Dois filmes necrófilos

Por João Pedro Faro

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Como olhar para os nossos mortos? Não parece existir possibilidade de registro do cadáver que não perpasse por uma profunda relação entre o objeto morto e o objeto vivo que o registra. A integridade existencial de ambos está em xeque, em estados opostos do espectro consciente. Na ambiguidade dessa relação intrínseca a esse registro é costume que predomine uma certa fixação do olho vivo pelo corpo morto, e há de se perceber que essa fixação corresponde a uma percepção do tempo, uma forma de se relacionar com a presente inevitabilidade da putrefação futura. Os limites dessa incisão visual se tornam questões de caráter transcendental e, não raramente, parafílico.

Ao astronauta apaixonado de Força Sinistra (1985), nada lhe soa mais perfeito que o corpo humanoide preso à cripta de cristal que ele e os tripulantes de sua nave resgataram no espaço. A alienígena assume formas femininas moldadas diretamente de seu subconsciente, vinda de uma espécie vampírica capaz de transmutar seu corpo monstruoso em qualquer que seja o desejo de sua presa. Mesmo morbidamente petrificado, seu corpo perfeito emana energias vívidas. O cadáver é capaz de deixar o astronauta em uma magnética hipnose, assumindo totalmente seus pensamentos, fazendo-o acreditar que o deseja da mesma forma. Tobe Hooper enquadra os momentos iniciais entre os dois como um amor absolutamente etéreo, como se o olhar do astronauta que repousa sobre a morta fosse uma espécie de convite à eternidade. O encontro definitivo dos dois, onde o astronauta finalmente se entrega à sua insuportável obsessão pelo ato necrófilo, desencadeará no embate entre os mortos-vivos cósmicos e toda a humanidade, que não será nada além de uma destrutiva histeria sexual epidêmica.

Os mortos-vivos alienígenas se alimentam do gesto vampírico de sucção da força vital do outro. Em campos energéticos próprios, esses corpos viventes transformam a sua presa em uma carne estragada, cadáveres secos, desesperados por qualquer energia que possa lhes restabelecer uma fisicalidade digna. Mais do que isso, estão instigados pelo prazer inerente às descargas elétricas pulsantes, que poderão lhes trazer energia e relegar o outro a uma múmia. Uma vítima descreve a sensação de ter sua força vital sugada como “a experiência mais esmagadoramente sexual e horrível” de sua vida.

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Enquanto a descida da alienígena, em sua mutação física para uma fantasia sexual viva, traz à terra uma epidemia de vampirismo, onde cada vítima tomada pela falta de força vital corre atrás das pulsões sexuais enérgicas que restituirão seu corpo de prazer, o astronauta continua a sonhar com ela. O desejo não se esvai, nem em meio ao apocalipse. Pelo contrário, quanto mais a humanidade é dominada pelos alienígenas vampíricos, maior é a necessidade do astronauta em reencontrar o cadáver que ama. Escondida na cripta de uma catedral, ela o aguarda, em um canal direto com sua nave-mãe, responsável por resguardar parte da energia vital sugada dos humanos. É o palco para o sexo perfeito.

Nus, em cima de um túmulo, o astronauta e a vampira estão juntos novamente. Em uma rara brecha de seu transe, ele enfia uma estaca no coração dela, destruindo a existência morta-viva. Nesse gesto, ocorre a tão sonhada penetração. Juntos ascendem ao espaço pelo canal da nave-mãe, com a estaca penetrada em sua carne e os olhares encontrados. A humanidade está salva, e o astronauta conseguiu transar com sua morta. Um dos personagens explica anteriormente: “a força vital se mantém em todas as coisas, mesmo no pós-vida”. Portanto, fica claro que, para Hooper, não há nenhum prazer espiritual no pós-vida que nos é oferecido, pois ele é gerado e mantido por tudo que é carnal. Estejam os corpos apodrecidos ou cheios de vitalidade e volúpia, ambos caminham para um além movido pelo desejo devorador de um lascivo centro de energia primordial. Não há espírito, apenas a carne, o sexo e a energia gerada entre esses dois.

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É possível que o oferecimento de um pós-vida esteja entre os motores da lente de Stan Brakhage, em O ato de ver com os próprios olhos (1971). Ao levar uma câmera para um necrotério, o cineasta exibe planos de precisão caótica: os cadáveres anônimos, estendidos em macas, têm sua carne manipulada de todas as formas pelos patologistas. A carne rígida é aberta, revirada, seus órgãos expostos e fatiados, sua pele removida, dobrada. O processo é assistido em uma aproximação de teores tanto enervantes (o corpo morto é levado aos limites de suas capacidades físicas) quanto meditativos. Está aí a precisão do caótico, quando Brakhage consegue repousar diante do grotesco, compreendê-lo através do lúdico. Lúdico porque há, em todo o cinema de Brakhage, a curiosidade pelo possível, uma busca constante em ver e perceber como as coisas que são de uma forma podem vir a se tornar de outra, formas deformadas, amorfas, mas ainda formas. Novas ao olho.

Então, quando fixa o olhar sobre o corpo em autópsia, quando se propõe a ver a mudança das formas rígidas da pele cadavérica serem abertas, dando lugar às maleáveis e rubras formações internas, os órgãos reluzentes e carnudos, o que prevalece é o desejo por ver o que está formado transformando-se em outra formação. Quando se abre um crânio, a pele da parte de trás da cabeça dobra para cima do rosto, que abre espaço para a remoção de um cérebro. O cérebro, suas rugas profundas, reluz, banhado em sangue, movendo-se nas mãos ativas de um médico. Quando é retirado por completo, Brakhage foca no interior do crânio vazio, suas concavidades à mostra, o branco de seu osso marcado pelas profundidades desenhadas. As formas se modificam, e há um interesse muitíssimo objetivo em focar em seus desdobramentos.

Não há qualquer som no filme. O silêncio é uma forte trilha sonora, é parte do que faz Brakhage ter uma imersão tão intensa e metódica na procura pelas formas. Quando sua lente enquadra as profundezas das tripas de algum cadáver, ou quando percorre as extensões dos corpos embalsamados, é tarefa da luz incidente sobre esses objetos de foco preencher o ritmo das imagens. Nas escuras redondezas de um plano, o que define o tempo de permanência em determinada imagem é justamente a iluminação que a permite ser vista. Seja na luz amarelada que revela uma mão petrificada, ou na luz vermelha que guarda os corpos já explorados, o jogo está nas linhas que se formam pelas superfícies (ou, nesse caso, pelos interiores) e que permitem que aquelas imagens sejam vistas.

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A fixação do olhar no cadáver garante os registros das transformações de suas formas, e estas, impostas pelo vivo (os médicos e suas mãos que tocam e recortam os corpos), são o cerne do desejo do olho. Ao vermos um torso sendo aberto, a caixa torácica raspada por uma espátula, os órgãos manuseados e expelidos pelo outro, existe uma incapacidade por parte da câmera de desviar o quadro. Em sua intensa aproximação dos cadáveres, não resta pulsão além da vontade de continuar a olhar, de ver mais possibilidades do interno, da faca cirúrgica, das tripas, pois não há nada que se aproxime tanto da transcendência quanto perceber, pelo outro, intimidades físicas de nossas entranhas.

O vivo interessa apenas como contraste, nunca como existência particular. Quando, nos planos finais, Brakhage filma um médico idoso, de gravata borboleta e caneta no jaleco, não conseguimos associá-lo aos sensoriais eventos e efeitos que foram expostos nas vívidas capacidades do corpo morto. Não pensamos o vivo como dominante, apenas como complemento necessário para que todo o resto seja visto.

Invejamos os mortos. Sua rigidez, a pose eterna imutável – só lhe resta ser manipulada pelos cortes e aberturas. Seus corpos são capazes de assumir formas sem que nada os impeça, sem que algo tão primário quanto a dor interrompa o processo. A irreversibilidade de cada gesto que lhes é imposto, quando seus intestinos são recortados ou quando suas cabeças são partidas ao meio, não é nada para eles. A falta de consciência os engrandece, não há limites para a exploração da sua carne, estão prontos para revelar os interiores que conviveram a vida inteira sem expor.

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Diferente dos cadáveres do filme de Hooper, que emanam sexo a todo momento com sua energia vital, os corpos em autópsia no filme de Brakhage são instrumentos do erotismo enquanto desejo por possibilidades antes impossíveis. A maior capacidade da carne morta, na mais áurea das luzes que fazem com que o registro na película aconteça, é estar disposta a qualquer imposição. É essa sua liberdade, sua nova forma de vida, e é o ato de ver, com os próprios olhos, a tão desejada disposição do corpo em ser qualquer outra coisa além do que já foi.

Ambos os cineastas dispõem a câmera diante das possibilidades de formulação do grotesco. Enquanto a carne, em Hooper, está sempre disposta à violação, tanto imagética quanto dramaturgicamente, Brakhage aguarda que a violação aconteça, que seja capturada pelo registro. O desejo dos autores pela expansão das capacidades do físico encontra lugar cativo no cadáver: é nele que as possibilidades das formas grotescas são fomentadas e cultivadas.

Nas tripas expostas, nada deixará de se mover ou de reluzir. Penetramos, rumo ao registro do que vemos, por incursões intensas pelos putrefatos. O que o cadáver diz sobre nosso estado futuro, nossa existência final, é tão provocante ao tempo do agora, que sua mera petrificação, exposta diante do olhar, já é o bastante para que o magnetismo consequente de sua presença leve à fixação por tudo que ainda somos capazes de ver. Então, a questão já não é mais sobre como olhamos para os mortos, e sim como fazemos para parar de encará-los o tempo inteiro.

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Nas antípodas da paixão: o ser como instância de modulação

Por Luís Flores

Um plano em close-up nos mostra a tela de um jogo pornô, com escala de cores simplificada, na qual um homem penetra uma mulher por trás. Para simular o ato sexual, o jogo se vale de uma pequena fração da ação replicada infinitamente, em loop digital. Corte para um braço mecânico, na forma de rolo gigante, que testa a qualidade de um colchão recém-fabricado. Corte para o garoto que controla, no primeiro-plano, um joystick em formato fálico, enquanto no fundo do quadro vemos o mesmo computador com o jogo pornô. Os movimentos repetitivos e velozes do jogador adquirem uma gestualidade masturbatória, embora a relação corporal e intersubjetiva do sexo tenha sido abstraída pela mediação da máquina. O que essa combinação de imagens nos diz?

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   A sequência descrita corresponde à abertura de Como viver na RFA (Leben — BRD, 1990), gravado em 1989 pelo cineasta Harun Farocki, logo às vésperas do processo de reunificação da Alemanha. No restante da narrativa, vemos a malha fina de instituições que governam, por meio de fluxos ininterruptos de modulação, cada esfera da vida cotidiana no país. Ao reunir cenas pedagógicas distintas, de cursos instrucionais, treinamentos, sessões de terapia e testes de produtos, o filme expressa a tendência à vida simulada e continuamente doutrinada que rege as relações sociais de um mundo tomado pelo neoliberalismo. A cena do colchão, que remete a outros testes industriais mostrados (a poltrona e a máquina de lavar), ecoa também nas pessoas que são submetidas a contínuos treinamentos e procedimentos de padronização. Não seria essa, afinal, uma das dimensões mais totalizantes da vida, sob o domínio do capitalismo tardio, esse que atravessou, desde a queda do Muro de Berlim, mutações mercantis e tecnológicas ainda mais complexas? Como se o mundo fosse, em sua configuração midiática abrangente, uma instância de preenchimento, com estímulos infinitos, para cada necessidade básica de um indivíduo?

    Farocki, que fez parte da militância estudantil da década de 1960, em Berlim Ocidental, estabeleceu ao longo dos anos um projeto sistemático de mapeamento cognitivo das ordenações tecnológicas do mundo, especialmente aquelas que atravessam o campo do olhar. Sua filmografia pode ser entendida como o esforço de compreender criticamente os dispositivos e processos que condicionam a própria possibilidade de ser e agir no mundo. Para isso, ele organiza, a partir da década de 1980, duas frentes principais de trabalho: a observação incansável da realidade, no intuito de apreender alguns aspectos imperceptíveis da sociedade pós-moderna; e a remontagem crítica das imagens do mundo (poderíamos dizer, ensaística).

    Como viver na RFA, embora guarde algo da forma do ensaio (por expor as imagens em encadeamentos argumentativos), pode ser situado entre os chamados filmes de observação. Trata-se de um conjunto significativo de obras, produzidas entre 1982 e 2013, que se debruçam sobre situações sem interesse cinematográfico explícito, seja pela escassez de oportunidades de drama, pela dificuldade de condensação do tempo ou pelo elevado grau de padronização. São filmes como Uma imagem (Ein bild, 1983) e Natureza morta (Stilleben, 1987), que observam processos de fabricação de fotografias publicitárias (da Playboy alemã, no primeiro caso, e de estúdios de propaganda, no segundo); O treinamento (Die Schulung, 1987), O que há? (Was ist los?, 1991), O re-treinamento (Die Umschulung, 1994) e A entrevista (Die Bewerbung, 1997), que mostram, assim como Como viver na RFA, dinâmicas de adestramento dos sujeitos no universo corporativo; A aparência (Der Auftritt, 1996), Os construtores dos mundos das compras (Die Schöpfer der Einkaufswelten, 2001),  Não sem risco (Nicht ohne Risiko, 2004), Um novo produto (Ein neues Produkt, 2012) e Arquitetos Sauerbruch Hutton (Sauerbruch Hutton Architekten, 2013), filmes que mostram, de maneira geral, reuniões de negociação e de tomada de decisão, no circuito econômico da produção global.

    O que fica explícito, no conjunto, é o desejo do diretor de investigar a existência, nos dispositivos contemporâneos, de novas modalidades de controle dos sujeitos e de padronização do mundo, que se pautam principalmente pela antecipação dos gestos e desejos (algo que ocorre, é claro, em múltiplas e intrincadas camadas). Tal dimensão operativa ou performativa — no sentido basilar do termo, a maneira como a linguagem é manuseada para padronizar determinados efeitos — corresponde a uma quebra dos modelos concentracionários filmadas por um documentarista como Wiseman (e estudadas por Farocki na fábrica e na prisão). Em Como viver na RFA, assim como nos filmes de treinamento corporativo, há uma primeira operação de suspensão tácita da negatividade por parte do cineasta, a fim de que ele possa assumir como válido o sistema observado e enfrentá-lo em uma relação imanente. Num segundo momento, contudo, que envolve a emulação formal desse mesmo sistema, as contradições do objeto começam a aparecer. A observação prolongada, associada às ilações sutis da montagem, mostram como a pedagogia corporativa, que pretende ensinar as pessoas a agirem da maneira desejada em cada situação, acaba por se tornar um trabalho de assimilação que violenta o próprio eu do sujeito.

    O sujeito é atacado, justamente, nas suas posições de singularidade, pois é toda a sua subjetividade que deve ser adestrada para melhor se adequar a um sistema de produção global. Nada mostra melhor isso do que a própria sequência de créditos de O treinamento: junto à trilha musical estranha, vemos uma imagem computacional de formas humanóides alaranjadas, sem diferenciações entre si, que caminham em meio à paisagem desertificada. É uma metáfora perfeita para a dinâmica de padronização do universo corporativo agenciada pelo instrutor — mas não uma metáfora qualquer, pois ela mobiliza justamente uma imagem sintética, pautada pela lógica da simulação realista. O que vemos surgir em filmes como esse, incluindo Como viver na RFA, é um cerceamento constante das manifestações de vida do sujeito, sobretudo ali onde elas escapam aos diagramas instituídos pela razão instrumental. A ordenação totalizante do mundo, em suas redes de processos e circuitos técnicos (que não deixam de ser os da arte), encarrega-se de podar cada indivíduo daquilo que, nele, constitui um transbordamento — podar, ou, então, capturar e canalizar para outro lugar.

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    Esse outro lugar, cabe dizer brevemente, é a esfera do consumo. Não basta ao capitalismo avançado se apossar até mesmo das horas de sono dos sujeitos contemporâneos: para o sistema dominante, essa posse precisa ser rentável. Em dois dos filmes que citei antes, vemos maneiras usadas pelas corporações atuais, apoiadas por agências de propaganda e por pesquisas científicas de ponta, para medir e prever cada mínimo movimento dos circuitos de desejo. Em determinado momento de O que há?, por exemplo, um espectador (que parece ser o próprio Farocki), com a mão estendida ironicamente para a tela, tem seus níveis de estímulo medidos por meio de eletrodos, ao assistir trechos de comerciais televisivos. A voz do diretor oferece uma interpretação aberta para o gráfico das medições, que vai surgindo por cima das imagens mostradas na tela. As imagens, destinadas a exibir e vender produtos, delineiam as representações desses produtos com base em instrumentos sofisticados de exame neurológico, a fim de canalizar, no nível mais imediato, os desejos e as emoções dos consumidores em potencial.

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    Em Os criadores dos mundos das compras, por sua vez, vemos como os shoppings são arquitetados com base em aparelhos exaustivos de medição e controle: um deles rastreia os impulsos do olhar dos sujeitos; outro contabiliza o tráfego de pessoas por cada região do território; um terceiro, ainda, analisa automaticamente perfis de consumo, a fim de otimizar a distribuição dos produtos no supermercado. Para aumentar a compreensão crítica do sistema, Farocki chega até mesmo a entrevistar o analista de sistemas responsável pelo software que examina os perfis de consumo do supermercado. Todo o resto, desde os pacotes temáticos da praça de alimentação até a concepção estética do edifício, torna-se secundário diante dessa codificação incessante do mundo, sob a forma de dados programáveis. Por meio das articulações da montagem, que ligam, dentre outras coisas, os registros das conversas dos arquitetos e executivos, aos softwares de medição, Farocki introduz fissuras de reflexão crítica ao planejamento do mundo para fins de consumo. Vai sem dizer, todavia, que esses problemas basilares da arquitetura e da esfera de produção global são indissociáveis, na atualidade, dos próprios circuitos e espaços de circulação da arte. (A arte que é, sem dúvida, um dos poucos campos que ainda pode restituir ao ser no mundo alguma dose de intensidade passional).
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Se nos deslocarmos novamente ao universo do trabalho, cabe apontar que Farocki se preocupou frequentemente, em especial até o final dos anos 1970, em filmar o gesto do trabalhador na fábrica e em representar os espaços da produção industrial. Nas décadas de 1980 e 1990, ele ainda aborda essa temática, mostrando o processo de ocultamento do trabalho e de expurgação da figura do operário, decorrente grosso modo dos avanços tecnológicos das máquinas. A partir desse ponto, também, os problemas marxistas de alienação e exploração, bem como o modelo disciplinar da fábrica e da prisão, são recobertos labirinticamente pelos princípios da “economia criativa” que diluem, com suas novas práticas de modulação subjetiva e ordenação do tempo, as fronteiras entre a vida e o trabalho. (Onde foi parar, afinal, o louvável direito à preguiça que era defendido com tanto brilho por Lafargue, cem anos antes?).

