, de Érica Sarmet

Por Geo Abreu

 Mais uma edição da Mostra de Cinema de Tiradentes vai terminando. Apesar de nunca ter participado presencialmente, pude acompanhar a mostra nos últimos anos por consequência das medidas sanitárias de combate à Covid-19 e do pouco que pude observar até aqui, a força dessa 25ª edição deve muito ao cinema queer.

Se o cinema negro – aqui, entendido em amplo espectro – esteve à frente das experimentações mais interessantes produzidas pelo cinema brasileiro recente, agora é o cinema queer, despontando em bando e apresentando temas e formas de abordar a realidade que nos entregam muito, e não só em discurso.

Em Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, curta dirigido por Érica Sarmet, que vem fazendo carreira por festivais, inclusive os internacionais, fala sobre o encontro entre duas gerações de mulheres, lésbicas e não-binárias. A liberdade do grupo de garotes impressiona a mulher mais velha, que faz um paralelo entre a atualidade e a cena lésbica de uma Niterói de trinta anos antes, quando Vange Leonel ficou conhecida pela música que é tema do filme e que também já foi tema de novela. Nessa dinâmica de por em relação a experiência de mundo de cada grupo, o filme trabalha com a ideia de invisibilidade a qual as vidas lésbicas foram mantidas por tanto tempo, esse tempo da paciência selvagem de que fala o título.

Interessante que, ainda que essa necessidade de ser invisível seja pontuada, a abertura do filme postula o justo oposto: usando imagens de arquivo em que mulheres se apresentam nas mais diversas situações, entre festas, atos públicos e composições de mesas (de bar e políticas),elas apareçam vivas, felizes e ativas, no que o filme desenvolve seu melhor argumento: a necessidade de catalogar referências e discursos para as próximas gerações.

 Há um chamado explícito a isso que o curta desenvolve em toda sua duração: do monólogo inicial de Zélia Duncan até o jogral que finaliza com Lorre Mota chamando a próxima conversa, o que se apresenta é essa indiscernibilidade entre gozo e luta, entre festa e protesto, entre cinema e vida que lembra Dyketactics e Women I Love, curtas de Barbara Hammer, cineasta que conheci através de Érica e de uma mostra sobre a cineasta norte-americana acontecida no Rio de Janeiro em 2017 e para a qual fui atraída pelo chamado a um cinema lésbico experimental feito num tempo anterior ao meu. Aliás, essa ideia de uma geração anterior ou posterior é bem trabalhada no curta de Sarmet: se estamos vivas – ainda que menos novas do que já fomos um dia -, esse não deixa de ser o nosso tempo, o tempo de estarmos vivas e desejantes.

Fonte de referências de modos de agir, reagir e filmar, Uma Paciência Selvagem nesse sentido faz par com Vênus de Nyke, curta de André Antônio lançado em 2021 que, traçando o perfil psicológico de um rapaz em relação com sua terapeuta, fala sobre a descoberta da sexualidade, infância queer e fetiches, inventariando referências – filmes, sites, músicas, livros – e estabelecendo um corpus de pesquisa sobre o universo gay masculino. Assim como Paciência, Vênus fala às crianças queer, aquelas que Paul Preciado diz ter seus cuidados e escolhas negados pela sociedade patriarcal[1], indicando caminhos de pesquisa e criação de comunidade para atravessar o caminho até o vale.

A paixão que o curta apresenta entre as tantas possibilidades de encarar a vida a partir de uma vivência dyke/quer/não binária contagia e reverbera, e faz coro com O Nascimento de Helena, Tito, uma videópera pop do cerrado mineiro em chamas, Sad Faggots + Angry Dykes Club e Seguindo Todos os Protocolos, todos filmes que compõe a Mostra de Tiradentes nessa 25ª Edição.


[1] “Quem defende as crianças queer?” – texto de 2013 escrito por Preciado na reação a uma marcha do tipo orgulho hétero ocorrida na França no mesmo ano.

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Avá – Até que os Ventos Aterrem (Camila Mota, 2022)

Por Gabriel Papaléo

Vamos às imagens e sensações do fim do mundo, os símbolos místicos, religiosos e mágicos da tradução dessa terra devastada. À tentativa de diálogo para investigar aonde e como foram destruídas as ideias e as terras. Se não há vislumbre de ação nem organização política diante do fascismo, talvez o verbo agressivo da profecia seja o caminho para o revide. A questão que fica latente logo no ato I de Avá – Até que os Ventos Aterrem, no entanto, é que as intenções de destruição e apoteose são quase opostas ao trabalho de câmera e montagem, mais filmagem de peça e registro pouco pensado de performance que propriamente o desencadeamento de imagens fílmicas que almeja. Partir de dois níveis no plano do palco, o alto da deusa e o baixo do humano, para não diferencia-los em imagem e nem localizá-los no espaço, acaba uma boa ideia implodida sem muitas delongas nos 62 minutos do longa.

