VOCÊ QUE ESCOLHA O TEU CAMINHO NA ENCRUZILHADA

por João Lucas Pedrosa

Os ecos e leituras de Exu-orixá variam sempre de acordo com os terreiros. A leitura que, até o momento, pessoalmente mais me apego e que aqui usarei como norte de pensamento é a de Exu como fundamentador de “princípios e potências concernentes à linguagem, suas dinâmicas e atos criativos”[1]. Se entendemos a linguagem como movimento formulador do mundo – e, por ser constante, se move em infinitas possibilidades de reformulação -, o orixá é, ele mesmo, constituidor do que a cultura branca estaria acostumada a chamar de “devir”. Mas, para além da cinética incessante, ele se dá necessariamente no cruzamento de diferentes caminhos (daí o costume de, no dia de Santo Antônio, acender uma vela para Exu na encruzilhada). É no encontrar e atravessar de uma palavra com outra, um corpo com o outro, de uma palavra com um corpo, de um corpo com o acaso, que se faz o movimento (re)construtor do mundo; a entropia tornada potência. Em última instância, o cruzar essencial exusíaco pode também ser aplicável à relação “cruzada” na Umbanda entre os santos católicos, os presentes na cultura iorubá e os que herdamos da diáspora. É uma dinâmica, ao mesmo tempo, de reinvenção e de sobrevivência – como não encontrar, nisso, o princípio da arte, o princípio da vida?

Vejo esse princípio – e o orixá, diretamente referido, – no primeiro longa ficcional de Waldir Onofre, As Aventuras Amorosas de um Padeiro (1974). A protagonista Rita (Maria do Rosário) tem uma pungente e repentina agonia sem explicação aparente, que a leva a odiar seu casamento. Ela busca jogar o corpo sobre outros corpos, destituídos do matrimônio – afinal, desandou seu interesse no marido Mário (Ivan Setta) no momento em que saíram recém-casados da igreja. Mesmo quando tem vontade dele, ela sugere fazer amor num motel, num leito dessacralizado, maculado por outras centenas de amantes. Mário fortemente a repreende quando ela sugere a “escapadinha”; naturalmente porque, para ele, o casamento vinculou a união deles ao tipo ascético de Sagrado, atravessado pelo preciosismo material das ligações. Talvez seja possível, num antagonismo mais rústico, dizer que o catolicismo funciona para dentro, na contenção extrema do corpo para que o fundo da alma encontre o Sagrado fora do mundo; nesse mesmo raciocínio, a Umbanda funciona para fora, encontrando na intensidade do contato entre o corpo e o mundo a expansão do espírito.

E a força que atravessa Rita se faz visível em seu corpo quando fala: na contração do lábio superior que lhe arreganha as narinas, na grossura estilizada de sua voz. Uma afetação por vezes cômica, mas definitivamente sinal de uma perturbação. Uma perturbação que provoca seu corpo para além das relações “que estão aí”, as já dadas ou impostas pela dinâmica social. No meio de uma crise nervosa, ofegante na cama, o som de um berimbau prenuncia uma sequência onírica em que transa com um operário de construção sobre a terra da obra enquanto o marido assiste ao longe, com semblante plácido e o braço estirado em sua direção (quase como Maria vendo o filho na cruz, impotente). Mais tarde no filme, já fora do sonho, ela flerta com esse mesmo operário deixando cair um caderno no canteiro da obra que ele cava. Ela o encara de cima: um close contra-plongée que se aproxima em zoom em direção a seus olhos. O contraplano do homem é um plongée parado. A provocação está na inversão e manutenção do sujeito-objeto do olhar: desta vez, a mulher que é sujeito da objetificação, mas é o corpo preto operário o objetificado pela mente branca. As pequenas subversões malandramente predatórias vão guiando o filme.

O primeiro amante da protagonista é o padeiro do título, Marques (brilhantemente patético na mão de Paulo César Pereio), um português de posses, que, ironicamente, com todo seu poder aquisitivo, é secundário e descartado na trama. Cafajeste que tira fotos escondido do sexo com as parceiras para se gabar depois na padaria, acaba se apaixonando por Rita, que não gostou da transa. Ela, por sua vez, prefere se aproximar do artista preto de rua Saul (Haroldo de Oliveira) – o que faz o padeiro de amante a corno. Uma dicotomia muito clara: o rico, branco, metido a besta, descendente de colonizador; o pobre, preto, de força filosófico-estética, descendente de povo escravizado, sem camisa pela maior parte do filme. Marques é só mais mais do mesmo, mas “fora” do matrimônio (não à toa, tentará usar da lei para se vingar do desinteresse da amante); Saul[2], para nossa (anti?)heroína, traz potência de vida, de criação, é sinônimo de possibilidade. Ressentido, o portuga manda as fotos de sua tarde com Rita para Mário, e contrata um advogado abutre especialista em flagrante de adultério (na época, contra a lei).

O ato final, exatamente a tentativa desse flagrante, é onde a comédia escolhe o rumo do absurdo – e é tanto simbólico como presságio da conclusão não conclusiva que ele seja introduzido pelo cruzamento entre um enterro e um bloco de carnaval no meio da rua. O padeiro, os comparsas do padeiro, o marido corno e o advogado sacana puxam as duas multidões (pois o povo adora uma confusão) para aumentar o número de testemunhas em volta da casa. Uma banda hippie psicodélica é aproveitada para criar clima para o casal adúltero. Sem saber do fuzuê, Saul e Rita conversam e encenam o assassinato e suicídio do Othello de Shakespeare. Nisso, espalha-se a palavra de que ela foi morta e o amante se matou. Mas depois vê-se que estão transando. Saul percebe bem na hora e, quando entram, ele está fingindo incorporar Exu: fumando charuto, de traje preto e vermelho (as cores do orixá e, ironicamente, do Flamengo, em contraponto à enorme bandeira do Vasco da Gama na casa de campo do padeiro). O bloco de carnaval, da fachada da casa, começa o batuque: “Olha Pomba Girê, Olha Pomba Gira…” e todos, absolutamente todos, começam a dançar em transe. Atrás do cavalo de Exu – o artista, é claro! -, Rita, incorporando uma Pomba Gira, ri fumando charuto. Com isso o filme nos presenteia: o atravessar entrópico de todos os seus núcleos, a implosão que termina na suspensão de toda norma, e também de todo conflito. Qualquer conclusão ou ponto final seria uma lição de moral, e Onofre não poderia querer menos algo do que isto. As estradas se cruzaram, mas você que escolha o teu caminho na encruzilhada.


[1] RUFINO, Luiz. “PERFORMANCES AFRO-DIASPÓRICAS E DECOLONIALIDADE: O SABER CORPORAL A PARTIR DE EXU E SUAS ENCRUZILHADAS”. Revista Antorpofágica, 11 Abr. 2022. O conceito de Exú pelo qual me alimento neste texto é o norteador do artigo citado, associando-o aos potenciais decoloniais de liberar o corpo no mundo pela arte e pela performance em desafio das relações já impostas, pré-estabelecidas pela sociedade. Rufino formula seu pensamento a partir de suas experiências nos terreiros da nação Ketu.

[2] Curiosidade: seu nome vem do hebraico Chaul: “pedido a Deus”, “conseguido por meio de orações”.

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