    Ao mesmo tempo, Farocki explicita em seus filmes o modo como a própria subjetividade é capturada sistematicamente, por meio de estratégias de controle e medição, no circuito totalizante da produção e do consumo global. Nesse contexto, o campo de manifestações passionais do sujeito se torna cada vez mais limitado; a paixão resta empobrecida, enfraquecida, adestrada, perde justamente o caráter de excesso que a caracterizaria. Resta, é claro, o desassujeitamento do sujeito, conclamado por Foucault, a inservidão voluntária, ou então o retorno ao singular da experiência e ao cosmológico, ao mundo propriamente dito. Mas e a paixão? Terá ela forças de interromper o movimento de uma racionalização que deseja, sob as diversas modalidades da técnica, tomar posse do mundo, em sua totalidade? Guardando, sobre isso, mais dúvidas do que respostas (e tentando fazer rima com os escritórios filmados por Farocki, espaços sufocados, pouco propícios à paixão), opto por terminar este ensaio com uma coleção de imagens incontidas, com gestos de revolta, desobediência e insatisfação: https://www.youtube.com/watch?v=aD4thXRn80M

 

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Nomad à deriva e o corpo como utopia

Por Beatriz Pôssa

The secret life of Arabia
Never here, never seen
Secret life, evergreen
(The secret life of Arabia, 1977; David Bowie)

Nomad (1982, Patrick Tam) se inicia quase como um pastelão, nos apresentando os irmãos Louis e Kathy e seus respectivos interesses amorosos, Tomato, Pong e Shinsuke, através de situações cômicas, como uma confusão numa piscina pública e num restaurante. Todos os personagens são levados um ao outro por jogos do acaso, uma faceta de leveza que perdura por quase todo o filme até que há um corte brutal em seus últimos minutos. Se podemos classificar um filme como adolescente, sua primeira hora me parece um bom exemplo devido à atmosfera de imediatismo e desejo por liberdade, em que suas paixões são o ponto central de suas vidas. Há uma pulsão muito juvenil que rege os quatro personagens em suas escolhas afetivas, pulsão esta que combina suas aspirações burguesas de amplas mansões a um senso compartilhado de entitlement, como se o mundo estivesse ao dispor de suas vontades. Esse sentimento se estende até no ato de inventar um novo país, essa criação de uma utopia insular na segunda parte do filme, quando os personagens finalmente são confrontados pelo peso das tradições e a herança de conflitos milenares; tornando-se na meia hora final um derradeiro filme de samurai.

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O filme abre com Louis, personagem de Leslie Cheung, aqui com um dos seus papéis mais ingênuos, e seu olhar distraído se derrama sobre as paredes do quarto enquanto ouve a voz da mãe falecida em fitas velhas. Sobre o televisor de Louis, no qual está passando o que parece ser uma reportagem sobre uma festividade nas ruas de uma cidade anônima, reside uma miniatura de Nomad, o navio que protagoniza seus sonhos febris de partir para Arábia, a promessa de paraíso sussurrada pelos cômodos da grandiosa casa com vista para o oceano que divide com sua irmã Kathy e a madrasta, por quem nutre um desejo secreto e a observa enquanto toma sol na varanda.

Kathy invade seu quarto praticando o kabuki, uma modalidade de teatro japonês que demonstra ter aprendido com o namorado, e lembranças de momentos íntimos com o amante atravessam rapidamente a tela, seus gestos ritualísticos ricos de uma dramaticidade única. Louis assiste a irmã recostado na parede e dois dos mais importantes álbuns de David Bowie emanam de sua cabeça como um halo: Low (1977) e “Heroes” (1977), os dois primeiros discos da trilogia de Berlim, conhecida como a fase mais experimental de Bowie – em um só plano as influências culturais são postas em confronto. A relação de Bowie com a Berlim Ocidental foi intensa para dizer o mínimo, e os álbuns produzidos durante esse período dialogavam com o complicado momento político na Alemanha durante a Guerra Fria. Consequentemente, sua trilogia, que finaliza com Lodger (1979), conversa com a juventude alemã que efervescia com uma arte absolutamente disruptiva de meados dos anos 70 ao mesmo tempo que estava fisicamente dividida, uma oposição ao desejo simbólico e simplesmente físico de constituir um só grande ser, um anseio sessentista sob os ares da Era de Aquário.

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Bowie talvez seja o maior exemplo de uma geração resultante da revolução sexual, sua obra e sua pessoa agindo como um catalisador das mudanças que ainda seriam experienciadas pelo mundo, concebendo uma música embebida em experimentações andróginas com um grande apetite pela liberdade. Os álbuns produzidos no período em que residiu em Berlim evocam muito desse sentimento compartilhado: era uma tentativa de encontrar na música alguma resposta, ou no mínimo um refúgio, para os conflitos políticos e sociais vividos naquelas décadas. Aliado a isso, havia por trás da criação de diferentes personagens que caracterizariam sua carreira um desejo de se modular multiplicidades, buscando a transfiguração do corpo em uma experiência artística e utópica. Sua obra traz um um reflexo da necessidade dos jovens da época pela formação de um organismo, alguma configuração de agrupamento que oferecesse conforto para que fosse possível explorar a fluidez de suas paixões.

A presença de Bowie na paleta de referências de Louis é interessante porque demonstra o desejo de Tam em retratar uma comunidade que busca o prazer sensorial e espacial, ou seja, dimensões que dizem respeito acima de tudo ao corpo. Uma das sequências mais potentes de Nomad é justamente a que evidencia uma impossibilidade do encontro romântico entre Pong e Kathy, que se inicia com as repetidas interrupções na casa de Pong. O plano de ficar a sós é arquitetado perfeitamente: Pong manda a irmã e a mãe para o cinema, mas não esperava ser atrapalhado pelo irmão mais novo e os idosos de sua família, que invadem a placidez da sala compartilhada. O casal trava daí uma coreografia extensa de troca de lugares, explorando o espaço da casa até esta se tornar pequena demais para seus desejos, o querer de ficarem juntos visível em seus gestos imprevisíveis e quase virginais no dividir da cama de solteiro. Quando mesmo na privacidade do quarto são incomodados, reiniciam o movimento e o jogo ao saírem de casa e entrarem no ônibus, a troca de olhares e beijos deliberada, levando ao momento do êxtase em que parecem não controlar mais os próprios corpos e se agarram até parecerem se fundir, e Tam dá ênfase a um plano da mão de Pong escorregando pelo corrimão enquanto carrega Kathy no colo.

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Essa coreografia apaixonada é cortada por Kathy recebendo a notícia de que Shinsuke, seu namorado, está de volta da guerra, retirando a mulher da bolha idílica em que parece viver durante a primeira parte do filme. Tam constrói a sequência como um momento final de filme de terror, os olhos de Kathy aterrorizados pela realidade que agora teria que enfrentar, tendo o homem que ama se tornado um desertor do exército japonês. Até aquele momento nenhum conflito real havia invadido o universo daqueles personagens, todos os desentendimentos resolvidos de maneira rápida e com graciosidade; e mesmo que nada de imediato aconteça com o grupo, nós como espectadores já reconhecemos os maus agouros e o filme assume ares premonitórios. Cada cena de beleza é permeada pela certeza de um acerto de contas, principalmente quando acessamos a verdade de Chiyoko, secretária de um designer de quem Louis é fã e amante da tia de Kathy; que tem a missão de certificar que Shinsuke irá cometer o seppuku.

Logo no título do filme e do navio-personagem, existe a evocação a povos andarilhos, sem residência fixa, que ultrapassam as fronteiras nacionais sempre em busca de horizontes mais promissores. É um desejo de se jogar ao desconhecido no reconhecimento de que fronteiras não passam de meros acordos tácitos entre as nações, linhas imaginárias responsáveis por acolher uns e expulsar outros. Há em Nomad um comentário categórico tanto sobre a influência ocidental quanto a japonesa que pareciam contaminar a vida da juventude honkongiana do início da década de 80 – como o que hoje analisamos como uma faceta do processo assimilatório da globalização – evidenciando até mesmo o olhar muito mais crítico sobre a “invasão cultural” japonesa do que à presença ocidental, principalmente na relação travada entre Pong e Shinsuke. A herança do conflito sino-japonês é articulada no filme como uma disputa de língua e masculinidade, e as influências japonesas no geral são vistas com maus olhos devido ao passado colonialista do arquipélago.

A partir do retorno de Shinsuke, os personagens decidem recomeçar e inventar um espaço em que seria possível viverem suas paixões e dedicarem suas vidas aos interesses do corpo apenas, o anseio de partirem para Arábia como uma meta mais próxima do que antes, pois agora existe algo material, um inimigo claro, que os empurra para fora do berço. O refúgio em um casebre litorâneo se torna uma utopia multicultural, e com ingenuidade acreditam realmente que assim vão escapar do destino que bate à porta. O navio, Nomad, corta o horizonte, um ponto fixo na paisagem, e Kathy vive uma vida dupla ao se encontrar com os amigos na ilha e o taciturno Shinsuke no navio. É lá que confessa a Shinsuke que gosta de Pong porque com ele não precisa pensar, “é físico, só físico”.

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Uma sessão dupla interessante seria assistir Nomad ao lado de O Império do Desejo (1981, Carlos Reichenbach). Ambos os filmes possuem o movimento de explorar as paixões e a sexualidade em uma realidade ilusória na praia, apenas para serem atravessados pela violência e uma brutalidade que não abre brechas para fuga pois encontra os personagens completamente desprevenidos e entregues ao prazer momentâneo. Em um interlúdio dos jovens na praia, vivendo das “coisas simples” como o imaginário burguês idealiza ao compartilharem almoços e camas naquela comunidade recém-criada, aprendemos que Tomato e Louis estão esperando um filho, um gosto do amadurecimento porvir. Shinsuke está entocado no navio distante da areia, excluído e deprimido, seu destino torpe amaldiçoando a alegria daquela nova experiência, mas os sonhos com sua execução contaminam apenas seus próprios pensamentos – os casais na praia não interrompem a oportunidade de viverem uma felicidade efêmera pela certeza da fatalidade iminente. Enquanto descansam sob o sol e compartilham uma garrafa d’água, Tomato reclama do tédio e diz “não fazemos nada para a sociedade”, ao que Louis responde “que sociedade? Nós somos a sociedade.

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Em poucos minutos, Chiyoko, que até então havia se revelado de maneira apenas submissa e dedicada para o grupo, reaparece para terminar seu trabalho. O banho de sangue que se dá em diante só salva o casal que está à espera de uma criança, a fertilidade como uma chance de redenção diante do indizível. Tam interpreta a paixão como um meio e um fim: não existe outra via de acesso ao paraíso além da entrega, a via crucis do corpo. Nomad abraça a potencialidade enganosa da utopia como artifício de uma juventude burguesa, explorando através dos seus corpos um atravessamento cultural que na mesma medida é veneno e cura. A realidade impetuosa que encerra a utopia também abandona os cadáveres na areia, e as águas manchadas de trauma lavam os corpos que ainda permanecem em pé. Nessa articulação complexa, o casal abraçado na praia está de encontro com a vida adulta, esse abismo; e Nomad, o navio à deriva, parte em direção à terra prometida.

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A paixão pelo poder de alguns encontros resplandecerem frente ao caos: Something Useful (Pelin Esmer, 2017)

Por Lucas Saturnino

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e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela

(Herberto Hélder)

O poeta Herberto Hélder leu algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão? O dom da consciência nos sujeita a tentar encontrar algum sentido para a vida e o fato da morte instiga balanços. Quem foi? O que fez? O que deixa ou leva? A sua iminência incontornável suscita medo, reflexão ou mesmo fascínio. Se o que a sucede é o maior dos mistérios, talvez só haja uma certeza quanto ao prolongamento da vida após a morte: além do tácito testemunho do mundo, a permanência dos que partem na memória dos que ficam.

O encontro de três pessoas que porventura jamais se encontrariam é o mote de Something Useful (İşe Yarar Bir Şey, 2017), da cineasta turca Pelin Esmer. Na estação de trem, duas mulheres cruzam-se por acaso, intromissão, simpatia, curiosidade genuína pelo outro e receptividade ao amparo oferecido. Com cerca de 40 anos, a advogada e poeta Leyla é duas décadas mais velha do que a enfermeira Canan. Elas se conhecem em diferentes estágios da vida, conquanto igualmente suspensas entre o dia em que nasceram e aquele em que irão morrer. Something Useful registra estados pendulares, acompanha almas em movimento, jornadas introspectivas que se entrelaçarão. O destino de uma é o presente do passado (a reunião comemorativa dos 25 anos de formatura da turma do secundário de Leyla), enquanto a outra tem um encontro marcado com a morte (a pedido de um médico que trabalha consigo, Canan se comprometeu a ajudar um homem que deseja morrer).

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O homem é Yavuz, que 6 anos antes sofreu um acidente e ficou paralisado, sem os movimentos do pescoço para baixo. Ele havia pedido a um amigo íntimo, o médico com quem trabalha Canan, que o deixasse morrer, mas seu amigo, por amá-lo tanto, foi incapaz de realizar a eutanásia com as próprias mãos. Após muita insistência, e sentindo a firmeza da resolução de Yavuz, ele consentiu em arrumar outra pessoa que pudesse consumar o pedido fúnebre — uma jovem enfermeira precisando de dinheiro. No trem que atravessa o país e a noite, Canan conta a história a Leyla, que se propõe a acompanhá-la.

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A narrativa é sucinta e precisa — e as encruzilhadas existenciais se colocam sem alarde. São três personagens cujo encontro os deixa profundamente afetados uns pelos outros e Esmer estrutura a obra em torno das reações dos atores principais (Basak Köklükaya, Öykü Karayel e Yigit Özsener, magistrais). A câmera muito próxima e atenta às suas expressões faciais, sensíveis e eloquentes. Aos sorrisos gentis de Köklükaya, à perceptível aflição de Karayel e aos olhos penetrantes de Özsener. Um filme fora de moda? Talvez, o que pode explicar o pouco espaço que lhe foi concedido no circuito de festivais.

A câmera procura gestos mundanos. Como Leyla esperando na fila do banheiro ou pedindo passagem para sair do seu lugar no trem e a senhora ao lado se espremendo no assento sem se levantar. Ou a dificuldade das personagens em chamar um táxi. Quando as duas chegam na porta do prédio de Yavuz, são necessários 4 minutos de filme (entre hesitações e campainhas) até que a primeira suba e entre no apartamento. O trabalho do diretor de fotografia Gökhan Tiryaki (conhecido por sua colaboração com Nuri Bilge Ceylan) é digno de destaque, em especial no tocante à viagem de trem, à captura dos humores refletidos gestualmente e ao jogo visual e simbólico com espelhos e reflexos.

É belo o momento em que Yavuz vê Leyla pela primeira vez: “Eu me irei com a benção de uma poeta!”. Leyla, sentindo-se subitamente insegura ao encontrar-se diante do objeto de sua irrefreável curiosidade, observando do alto da janela a indeterminação de Canan em subir, torcendo para não ser abandonada. E, logo em seguida, sendo acalmada pela encantadora música da vizinha, professora de violoncelo — a arte que, ao menos aqui, alivia as agonias e põe as angústias em perspectiva, perpetuando-se no tempo.

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Nesse filme sobre a morte, crenças religiosas não fazem parte da equação. Ninguém se importa com isso. Something Useful nos chega da Turquia secular — a segunda metade se passa em Izmir, uma das mais antigas cidades portuárias do Mediterrâneo. A presença da religião só se manifesta da maneira mais explícita quando o funcionário do trem fecha repentinamente as cortinas da janela de Leyla, interrompendo o fluxo de consciência dela, sob o pretexto de evitar que pedras sejam arremessadas no vidro — “Porque eu sou uma mulher bebendo cerveja?”, confronta-lhe a personagem.

E não é o seu único desgosto em relação ao estado das coisas: Leyla adora contar e ouvir histórias, mas é irredutível quanto a não dar moral para o político que entra no café pedindo votos; ela se levanta e deixa o estabelecimento antes que ele sequer tenha a oportunidade de abordá-la — o que explica a admiração da personagem pelos grafiteiros que, de modo rebelde, inscrevem a sua expressão subjetiva na paisagem do país.

Se há, portanto, uma dimensão, digamos, transcendental em Something Useful, ela está nas conversas que comovem, nos encontros que transformam, na afabilidade com que os personagens se abrem intimamente aos outros. O esquema cinematográfico operado por Esmer consiste em defrontar o registro dos gestos mais cotidianos com a perspectiva extasiante das conversas que trazem a possibilidade do sublime para um dia qualquer.

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Something Useful também é uma inventiva variação de Janela Indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954) — à exemplo do grande plano-sequência de 10 minutos do jantar comemorativo. Leyla e Yavuz observam o mundo através das janelas à sua frente, fronteiras mediadoras entre interiores e exteriores. A diferença entre um e outro é uma questão de mobilidade, que literalmente impõe um limite no horizonte de possibilidades de Yavuz, incapaz de ir atrás das histórias como faz Leyla. Ele não é mais capaz de exercitar a própria curiosidade. E ela, numa pequena gafe de sinceridade desmedida, afirma que perder a curiosidade equivaleria a estar morta.

Assim como James Stewart no clássico de Hitchcock, Yavuz se encontra imobilizado, mas pior: em caráter permanente. A sua janela, de frente para a socialmente estimulante movimentação da bela beira de mar de Izmir, foi o que lhe restou para seus olhos verem em primeira mão — “assistindo vidas saudáveis”. Leyla, ao contrário, está em constante deslocamento, observando as pessoas ao redor, divagando, especulando, fascinando-se — desde o início na estação, quando o desenho de som se abre dos pensamentos interiores que permeiam a mente dela para os murmúrios ambientes do mundo.

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A poeta, contudo, não sai por aí pescando histórias sem gerar tensão. Canan questiona as motivações de Leyla: “Uma jovem enfermeira precisando de dinheiro e um homem aleijado querendo morrer devem render um bom poema, não?”. Surge a questão entre eles: o artista instrumentaliza a curiosidade, as experiências, a compaixão? Voltemos ao primeiro plano do filme: no princípio, a encenação é frontal e mistura-se com a matéria bruta, sendo necessário um enquadramento para formalizar o ponto de vista desejado.

Leyla vai procurando as palavras, experimentando-as, podando o poema. “Você se inspira na vida real?”, pergunta Canan, enquanto as duas brincam de decifrar sombras no teto do quarto de hotel. Something Useful fala de morte para tratar da vida e reflete sobre ambas para debater arte. O cinema de Esmer é um cinema de personagens: Leyla, a poeta consagrada; e Yavuz, o leitor que não conseguiu estabelecer-se como autor. Ela trabalha como advogada, para pagar as contas e também porque queria fazer “algo de útil”. “A poesia não é útil o suficiente?”, rebate ele que, contemplando o próprio fim, se encarrega de deixar as contradições do ser com os vivos que continuarão a alimentá-las.