A encenação não é adaptada para uma lógica cinematográfica, e continua presa à uma ideia de espetáculos teatral – sem o hibridismo de formas da qual a Mostra encoraja nas justificativas curatoriais; o que sobressai é uma cobertura audiovisual do texto e das atuações, com a câmera nunca soando ativa nas decisões narrativas do filme. Existe esse esforço de articulação principalmente no como as realizadoras lançam mão das imagens encontradas e das texturas experimentais que adentram uma pictorialidade na destruição em tela, mas nunca parece tensionar nas disruptivas, e sim nos termos reiterativos. A cada palavra, uma imagem equivalente; não de antítese, não de complemento, mas de equivalência.

Não por acaso, os créditos finais apresentam “Dramaturgia”, no lugar de argumento ou roteiro, porque a vontade de Avá – Até que os Ventos Aterrem parece sempre honrar uma tradição dos palcos, tradição do incômodo proposto pelo histórico do Teatro Oficina. Nesses créditos, homenageiam os atores e diretores que passaram pelo teatro, além de homenagear também os povos indígenas nas suas lutas por dignidade e por suas terras, um ativismo político que, apesar de comentado em tela, nunca ultrapassa a barreira do comentário de rede social sobre os assuntos desesperadores que aparecem nas nossas telas. No campo das profecias, sobram explicações e reflexões, faltam místicos e chamados à ação.

A opção pela crônica do fim do mundo, reduzida a um soldado num ambiente sitiado e destruído que encontra a transcendência ao buscar o contato com a carne – uma trama que já soa uma alegoria cansada e reducionista de cara – encontra pouca inovação numa encenação que não ilustra espacialmente o desafio da distância física entre soldado-entidade, pessoa-deusa, humana-natureza. As atrizes se valem do texto como dá, mas a dimensão política soa como manifesto aos ventos, pouco articulada além da impressão básica do desgoverno, do descontrole pandêmico, e do ataque às minorias a qual o Brasil passa atualmente. Sobram os trocadilhos com vacina e com guerra, falta o corpo presente que o trabalho teatral tanto almeja.

Não ajuda a opção pela lógica estruturada na fala como fluxo de consciência, vomitada pelas entranhas desesperadas, bem ao monólogo de Lucky em Esperando Godot – para trazer o contato que a peça/filme explicitamente busca, como reforçam os créditos citando Beckett; no personagem do dramaturgo irlandês, o desespero é traduzido em sua maior (e quase única) fala, cuja ambição é a pulsão e o caos na falta de coerência daquelas palavras proferidas por um escravo que sonhou com a fuga; aqui, as falas buscam esse desespero em meio a reflexões políticas muito rasas e um mapeamento de possibilidades do que constitui esse mundo imaginado, quase uma consciência una que se comunica por diversas vozes.

Fica sempre a sensação de que falta ao filme a dimensão desse espaço do futuro obliterado que versa sobre, as limitações do palco que funcionam tão bem no teatro, e que aqui soam como rascunhos distantes. É tocante que se pense numa utopia, na melhor sequência do filme perto do final, e na fúria e graça regeneradoras duma natureza agora sem prestar contas a ninguém – mas é também o refúgio mais direto e insuficiente que os supostos retornos ao primitivismo, a empostada ideia simbolista de primeira mão, desenham sem ao menos desconfiar de sua disposição acidentalmente apolítica.

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Seguindo Todos os Protocolos (Fábio Leal, 2022)

Por Natália Reis

Após ficar 10 meses sozinho em quarentena, Francisco quer transar. Francisco, como muitos de nós, é adepto de procedimentos capilares radicais feitos no banheiro de casa e recorre de vez em quando às propriedades paliativas dos cristais, óleos essenciais, tarô e meditação. Ele lê os últimos estudos sobre as respostas imunológicas da vacina, taxas de mortalidade, reações medicamentosas. Segue os protocolos, não sai de casa por razões banais, sabe qual é o melhor modelo de máscara, mas não sabe qual é o plural de “álcool em gel”. Julga quem compartilha as escapadas do isolamento no Instagram e acaba sendo criticado por isso. Francisco não sabe, mas é a pessoa mais bonita do mundo.