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Já Canan acredita não entender de poesia. Quem lida com a morte todos os dias não precisa ler sobre coisas fúnebres. Ela sonha em ser atriz, o que, nota-se, certamente não é tão útil quanto o trabalho de enfermeira. O filme tem como base a disposição dramática de dilemas acerca da célebre inutilidade da arte (chamemo-la só aparente ou não) e de qual proveito se tira de existir por existir. “O que eu faria no lugar deles?”, sentimos Leyla formular em pensamento, sem exprimir em voz alta, tal qual uma espectadora exemplar.

No belo poema da conclusão, Leyla escreve sobre “uma ansiedade que remonta à infância”, motivada por palavras que lhe tiram o sono desde a mais tenra idade, como que se referindo à dificuldade de se expressar, encontrar os termos adequados. Yavuz julga que Leyla costuma manejar as palavras para se esconder atrás delas. Mas não naquele momento, pois é justamente a franqueza que faz o encontro dos três ser mágico. E então viver se torna uma questão de prolongar as conversas que valem a pena.

“Hoje não bastou e amanhã você quer fazer algo útil de novo?”. Algo útil, afinal, talvez seja a paixão pelas coisas gerais, como escreve Hélder, ou a paixão pelo poder de alguns encontros resplandecerem frente ao caos, como mostra Esmer. Ao fim, antes que o lirismo inútil da música de Bach dê espaço aos sons ambientes da cidade em dia útil e as personagens voltem se mesclar com a multidão, Leyla lança aquele último olhar que se dedica a registrar uma memória derradeira do que virá a fenecer em instantes.

Como não temos acesso ao contracampo, esse olhar também se dirige a nós, incluindo-nos na conversa, confrontando-nos com as mesmas inquietações dos personagens. A morte, conceito tão intangível quanto concreto, é a epítome do que todos sabemos se tratar, sem que ninguém realmente compreenda o que representa. De qualquer forma, na expressão saudosa de Leyla transparece a sua resposta possível para aquela que é a questão decisiva em tributo à memória dos que partiram: sim, tinha paixão.

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Constelações: O cinema de Helga Fanderl

Por Gabriel Linhares Falcão

Pata por pata, um leopardo realiza seu desfile chegando bem perto da objetiva, e a objetiva chegando bem perto dele. Vai da direita para esquerda do quadro e retorna para o ponto de partida, realizando novamente o movimento repetidas vezes. Seu andar é sensual, sereno, quase flutuante, e seu corpo camufla-se no breu do espaço parcialmente iluminado. A luz forte revela também a terra com pedras que ele pisa, as plantas que o cercam, e nas sombras, barras de ferro de uma jaula que nunca entra em quadro. A câmera de Fanderl é segura, firme, também serena e sensual, e não demonstra nenhum sinal de amedrontamento com o predador diante da câmera.

O leopardo se revela cada vez mais concentrado. Anda em círculos e sempre olha para frente, sugerindo uma atormentação, possivelmente pela situação do encarceramento. O animal não mira sequer um instante para Fanderl e sua câmera. Apesar da inquietação, as eventualidades além da jaula parecem não o afetar. Tanto quanto o ambiente extra imagem não desestabiliza Fanderl, nem implica na unidade do filme; não há um mundo para além do pictórico na película, nem se quer a jaula importa. A concentração é total; existe apenas a diretora e o leopardo.

Leopard (Helga Fanderl, 2012)
Leopard (Helga Fanderl, 2012)

As cores escapam. Um amarelado que parece extrapolar a forma do animal, como pintado à mão, e o verde forte das poucas plantas reflete no pelo branco da parte inferior do leopardo. A cor de seus olhos parece uma mistura em aquarela de todos os tons que passam pelo quadro; em constante mutação a cada volta.

O animal com toda sua elegância parece aos poucos cansar. Suas piscadas vão pesando. O olhar concentrado está cada vez mais perdido, sem direção, apesar da retidão. A câmera de Fanderl gradativamente altera seu comportamento: há mais cortes e as imagens se fecham em diferentes partes do bicho. A alteração é sensitiva. Pouco a pouco a maneira de filmar se ajusta às intuições perceptivas do instante; uma comunhão cada vez mais íntima entre sujeito e objeto, regida pelo olhar de Fanderl. A única ordem imutável presente em todos os seus filmes é a montagem na câmera Super 8, que permite, nas palavras da diretora: “concentrar e mergulhar no fluxo do tempo, filmando, por assim dizer, tempos e eventos que acontecem no tempo, buscando o “gesto” que pudesse integrar a complexidade de tudo o que acontece no “aqui e agora” quando filmei e pela expressão da reciprocidade entre o que está acontecendo em mim e fora de mim.[1]

A maioria de seus filmes consiste em apenas um rolo de Super 8, com cerca de 3 minutos cada, e são exibidos publicamente em grupos organizados pela própria diretora, compondo uma obra maior. Seus filmes são registros diretos do presente e dos infinitos tempos contíguos nele. Um olhar atento que captura manifestações do instante explicitando as peculiaridades, como desenhos muito bem definidos, e por um acúmulo de gestos e tempos, elabora filmes densos em que todo contraste é evidente pela clareza das especificidades. O leopardo faz sempre o mesmo movimento no mesmo espaço, mas nos é revelado uma infinidade de detalhes que divergem, seja pela alteração do objetivo ou do subjetivo. A reciprocidade entre estes aumenta no decorrer do rolo, e as mais leves imprevisibilidades vão sendo impressas por Fanderl na película. Todo registro objetivo é também um registro da experiência sensível da diretora no mundo – este que parece desaparecer durante seus filmes.

Estamos sempre vendo pela primeira vez; tanto na unidade, neste processo de investigação minucioso do presente pela montagem na câmera, quanto nos filmes compostos, em que a organização das obras curtas sublinha ainda mais as especificidades de cada uma destas, criando um drama formal intenso por meio das discrepâncias. Em Konstellationen (2013)[2], por exemplo, são necessários seis filmes curtos em preto e branco para finalmente conhecermos as cores em Leopard (2012), sendo que estas, como já descritas, parecem escapar do domínio das formas esparramando-se pelas rápidas imagens; como uma evidência do processo físico natural em que a luz rebate nos objetos que toca antes de encontrar a lente da câmera. A cor também está nascendo diante de nossos olhos ainda inocentes.

Vemos o vegetal pela primeira vez em uma árvore seca e sombria, para em um fragmento posterior sermos apresentados às folhas coloridas já no chão.[3]

Vemos grandes estruturas metálicas, pela primeira vez artefatos feitos pelo humano, por meio do reflexo da água, para no mesmo fragmento a chuva dar fim a solidez imaginada.[4]

É comum a ocorrência de variações internas nos filmes de Fanderl, pequenas mudanças de configuração/comportamento decorrentes da intuição, do acaso e da experimentação de diferentes velocidades da Super 8. Em Bläter fliegen (2001), a diretora captura pássaros que se alimentam em uma árvore. O foco de captura são os animais, a câmera se movimenta preferencialmente pelo eixo e abusa do zoom para alcançar os ligeiros pássaros. Quando as aves vão embora e o foco se torna a árvore, a diretora começa a se movimentar ao redor para capturar diferentes ângulos. O tronco, que antes parecia firme ao chão assim como Fanderl, agora desliza levemente pela imagem como se flutuasse. Não só diferentes “tempos e eventos que acontecem no tempo”, mas também diferentes materialidades são descobertas nessa progressiva soma; o cinema de Fanderl não é regido pelas leis materialistas, pelo contrário, encontra suas próprias ordens cosmológicas pela principal evidência imaterial que nos é permitida: a experiência sensível.

Mesmo que sempre evite comparações[5], Helga Fanderl aproxima sua maneira de filmar (montagem na câmera, estruturação formal e rítmica no ato de filmagem, reciprocidade entre sujeito e objeto e risco elevado de erro por conta dos procedimentos adotados) à caligrafia zen:

Esse estado de espírito é muito intenso e excitante. É como se todas as condições mentais, emocionais e técnicas tivessem que ser percorridas e coincidirem na ideia de fazer um bom filme. Às vezes, esse tipo de filmagem é um gesto que me lembra a caligrafia zen. Não há possibilidade de corrigir e alterar. A obra revela o estado de espírito no momento de sua criação.” Helga Fanderl[6]

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Strom (2010)

 Impossível não cair no clichê de que é possível ouvir sons nos densos filmes silenciosos de Fanderl. Os demarcados contrastes que se ampliam de fragmento em fragmento, nos apresentam diferentes intensidades sensíveis e imaginativas, acumulando memórias de primeiros contatos neste mundo que começou no início da projeção. Em Konstellationen (2013), como não perceber o estrondo das cataratas do fragmento Strom (2010)? O contato é ainda mais chocante pois havíamos sido apresentados primeiramente ao silencioso nado da tartaruga em águas invisíveis aos nossos olhos em Aquarium (2009). O único indicativo pictórico de um registro aquático, além dos animais presentes, são algumas bolhas e características ondulações luminosas. Luz esta que se torna um privilégio do aquário comparado aos pássaros que se alimentam em uma árvore seca completamente negra contra o céu nublado no chapado Blätter fliegen (2001), de um preto e branco quase binário. Os fogos de artifício de uma Torre Eiffel vulcânica, em Feuerturm (2009), deixam rastros nos grãos da película que nenhuma luz natural vista até então ousaria rabiscar. Gradualmente conhecemos a luz a partir de polivalentes luzes; uma infinidade de haikus luminosos se formam nestes micromundos abertos. No fragmento final, encontramos em cataratas que habitam os céus, um milagre: em meio ao vapor que sobe da queda d’água, surge um arco-íris. Toda ação filmada retorna à luz.

[1] Em HAMLYN, Nick. Layers and Lattices: Films of Helga Fanderl, in Sequence, issue number 1,No.w.here Publications ISSN 2048-2167, 2010.

[2] Konstellationen é um projeto contínuo realizado pela diretora de 1992 até 2016, em que novos curtas eram adicionados. Este texto se baseia na versão de 2013 exibida no Festival Internacional de Cinema de Toronto 2013, que segue a seguinte ordem de curtas: Blätter fliegen (2001), Gasometer I (2010), New Hope I (1992), Aquarium (2009), Geburtstagsfeier (2004), Feuerturm (2009), Leopard (2012), Laub (2010), Rost (2010), Container (2011), Gläser (2011), Gelbe Blätter (2011), Strom (2010).

[3] Respectivamente, Bläter fliegen (2001) e Laub (2010)

[4] Gasometer I (2010)

[5] Fanderl, ex-aluna de Peter Kubelka e Robert Breer, revelou nos Extras do DVD Fragil(e), que “influências existem, mas não no sentido direto, mais indiretamente”. Continuando, cita Dziga Vertov (em especial Um Homem com uma Câmera), Jean Vigo (em especial À propos de Nice e L’Atalante), Gregory J. Markopoulos (em especial Ming Green, também montado inteiramente na câmera), Robert Beavers (em especial Work Done) e também Jonas Mekas.

[6] Entrevista com Helga Fanderl por Andrea Piccard, em Cinemascope nº 55

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Karioka – Takumã Kuikuro, 2014

Por Geo Abreu

“Takumã Kuikuro leaves his village in Alto-Xingu, Mato Grosso, with his wife and children, to live in Rio de Janeiro for a while”.[1]

Ta

Ku

Ti

Ü

Ka

Kagihutü / aʒiutˈ

Carioca / kaɾjˈɔkɐ /[2]

Imagens do Rio de Janeiro visto de Niterói, Praia de Icaraí, Museu de Arte Contemporânea, aeronave, Oscar Niemeyer. Das imagens conhecidas passamos a uma voz que preenche fortemente o vazio na tela, tomando a atenção.

A língua Kuikuro, do ramo Karib, vibra em materialidade e se impõe trilhando uma linha condutora entre nós e as imagens. A legenda que acompanha parece acessória a certa altura. Poderíamos prescindir dela? Na paisagem sonora do filme, além do barulho do mar e da música de Carlos Malta e da banda Pife Muderno, somos levados por uma cadência cuja mecânica necessita estalar a língua no céu da boca e compor fonemas em T e K, gerando palavras que ganham presença e se aproximam de nós como uma antiga canção de ninar, distante na memória, salva em algum lugar do corpo como arquivo.

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Tomada por esse dispositivo que crio na relação com o filme (e que me mantem alerta), sigo observando a cidade conhecida sendo descrita por um homem de sunga vermelha, sentado em algo muito baixo, em conversa com uma mulher, que é mãe e avó. Sorrio quando ela diz ter entendido o que significa kagihutü (G com som de R; T+U+trema soa como T+A+~; sílaba final forte; pegada gutural): pessoa que nasce na cidade do Rio de Janeiro.

Naquela conversa algo se revela sobre o termo que nomeia o filme e que eles apreendem como revelação dupla sobre a natureza mesma do lugar e de quem nasce lá. Será que a palavra carrega algo de força ou segredo compartilhado, encapsulado nesses fonemas, e por isso fascina tanto o cineasta e seus interlocutores? Entrevemos alguma relação com o movimento das águas doces, até porque Carioca Era um Rio[3] cuja nascente está esquecida em meio a esgoto e entulhos.

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No episódio sobre a estranheza da água salgada – que não lava e serve apenas para brincar -, um primo entra na conversa e traz para jogo a definição mais simbólica e distante do meu quadro de referências que já vi sobre a cidade: o Rio de Janeiro como cidade “colar de miçangas.”  Banhos de mar nos permitem acumular miçangas o suficiente e levá-las para casa. Essa ideia de acúmulo aponta o que exatamente? Memórias? Beleza? Algo conhecido que se aproxima como fricção entre a água arenosa e o sensorial das miçangas sobre a pele? Nenhuma das alternativas anteriores ou talvez todas elas: miçangas são feitas de diversos materiais como pedra, ossos, conchas, vidro[4]. Tentar a aproximação desse sistema cognitivo via conhecimento branco me leva a usar ferramentas ligadas à transcendência e me fazem cair sentada de bunda na areia.

Um tanto derrotada, desisto de acompanhar o relato audiovisual da viagem da família Kuikuro via banda sonora e retorno à prática das imagens em busca de algum sucesso em me aproximar de Takumã e sua câmera.

//Desplugo a cabeça oca do aparelho sonoro e ajusto as lentes.//

Ainda na conversa que nos conduz pelo filme, vemos mãe e filho falando sobre o ruído que existe na produção de imagens do Rio de Janeiro.  Uma defasagem produzida no confronto entre discurso jornalístico, via TV, e jogos de ficção. Entre noticiários e novelas, favelas, violência e tragédias se contrapõem às praias do Leblon e Ipanema, que parecem bonitas – e são mesmo, alguém sublinha, enquanto vemos crianças brincando na areia com o mar ao fundo. Mais uma vez os cariocas enquadrados entre as figuras de mar e morro.

A necessidade de produção de sentidos através de imagens, do entendimento dessa engenharia, leva Takumã ao Rio de Janeiro em companhia da esposa e dos filhos. Este curta é um trabalho seu de conclusão do curso de Montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

Num dos momentos mais poéticos do filme, nos afastamos da posição de importância de Takumã como cineasta Kuikuro e seguimos, via montagem, os pensamentos de sua filha, a menininha de rosto absorto e cabelos ao vento que, retornando à sua aldeia, mantém em lembrança os momentos de brincadeiras com adultos e crianças da cidade, o episódio com a música de Anitta, o banho de mar com os irmãos. E assim nos encontramos frente a um cineasta apenas, em exercício livre, treinando esta outra gramática que quer manejar. Selamos um pacto sem palavras.

A mediação que Takumã exerce abre frentes e lança no tabuleiro do jogo cinema outras chaves de interpretação do mundo via imagens e sons, trazendo para o cenário da encenação frente às câmeras sua mãe e irmãos, pai, avô, além da língua Kuikuro. Nesse exercício as forças parecem seguir duas linhas diferentes: numa, o cineasta que deve representar sua aldeia em circuitos de legitimação artística; noutra o simples aprendiz de ofício, aquele do olhar em formação, passível de erros e acertos, e sobretudo, livre para experimentar e criar formatos. No choque entre essas duas possibilidades alguns limites de ação se impõem a ele e sua câmera? Como produzir os desvios ou respiros?

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As escolhas estão com ele. De alguma forma, embalada pelo ritmo metálico e robusto das palavras em Kuikuro me vem a vontade de acompanhar sua trajetória e pensar sobre ela, elaborar estratégias de aproximação e distância em gestos bem conhecidos e naturais, como numa brincadeira, a que tentei produzir no começo do texto, quando o reconheci via audição como alguém tão próximo quanto um primo que eu não (ou)via há tempos.

[1] Sinopse do filme na plataforma Mubi.

[2] Transcrições fonéticas feitas via plataforma online. A biblioteca da ferramenta não possui a opção “kuikuro” como idioma.

[3] Carioca Era Um Rio, Filme de Simplício Neto. Rio de Janeiro, 2013. Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=Uzj-9m4ZYW

[4] Trecho retirado do verbete Miçanga na Wikipedia

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Atlantique (Mati Diop, 2019): paixões (des)possuídas

“Essa febre é um invasor noturno que atinge o paciente durante o sono profundo.
Ele pula da cama e corre para a ponte.
Lá, ele acredita ver além das ondas,
árvores, florestas, prados floridos.
Sua alegria explode em mil exclamações.
Ele sente o desejo mais ardente de fluir para dentro do oceano”

(Atlantiques, Mati Diop, 2009)

 

I – Despossessão

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As cenas iniciais de Atlantique (Mati Diop, 2019) nos jogam em uma briga dentro de um canteiro de obras. Souleiman e seus companheiros de trabalho exigem dos encarregados o pagamento atrasado há três meses, e os encarregados argumentam que o patrão viajou e não deixou o dinheiro. Para os jovens trabalhadores, não há o que fazer, apenas pegar o transporte de volta à cidade e abandonar a obra. Da caçamba do carro, as torres imensas em construção são o símbolo de uma derrota anunciada, de uma negociação impossível, de distâncias intransponíveis. Indiferente, explorando outros trabalhadores, as torres continuarão a crescer.

A montagem por oposição dos rostos derrotados dos jovens trabalhadores e da torre futurista inacabada é uma apresentação quase direta demais do conceito de acumulação por despossessão, proposto por David Harvey para descrever o funcionamento do novo imperialismo neoliberal. Se a expropriação das terras e do direito sobre os próprios corpos das pessoas originárias de África e de América pelos colonizadores europeus foi o sustentáculo inicial do capitalismo, o neocolonialismo contemporâneo mantém e expande a despossessão fundadora. Contratos de trabalho, direitos trabalhistas, bem estar social são promessas ilusórias, enquanto a torre é concreta (e cada vez maior). Mas estamos no quase, pois entre os rapazes e as torres, a montagem nos mostra o mar de Dakar. E o desânimo vira cantoria e excitação entre os jovens.

Essa é a primeira faceta das múltiplas do mar em Atlantique: entre os despossuídos (de terras, de direitos, de dinheiro, de perspectiva…), o mar é também uma fuga. O sonho do emprego melhor na Espanha, de uma vida a recomeçar – além das ondas. O Atlântico evocado pelo título é então uma presença constante no filme: dessa incerta esperança, ao temido pesadelo do naufrágio, passando pelo enigma do retorno assombroso. Mais do que uma paisagem, o mar funciona no filme de Diop como um recorrente contraponto, descontinuando a especialidade do filme para uma imagem de imensidão simbólica – um portal do tempo-espaço de África e da afro-diáspora.

Atlantics: A Ghost Love Story - Image Courtesy of Netflix

Com Souleiman encontramos Ada. Entre Ada e Suleiman, a paixão.

Mas… “Você só fica olhando para o mar”.

Ada está às vésperas de um casamento arranjado com outro homem. Pressionada pelos pais, a negociação parece ser simples: esquecer a paixão adolescente, manter-se virgem até o casamento e submeter-se a uma união sem amor e/ou afetos com Omar. Ainda mais despossuída na cena do capitalismo global, o desejo de Ada está fora da transação comercial, assim como qualquer vislumbre no contrato econômico, social e familiar da possibilidade de possessão dela de seu próprio futuro e corpo. Como o quarto nupcial branco cenograficamente decorado para ostentar uma negociação fria e calculada do matrimônio de Ada e Omar, não há lugar para a vida e suas pulsões nesse arranjo – no máximo para algumas selfies posadas.

Se a paixão de Ada está fora dos cálculos de risco, os contratos sociais, econômicos e familiares se dissolvem quando esta arde: queimando a cama não usada na transação jamais consumada. A partir de então algo se conjura na narrativa do filme, no momento que esse intenso desejo não pode mais ser contido. E ainda que uma parte do enredo dedique-se a uma investigação policial do que não pode ser explicado (com a sordidez de exames médicos para aferir virgindade e interrogatórios abusivos), Atlantique é um filme devotado a atmosferas e sensações – a febre como invasora noturna e devaneio (e não como sintoma). Ao fim, diante do inverificável, o investigador não pode mais do que apenas (e já) encontrar a si mesmo.

II – Possessão

“Alguns pescadores voltaram do mar com a rede tão cheia que todos correram para ver o que eles tinham pescado. As pessoas gritavam que haviam pescado um peixe enorme. As crianças e toda vizinhança foram ver. Mas, quando se aproximaram da rede, não viram um peixe, mas o corpo sem vida de Souleiman”.

No momento de virada do filme, os jovens despossuídos (agora também da própria vida) retornam para enfim obterem as suas possessões – de vinganças e de paixão.

Sem mais promessas, o mar é então apenas um perigo no contracampo de cada sonho, cuspindo de volta o espírito dos despossuídos. Conclamados por aquilo que na expropriação capitalista não se pode conter – a raiva pela exploração e humilhação cotidiana, a paixão não consumada – os jovens retornam como assombrações febris.

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E então, algo se complica na ficção especulativa proposta por Mati Diop, pois as fronteiras de morte em vida e da vida na morte são borradas. Afinal, como podem em morte possuir aqueles que em vida não possuíam nada? Um corpo, uma vingança, a consumação da paixão: quais os limites da possessão despossuída?… Essas assombrações não são zumbis ou fantasmas tradicionais desse gênero narrativo. Com exceção de Souleiman, os jovens rapazes tomam posse dos corpos das suas amigas, irmãs e namoradas. É assim que esse corpo feminino possuído pelos espíritos dos rapazes pode enfim reverter (ainda que temporariamente) o sentido da expropriação – e fazer o patrão cavar a cova para seus corpos perdidos no fundo do oceano. O topo da torre é também o fundo do mar.

Em Atlantique, a possessão é assim, ao mesmo tempo, assombro e triste reencontro, acerto de contas com o patrão explorador e reparação financeira para as que ficaram. O sobrenatural que o filme mobiliza não é então marcado pelo terror ou pelo medo, mas por paixões incontroláveis que não se podem evitar: irão queimar.

III – Exorcismo e Renascimento

“(…) o corpo da mulher negra conserva a possibilidade de um Outro desejo. Um desejo que não pode alimentar a maquinaria do capitalismo global ou as críticas ao mesmo tempo porque o texto político fundamental aos dois campos não a contempla. Fora do Patriarcado e fora da História (as narrativas do sujeito transparente [a coisa da interioridade e da liberdade]), o desejo prometido pelo corpo sexual feminino continua como um guia ainda por ser delineado para uma práxis radical (…)” (Denise Ferreira da Silva, A Dívida Impagável, p. 77)

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O reencontro de Ada e Souleiman marca por fim a última possessão do filme: a do sexo. Temos uma comunhão que é a entrega e a despedida de duas trajetórias: o espírito que pode enfim partir e da adolescente que assume sua autonomia na vida adulta. Uma posse de si para Ada que constrói-se lenta, mas continuamente: na recusa de entrar no carro de Omar, na negociação persistente da venda do iphone, na atenção às instruções do novo trabalho no bar. Não é irrelevante que esses reposicionamentos digam respeito ao seu (não lugar) na acumulação por despossessão capitalista – ocupando as fendas de informalidade e da precariedade do trabalho, mas também da amizade, do amor e dos experimentos de beleza (para lembrarmos da expressão da Saidiya Hartman).

Ada: a quem o futuro pertence, olha enfim para a câmera. Afinal, possuir a si é possuir sua própria imagem. Um olhar desconcertante para exorcizar também o filme como possessão.

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O mar é também renascimento.

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A doutrina dos afetos

Por Chico Torres 

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O artista está sempre em conflito com a sociedade e, portanto, em conflito consigo mesmo. Um conflito que, no âmbito pessoal, não se resume a “sonho versus realidade”, mas diz respeito a algo mais substancial em relação à constituição do próprio sujeito. Em certo sentido, o artista é um excluído não apenas por exercer o seu ofício, mas por ser aquilo que é, por se apresentar como um diferente: ele é a diferença em meio à repetição, e justamente por isso fascina e incomoda.

Em A ponte das artes (2004), filme de Eugène Green, vemos esse tipo de conflito que se liga mais especificamente à natureza do artista e o modo como o seu ser está unido irreversivelmente à sua paixão. O filme apresenta a evolução de duas almas que, por conseguirem viver apenas sob o influxo de seus afetos, servem como uma alegoria do Barroco, mais especificamente sobre a relação entre vida e morte, porque ao mesmo tempo que emancipa – revelando novas possibilidades para a existência – também se realiza em uma dimensão devastadora e trágica.

Temos a história de dois casais como a espinha dorsal do filme: Pascal e Christine, Manuel e Sarah. Christine e Manuel, os coadjuvantes, servem como ilustrações não apenas do lado mais pragmático da vida, mas também do fascínio e negação que essa dimensão barroca e artística exerce em um mundo marcado pela praticidade. Christine, uma estudante de filosofia, é extremamente racional e objetiva. Já de imediato, a sua personalidade centrada tenta se impor à melancólica e displicente postura de Pascal, jovem insatisfeito com suas obrigações acadêmicas, e que se vê arrebatado pela poesia de Michelangelo. Christine exige que Pascal amadureça, que busque concluir seus objetivos, mas Pascal não consegue se encontrar naquele universo acadêmico no qual a arte está encarcerada em representações falsas e pedantes.

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Já Manuel, um simples programador, sem ligação alguma com o universo intelectual e artístico, é fascinado por Sarah, uma cantora lírica que está debruçada sobre a obra de Monteverdi, mas que se vê em um crescente estado depressivo por causa da postura tirânica do maestro com o qual trabalha. Manuel tenta resgatá-la, explicitando o seu amor e o seu desejo de constituir família, mas Sarah está perdida por não se sentir devidamente reconhecida em seu ofício. Por outro lado, independentemente desse fato, há em Sarah o estigma barroco da ruína, da catástrofe. Esse aspecto é reforçado quando ela, em uma festa de final de ano onde jovens dançam rock’n’roll em um salão, percebe cair a sua máscara social, que é como se tivesse caído todo o escopo de sua existência, fazendo com que ela se perceba um ser completamente vazio.

Sarah e Pascal, afinal, possuem almas barrocas. Mesmo que queiram viver as coisas desse tempo, algo os leva a uma suspensão e esvaziamento da vida por precisarem ceder às pressões sociais, por não poderem ser exatamente o que são. Nesse sentido, as instituições e os lugares de poder são colocados de modo extremamente caricatural e perverso, para reforçar, através da presença desabusada do grotesco, a ideia de que para ser artista não é suficiente dominar a técnica, mas também possuir dignidade para viver aquilo que a arte procura despertar na alma. O maestro, chamado por Sarah de “o inominável”, e outros poderosos do universo da música, são seres que conseguem falar e tocar o Barroco com grande virtuosismo, mas são incapazes de senti-lo de modo genuíno e, portanto, incapazes de expressá-lo verdadeiramente. Já Sarah, em seu silêncio e dedicação, sente tanto em sua alma essa dignidade artística que na mesma intensidade que transborda toda verdade barroca através de sua voz, sofre por ser incapaz de suportar as injustiças cometidas pelo maestro nos momentos de ensaio, que percebe o poder artístico da cantora e imediatamente trata de apagá-lo. O suicídio de Sarah, aos olhos de Manuel (que representa o olhar normativo), é uma atitude drástica e inesperada, mas ganha um maior significado se for pensado como alegoria do aspecto trágico do Barroco que pouco a pouco se revela no espírito da cantora.

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Pascal é também tocado pelo suicídio e por motivos semelhantes, mas a voz de Sarah, ouvida através de um disco com a música de Monteverdi, o faz declinar. Todo o verdadeiro transbordamento de Sarah revela a Pascal uma nova chance para a sua vida, ainda que seja sob uma perspectiva de busca, uma recherche. E mais uma vez se desenrola essa dimensão barroca, agora como promessa de redenção, como procura constante por um sentido superior da existência, ainda que tal sentido seja um ideal inalcançável. Esse encantamento da vida surge através da música e do silêncio, que se dão como uma presença ancestral e poderosa da arte, em seu sentido mágico. Seja com o teatro japonês, ou quando Pascal vagueia por Paris e cruza com um acordeonista que toca música tradicional francesa, ou quando em seguida dialoga com uma cantora curda que, como uma aparição, canta em uma rua vazia alguma canção do seu povo, o que se tem é uma dimensão da arte vivida através de tradições profundas, contrastando com a arte institucionalizada ensinada nas universidades e nos conservatórios, representada no filme através do bizarro.

A doutrina dos afetos, técnica desenvolvida no Barroco que tinha como objetivo expressar emoções precisas através da música, tocou a alma de Pascal ao ouvir Monteverdi e o canto de Sarah, o transportando para uma dimensão existencial ligada ao mistério e à beleza. O encontro entre os dois, sobre a ponte das artes, constrói, em uma única cena, as alegorias que são trabalhadas ao longo de todo o filme: relação entre vida e morte e o papel da arte como essa ponte que transita afetos, sejam eles destrutivos ou redentores. Mostra, fundamentalmente, que o artista é maior do que o seu ofício e que a dimensão espiritual da arte ultrapassa as convenções estabelecidas socialmente.

 

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Enclausuramentos sentimentais, físicos e fílmicos e a paixão fantasma em “Manji” (1964)

Por Anita Gonçalves

“E, quando enfim comecei a temer que os nossos corações explodissem, senti-me de súbito firmemente apertada nos braços dele.

Gota a gota, gota a gota… que dizem eles? Gota a gota, gota a gota… Ah, já sei, Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko…, chamam a pessoa que me é tão querida. Tokumitsu, Tokumitsu… Mitsuko, Mitsuko… Sem ao menos me dar conta disso, eu já tinha apanhado a caneta e escrito nos dedos da mão esquerda incontáveis Mitsukos, um a um, desde o polegar até o mindinho.”

(Voragem, Junichiro Tanizaki)

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Em Manji (1964) de Yasuzo Masumura – adaptação do romance de mesmo título (1931) de Junichiro Tanizaki (em português, traduzido como “Voragem”) – temos, como premissa, uma história de amor proibido entre duas mulheres. No centro de tudo, Sonoko, a narradora que conta sua história a sensei (um suposto escritor), e Mitsuko, por quem Sonoko se mostra devota e perdidamente apaixonada, não havendo palavras que de antemão a descrevam, apenas seus olhos e sua beleza hipnótica. Juntas, elas vivem um relacionamento íntimo e intenso que se torna cada vez mais enclausurado, complexo e tempestuoso devido a um emaranhado de fatores externos e, sobretudo, internos (e fílmicos) que influenciam, amplificam, acometem a relação e os sentimentos que a constituem. A partir do contexto claustrofóbico que ambienta o filme e reitera seu caráter trágico, estamos diante de uma situação progressiva de desconfiança incessante e ausência de discernimento, marcada pela prevalência e comando dos sentimentos, do espectro da paixão revelado nas imagens, nos corpos, gestos e expressões emocionados.

Tudo se inicia na escola de pintura para mulheres onde Sonoko estuda – mulher da elite, parece que a arte lhe serve mais como um passatempo, livramento do tédio e do seu próprio casamento, com o qual se mostra muito insatisfeita. É nesse contexto que o filme apresenta uma aula durante a qual as alunas desenham a Deusa Kannon (Deusa da Misericórdia) a partir de uma modelo-viva. Nessa circunstância, o corpo da modelo – do qual não se espera ser mais do que uma base à perscrutação, ao estudo – ao ser filmado por Masumura, consagrado nos planos, anuncia a dimensão do desejo e da reverência que paira sobre todo o filme e conduz a experiência da narradora. Nesse contexto, uma infidelidade estética no desenho de Sonoko cativa a atenção do professor, que nota nele um semblante distinto daquele que possui a modelo. Sonoko justifica-se ao professor: “Eu concebi meu rosto ideal (…) Era para mostrar a espiritualidade da Deusa da Misericórdia”. Ela havia desenhado, inconscientemente, quase como uma sina, Mitsuko Tokumitsu, também aluna da escola. Assim, o que marca esse prelúdio emocionado do encontro das duas personagens e determina, dali em diante, a dinâmica conturbada e intensa do relacionamento e a própria narrativa e experiência de Sonoko, são a primazia – desde o princípio – dos desejos, imaginários, ideais e sentimentos (da subjetividade) da narradora e a ambivalência das personagens. No caso de Mitsuko, mistificada por um lado e submetida à condição de “criação” por outro. No caso de Sonoko, detentora da linguagem falada, uma vez que é a narradora da história, mas também subjugada aos próprios sentimentos, uma vez que sua experiência é fundada e inteiramente movida por eles.

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Por outro lado, existe a influência externa e a obrigação social: a partir do ocorrido na aula de desenho, boatos sobre um suposto romance secreto entre Sonoko e Mitsuko começam a se alastrar na escola, induzindo um primeiro encontro das duas e contribuindo, ao que parece, à concretização do relacionamento apaixonado. No entanto, essa influência externa não surge apenas como pretexto da união, mas, pelo contrário, também como um empecilho ao relacionamento, na forma das obrigações e convenções sociais. Diante de um Japão cada vez mais ocidentalizado, além da obrigação matrimonial de Sonoko, ela e Mitsuko estão inseridas em uma sociedade que julga como imoral o amor entre mulheres e que se torna refém tanto da noção de separação entre vida pública e vida privada como também da ótica judaico-cristã acerca do tópico sexual. Isso implica na privação do desejo, no constante medo acerca do julgamento moral e, apesar de uma primeira idealização do âmbito privado das relações por parte das personagens (cultivam no dia a dia costumes e condutas ocidentais), em um relacionamento enclausurado que só existe entre as limitações das quatro paredes, distante dos olhares e julgamentos da sociedade.

Essa questão encontra a própria câmera observadora de Masumura, que compreende e circunscreve muito bem o suposto espaço privado e a vida secreta, ao mesmo tempo que questiona essa condição pelo simples fato de filmar (ou buscar filmar) a relação, de retratar o que não deveria ser contemplado, o que deveria ser omisso e velado. Nesse sentido, as cenas de sexo do filme são apenas sugestivas; o erotismo, na forma do desejo, está sempre implícito nas imagens. Frequentemente, é uma câmera que espia os corpos através daquilo que pauta, sutilmente no plano, a noção de aposento como aquilo que limita e retém: através de cortinas, de mobílias desfocadas não identificáveis, biombos, do shoji e fusuma – que ganham aqui uma dimensão de parede/barreira muito forte (diferente da sua função de fundir espaços privados distintos e torná-los unos e públicos, reforçando a dinâmica coletiva da vizinhança, em “Bom Dia” de Yasujiro Ozu, por exemplo).

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 Mesmo possuindo um caráter de câmera espiã em algum grau, o que lhe pressupõe uma relação intrínseca com o mundo externo (alguém que espia, a própria concepção e condição do realizador), a câmera aqui não representa uma determinada “sobriedade” em relação à dinâmica tempestuosa que domina o quadro, não possui um senso de convicção e de estabilidade sobre a atmosfera de incerteza e de instabilidade. A câmera é tragada para o universo das paixões sobre e a partir do qual Sonoko – com sua condição poética inicial de “criadora” – narra. Masumura pactua com ela e busca criar imagens em primeira pessoa; imagens que imprimem sua paixão, seus sentimentos, suas impressões e sua narrativa pessoal/sentimental – como se tudo isso, por sua vez, determinasse o quadro.

Ao mesmo tempo que Sonoko possui um aparente controle sobre o que consta nas imagens, sobre a linguagem falada que é transmutada e recriada em linguagem cinematográfica, ela é uma personagem regida pelos próprios sentimentos e submissa a eles. O enquadramento de Masumura, aliado à passionalidade de Sonoko, dá ao enclausuramento pela paixão e sentimentos uma dimensão arquitetônica e física (a partir da ausência de espaço), intensificando a sensação claustrofóbica e reiterando a ausência de contexto através dos enquadramentos fechados, do plano-sentimental-espacial: apesar de o contexto histórico, cultural e social do Japão ser como um subtexto motivador à questão do enclausuramento, ele se vê praticamente aniquilado no plano, o qual corpos, expressões e gestos emocionados ocupam quase que totalmente; ou como se os sentimentos, por serem tão intensos e excessivos, fossem demasiadamente volumosos para o pequeno espaço fílmico (marcado pela limitação das quatro paredes/do plano), tomando o oxigênio e espremendo as personagens, deixando-as imensas e sozinhas no quadro e no quarto, asfixiadas, insanas.

Em um dos momentos iniciais do filme, quando Sonoko mostra a sensei uma fotografia das duas juntas, o rosto de Mitsuko ganha um plano só seu, como se ela estivesse não só encarando a câmera que a fotografou em determinado momento, mas encarando, sobretudo, a câmera espiã de Masumura. Mitsuko se revela através dos olhos e da beleza de Ayako Wakao, atriz por quem Masumura é aficcionado e que, através do que ela concede de si às imagens (sua beleza, seus gestos, suas expressões), define em absoluto a personagem que interpreta: hipnotiza a câmera (Masumura) como hipnotiza Sonoko; sabota a ordem fílmica e supera sua mera condição de personagem diegética através da atriz. Assim, Mitsuko estabelece um contato com o que há através da câmera, com o externo/extraplano, com o que não sofre do enclausuramento pelo plano-espacial-sentimental.