Já faz um tempo que venho me questionando sobre o sentido de um incômodo que tenho com a ideia de “filme pandêmico” enquanto gênero. Ainda não consegui chegar a uma conclusão quanto a isso, mas, conversando com um amigo, levantamos alguns motivos prováveis dessa cisma: “pode ser que esse filme já nasça um tanto datado, fixo num momento histórico” ou ainda “se aproveite de forma leviana do tema para conquistar certos espaços”, ou como gostamos de chamar (venenosamente) “filme espertinho”, o tipo de obra consciente dos mecanismos aos quais vai recorrer para arrematar o maior número possível de respostas positivas. O filme de Fábio Leal não é um filme espertinho, é um filme esperto. De uma esperteza tamanha que me deixou por quase 48 horas pensando nele, com medo de começar um texto que não desse conta nem de parte dessa esperteza. É esperto porque é sincero, engraçado, dolorido e se vale de personagens totalmente adoráveis e palpáveis nas suas neuroses e desejos. Também não merece ser descrito apenas como um “filme pandêmico”, pois ainda que a pandemia seja esse acontecimento de proporções globais, seus efeitos devem ser individualizados para não nos tornarmos dormentes. Acredito que as aflições compartilhadas pelo protagonista interpretado pelo próprio diretor vão além do momento atual. A vontade, e muitas vezes dificuldade, de se relacionar, de encontrar no outro uma companhia ou mesmo o gozo rápido, são sentimentos que acompanham a história da humanidade. Sentimentos terrivelmente humanos. 

Seguindo todos os protocolos (2021) vai narrar a saga de Francisco, homem branco, gay, classe média, em busca de uma transa que não ofereça riscos de contaminação por Covid-19. Passado quase um ano de quarentena, a necessidade de estabelecer contato físico vai se tornar uma grande questão na sua rotina de cuidados e preocupações que ocasionalmente extrapolam em paranoia, e nos encontros nem sempre satisfatórios com outros rapazes, quer sejam no ambiente virtual ou no seu apartamento bem decorado. No desencadeamento de um processo de autoficcionalização, tão bem sintetizado na obra truth, fiction de Leonilson na parede de Chico, Fábio nos presenteia com momentos de humor genuíno, sem apontar dedos ou se amparar em críticas pontuais. O humor aqui é muito mais um meio – pelo qual as contradições e insatisfações de seus personagens podem vir à tona – que um fim. Em poucas palavras: tudo é muito sério e ao mesmo tempo nada é sério. 

Oscilando entre tópicos dolorosos que perpassam a conjuntura pandêmica, como o afastamento dos vínculos afetivos ou o medo de contágio que se desenvolve em ansiedades mais profundas e a precarização do trabalho, e instantes de leveza, de uma intimidade construída na perscrutação dos corpos masculinos e um erotismo arrebatador digno de Robert Mapplethorpe, o filme vai desembocar numa comédia sensível, rendendo cenas memoráveis de interação entre personagens tão prismáticos que podem transitar pela brutalidade e o enternecimento sem nem nos darmos conta. A sensação que fica é que, ao trabalhar a distância e a solidão na impossibilidade do toque, estamos diante de uma obra que se avizinha bastante de um filme como Un chant d’amour de Jean Genet. Se Genet faz uso do encarceramento para tratar desses temas, Leal vai pegar alguns dos maiores temores da nossa geração e moldá-los para que caibam numa história sobre os embaraços da reaproximação e da insatisfação sexual na quarentena, ao mesmo tempo que resguarda – como um segredo prestes a ser partilhado – a esperança e a possibilidade de expurgo dessas mazelas num gesto tão singelo e libertador quanto um passeio de moto pelo quarteirão.

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Meus Santos Saúdam Teus Santos: Carta a Rodrigo Antônio

Por Geo Abreu

Filho, larga a vaidade, prepare-se

És do povo és da mata

garanto-lhe

Rodrigo,

sei que entendes o que vou dizer: como é bom encontrar filme amazônida na programação de um festival. Nosso sotaque anasalado guiando o percurso de um filme e dessa vez não pelo viés da exotização mas sim de algo que pouco se fala: a força da mistura entre religiões de matrizes africanas e indígenas discretamente representadas naquele plano do maracá junto a imagem de Cosme e Damião. 

Não vou chamar de zombaria a representação que geralmente se faz dos espíritos da floresta em muitos materiais audiovisuais sobre a Amazônia, mas de uns tempos pra cá, a caricatura feita disso me assombra como falta de respeito. Curupira, Mãe D’água, a filha de boto da novela das nove, não pegam da força desses arquétipos sequer o farelo. Enquanto numa cena de Meus Santos – aquela do contra-plongée das árvores balançando ao vento -, o barulho das folhas me fez sentir como se fosse possível respirar aquelas imagens. Me senti pequena e abraçada no meio daquela mata. 