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Como seu olhar (e a própria Sonoko) em sua narrativa sugerem, já se pode presumir o suposto feitio manipulador de Mitsuko, enquanto Sonoko exprime uma certa ingenuidade e vulnerabilidade. Nesse contexto, o que justifica a subversão da ideia de “criação submissa à criadora” é, paradoxalmente, o fato de Mitsuko só existir no filme enquanto criação idealizada de Sonoko (o rosto ideal da pintura), reflexo de seus desejos e, principalmente, por se tornar sua própria paixão: assim como os sentimentos de Sonoko a aprisionam, Mitsuko – a nível deles – também possui um domínio definitivo sobre sua amante. Isso é o que vai pautar toda a experiência e maneira com a qual Sonoko encara o relacionamento, no sentido de sua devoção (deusificação) e submissão à amada.

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Assim, pode-se discorrer também sobre a atmosfera desatinada do filme. Quanto menos noção de espaço, de ambiente, de contexto – ou seja, quanto maior a claustrofobia, a asfixia, a supremacia dos corpos emocionados e do âmbito privado sobre o âmbito público – menor é a capacidade dos personagens de discernir sobre o caráter e as intenções uns dos outros. Sonoko, a única voz que podemos realmente ouvir (enquanto narradora), atinge um estado tormentoso de receio e angústia, constantemente questionando a índole de Mitsuko. Tudo se acentua com a entrada de outros dois personagens no relacionamento (Watanuki – pretendente de Mitsuko – e Kotaro – marido de Sonoko -, formando um quadrado amoroso), o que deixa todos cada vez mais espremidos no quadro lotado de sentimentos que se entrecruzam e se mesclam com intenções secretas (das mais amáveis às mais perversas), complexificando o relacionamento e encaminhando-o ao seu fim trágico. Nesse sentido, o exagero melodramático que aqui existe pode tanto marcar a intensidade do amor, do desejo e da paixão – dos sentimentos no geral -, como tornar uma mentira ainda mais mentirosa, encenada.

O clima constante de dúvida e desconfiança não se limita ao universo enclausurado do filme, excede e atinge a experiência do próprio espectador: nem em Sonoko – por narrar movida e possuída pelos sentimentos, inseguranças e ideias próprias sobre cada uma das figuras – devemos confiar. Sonoko é realmente ingênua e Mitsuko manipuladora? Como podemos garantir que, enquanto narra, Sonoko, que também se mostra perversa em vários momentos do filme, não deturpa ou omite fatos? Devemos confiar nas imagens e no que é exibido nelas?

Masumura, pactuado com Sonoko e, portanto, movido e movendo o filme pela paixão e por tudo que ela magnetiza, não nos dá respostas. Ao real detentor da linguagem aqui vigente não interessa o valor crível da imagem e sim seu potencial expressivo: amplifica a narrativa à expressão fílmica dos sentimentos, desejos, ideias, paixões. Temos aqui a estética que emerge da vazão que tem a dúvida não-elucidada, da claustrofobia estimulante à propagação indomável dos sentimentos: a expressividade e a beleza dos corpos, gestos e rostos emocionados; até mesmo a poesia plástica nas cores, na caligrafia e nas estampas das correspondências trocadas pelas amantes.

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O final trágico conjecturado: em determinado momento, quando o relacionamento está configurado em um triângulo amoroso entre Sonoko, Mitsuko e Kotaro – emocionados e totalmente alheios à realidade -, todos os fatores externos (e internos) fazem do suicídio passional a única saída. Esperançosa de que enfim encontraria na morte um estado puro e eterno ao amor, Sonoko é surpreendida pela desilusão: a única que continua viva e cativa; a união das amantes não sublima. (Teria Mitsuko a enganado?)

Prenunciando o desfecho desde o início, Sonoko narra sua experiência, sobrecarregando no coração inquieto e no corpo cansado todo o acúmulo sentimental do filme; apaixonada por uma aparição profetizada por sua narração. Criadora do que ali alguma vez existiu ou não existiu, ela permanece tomada pelas incertezas e, sobretudo, enclausurada à sua paixão – Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko… -, que agora é mais do que memória ou saudade: um fantasma sagrado que a assombra, quimérico e imenso nas imagens.

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A paixão segundo a morte

 

Por João Lucas Pedrosa

“As mãos são como feitas para a eloquência,
como se quisessem expressar nossos sentimentos.
Mas os pés não falam como as mãos, porque eles ancoram a vida”

Kazuo Ohno, Treino e(m) poema

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Por três vezes, a cantora-compositora Mitski e a diretora Zia Anger se uniram na feitura de videoclipes. Em abril de 2016, lançaram Your Best American Girl, o primeiro hit da nipo-estadunidense, com seus ecos simbólicos de retumbante ocupação feminina e asiática num nicho musical até então quase exclusivamente branco e masculino: o indie rock. Em 2019, se unem para os singles Geyser e Washing Machine Heart, de seu mais recente álbum “Be the Cowboy”. A conexão mais explícita entre os três é a presença das mãos da artista como canal sublimatório – em duas delas, de frustração romântico-sexual -, que acaba por ser o epicentro de uma intrincada articulação entre desencaixe sociocultural, construção psicosexual e vigor artístico. Pela similaridade temático-estética entre o primeiro e o último videoclipe da parceria – mas mais pelo bem da concisão textual -, vou me ater aos dois primeiros.

Your Best American Girl começa como uma publicidade antes do “ação”: Mitski olha para baixo usando o celular, vestida elegantemente em frente a um fundo infinito branco, varrido por um homem branco. Uma mulher branca entra para espirrar laquê em seu cabelo e retirá-la de sua introversão, e uma figurinista vem arrumar seu terno. Vem o contraplano: um rapaz branco, biótipo modelo, usando regata. Ele olha para a câmera e seu olhar é o “ação” para o plano de Mitski. Ela olha de volta, sorrindo, e um foco de luz se acende sobre seu rosto. A sua imagem é o resultado de uma manufatura, de camadas de produção que escondem sua forma bruta; a do rapaz é uma imagem dada, já pronta o bastante em seu despojamento. Os dois planos são frontais e se espelham ao mesmo tempo que embatem. Entre eles não se cria intimidade – não se faz proximidade, sequer contiguidade espacial, apenas oposição. Nesta “publicidade” o que os liga é o olhar do público, os verdadeiros olhares de volta. É uma simples abordagem de flerte, mas com uma barreira de olhar público entre as duas partes.

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A linguagem do clipe ganha, assim, uma abordagem sociológica que muito lembra o documentário de Shirley Clarke, Retrato de Jason (1967). Integralmente formado por planos frontais singulares (variando entre close/médio/americano) do malandro e performer de boate Jason Holliday, o filme observa-o contar suas histórias de vida, piadas e mentiras sob efeito crescente do álcool e de seu baseado. Clarke sabe do poder de envolvimento sociopático de Jason, e como ele aprendeu a encantar para distrair o coletivo do ódio que sente dele – e nele desferir uns golpes no processo -, e passa o filme tensionando sua capacidade de perniciosamente envolver o extracampo (novamente nós, o público). Por meios e motivações diferentes, mas assim como Jason, Mitski tenta vender-se. Ele se vende para sobreviver e se aproveitar do que/de quem fornece. Ela se vende pela simples validação aos olhos do homem do imaginário comum – os que ocupam a tela sem esforço, os que se impõem como norte das demais imagens.

Mas ela fracassa: um travelling out revela a entrada em plano de uma mulher branca, biótipo modelo e traje hippie no enquadramento do rapaz. Ela envolve seu pescoço com o braço e eles continuam olhando para Mitski, cujo movimento de câmera revela mais espaço branco, ressaltando seu alheamento. O contraplano não é mais uma promessa, mas um imperativo: veja, não seja parte. Veja, você não é parte. É uma imagem fora de alcance, sua entrada é proibida. O casal começa a se olhar e se acariciar, e a cantora olha para a mão com que acenava. O refrão quebra com o par branco se beijando ardentemente e a cantora o reproduzindo em sua própria mão, enquanto acaricia seu queixo e cabelo com a outra. Eis a primeira presença das mãos como projeção do outro: o braço se estende para fora e a palma da mão para dentro, numa falsa alteridade. Aqui, ela é medida paliativa de uma desesperadora carência. Não é a última vez que veremos este gesto.

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O beijo dos amantes brancos fica cada vez mais lascivo (língua na língua, língua no peito) e mais estilizado (surgem luzes coloridas, bolhas, um pirulito que alterna entre as duas bocas, um vento pelos cabelos da mulher, uma bandeira dos Estados Unidos). Um corte para o sorriso de Mitski e um tilt down mostra que está agora com um vestido dourado, tocando um solo de guitarra (a mão operando de outra forma o mesmo fim: a sublimação). Os movimentos paralelos (Mitski cantando/o casal se pegando) continuam e, enfim, um plano conjunto com a cantora, concretiza o movimento que a montagem prenunciava: Mitski no centro, olhando para nós enquanto canta, e os amantes ao fundo, como satélites e como fantasmas, assombrando sua performance e impedindo seu protagonismo livre. O carisma da guitarrista-vocalista se esvai, e um chicote sai do beijo publicitário para a guitarrista entregando seu instrumento a um membro da equipe e se retirando do estúdio (ocupado por uma equipe inteiramente branca) no decorrer da última nota da música.

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O desvelar metalinguístico é relativamente frequente – e um tanto hiper utilizado, apesar das variantes a cada vez – nos clipes de Mitski; o que não surpreende, pois a própria imagem é fonte de neuroses e obsessões nas letras de suas canções. Existe o muso romântico idealizado, inalcançavelmente superior – “Você é o único/Você é tudo que eu sempre quis”- e a sua existência falha, indesejada pela raiz – “A sua mãe não aprovaria o jeito que a minha mãe me criou”. O clipe de Zia Anger articula essa visão como sintoma de um centro vertiginosamente branco (equipe, elenco, fundo) de produção de imagens – um sintoma da branquitude. Mitski se retira, estabelecendo um primeiro gesto visual positivo em meio à sua poesia masoquista e auto-humilhante. Your Best American Girl é, afinal, uma canção de término: hesitante e auto-depreciativo, o eu-lírico da música escolhe a defesa insegura da forma como sua mãe a criou (“mas eu sim/eu acho que sim”), com o risco de ser também a justificativa para se odiar demais para ficar com aquele rapaz. Mitski surpreendeu-se quando o clipe ganhou interpretações políticas acerca de sua ocupação no nicho indie pop, mas é tanto involuntária quanto inevitável a política que jorra de sua trova suicida.

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A canção Geyser foi lançada com o videoclipe de Zia Anger em maio de 2018. Foi o primeiro single liberado do álbum “Be the Cowboy”, de pegada visivelmente mais pop que os álbuns anteriores. O desespero das repetições e circularidades típicas em Mitski combinam perfeitamente com as mesmas repetições dos hits pop chiclete, e agora misturam-se com sintetizadores e algumas melodias que parecem otimistas. Mas às repetições obsessivas, a compositora alia oscilações tonais (e talvez semitonais, mas não ousaria dizê-lo por ignorância das terminologias musicais) que fazem de suas canções não círculos, mas espirais – daí a vertigem de sua musicalidade. Nobody é provavelmente o mais notório exemplo do procedimento.

Na época de concepção da tour, a cantora se interessou pela dança japonesa butô, originada do pós-guerra. Apesar das inúmeras vertentes decorrentes de sua gênese, o estilo se inspirava na fraqueza do ser, e de seus efeitos potencializadores quando o corpo é tomado como significante opaco (e, portanto, de significado oculto, expandido) no ato de dançar. Nascia, assim, uma arte corporal da loucura, da senilidade, da dor, da doença (os corpos atrofiados dos envenenados pelo mercúrio nas águas japonesas influenciaram poses e movimentos nos anos 1960). O que nela teria interessado a Mitski foi o desenho de emoções caóticas retratadas por gestos precisos e repetitivos – princípios similares aos de sua composição -, e uma rígida coreografia inspirada no estilo foi incorporada a seus shows. Mas voltemos a Geyser.

Um caso extremo, a canção levou dez anos para ser lançada – ainda que se possa encontrá-la no YouTube cantada ao vivo em 2014, quatro anos antes do lançamento. É também uma canção de devoção: “Você é meu número um/você é quem eu quero/e eu recusei toda mão/que me acenou para vir.”. A estrofe é repetida mais duas vezes (com sutis mudanças lexicais), como uma oração. Segundo a artista, porém, a música não é dedicada a uma pessoa, mas à música, seu maior amor.

O clipe abre de um fade in do vermelho. Poderíamos limitar a cor ao simbólico (paixão, sangue, sedução, etc), mas perderíamos de vista a potência de sua vibração. Um impulso de vivacidade que, gradualmente, dá lugar a uma imagem dessaturada: Mitski sozinha num declive de terra, sob um céu nublado. Uma fusão destoante, estranha aos olhos. Ela está de cabelo preso e usa um traje monástico aberto sobre sua roupa. A atmosfera é despojada, quase sacra. O plano geral se aproxima da cantora angulando levemente para a direita, para então contorná-la pelo outro lado. Enquanto ela canta olhando para a câmera, quebrando a quarta parede, o mundo gira ao seu redor. Num gritante oposto a Your Best American Girl, Geyser é feito num dinâmico plano-sequência em amplo espaço aberto. Não mais uma zona psicosexual, mas um movimento existencial. Mitski está sozinha, mas jogada no mundo, na natureza não convidativa pelo bom tempo ou pelo verdejante, e a câmera dialoga com ela, com o redor e com o espaço entre os dois.

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Quando a câmera dá uma volta de 180º em seu entorno, vemos escombros no mar, algo similar às vigas de um píer (seriam as ruínas do estúdio? O declive de terra é curvo embaixo, como o fundo infinito, mas, por sua vez, tem um limite visível, palpável). Mitski vira uma mão para o céu e então para si – a falsa alteridade novamente – e segura-a com a outra para lhe cantar seu devoto louvor: You’re my number one/You’re the one I want. Para a mão a qual compõe, com a qual pratica sua religião. Sai de plano, deixando os escombros protagonizarem alguns segundos. Uma panorâmica para a esquerda revela uma extensa fileira das vigas e um proeminente aprofundamento do plano em camadas de presença, que são jogadas para fora de vista quando a câmera volta a centralizar Mitski e a terra úmida no fundo. Ela é cercada de vazio novamente. No primeiro capítulo de Transcendental Style in Cinema, Paul Schrader investiga as confluências da tradição zen na contenção estética de Yasujirô Ozu. O primeiro traço marcante é o princípio mu, referente à negação, ao vácuo. “A folha branca de papel é percebida apenas como papel, e papel permanece. Apenas preenchendo-o ele se torna vazio”. A ausência passa a operar como elemento positivo, pois é um qualitativo enfatizador da presença que ela cerca. Igualmente opera Geyser, e o vazio em volta da cantora reforça sua solidão, e acima de tudo sua existência.

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Mas Mitski é uma artista do Sagrado pelo fracasso no Profano, e sua arte depende também dos gritos de seu corpo. Ela olha para a câmera, sedutora, descobre o traje monástico do ombro, contrai o corpo em dor e sai correndo. O traje monástico cai sobre a terra, e mais à frente ela também. A câmera se torna lenta enquanto ela rola na lama, engatinha, para e respira. A câmera se afasta, volta a se aproximar e dá uma volta em seu eixo enquanto Mitski desesperadamente usa as mãos para cavar o chão, e grita enfiando a cabeça na terra. Travelling out com ela abaixada. Corte seco para o vermelho. O clipe termina.

Susan Sontag em “O artista como sofredor exemplar” discorre sobre o escritor como quem “descobre o uso do sofrimento na economia da arte”. Ela parte dos diários de Cesare Pavese, e da proeminência de suas frustrações amorosas na construção de um projeto estético ascético, encerrado com o suicídio do autor. O clipe de Mitski mostra um movimento similar. Já constituído e estabelecido o vigor artístico, as pulsões não se esvaem. Há uma contradição suicida em que a positividade de sua expressão depende da extrema negatividade. Um enfiar os dedos ferida adentro, infeccionando-a para que a dor ative os ápices metafísicos do corpo. A autodepreciação e a carência tornam-se veículos de expressão de uma inquebrantável vontade: a expressão da pulsão de morte vira o motivo de vida. Mitski torna-se o veículo de uma paixão ao mesmo tempo transitiva e intransitiva, moldada mas inata e, dentro de sua privação de pertencimento, um vórtice incontrolável de conexão com o público. Poderíamos chamar de Sagrado o infinito atingido pela vertigem do si? “Esses garotos todos parecem que estão na porra duma igreja”, disse uma vez o músico John Doe, atônito com a concentração do público da cantora. Eles estavam mesmo.

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“A atriz foi criada enfim”: Esther Kahn (2000) de Arnaud Desplechin

Por Natália Reis

 

“Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.”

Herberto Helder

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Monstre sacré é uma dessas expressões francesas misteriosamente forjadas que exercem um tipo de fascínio curioso em quem as escuta pela primeira vez. Numa pesquisa rápida, o google nos oferece um relance do que pode vir a ser: “Uma figura pública marcante, excêntrica ou controversa.”, “alguém cujos talentos são muito superiores aos do homem comum.” ou ainda: “uma figura venerável ou popular que é considerada acima de críticas ou ataques apesar de excentricidade, controvérsia, etc.”, “um gigante naquilo que faz”.

Se existiu alguém cujas obra e vida poderiam ser lidas como o despertar de uma “monstruosidade sagrada” em todas as suas nuances, essa pessoa foi Sarah Bernhardt. Atriz de teatro francesa e ascendência judia, Bernhardt (nascida Marie Henriette Bernardt em 1844) conseguiu se manter até o fim dos seus dias sob o olhar atento de uma legião de fãs e admiradores. Entre a figura pública de destaque internacional e uma vida pessoal incandescente, a “Divina Sarah” da “voz dourada” transcendia as noções de atuação e de celebridade numa reinvenção constante da própria persona. Brilhou em papéis masculinos (Hamlet) e como personagens mais jovens (Joana d’Arc, aos 46 anos) ou trágicos (A dama das camélias), usava joias extravagantes, possuía uma relação entusiasmada com pistolas e mancebos, e dizem que dormia em um caixão apenas para se sentir mais próxima da morte iminente. Susan Sontag vai elencar o charme decadentista dos filmes de Sarah Bernhardt realizados no fim de sua carreira como manifestações legítimas do Camp e o crítico e poeta simbolista Arthur Symons dirá que a modernidade poderia ser tipificada por sua presença no palco.