É sob a forma de expressão desse mistério que repousa o limite entre um exotismo esvaziado e o respeito com a transmissão de conhecimentos cujos multiplicadores se tornam mais e mais escassos. E do que trata teu filme senão de assumir o compromisso com esse papel de transmissão? 

Em A Memória de Sangue (2021, Elom 20ce), a personagem-narradora também nos conta sobre seu processo de autoconhecimento a partir da religião, no caso, o Vodu. A serenidade com que fala sobre o segredo, que ao mesmo tempo em que é guardado também deve ser multiplicado, é aquele da pessoa cujo processo de formação se completou. Lakoélé, a protagonista, hoje canta numa banda e usa elementos desse conhecimento ancestral em suas performances, seja nas letras, no ritmo ou nas pinturas do rosto e, para além do trabalho efetivo junto às irmãs do Vodu, estabelece a música como lugar de experimentar essa força em outras medidas e encontrar algum equilíbrio entre esses dois mundos. Ouvir Lakoélé e sua história me fez lembrar de Mateus Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã (2020, Tenille Bezerra) e a missão que se traduz em música. Encontrar esse equilíbrio entre manutenção e partilha é uma chave poderosa e apaziguadora.

Cavalo tá pronto?“, “Ainda não, mas quer estar”. 

Interessante que tu escolhas mostrar a jornada com suas dificuldades, os diferentes tempos que se cruzam em expectativa e suspensão, e que o filme nos deixe ainda no começo desse caminho. Abristes uma janela para o quintal da tua avó. Mostrastes fotos, cartas. Essa pesquisa que faz parte do processo e que nos fala de como é difícil reprogramar para estar de volta por completo. Reaprender a ver é um exercício demorado, não é isso também que teu filme nos mostra?

Fui realmente pega por algo que dizes a certa altura: Mistério não cabe na boca e o que eu sinto no corpo, grita“. Alguma janela interior se abriu a partir disso, como enxergar para dentro. 

Me despeço aqui, torcendo por ti e pelo restabelecimento da comunicação entre tu e tua avó.

Beijos.

Geo Abreu.

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Filme Caseiro (O Dia Posse, Allan Ribeiro)

Por Luiz Soares Jr.

Os Walsh e os Ludwig do auge da era clássica nos deram instantes privilegiados, elegias encarnadas no lusco-fusco evanescente de tantas inolvidáveis obras de ourives; para os modernos, restou a desolação câmera na mão e atalhos de zooms descontínuos pelas crateras da cidade arruinada pela guerra: o neo-realismo e a nouvelle vague não falaram de outra triste Venise; e os pós-pós, aqueles que erigiram sua obra de linguagem sobre os escombros da obra diegética, acmé fascinatória e litúrgica quando clássica e cinema verdade ladeira abaixo quando moderna?

Godard, Kluge, Fassbinder maneirista, Kurt Kren actionista…inauguraram uma enlutada posteridade, nossa História aziaga do significante flutuante, do lugar de fala, do dispositivo e do simulacro; neste filme quase-caseiro mas com ambições narcisistas demiúrgicas (o seu ‘objeto’ Brendo, pelo menos, é devedor desta exaltação enlutada, desta excitação mortificada, desta paradoxal chama que nasce das cinzas do confronto com a ninfa Eco e em O dia da posse com a tela virtual da TV), Allan Ribeiro fala da percepção maníaco-depressiva dos BBBs desfolhados antes da primeira floração (digo: paredão) e dos presidentes tirados a fórceps do Poder antes do decisivo decreto’ para entrar na História, hebdomadária e mítica; não, não se trata de má poesia, de elegia avant la lettre ou de metáfora segundo o espírito, de metonímias desfiguradas pela totalidade que falta, pois aqui o objeto jamais vai ser reconstituído por inteiro, uma vez que, como o próprio sujeito da enunciação fracassada exprime, “quando diante de uma câmera jamais conseguiremos ser nós mesmos”; O dia da posse, que passou e transbordou de maniera povera por todos os codex do cinema pós-pós acima enumerados,  nos fala desta ruptura instransponível, desta falha, desta fratura, impossibilidade de ser que trafica o fantasma pelos meios assombrados da imagem documental de base, sua morada senão ideal pelo menos possível, à mão: a grande épica, como o kammerspiel intimista encantatório, jamais pertencerão a Brendo, porque, tardio dentre os tardios, é um personagem elaborado pela retórica niilista que sabe que o rosto jamais vai coincidir com a máscara e que a persona humana é a invenção a posteriori de plenipotências de teatro e de elocução, de gesto e de quadro encimadas por ninguém senão as miudezas de um microfone de lapela, uma câmera DV de baixa definição, um Dream’s factory de BBB, panteão consagrado de um último capítulo surrupiado à sua plenitude pelos fac-similes lívidos e canhestros da TV mofo numinosa do youtube; mas voltemos ao fulcro, ao centro, à ribalta do final de Cidade dos sonhos de Lynch: “… o que sei é que ninguém que é filmado por uma câmera jamais consegue ser ele mesmo”.

O documentarista pós-Coutinho, pós-Lanzsmann e Flaherty, pós-Annales, pós-Histoire(s) du cinema sabe que o seu objeto nunca é totalmente documental pois, desde a falsa ou secundária contraposição (desmascarada pelo Godard da boutade ‘fim de caso’ “Toda ficção é um documentário sobre a sua própria confecção”) entre Lumière e Méliès, sabemos nós também que a captura do Real pela câmera de filmar jamais conhecerá a integridade de um olhar sobranceiro que nos guia e significa senão com o auxílio da inervação fantasmática da ficção; e o que é o Fantasma, senão o arquétipo daquilo que se atualiza numa imagem, inervada, como em todo cinema, por mediações invisíveis (montagem, cadre adstringente, luz, raccord), ou pelo fora de campo? o Fantasma necessariamente vai desaguar numa Imagem, pois como ela o seu significado é consanguíneo a mediações infra e supra visíveis, à saturação pelo fora de campo; as imagens quaisquer, comezinhas “achadas” ou duramente resgatadas à lixeira do youtube de O dia da posse ( cadre do cadre do celular, vista à janela, corpo que flutua sobre as águas em plongée alucinatória, o corpo tumefacto e o gesto evasivo de Brendo falando direta, frontalmente para nós) são devedoras do Fantasma daquilo que Brendo persegue como um bico-de-pena ao gesto do sfumato de Da Vinci e Manet: à Fama, a mais irrisória das quimeras de nosso tempo, seu fetiche e obsessão; todos os filmes, infra ou supra ficcionais, de primeira mão ou superestruturados, primeiros e últimos, originários ou tardios, devem ao Fantasma a sua inspiração-mor, mas jamais a sua execução, que é sempre obra de um manejo ultra-mediado dos significantes e materiais; O dia da posse não aposta na sofisticação dos codex linguísticos do cinema do simulacro e da enunciação diferida, de perífrase ou citação, do dispositivo e do lugar de fala devedor de fora de campo, mas em sua simplicidade frontal e dialógica com o personagem que o obceca como a Fama ao garoto da periferia do Brasil ele nos ensina algo extremamente atual sobre a potência, comum às pessoas marginalizadas politica ou geograficamente, de se servirem da infra estrutura tecnológica para permitirem ao sonho um meio de se engendrar artefato, de se materializar numa imagem, talvez o meio mais poroso às fantasmagorias alucinógenas do devaneio que habita sob as armadilhas do desterro cotidiano; o que é afinal sonhar, pensava o Freud da segunda teoria das pulsões ( 1918), senão imprimir à experiência cotidiana rememorada segundo um continuum de significantes evasivos ou refigurados por ordem temporal outra, um diapasão frenético ou em câmera lenta, ao gesto uma beatitude extática, à causalidade uma tinta de delírio intempestivo, e assim atualizar todas as camadas superpostas do id massacrado pelo prático-inerte da necessidade e da utilidade do dia a dia, dando-lhe enfim a chance de advir à superfície? o sonho de ser ator de novela, BBB ou presidente da República é indiferente, pois depende, como pensava o Deleuze de Diferença e repetição e o Kojève que leu Hegel para os existencialistas, do delírio psicótico impresso no corpo do Desejo pela época (nossa época onívora de sintomas, de grandezas e diapasões energéticos suspeitosos necessita talvez desta tríade de poder para satisfazer seu élan megalômano), mas o essencial a se reter aqui são ao mesmo tempo a insistência sintomatológica de sua expressão ( expressa pela morosidade ou repetição de certos planos), a grandeza histérica do gesto e a simplicidade neutra da fala com que desejos que atingiram os cimos da volúpia do id em se apoderar do ego se apoderam agora do quadro e da frontalidade expositiva; os clássicos sempre foram frontais, simples ( jamais simplistas: o simples acumulou em sua trajetória a imensidão das mediações do percurso fenomenológico, arregimentou vertigens e potências), porque haviam passado pelo abismo e sublimado sua potência maligna, mas sem o abismo jamais haverá suprassunção; em um livro autobiográfico, Mankiewcz nos diz de seus personagens intelectuais, como na obra prima A quiet american, que quanto mais potente  a loucura mais espessa deve ser a máscara da razão; Brendo não é louco como o personagem de Redgrave no filme de 1958, mas um dia chega lá: o delírio de nosso tempo consiste em chegar à Fama sem passar pelo Trabalho, ou em termos filosóficos pela categoria hegeliana do Reconhecimento; desta erosão da experiência pelo delírio já generalizado demais para estar vivo de que Brendo é o intérprete e porta-voz Alan Ribeiro tira a experiência possível dos momentos em suspensão ( no tempo) e dos espaços prenhes de afetividade, como a mãe ao celular e os pés na maré que sobe; o personagem talvez não tenha olhos para ver, mas o diretor solicita ao espectador que complete o circuito invisível de uma vidência impossível ao campo estreito daquele rapaz um tanto deslumbrado demais para poder ver que o evento mais suntuoso de que será testemunha reside não numa tela de tv, e sim ao alcance de sua mão e de nosso olhar; a experiência, no cinema primeiro (guloso e escatológico) e no pós-guerra, sempre foi o ouro do pobre; as festas infinitas do plano sequência e locação ou o uso onívoro da profundidade de campo encapsulavam o presente num maravilhoso escrínio de tempo e espaços puros, a perder de vistas; um respingo desta oferta voluptuosa do milagre ao alcance da percepção cotidiana, agora um milagre para olhos que sabem finalmente ver (lembram-se da cega de Chaplin, ao final? “agora, eu posso ver”, ali eticamente, pois ela podia enfim adivinhar sob as vestes encardidas e rasgadas do vagabundo o grande homem que ele fora sempre) salpica a duração linear de O dia da posse com um rastro de revelações que certamente o post do Facebook ou a foto do Instagram já surrupiaram para o seu códex reminiscente, memorialista de registros hebdomadários efêmeros, mas que numa tela grande de cinema, arte monumental (monumento fúnebre, como nos ensinaram Godard e Daney, também está valendo, pois continua a ser um desvairado in memoriam), subitamente se reerguem das poeira citadina dos dias quaisquer (registrados por registros quaisquer,  e esta banalidade do mal arendtiana não nos deve escapar nunca da vista inocente dos registros cotidianos, pois a exceção do Mal, do delírio ou do sonho sempre habitaram o cerne da dita normalidade, uma vez que afinal com que material se engendraria a negação do Real senão com as hastes precárias e fecundas do próprio Real?) e se postam diante de nós; o encanto e a surpresa pelo encontro com rastros de vida vivida aqui e ali nos surpreendem talvez ainda mais por ser, como dito no início deste texto, um filme quase-caseiro, um filme registro, um filme que recupera o frêmito e o tremens do Real capturado tão sordidamente pelo cadre miniaturizado do celular; em sua pequenez e condensação, em sua negação senão frontal pelo menos subliminar da escritura em sua totalizante abdução da percepção nua, O dia da posse recupera recônditos tesouros perceptivos, que talvez mais do que idos e vividos estejam ainda por vir.