Dentre as muitas citações atribuídas à atriz francesa, uma merece ser destacada aqui por servir bem como introdução a Esther Kahn, personagem inegavelmente moderna (e provavelmente de reverberações bernhardtianas)  do conto de Symons de mesmo nome publicado em 1905 e adaptado para o cinema por Arnaud Desplechin: “A arte dramática é essencialmente feminina. Pintar o rosto, esconder os verdadeiros sentimentos, tentar agradar e se esforçar para atrair a atenção – todos estes são defeitos pelos quais culpamos as mulheres e pelos quais se mostra grande indulgência.”. Longe de levantar qualquer tipo de bandeira feminista, Esther Kahn é uma parábola sobre a libertação de um desejo avassalador – por vezes tido como sintoma de um egoísmo feminino interior –  que age na transformação de um corpo desprovido de afetações em mulher e da mulher em atriz.

“ESTHER KAHN nasceu em uma dessas ruas escuras, mal cheirosas com estranhas esquinas que se encontram sobre as docas.”

Palavra por palavra, a introdução de Arthur Symons é repetida pelo narrador do filme de Desplechin ao passo em que nos é apresentada uma visão geral da infância e do universo primordial da protagonista. Esther é uma criança incomum, judia, filha de alfaiates pobres e residente de uma região obscura da Londres do século XIX. Tem medo de sair de casa porque a paisagem exterior é assustadoramente tomada por casas decrépitas, chaminés e janelas lacradas. Observa a família, mas não se sente parte dela. Enquanto as duas irmãs e o irmão se misturam naturalmente aos demais – pai (László Szabó), mãe (Frances Barber), avó (Hilary Sesta) –, durante o jantar Esther, exibindo um semblante quase estúpido, observa à distância os gestos que lhe parecem tão deslocados da realidade que merecem ser imitados. “Não repare nela”, diz a mãe em determinado momento; “ela não é uma criança humana, ela é um macaco; ela está se agarrando atrás de uma alma, como eles fazem. Parecem pequenos homens, mas sabem que não são homens, e tentam ser; é por isso que nos imitam”.

No desenvolvimento do longa, o diretor francês afirma ter se guiado unicamente por L’Enfant sauvage de François Truffaut, filme que narra a trajetória de uma criança encontrada na selva, incapaz de estabelecer uma forma de comunicação com a civilização. Diferente do garoto selvagem de Truffaut, Esther Kahn não foi destituída de contato humano, nem abandonada, mas não possui qualquer tipo de vínculo com os indivíduos que a cercam diariamente, muito menos com a vida que parece passar por ela sem deixar marcas. O único sentimento que a acompanha até a juventude –  quando passa a ser interpretada por Summer Phoenix (irmã de River e Joaquin) – é uma raiva imanente que se manifesta a cada rompante. Quando questionada pelas irmãs sobre suas expectativas para o futuro, não consegue pensar em nada além de: “ser vingada”. Phoenix encarna com vigor a passividade e letargia de Kahn de modo a tornar visivelmente incômoda a maneira como se esforça e se debate com as palavras (num tipo de performance truncada que se confunde entre os esforços da atriz e da personagem), tudo isso resvalando o furor e a confusão de quem não compreende seu lugar no mundo e se recusa a aceitar o que lhe é oferecido. Essa configuração só poderá ser revertida diante de um maravilhamento legítimo, que tomará de assalto todas as suas convicções: o teatro.

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A primeira vez que Esther Kahn demonstra excitação é justamente quando vai assistir a uma peça com seus irmãos (Claudia Solti, Berna Raif e Akbar Kurtha) e um pretendente pelo qual não possui nenhum apreço (Paul Regan): avança desmedidamente pela multidão para alcançar o guichê, os olhos sempre vidrados no palco e um discurso inflamado sobre o que acredita se tratar de uma boa atuação na volta para casa. A partir daí, presenciamos uma fagulha de desejo queimar na protagonista até então imobilizada por uma vida familiar – e proletária –   insatisfatória, e é essa a direção da arte indicada pelo filme: algo muito próximo de um labor, naturalmente capaz de provocar mudanças e suscitar um sentido de pertencimento até então inalcançável, inerte. Esther resolve se arriscar como atriz e comunica aos pais a decisão, sob protestos de que dessa forma não poderá ajudar financeiramente em casa. Retomando a distância que os envolve como o grupo de estranhos que sempre foram, um contrato é firmado e a jovem promete reembolsá-los pela mão de obra perdida nos trabalhos de alfaiataria e pelos gastos em sua criação até o momento. Os laços já escassos são desfeitos e, por fim, ao quitar sua dívida, Esther Kahn deixa o lar – que nunca de fato fora um lar – para se dedicar ao teatro.

É importante ressaltar que Desplechin preferiu de certa forma mascarar todos os momentos de interpretação de Esther sobre o palco. Fora as aulas que toma com o novo amigo, o ator – também judeu – Nathan Quellen (interpretado por Iam Holm), as demais cenas em que ela atua diante de uma plateia não possuem som além da narração que constata e descreve seu estado de espírito, os movimentos são acelerados, combinados com uma mecanicidade de Esther/Phoenix que só vêm a confirmar a própria crença da protagonista de que a atuação é um trabalho que deve ser executado como o prolongamento de um gesto resguardado nas estruturas ocultas do corpo.

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Apesar de ascender cada vez mais entre papéis importantes e o reconhecimento do público, em algum ponto do percurso as coisas passam a não bastar mais para Kahn. Novamente o vazio conhecido roça seu pescoço e sussurra “e agora?”.  A resposta ao aborrecimento vem de seu mentor, Nathan, que num tom paternal explica que o que lhe falta é amor. Ou sofrer por amor. “Você nunca sentiu algo pior do que um corte no dedo”, diz. Como há de compreender a vastidão dos sentimentos que mimetiza? A jovem atriz decide então eleger um pretendente à altura de uma investida que deve antes de tudo agir como energia renovadora. Nesse momento somos apresentados a Philip Haygarth (Fabrice Desplechin), crítico de teatro e autor de algumas peças. Esther o espia por trás da cortina e passa a dedicar-lhe um amor sorrateiro.

Hedda Gabler, personagem da peça de 1890 de Ibsen, é uma mulher intrigante que se vê de repente presa num casamento tedioso e tentada por uma antiga paixão. O fim trágico que a aguarda é resultado da busca desesperada pelo calor que já a consumiu uma vez, mas que agora só é capaz de anunciar sua presença abrandada nas intrigas e jogos cruéis que promove para se distrair. Há quem consiga dizer, inescrupulosamente, que teria sido “traída pelo próprio desejo”, entre outros clichês que não alcançam em nada a magnitude de seus atos finais, mas é possível ainda compreendê-la dentro de um longo histórico de mulheres que preferem a morte à não-existência. Hedda Gabler se avizinhará de Esther Kahn em dois momentos: primeiro, quando o casal Haygarth-Kahn passa por uma fase cálida –  Ele se faz seu tutor, fala das artes e de coisas maiores da vida; ela, um tipo de aprendiz fiel, corta o cabelo como sugerido pelo parceiro e lhe presenteia com um livro contendo a peça de Ibsen (uma cópia em norueguês, incompreensível para ambos infelizmente). A segunda vez que Gabler dá as caras é na forma da oferta para o papel principal que Esther receberá.

Noite de estreia, a jovem atriz descobre há pouco que o homem amado está vivendo um romance com uma italiana vulgar (e incomunicável, pois não fala outra língua além de um “dialeto provinciano”) de nome Sylvia (Emmanuelle Devos). Da coxia, observa os consortes chegarem para o espetáculo enquanto é arrebatada por um sentimento desconhecido até aquele instante. O que se sucede nos próximos minutos é a colisão das forças que nos foram negadas em todo o filme por um ritmo comedido, que se destinou a preservar a apatia da protagonista e o modo oblíquo com que observava o mundo. Mas aqui as coisas se agitam e se tornam violentamente vivas: Esther se recusa a entrar em cena, sofre com feridas de automutilação enquanto os demais atores e trabalhadores do teatro orbitam a atriz como um astro irresistível e destruidor. Cacos de vidro mastigados, cortes na língua, sangue, gritos e mais choro, ninguém consegue convencê-la a desempenhar seu papel. A volatilidade chega à superfície enfim, e dá lugar a uma nova estrela nascida do caos. Seu corpo é empurrado para o palco e, na luminosidade amarelada das lâmpadas de gás, faz aquilo que lhe cabe tão bem: atua brilhantemente. No intervalo, um bilhete elogioso do traidor: “Me devolva mil vezes o que te dei” e um pedido para encontrá-la. Mas já estava feito:

“A nota tinha sido tocada, ela tinha respondido a ela, como respondia a cada sugestão, sem falhas; ela sabia que poderia repetir a nota, sempre que quisesse, agora que a havia encontrado… Ela poderia retomar seu amante, ou nunca mais vê-lo, isso não faria diferença.”

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Editorial: Os imaginários de cidade

Por Gabriel Papaléo

 

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“Contando” de Jem Cohen

 

“O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. (…) A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata.”

Ítalo Calvino, As cidades invisíveis

Se talvez não tenha nascido com a cidade, ao menos transformado, retorcido e intoxicado por ela o cinema foi. A relação simbiótica com o movimento é particularidade tanto da cidade quanto do cinema, e a partir dele muitas vezes adentramos esses espaços e seus códigos e mistérios. Para o tema desse trimestre atravessamos filmes que intuem um pensamento de cidade, iconográficos de representação no espaço urbano, os meandros e processos do trânsito de pessoas e máquinas. A ocupação do ambiente como violência ou resistência, e as ramificações desse choque social da presença. Olhares de contexto, panorâmicos, detalhados e íntimos do que colocamos como ideais de espaço de convívio de trabalho e trânsito. O que esse urbano oferece de mitológico, máquinas e humanos em confronto e harmonia, o que a cidade evoca de invisível. De travelogues que funcionam como registro emocional da experiência de vagar pela cidade, a retratos que parecem filmar os fantasmas históricos de cidades cuja carga histórica parece indissociável do presente, passando pelos filmes cujas entranhas ficam pelo chão quente do Rio de Janeiro, ruas de fogo sob as profecias e cataclismas culturais dos delírios febris de fabulação no ambiente urbano.

Variedade de metrópoles de diferentes continentes, e as repetições do que nelas se insere. Variedade também de gêneros e dispositivos representando as diferentes formas de intervenção na cidade, nas formas que somos atravessados por seus signos, pulsões e ações. De filmes que debatem diretamente sobre como representar a cidade, aos filmes cuja paisagem e arquitetura da cidade ajuda a refletir sobre a passagem do tempo nela, suas transformações e os retornos de seus habitantes.

Que todos os fantasmas passados e presentes continuem assombrando as cidades, gravando sob as mais diversas armas sua existência nesses lugares por vezes grandes demais, por vezes pensado por e para quem não vive o dia a dia, mas que só são alçados à fabulação e ao coração dos sonhos e esperanças quando atravessado pelo povo que habita esses centros urbanos no cotidiano.

Boa leitura!

Edição revisada e editada por Camila Vieira.

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Duas noites brancas

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Por Gabriel Papaléo

“Mas pra quê preciso de relações? Eu já conheço toda Petersburgo sem isso; aí está por que me parecia que todos me abandonavam quando toda Petersburgo se levantou e partiu de repente para o campo.”

Dostoiévski, Noites Brancas.

Das muitas imagens e sensações de uma cidade em expansão, das mais marcantes em Noites Brancas são sobre o fluxo migratório de uma cidade e do que isso representa na memória de um habitante jovem dela – e especialmente como um encontro pode despertar uma nova relação com esse lugar. O contexto da São Petersburgo descrito por Dostoiévski no seu breve livro é o de transição dos tempos, das pessoas voltando ao campo para o trabalho à época de 1848, ano de lançamento do livro, ainda no início da carreira do autor. A cidade descrita pelo russo é dos solitários, dos jovens que ficaram para trás, e em Quatro Noites de um Sonhador e Millennium Mambo, Robert Bresson e Hou Hsiao-Hsien atualizam essa sensação para cidades sob diferentes sombras – e cada qual reagindo a seus respectivos tempos.

Noite silenciosa em Paris

“A nossa imagem, como lembrança desse lugar.”

Marku Ribas, na música “Porto Seguro”

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Cineasta que adaptou obras de Dostoiévski em duas outras oportunidades, de forma livre em O Batedor de Carteiras (1959) e de forma direta em Uma Mulher Delicada (1969), Bresson inicia sua investigação do flanar e das intenções incendiárias da juventude aqui em Quatro Noites de um Sonhador. Mas se o cineasta viria a radicalizar no elogio ao arrojo político dos jovens em O Diabo, Provavelmente (1977), aqui, seis anos antes, o seu elogio é ao romantismo de quem entende que vive no presente à sua disposição.

E a Paris de Quatro Noites de um Sonhador é uma cidade para ser tocada pelas mãos, nos corrimãos, maçanetas e bondes, e para ser vivida pelos abraços apaixonados que persistem aos olhares perdidos corriqueiros do trânsito. Explora essas sensações na figura do sonhador do título, que percebe os amores que habitam a cidade pelas trocas fugidias nas ruas, e vê a mulher com quem passou as noites sumir no mesmo balaio das canções urbanas, dos transeuntes, que os uniram, no mesmo fluxo de pessoas a caminhar. Essas são partes fundamentais para Bresson conjurar momentos mágicos de vivência no ambiente propício aos acasos, como nos interlúdios musicais que atravessam as águas em português ou em inglês, e criam essa Paris suspensa pela fantasia mas sempre tão cotidiana e verdadeira, disposta às andanças, não-turística.

É um olhar atento de planos que sempre estão concentrados na ação de deixar Paris viver seus movimentos paralelos, as pessoas entrando no fundo do quadro com tanta frequência, a noite iluminada pelos anos 70 e pelos tons azulados do eastmancolor. A descoberta de Marthe com seu próprio corpo embalada pela mesma voz que mais tarde virá a marcar uma memória de um barco a passar cantando, que sinaliza a vontade do amor que virá em seguida apenas pelas sugestões de toques, pela batida delicada na parede, as luzes que se apagam, e a câmera precisa e focada de Bresson, cineasta mudo das ações e sobretudo romântico; o caminhar pelas ruas e a aspiração de dias de suspensão, dois dos maiores registros que senti com o Noites Brancas.

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Se o campo da Rússia era narrado como o distante retrato do fluxo migratório de São Petersburgo, aqui na França o campo são flores amarelas fortes, seus tons idílicos de memória enquanto Jacques anda pela cidade, como a tradição bucólica dos quadros de Renoir e de quando Van Gogh se dedicava à natureza. Bresson ilustra e sugere através dessa visão mais individualizada, do diálogo com as artes plásticas, mais francesa enfim, uma resposta moderna de cotidiano parisiense dos encontros que passam, mantendo toda a solidão dos anônimos da metrópole sob outro contexto social, e mesmo assim deixando aos amores que acontecem e passam toda a atenção que eles merecem e a eles é concedida – por Dostoievski e as palavras, por Bresson e os gestos.

O protagonista Jacques começa perdido na solidão de sua história. Está feliz na primeira noite porque “hoje foi ao campo”, se distrair dos ruídos urbanos, dos amores perdidos em uma porta de bondinho fechada, do movimento que não cessa. É nesse fluxo anterior ao encontro que Bresson estuda o espaço e organiza os rituais do flanar, do passeio diurno e noturno, do que Jacques enxerga enquanto olhar atento e curioso para o urbano. É uma visão idealizada também da cidade, sob as tintas melancólicas que um idioma como o francês traz, e essa ligação aparece sobretudo na primeira aproximação de amor entre Marthe e seu amor platônico, feita através dos gestos, dos sons e das sombras. O toque no corrimão, como o toque nas portas, como o toque na pele, experimentando o que se pode na cidade ao alcance – inclusive o que não conhecemos.

No encontro breve no confinamento do apartamento, nas possibilidades da terra estrangeira, nas fugas imaginadas de uma Paris infértil àquele olhar entediado de Marthe, essa idealização se desenha na figura do inquilino, do fantasma do passado que assombra o relato contado para Jacques. E quando testemunhamos essa aproximação entre memória e presente se desenhando, Bresson retrata o que o amor tem de palpável, nos toques e gestos, nas andanças e abraços, em compartilhar momentos na noite estrelada e urbana que se mantém em movimento sempre. O amor de Marthe é sobretudo de intimidade e idealização, enquanto o do Jacques por Marthe é do acaso e suas circunstâncias iluminadas.

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Num retrato tão sublime e significativo do passado, o que poderia ser tomado pela névoa ilusória da nostalgia vira uma base emocional para o presente nas mãos e olhos de Bresson, no cuidado sobre com o cotidiano de ocupações através dos gestos. A história de Jacques e Marthe parece tão mais viva e palpável talvez pela forma que esses dois andam em direto diálogo com o coletivo, com a cidade que pulsa; no passado, os encontros de Marthe com o inquilino prometido são sugestivos, sempre à beira das dissonâncias, fugidios e quase místicos. A rica cena musical que compõe a tapeçaria cultural da noite na Paris do presente do filme é muito responsável por essa concretude do presente, que nivela a suposta banalidade das buzinas, dos carros passando, dos transeuntes ao redor do casal, com a magia impressionista dessas músicas que suspendem o tempo e parecem devolver um histórico visível da cidade diante dos olhos.

Na bela cena de Marthe no quarto examinando seu corpo no espelho, ela liga o rádio e ouve “Musseke”, música de Marku Ribas. Essa trilha embala os movimentos graciosos de Isabelle Weingarten, atriz magnânima da qual Bresson sabe guardar um close, e através desses gestos há uma nova curiosidade pela sexualidade, desencadeando ainda no pelo encontro de sombras com o inquilino, feito através de ruídos e sugestões com uma parede de distância entre eles. Mais tarde, de volta ao presente da terceira noite, na cena em que o grupo Batuke aparece tocando e cantando no bateau mouche sob a Pont Neuf, Jacques e Marthe param para ouvir a música que sai dali. É quando a voz agora familiar de Marku Ribas reaparece para cantar “Sou só, na estrada sigo só, levando a espera que era ela/E o meu coração que não traz segredos/Sigo sem medo rumo ao sul.”, trazendo sob a voz brasileira e a língua portuguesa um sentimento que atravessa o olhar dos dois, e talvez inconscientemente manifeste uma aproximação misteriosa entre passado e presente, na mesma voz que desnudou Marthe em seu quarto no dia em que redescobriu os detalhes de seu corpo ser agora a voz que ecoa pela cidade numa “coincidência” que só o trânsito poderia criar. A melancolia e amor do hemisfério sul atravessou a noite francesa como o ruído distante da saudade.

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É por conta desse tipo de sutileza que testemunharam que Marthe lembra a Jacques que agora estão ligados para a vida toda, porque compartilharam um momento de reconhecimento de um no outro por conta da noite da cidade. Ela vive na cidade grande e no meio das multidões, e seu rosto está gravado nas memórias, e Jacques depois percebe que até o nome dela existe nos barcos e nas vitrines de loja que refletem os fantasmas que ali habitam. Como tal fantasma, se pensarmos que na cidade pouco de nós fica gravado e o que nos sobra são as reminiscências com lugares que por vezes nada tem a ver com seu intuito inicial, Marthe pertence à noite e ao acaso, e não abrirá mão de se perder na multidão para se reconectar com quem lhe prometeu o futuro. Jacques percebe que é num sopro que ela vai embora da mesma forma que surgiu, como o vento que Bresson já disse vinte e quatro anos antes que “sopra onde quer”, e o caos de uma rua cheia parece o único palco possível para essa despedida apaixonada.

É nesse encerramento de solidão, mas também de devoção a um dever emocional, que Jacques encontra a confissão final. O movimento anti-nostálgico e sobretudo atencioso às nuances melancólicas da vida que possibilitam um otimismo sonhador, como no livro, se manifesta na serenidade de Jacques em reconhecer que, apesar de ter sido a piada do destino, às andanças pode retornar, ao trabalho dos seus quadros e das paixões muitas pelas ruas, e que será eternamente grato pelos olhos de Marthe que o fizeram procurar novamente por Paris.

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Noite eletrônica em Taipei

“A cidade dos outros / bate à nossa porta.”

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, “Cidade dos Outros”.

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Partiremos de uma suposição: se Bresson escolhe a distância entre a perspectiva de Jacques e Marthe, em Millennium Mambo é como se Hou Hsiao-Hsien focasse inteiramente no passado da protagonista feminina do livro, e imaginasse todas as turbulências que os amores dela causaram. E aqui o movimento migratório russo vira as lembranças de uma Taipei em transformação. Hou localiza com atenção uma suspensão histórica, um momento de transição sem perspectivas de conclusão no fim do século que chega, na música eletrônica abrindo as portas para o desconhecido cujas elipses são difusas justamente pela forma que registramos o amadurecimento sem certezas. Estamos sob a visão de Vicky, a protagonista, testemunhando sua história; na noite branca de Taipei os sonhadores são os espectadores silenciosos.

A rotina de Vicky, a personagem vivida por Shu Qi, já é iniciada num contexto de efervescência cultural jovem da música eletrônica como um sinal de fluxo ininterrupto dos tempos, das drogas que borram a percepção do tempo e ativam a nostalgia de sua passagem. É sob seu olhar que vemos os dilemas diante o pêndulo da sua entrega aos relacionamentos que a atravessam, e talvez a única vez que enxerguemos a protagonista em total plenitude é no estonteante primeiro plano do filme, quando ela anuncia em off onde estava emocionalmente essa mulher “há dez anos atrás, na virada do milênio”. Millennium Mambo já começa com a voz do futuro porque a percepção do tempo para Hou aqui demanda distância – no presente estão todos à flor da pele.

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Muito por isso é fundamental para Hou que o espaço esteja bem localizado; sua dinâmica de planos inteiros sem corte, com a câmera se movimentando dentro de um mesmo plano, à procura das ações, quase sempre à meia distância, deixa transcorrer na encenação o tempo presente do drama. Seja nas cenas de agitação das boates, seja nas interações domésticas entre Vicky e Hao-hao, o espaço existe como nos filmes silenciosos dos Lumière, revelados por um ponto de vista fixo, que ilustre as nuances entre primeiro plano e fundo do quadro, mas que comporte todo o movimento. O extracampo é intuitivo e Hou prefere o sugerir com o mistério de quem escolhe a posição do olhar e se agarra nela. É através dos acumulados desses espaços, que se repetem e também se comentam, que entenderemos as elipses e o tempo. Mas adentremos primeiro no espaço.

É como o espaço retratado por Kenji Mizoguchi, outro mestre em separar com cautela o que acontece em primeiro plano e o que acontece no fundo do quadro, nos seus filmes voltados às protagonistas femininas pagando o preço emocional da dureza institucionalizada dos homens. A câmera passeia por cômodos e pelos rostos dos personagens, mas sempre num fluxo calmo, no seu próprio tempo, como um observador atento que já sabe do destino daquelas pessoas. No caso de Vicky, pelo off reflexivo vindo do futuro, é como se o olhar fosse o da câmera, que procura nessas memórias o sentido totalizante daquelas experiências – cenas essas escolhidas a dedo para criar um retrato suficiente da personagem em poucos momento; é uma herança também da literatura, como o próprio Dostoiévski e o argentino Jorge Luís Borges – cujo prólogo de História Universal da Infâmia diz justamente sobre seu desejo de falar sob a “redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas”¹.

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E quais são essas poucas cenas que definem Vicky, e essa transformação íntima de Taipei? O fluxo de dois romances que se interpelam, de duas cidades de épocas diferentes. A partir da liberdade da primeira cena, do fugidio que é o suficiente para ser gravado na jornada pessoal, o já citado pêndulo constante entre o relacionamento abusivo com Hao-Hao e o flerte com Jack – esse um homem mais velho, mais paternalista, mais seguro, uma promessa de solução na tradição, dos rituais, das câmeras de segurança, da calma, do silêncio, dos trens tão filmados por Ozu. O estrangeiro e a tradição taiwanesa sem respostas, a carência de perguntas do presente, e o acaso possibilitador como o que persiste.

A relação de Vicky e Hao-hao, por sua vez, é mediada pelo confinamento – e talvez aí seja a proposta estética mais arriscada do diretor: de organizar uma mudança quase romanesca de Taipei diante dos olhos de Shu Qi, mas quase exclusivamente filmando cenas internas, domésticas, onde as mudanças externas são mais intuídas que mostradas, como a batida da trilha de Lim Giong, que atravessa paredes, tempos, corações e corpos. Mal existe acaso na vida de casal de Vicky e Hao-hao, é a mesma trilha de destruição que não consegue ser evitada pela personagem que busca solitária por equilíbrio emocional diante do desarranjo irresponsável do parceiro. Quando existe o acaso é para propor a mudança, como todo acaso que se preze numa vida urbana, e é o suficiente para fazer Vicky largar seu namorado sem precisar recorrer a fuga imaginária e impossível ao passado que sua mãe e sua cidade natal no interior representam.

É um desejo evidente em Vicky, ainda que nada verbalizado, a vontade de presenciar a vida na cidade. Flui como um rio o corpo da personagem indo de uma festa em outra, seja em boates ou no seu próprio apartamento, os cigarros que se enfileiram, as bebidas que nunca saem da mão, os olhos cansados como numa ressaca constante – tudo isso para de alguma forma se sentir na cidade. É um detalhe bonito demais quando Hou filma a primeira ida de Vicky ao Japão e conhecemos brevemente a velha de Yubari, uma mulher de 80 anos que quer ficar viva mais vinte para ver a cidade se transformando. A sede de mudanças e de se manter testemunha do tempo não é sinal de juventude ou velhice, mas algo que se reimagina de geração em geração, de idade para idade.

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Quando surge a oportunidade de filmar uma imagem dessa mudança, Hou elege os rostos marcados pela neve de Vicky com o amigo no Japão. A neve que cai rapidamente os dissolverá, mas a necessidade de se gravar na cidade não passa pela razão, mas sim pelo gesto. E na estrutura da montagem, que intercala tempos com elipses às vezes desavisadas, desafiadoras, o tempo fragmentado é que exerce o acúmulo de sensações, acompanhado como o fluxo de uma reminiscência, como pequenos registros de uma realidade de mudança cujas permanências são de relações que ajudam a moldar a relação com os espaços que vimos ao longo de cem minutos que agem – da melhor forma possível – como anos a fio.

A fuga pertence ao futuro que não acessamos através da imagem; o intuímos pela voz de Vicky, por sua memória da década futura, propondo uma Taipei esgotada cuja batida uniforme da música eletrônica anestesia como as paisagens de segurança que estão pela janela. O que resta é um movimento não de nostalgia reverente e sacralizadora, mas um aceno com respeito ao passado pelo seu poder de formação; um filme de amadurecimento antes de um filme de amor.

E a imagem desse aceno não poderia ser outra que não a neve, que sobra no fim, a acabar no dia seguinte, mas ainda ali para ser aproveitada com quem lhe faz bem, para lembrar que a natureza está ali em harmonia e que o vento e os pássaros existem para além dos dilemas das pessoas. Ali na serenidade da viela solitária ocorre a noite branca final, de despedida do mágico encontro com alguém, dos cartazes antigos ficando nesse milênio que se esvai, da memória desse cinema rumo ao desconhecido como a neve a derreter com a chegada do Sol.

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Referências:

1 – Jorge Luís Borges, “Prólogo a primeira edição” em História Universal da Infâmia (1935), pag. 9

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O pântano sob Berlim: à volta de Undine

Por Lucas Saturnino

 

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A palavra alemã Landschaft pressupõe uma paisagem cultural. A ideia está embutida no próprio termo. Falar sobre paisagem na Alemanha é falar sobre um lugar moldado por pessoas, e, tendo em vista a história do século passado, nem sempre foi tão fácil falar sobre isso. Mas os campos agrícolas, as florestas e encostas romantizadas, os rios cheios de história que atravessam o país: tudo isso é cultural, em algum nível moldando a cultura e sendo moldado por ela. (Turning: A Swimming Memoir, Jessica J. Lee)

O cinema é um imenso registro de modos de vida, paisagens e paixões fadadas a desaparecer. Assim foi e é a sua história na Berlim palimpséstica. Todo filme berlinense é um testemunho sobre a cidade em movimento perpétuo de inclemente transformação. E isso permeia, norteia e condiciona Berlim enquanto espaço cênico cinematográfico. Nesse contexto, insere-se Undine (2020), do alemão Christian Petzold.

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Embora Undine venha sendo descrito como uma declaração de amor a Berlim, precisamente metade do filme não se passa na cidade — e sim em Nordrhein-Westfalen, onde o bucolismo romântico coexiste com a barragem que reflete a industrialização. A paisagem urbana berlinense possui tanto tempo de tela quanto o vestiário do trabalho da personagem e muito menos do que os minutos debaixo d´água.

Após o monólogo (“Form follows function”) que divide o filme pela metade, corta e assistimos aos amantes percorrendo juntinhos o centro nevrálgico da nova República Federal. Onde antes o Muro cortava a vizinhança, hoje se situam altivos o Palácio do Reichstag (que, após ser restaurado, voltou a sediar o parlamento alemão em 1999), a Chancelaria Federal (inaugurada em 2001) e a Estação Central de Berlim (aberta em 2006). Contudo, o primeiro está fora de quadro e os outros dois fora de foco.

De resto, não se vê praticamente nada da cidade, exceto a visão sobre Alexanderplatz do quarto de Undine — de onde nem se espreita a Fernsehturm dos cartões-postais, mas outra, mais reveladora, perspectiva da capital alemã: apenas o fluxo de trens indo e voltando em conjunto à Galeria Kaufhof, icônica loja de departamentos, templo do comércio, e o hotel Park Inn, o modernoso arranha-céu espelhado. Do outro lado do apartamento, construções históricas como a Marienkirche (igreja) e a Rotes Rathaus (a prefeitura) desaparecem por detrás da cordilheira de edifícios que as ocultam.

Berlim? Petzold esquiva-se de filmá-la. Apesar de residir na cidade há cerca de 40 anos, dentre os seus filmes apenas Undine e Gespenster (Fantasmas, 2005) são ambientados lá. Gespenster, inspirado pelos Irmãos Grimm, foi quase todo rodado nos arredores de Potsdamer Platz — o símbolo da nova Berlim: de terra de ninguém dividida pelo Muro a maior canteiro de obras da Europa a centro comercial e empresarial ultramoderno.

Só que o interesse de Petzold é pelo elusivo e não pelo dado. Em Potsdamer Platz, ele busca superfícies típicas de contos de fadas, transfigurando o parque urbano em floresta até que os lagos artificiais adquiram organicidade. Petzold cria uma contrafábula — sobre traumas, ilusões, frustrações e abandonos — à fabulação topográfica das reformas pós-reunificação. Mais do que uma disputa de narrativas, um choque de (re)encenações. “Você poderia me ressuscitar outra vez?”, pede Undine a Christoph, com carinho.

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Jaimey Fisher[1] observa que as jovens personagens de Gespenster caminham por esse espaço sobrecarregado historicamente sem jamais interagir com os muitos monumentos montados para fins turísticos ou políticos. Alheias à intensa memorialização pública da cidade, os interesses delas são mundanos e imediatos: comida, bens materiais, afetos, oportunidades. A câmera se recusa a registrar a arquitetura ultramoderna da região, mas revela as marcas de tiro da guerra ainda visíveis no edifício neoclássico do Martin-Gropius-Bau, filmado de maneira sempre fragmentária, lateral e passadiça.

A janela do quarto de Undine evoca a do apartamento da personagem de Hannelore Schroth em Unter den Brücken (Por baixo das pontes, Helmut Käutner, 1945/6). No filme, a jovem mulher inicia o relato sobre como quase chegou ao suicídio fazendo alusão à paisagem na janela do seu quarto, de onde só se vê o nada aconchegante paredão lateral do prédio em frente, composto somente por tijolos e um grande anúncio, tampando a vista inteira, com exceção de duas grandes chaminés e o fluxo dos trens ao fundo. O retrato zero hospitaleiro da metrópole industrial. “Sem sinal da primavera”, ela diz.

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Em Undine, onde está Berlim? No mapa e no ethos — na mística local. A cidade é vista através de mapas — as maquetes da exposição apresentada pela personagem, as quais, como ela observa, são todas representações incompletas e tendenciosas. Petzold reduz Berlim à sua dimensão teórica, à sua tangibilidade conceitual.

A maquete central divide as edificações em duas cores, que sinalizam se elas foram construídas antes ou depois de 1990. Dessa maneira, a sua composição bicolor materializa o acúmulo de temporalidades num tempo presente em que elas forçosamente coexistem, representando visualmente o corpo urbano cicatrizado pela história.

Como em Transit (Em Trânsito, 2018), Petzold trabalha um diálogo materialista entre esferas imateriais à semelhança do que Serge Daney definiu como “não-reconciliação”. Daney escreve: “A não-reconciliação não é a união nem o divórcio, nem o corpo pleno nem o pressuposto do esfacelamento, do caos […], mas sua dupla possibilidade. Straub e Huillet partem, no fundo, de um fato simples e irrecusável: o nazismo existiu […] No sistema straubiano, uma moda retrô é simplesmente impossível: tudo está no presente”[2].

O impacto da reunificação na topografia urbana pode ser verificado no documentário Berlin Babylon (Hubertus Siegert, 2001), que retrata o período dos anos 90 no qual a cidade se transformou em um imenso canteiro de obras. No filme, a arquiteta e diretora de obras do Departamento do Senado de Berlim para Desenvolvimento Urbano e Habitação (onde Undine trabalha como guia da exposição oficial do órgão) comenta diante de uma maquete idêntica da cidade — possivelmente a mesma — que “o chanceler [Helmut Kohl, 1982-98] tinha uma nítida fraqueza por símbolos e grandes gestos”.

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Frente a isso, Petzold reage reduzindo essas ideias ao plano do esboço. Tal concepção de cidade reabilitada, consubstanciada e reestruturada permanece uma maquete inorgânica. Os símbolos tão abundantes quanto irrelevantes e os grandes gestos jamais conseguiram ser mais do que intenções branqueadoras do poder aliado ao capital. Tudo ainda é projeto mesmo que já tenha sido pomposamente edificado. Daí a opção por desfocar a Chancelaria e a Estação Central e relegá-las ao segundo plano. Como tensionar as fissuras da história em um lugar que erige monumentos à própria vergonha?

No curta Der Weg, den wir nicht zusammen gehen (O caminho que nós não percorremos juntos, Dominik Graf & Martin Gressmann, 2009), a voz off de Graf disserta sobre imagens de construções abandonadas: “Esses edifícios são corpos que preservam o espírito da Alemanha do pós-Guerra. Eles contam o que os museus […] e os centros reformados das cidades não conseguem nos contar […] Esses corpos de pedra serão demolidos porque nós queremos outros corpos. ‘Nós’. Quem será isso?”.

Eles também nos levam a uma reunião do já mencionado Departamento do Senado de Berlim (então Ocidental) para Desenvolvimento Urbano e Habitação: em pauta, a remoção dos “indivíduos indesejados”, “drogados, mendigos e prostitutas”, dos arredores da Estação Zoo, “zona futuramente significativa”. Nos anos 70 e 80, o Senado já tinha o costume de “remover os vagabundos” da região durante a Berlinale para que os convidados internacionais do evento não presenciassem a pobreza. O objetivo seria, portanto, sacramentar a gentrificação sazonal adotada a cada festival. Na opinião de um dos trabalhadores sociais presentes, a vilania do representante da Deutsche Bahn (a empresa estatal de transportes) seria algo tão clichê que se excederia na caricatura.

Às ruínas dos corpos e lugares sem função no neoliberalismo, sucede-se, por via da imagem do colosso espelhado da Estação Central de Berlim, a imponente arrogância do novo presente que obsoleta tudo à sua volta e não admite rivais. Conforme a Alemanha é tomada por um “programa de eutanásia arquitetônica”, a desatualização não-lucrativa passa a ser punida com pena capital pelo frenesi destrutivo de investidores e tecnocratas.

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Graf & Gressmann atacam a instrumentalização da palavra “emocional” na Alemanha pós-Guerra Fria (cujos termos da reunificação sob a égide da vacuidade programática do neoliberalismo implementada por uma elite falida moralmente em meio à corrupção sistêmica Graf vem criticando desde os anos 90 em sobretudo thrillers policiais, mas também melodramas, realizados majoritariamente para a TV):

Como disse um conhecido arquiteto bávaro? «No lugar do antigo prédio da Agfa, o novo edifício irá oferecer acesso emocional». Sim, «emocional»… Uma palavra de extrema importância na cultura alemã dos últimos 20 anos […] Na política, no cinema, na música, nas finanças e na publicidade. Precisamos sempre cativar as pessoas emocionalmente. Os artistas, os políticos… A arquitetura agora também é emocional […] Mas sempre foi assim, inclusive nos períodos mais nefastos da história alemã […] Sublime, grandiosa, comovente, tocante, excitante, empolgante, sensível. Talvez esse estranho emocionalismo dos arquitetos, dos burocratas e dos políticos seja só a cortina de fumaça por trás da qual a verdadeira história alemã é descartada. Tudo o que sobra é pano de fundo. E Stadtschlossen (“Palácios da cidade”) [vemos imagens da demolição do Palast der Republik, o parlamento da Alemanha Oriental, para dar lugar à reconstrução do Berliner Stadtschloss, a antiga residência da monarquia Hohenzollern, remodelada para acolher o museu Humboldt-Forum, sobre o qual disserta Undine]. Tudo desaparece: os edifícios, o sol, os Reichs alemães, o dos nazistas e o dos stalinistas. Essas cores também desaparecerão. As maravilhosas cores desse material fílmico [a película]. Nenhum outro material fílmico no mundo é capaz de fazer esse muro ter essa aparência”.