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Mostra de Cinema de Tiradentes: O Dia da Posse

Por Geo Abreu

A tradição do encontro com personagens documentais comuns e extraordinários, que muito deve ao cinema de Eduardo Coutinho, é resgatada por O Dia da Posse, de Allan Ribeiro. O cineasta nos apresenta Brendo, rapaz de fala fácil que cruza diversas referências pop em suas preleções, indo desde pronunciamentos políticos a discursos de eliminação em reality show, alimentando assim um sonho de infância: ser presidente do Brasil. 

Ribeiro e sua câmera tiram partido do confinamento ao expor uma das características desse período: a crescente importância da relação com telas na vida da cidadã comum. Tevês, monitores, telas de dispositivos móveis, visor de câmera, olho mágico, janelas. A imposição desse regime de economia da atenção traz consigo a necessidade de manter uma imagem íntegra de si para ser mostrada, enquanto os rostos de Allan e Brendo expressam a dificuldade disso. A vida entre frestas e a imposição desse contato mediado por telas como as únicas possibilidades de comunicação com o fora nos últimos dois anos. 

Nesse ponto é que se misturam dispositivo e personagem, com Brendo mostrando desenvoltura diante do confinamento e do excesso de exposição frente às diversas possibilidades de enquadramento, como alguém que passou a vida inteira sendo treinado pela cultura audiovisual até este momento. 

O diretor desempenha bem o papel de provocador, estabelecendo alguns jogos para que Brendo ganhe desenvoltura e, brincando, produza discursos dignos dos personagens que deseja ser. Ele conta histórias de quando se descobriu pobre ou de como pretende cursar medicina, logo após a graduação em direito. Esse gancho é puxado a partir do encontro da câmera com vestígios de uma pequena cirurgia de extração de dente feita pelo próprio Brendo no apartamento em que ambos estão confinados. 

Entre os blocos de apresentação e adensamento do personagem principal, o diretor também se expõe, em tomadas na praia, construindo assim episódios que promovem uma quebra na narrativa, suavizando a monotonia da locação única. Marcando o caráter de externalidade desses trechos em relação a linha

narrativa principal, Ribeiro elabora jogos de dentro/fora, mostrar/esconder, a partir dos quais reforça a diferença entre as subjetividades expostas no filme, mantendo o foco e o zoom no rosto de Brendo, enquanto brinca na areia sozinho com sua câmera. 

Entre o experimental e o vídeo caseiro, duas categorias que o próprio filme aventa sobre si, Ribeiro explora as possibilidades dessa multiplicação de telas. O comportamento de Brendo, que parece ter nascido pronto para o momento em que – quase – todas as casas tenham se tornado o palco de um show com transmissão via web,produz pontos de contato com o filme Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi, quando, por exemplo, o vemos despedir-se de seu pequeno Palácio da Alvorada e de todos nós, ao fim de um mandato curto e ainda assim marcante. É nesse ponto também que (re)conhecemos um cineasta maduro, capaz de tirar um filme do bolso como quem brinca de fazer cinema.

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Diário remoto de Tiradentes – Parte 2

Por Natália Reis

Tendo em mente que “panorama” é um termo que diz respeito à vista privilegiada de uma paisagem, ou ainda uma visada geral do entorno, a Mostra Panorama, que teve início neste domingo, dia 23, configura uma espécie de cartografia diversificada das manifestações cinematográficas emergentes em território nacional. Reitero a definição da proposta curatorial porque o que se apresenta para nós nessa primeira sessão são obras que se relacionam intimamente com a geografia dos locais onde foram desenvolvidas, e com os sentidos de existência de indivíduos nesses territórios. 

A começar por Transviar (2021), de Maíra Tristão, um retrato, realizado em película, de Carla da Victoria, artesã e mulher transexual residente de Vitória, Espírito Santo.  De maneira sensível, o filme de Maíra vai lidar com questões que perpassam as relações familiares recondicionadas pela transexualidade e o trabalho manual enquanto um dos fatores constituintes da identidade. No processo intrincado de fabricação de panelas de argila, Carla se pergunta sobre o lugar que ocupa numa tradição compartilhada já por quatro gerações de mulheres da família, ao passo que o rio e o mangue se abrem como cenário acolhedor para essas e outras indagações. 

Em Dois bois (2021) de Perseu Azul, Joana retorna à casa da família após a morte da mãe para encontrar um lar hostil e um irmão atormentado pelo comportamento nocivo do pai. Ambientado no pantanal matogrossense, Dois Bois busca desenvolver uma ideia de insurreição feminina que se perde em meio a personagens planificados e situações derivativas que não vão além das oposições arquetípicas (feminino/masculino, autoridade/insubordinação) retratadas como mero jogo de força bruta. Ainda que possa contar com uma fotografia apurada e um entendimento extensivo das articulações da linguagem cinematográfica, o filme de Perseu não consegue ser feliz na direção dos atores e muito menos no desenvolvimento da alteridade dos seus protagonistas, que não conseguem ir além de uma trajetória limitada, feita de heróis e vilões.

Uma embarcação avança pelas águas esverdeadas de um rio parcialmente dominado pela vegetação costeira. Mais à frente, avistamos uma casa sustentada por colunas que se elevam sobre a maré. De lá desponta uma criança uniformizada segurando com cuidado os sapatos e o material escolar. Na cena seguinte, um grupo de alunos na faixa dos 8 anos de idade, já reunidos no interior do barco a motor, interagem animadamente. São alunos do 3º ano da Escola Sítio Porto Alegre, situada no pequeno município de Curralinho, na Ilha do Marajó. Uma escola no Marajó (2021) é o nome do belo documentário de Camila Kzan que acompanha a rotina diária de uma pequena escola de comunidade ribeirinha. Valendo-se de uma abordagem um tanto wisemaniana, Camila observa com primor as dinâmicas institucionais que contribuem para a estruturação desse espaço (como a preocupação da diretora com o combustível do barco fornecido pelo governo e as limitações de transporte), vez ou outra flagrando instantes encantadores de brincadeiras e interações das crianças entre elas, e entre a turma e seu professor. 

Em Curupira e a máquina do destino (2021), de Janaina Wagner, a noção de progresso defendida inescrupulosamente pelo regime militar na construção da Rodovia Transamazônica faz parte de uma história de fantasmas e outros ecos de um tempo distante. Se no filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna Iracema é uma prostituta de 15 anos entregue à sorte, aqui ela retorna como uma aparição nas estradas que levam à cidade de Realidade (AM), numa busca constante pelos mistérios ancestrais que habitam a mata. Partindo de um ritmo desacelerado em que imagens pujantes se arrastam, Wagner vai nos contemplar com a promessa de redenção do passado e do futuro resguardada no encontro da entidade sobrenatural “a curupira” e a menina Iracema, que invoca sua presença como quem chama uma velha aliada. 

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Cinema, dinheiro e marmitas

Por Geo Abreu

As condições do país-brasil se (con)fundem com as condições do cinema brasileiro na atualidade.

Trilhando um trajeto particular pelos programas de curtas da Mostra de Cinema de Tiradentes – e assumindo sem pudor que escolho os filmes realmente curtos – emendei sem pensar muito a respeito: Ácaros, de Samuel Marota, Dinheiro, de Arthur B. Senra e Sávio Leite e Corre de Marmita, de Luiz Pretti e Phillipe Urvoy. 

Apesar da escolha ao acaso, executar os filmes nessa sequência fez muito sentido. Algo de continuidade em movimento ascendente, tanto pelo ritmo imposto pelos filmes quanto pelas temáticas conjugadas. Em Ácaros somos apresentados a uma imagem sem definição, “pequena”, “ruim”. O movimento da imagem é intenso, sugere trabalho, conhecimentos específicos, ação. Na saída daquele fosso acompanhamos um belo movimento de câmera que revela a grandeza de uma sala de cinema em ruínas, metáfora concreta dos dias que correm. Trabalho arqueológico de história do tempo presente executado em quatro minutos. As salas de cinema de rua minguam no mundo neoliberal, cujo tempo liso escorre em enxurrada, fazendo de tudo ruína.

E qual o papel do dinheiro nessa história? Uma convenção tão antiga e agora, mais do que nunca, espiritualizada por códigos digitais e transferências em tempo real? Em Dinheiro, somos apresentados ao histórico do papel que passou a representar um índice de troca entre entidades de naturezas diferentes. Várias versões do papel moeda brasileiro, seus brasões, generais, ditadores, cidades, índios – como na capa de um álbum do Sepultura – completamente deslocados como escala de valor em relação à sua representação numa nota de mil cruzeiros. Vibrando na tela, notas de dinheiro e notas fiscais servem de moldura para frases icônicas sobre o capital e suas contradições. Outros quatro minutos densos em que a montagem impõe o ritmo, e através dele se conecta ao filme que escolhi na sequência.

Corre de Marmita é ágil como a urgência que sugere. Seus onze minutos transcorrem como o pensamento acelerado que é necessário para se equilibrar na cidade: entre celular, deslocamentos e sobrevivência. O curta conta a história das pessoas envolvidas numa ocupação urbana no centro de Belo Horizonte que, em meio a luta pela permanência da ocupação, produzem ações de assistência à população em situação de rua distribuindo marmitas. No contexto da pandemia de Covid-19 o filme fala de direito à moradia, insegurança alimentar e outros arranjos de vida. Seguimos o grupo por andanças nas ruas e coleta de doações, enquanto a montagem do som atua sobre as diversas conversas que se cruzam, produzindo um mosaico de opiniões não-jornalísticas sobre o período, sem moralizar escolhas e temas. Além de uma visão sobre redes de solidariedade, Corre de Marmita fala sobre criação/manutenção de redes na luta por alternativas à comidificação do dia-a-dia. A dificuldade que é escolher cair fora e tentar viver sem ser esmagada pelo rolo compressor do capitalismo neoliberal e seus esquemas de produção de escassez é um tema que instiga. Observar o crescimento do número de pessoas em situação de rua e a precarização dos profissionais do audiovisual (e das artes em geral), ambos fenômenos que espelham o mesmo processo, e notar o aparecimento de filmes que sejam sintomas disso é usar o cinema como ferramenta dialógica, como instrumento da história do tempo presente, a catalogar os agoras. Esse conjunto de três filmes consegue sintetizar e pôr em movimento entendimentos sobre brasil-mundo e cinema-brasil.

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