Também os filmes do que se rotulou “Escola de Berlim”, tidos como austeros em excesso, sofreram muitas críticas centradas no argumento de que eles negariam ou dificultariam o acesso emocional do espectador. Conquanto refletissem justamente o estado emocional letárgico e desgarrado da burguesia alemã naquele período histórico. Já no fim da era Merkel, os desassossegos subiram de tom e romperam com o realismo: obras como In My Room (Ulrich Köhler, 2018), Ich war zuhause, aber… (Eu Estava em Casa, Mas…, Angela Schanelec, 2019) e Undine afastaram-se ainda mais da estética que outrora os notabilizou.

Ao final de Der traumhafte Weg (O Caminho dos Sonhos, Schanelec, 2016), a Estação Central de Berlim emerge melancolicamente como signo da perda do comum, do espaço público neoliberal hostil à sociabilidade retraindo os indivíduos à neurose dos interiores domésticos, em contraponto à ensolarada Ágora grega da sequência inicial durante as eleições europeias de 1984 e a luta política idealista por uma “nova Europa”.

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A paisagem urbana reflete o espírito do seu tempo e influencia a psique do sujeito. Em 1998, o desemprego na Alemanha atingiu um pico histórico e Stefan Hayn começou a pintar em aquarelas a transitória agressividade dos cartazes publicitários (políticos, comerciais) que colonizavam a paisagem urbana (cognitiva, sensível) de Berlim, prenunciando a ruína do Estado de segurança social, como forma de registrar (processar, compreender) as transformações econômicas, políticas e interpessoais que acometiam o país reunificado à sombra sitiante do neoliberalismo. Assim nascia o poderosíssimo Malerei heute (Pintando hoje, Anja-Christin Remmert & Stefan Hayn, 2005).

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Além de Undine, outro grande filme sobre o amor agourado pela gentrificação é Berlin Chamissoplatz (Rudolf Thome, 1980). Uma jovem estudante de sociologia se apaixona por um arquiteto de meia-idade. Ela integra um coletivo político que luta contra o projeto estatal de renovação urbana, considerado vetor da especulação imobiliária e da elitização higienizadora do bairro. Ele trabalha no Senado de Berlim, envolvido nessas mesmas obras. Como tão bem sintetizado pelo crítico Lukas Foerster, “o filme de Thome indica um lugar impossível entre as utopias contraculturais dos anos 70, que haviam se tornado antiquadas e paranoicas, e o autoisolamento burguês dos anos 80”[3].

“Eu acho que você está personalizando as pressões do sistema”, rebate o arquiteto. Ao contrapor dois personagens tão exemplarmente antagônicos, a proposta de Thome não é personalizar questões estruturais, as quais não partem do sujeito e nem se encerram nele, mas sim dar forma ao modo furtivo como elas se sobrepõem a eles. A estrutura social é tanto o que permite quanto o que obstrui a mobilidade dos indivíduos — por isso, o cinema de Thome desde sempre se dedicou a investigar a estabilidade das estruturas que pudessem viabilizar suas utopias particulares (políticas, românticas, sexuais). E o que os une e os separa é a indiferença que em última instância o progresso reserva-lhes.

Na janela de Berlin Chamissoplatz? Outro paredão, com os tijolos aparentes, sem acabamento. Se a bruteza da paisagem poderia ser deprimente, ela passa a representar uma imagem na contramão da gentrificação, e depois ainda será por cima dessa mesma superfície, banal e simbólica, que o arquiteto escreverá sua declaração de amor.

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Esse “Eu te amo”, entre a simplicidade da mensagem e o peso do quadro no qual ela é inscrita, dialoga com o modo petzoldiano de sobrepor o pessoal no político e vice-versa. A tensão constitutiva do cinema de Petzold se dá entre o arcabouço conceitual altamente elaborado dos projetos e o andamento narrativo melódico e retilíneo que eles apresentam. Seja lá o que mais estiver se desenrolando concomitantemente na forma ou no discurso, em primeiro plano mantém-se a obra de arte dramática — ação, reação e ficção.

Se uns personalizam as pressões do sistema, Petzold as mitifica. Assim Undine consegue se vingar do ex-namorado — redirecionando o alvo do sacrifício ritual — de modo que a camareira de Dreileben: Etwas Besseres als den Tod (Petzold, 2011) não fora capaz. Em ambos, Jacob Matschenz interpreta o (homônimo) imbecil de classe alta que não se importa com o mal que causa aos outros. Ainda que a ambientação na floresta germânica remeta aos contos de fadas, em Dreileben a realidade socioeconômica se impõe ao final.

Já o novo filme se assemelha ao japonês Mermaid Legend (Toshiharu Ikeda, 1984), também uma reação à modernização de uma antiga potência do Eixo, identificando que a única forma de romper com a ordem coercitiva social e com o modus operandi cínico e criminoso do status quo político-econômico é transformando-se no distúrbio solitário que incorporará a saída mitológica do impasse público, apresentando a conta por si só.

O que Undine não conta sobre o Humboldt-Forum — porque os empregadores dela não permitiriam — é que o museu vem sendo alvo de intensos protestos por se propor a ser um centro global de intercâmbio e diversidade cultural, entre outros desígnios superlativos, embora parte do seu acervo, herdado dos antigos Museu Etnológico e Museu de Arte Asiática locais, tenha sido formada em circunstâncias moralmente condenáveis, que representariam a manutenção de pontos de vista e metodologias coloniais.

Acusa-se o museu de apresentar a história de maneira falseada, dissociando o espólio material das expedições científicas europeias pelo mundo do contexto colonial no qual elas estavam inseridas. Portanto, se o Humboldt-Forum pode simbolizar que “o progresso é impossível”, como aludido por Undine, seria mais no sentido da inviabilidade de um simulacro hipócrita, estéril, autocongratulatório e ahistórico de progresso.

II.

Quanto ao ethos local, questão de geografia: o trabalho de Undine fica nas imediações do 1) Muro, i.e., do fantasma do Muro, que representa simultaneamente uma das principais fontes de renda turística da cidade — a personagem faz referência ao mercado da “Ostalgie”, de mimetização nostálgica da Alemanha Oriental, símbolo da comoditização do passado para consumo fetichista, o que se estende à exploração comercial dos traumas do século XX — e a “dor fantasma de uma amputação violenta” — como ela caracteriza o vazio deixado pela demolição do Berliner Stadtschloss na topografia urbana, sentimento de dor e de ausência que é igualado ao término súbito de um relacionamento e à partida de uma paixão, tão consumada quanto inconclusa —, e de 2) boates célebres — outro enorme bastião da economia local, redutos de hedonismo e do transe psicoativo que atraem indivíduos do mundo inteiro, e que, entre outras coisas, são expressão da liberdade sexual e da possibilidade prática dos desejos (hiper)transitórios em comunhão coletiva.

O circuito noturno da cidade floresceu após a queda do Muro, ocupando criativamente as suas ruínas urbanas devido à abundância de espaço abandonado. Cedo ou tarde, porém, todas as revoluções se institucionalizam. De repente, big business. Não à toa, a Amazon Prime ambientou na cena techno berlinense a sua versão dos seriados policiais alemães, Beat (2018), que abre com um monólogo sobre o apelo — já comoditizado — de “viver o momento e nada mais […] sem gastar tempo pensando no que pode vir a acontecer”.

Undine existe em clara oposição a certa fama e “autoimagem” da cidade, pasteurizada, por exemplo, num Fucking Berlin (Florian Gottschick, 2016) — o portfólio perfeito para a paisagem urbana da vida berlinense, apresentando-a em uma sedutora e festiva embalagem pop, sem que jamais percamos os cartões-postais de vista, na medida em que a credibilidade do romance está diretamente relacionada à encenação instagramável da fotogenia.

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Em Fucking Berlin, é recorrente a imagem da protagonista sentada em sua janela, buscando aproximar-se fisicamente da cidade, cuja aparência é mais humanamente tangível do que no quarto de Undine (que dirá do deprimente paredão de Unter den Brücken), sendo, por sinal, justamente isso que a personagem diz fazê-la menos solitária: embora termine o filme sem o namorado e sem a melhor amiga, ela afirma não estar sozinha, estendendo o braço para fora, tentando tocar o ar e a aura da cidade.

Nota: costuma-se referir ao “ar de Berlim” como metonímia para a aura da cidade. E ele também já virou souvenir: no curta Berliner Luft (Riki Kalbe & Barbara Kasper, 1996), descreve-se como um engenheiro obteve sucesso em vender aos turistas latas de leite vazias, envoltas por uma embalagem com gravuras dos grandes ícones locais, sob o pretexto de que elas continham “ar de Berlim” enlatado — e ainda patenteou a invenção.

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“Berlin não é uma cidade, mas um ritmo. Esse ritmo é tão forte que pode te fazer perder o controle. E cada pessoa que você encontra altera o seu beat”, explica a protagonista de Fucking Berlin. “A cidade mais safada do mundo!”, lhe diz a amiga — vide Yung (Gronkowski, 2018), produção da juventude local. Em suma, a ideia de Berlim como festa infinita, sem limites ou tabus, oscilando entre o que há de autêntico e o que há de branding.

Undine, o conto da ninfa que se entrega ao homem sob a condição de que irá matá-lo caso ele a deixe, também mitifica questões que atravessam o belíssimo e indefectivelmente berlinense Der schöne Tag (O belo dia, Thomas Arslan, 2001), que aborda o ímpeto de desistir dos relacionamentos amorosos em face de quaisquer turbulências, dada a aparente facilidade de se encontrar novos parceiros românticos e sexuais na metrópole.

A sereia sabe que os homens a assimilam como superfície na qual podem projetar os seus desejos até o ponto que lhes for conveniente. Christoph a desconcerta elogiando a sua aula sobre um pântano camaleônico e ela julga ter encontrado o último homem inocente. A problemática da projeção unilateral no outro é uma constante na obra de Petzold. Quer motivada por libido, estratagemas ou esperanças. Uns tentam manipular outros, que, por sua vez, manipulam os manipuladores com base nas expectativas deles. A diferença é que Undine talvez seja a sua primeira história de amor correspondido.

Ansiosa por existir além dos prazos transitórios do desejo e da sala de turnos onde os tesouros afetivos estão destinados a se despedaçar, Undine entrega tudo de si na paixão que crê poder enfim libertá-la do ciclo mítico vicioso. Para ela, o relacionamento é como um salto mortal, a sua última chance. Daí a iminência da queda impiedosa que a assombra, da frustração brutal que se pressente após tamanho investimento emocional. Do material ao metafórico, tudo está se quebrando ou à beira de se quebrar. A pressão se torna palpável além do mais porque Petzold só costuma fazer um take a cada plano. É tudo ou nada.

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Undine realça que uma simulação foi fundamental para angariar apoio à reconstrução do Berliner Stadtschloss — uma imagem em trompe l’oeil da fachada do Palácio foi instalada em seu local original, replicando-o em escala real. Em Gespenster, a mãe à procura da filha desaparecida carrega fotos que simulam digitalmente a aparência da menina depois de tantos anos, as quais revelam uma adolescente muito parecida com a jovem que ela diz ser sua filha. A questão é que a mãe não precisa daquelas imagens para crer no que deseja e a jovem também não cogita mudar de ideia ainda que as fotos suscitem dúvidas.

Christoph necessita da gravação subaquática para que os seus colegas acreditem na existência do peixão que ele alega ter visto. Porém, quando o vídeo lhe mostra que Undine não se encontrava debaixo d’água, ele não toma as imagens como fato e mergulha no fundo do rio para procurá-la novamente. No limite, todas as ações vão se resumindo à vontade de crer e interesses pessoais. E é assim que se originam os infortúnios.

Se em Transit Paula Beer representava a promessa de uma ilusão — a imagem da beleza elusiva que, fugazmente capturada pelo olhar, vem intensificar afetivamente as frustrações existenciais e políticas do protagonista —, em Undine ela personifica — interpretando a figura mitológica que também é uma bela mulher — o destino da musa-motor dramático que é descartada após, julga-se, ter cumprido a sua função. À semelhança do seminal Unter de Brücken, cujo ponto de partida é a tentativa de suicídio de uma jovem mulher que se sente usada e desprezada após ter posado nua como modelo para logo em seguida ter sido grosseiramente dispensada pelo pintor que a persuadira.

Se em Transit enquadrava-se Beer a partir dos olhos de Rogowski, em Undine inverte-se a perspectiva: Rogowski só passa a existir quando Beer repara na presença dele, cujo personagem não pode ser visto em quadro no tour que antecede o encontro. No mais, nós acompanhamos a resistência de Undine em obedecer às expectativas narrativas com as quais ela pode não estar em conformidade. Ciente do seu papel mítico, ela alerta ao ex-namorado que terá de matá-lo, mas posteriormente se permite esquecer da obrigação. Apesar de morar em um local obcecado com a ideia de reinvenção, a tragédia de Undine é não ser capaz de transcender a sua função social como criatura fantástica e ficcional.

Ela compartilha o pouco usual sobrenome Wibeau com o protagonista de Die neuen Leiden des jungen W. (Os novos sofrimentos do jovem W., 1972/3), romance e peça de Ulrich Plenzdorf acerca de um jovem rebelde na Alemanha Oriental obcecado com o Werther, de Goethe, a ponto de ir confundindo a sua vida com o livro, utilizando-o como modelo para as suas ações e ferramenta referencial para expressar os seus sentimentos.

À essa altura, diga-se, Petzold está tanto fazendo referência às suas referências quanto se autorreferenciando a referenciá-las. Em Polizeiruf 110: Kreise (2015), policial e suspeito confrontam-se com estratégias fundamentadas em obras de ficção tidas como úteis para a ocasião. Os dois concordam que o terrível sobre os clichês é que eles costumam ter um fundo de verdade. Por fim, uma maquete (da cena do crime, descobrimos) confeccionada pelo assassino confunde-se com o real, revelando outra perspectiva sobre o passado.

Undine parece portar um celular de flip e um Ipod nano para evitar a simples associação entre as suas angústias e as redes sociais na forma em que elas existem hoje. Afinal, a desorientação existencial da jovem subempregada, fragilizada afetivamente, que desesperadamente anseia por laços de intimidade em decorrência da solidão característica da metrópole moderna já era o tema de Unter de Brücken (1945/6).

Em Unter de Brücken, Käutner apresenta a cidade ao público articulando uma montagem de chaminés esfumaçadas e trens em movimento. Como a personagem havia acabado de se mudar para a capital, ela explica que não tinha ninguém com quem conversar. Então, solitária na grande cidade, relegara-se a uma existência espectral, anônima na metrópole e na modernidade. Aos domingos, só lhe restava observar a felicidade dos casais nas praias fluviais de Potsdam, culpando-se pela própria solidão. Tal e qual fantasma.

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— “Berlim é a sua casa?”

— “Não, minha casa não. Eu estou completamente sozinha em Berlim”.

Unter de Brücken também é a história de dois marinheiros — ocupação dos primeiros emissários da modernidade — que desejam sossegar da vida em trânsito. Sem tempo para conhecer melhor as mulheres com quem se envolvem, eles sentem que estancaram num ciclo cada vez mais solitário de deslocamento perpétuo. “Estamos sempre com pressa”, lamentam, o que, na visão deles, impossibilitaria o fortalecimento de vínculos afetivos.

Undine e Christoph também estão sempre com pressa ou sendo apressados. Nunca andam a esmo, somente com propósitos claros. Em cena, só lhes é permitido amar e trabalhar. Sem um terceiro pilar, quando um dos restantes desmorona… Entre eles, opõem-se mais do que o trabalho braçal e o intelectual (contraste outrora muito explorado no cinema da Alemanha Oriental): Christoph ainda dispõe de algum tipo de solidariedade proletária dos colegas, ao passo que Undine já está inserida no mercado laboral da sociedade pós-industrial. Ela é apenas mais uma freelancer desprovida de seguridade social. Por isso, é tão fácil para ela desaparecer da face da terra e para os outros esqueceram-na.

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No documentário Berlin Babylon, pode-se ver os mergulhadores, vestígios de outra era industrial deslocados em uma economia em processo de desindustrialização, trabalhando incógnitos na reforma subaquática da metrópole erguida sobre terreno pantanoso. Para fazer Undine, Petzold afirma ter sido estimulado por uma mescla singular de marxismo e romantismo[4] — a escola literária alemã, uma reação à industrialização do país.

Longe de Berlim, das profundezas desperta o reencantamento do mundo. Debaixo d’água, onde as cadências do tempo e do movimento são distintas do habitual, os amantes encontram um espaço para harmonizarem-se ao ritmo do outro, em comunhão à natureza, conquanto sem renunciarem à mediação tecnológica dos trajes. Como se fosse uma imersão utópica à procura de qualquer coisa de atemporal, imperturbável e primordial. Mas quem extasia-se tão a fundo não retorna à superfície sem abstinência. Dá-se início à eterna obsessão para retornar àquele estado ou replicá-lo.

Além do que, tudo é tão breve. Os novos locatários (“Sorry, my German…”) do antigo apartamento de Undine informam a Christoph que a residência é destinada a aluguéis de curta duração. Não é por acaso que o romance principal é um namoro à distância. São as adversidades afetivas de um local onde os potenciais relacionamentos sofrem com o clima de transitoriedade cultivado pelo fluxo ininterrupto de turistas e novos moradores temporários, que encaram aquela permanência como uma digressão.

Ou como escreveu Jessica J. Lee em Turning: A Swimming Memoir, sobre a experiência terapêutica da autora nadando nos lagos em torno de Berlim:

“«Talvez eu volte». Ele não parecia convencido. «Todo mundo diz isso» […] Todos partem, ele me disse, então você tenta não se apegar […] Eu fiquei me perguntando se os dias que compartilhamos não estavam apenas marcando o tempo passar”.

[1] Fisher, Jaimey. Christian Petzold. University of Illinois Press, 2013, pp. 89-90.

[2] Daney, Serge. A rampa. Cosac Naify, 2007, pp. 99.

[3] https://letterboxd.com/dirtylaundri/film/berlin-chamissoplatz/

[4] https://www.filmcomment.com/blog/the-film-comment-podcast-christian-petzold-on-undine/

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Rio do cão

Por João Pedro Faro

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O patrão anuncia: “Lá em cima, o corcovado, com o Cristo de braços abertos. A empregada matou minha mulher a facadas”. Seu braço morto está caído, pisoteado pela empregada assassina, num samba sobre o corpo. Em Cuidado, Madame (1970), primeiro filme da Belair, o Rio de Janeiro é assim, visto do chão. Sucede, após essa apresentação, o desfile mórbido e celebratório das domésticas livres pelas ruas da cidade, arranjando folga pelas vias do homicídio avacalhador.

Estamos em Copacabana, coração de um ideal (já antigo) de Brasil filmado. A mesma Copacabana que recebeu Pato Donald em sua viagem para o Rio, a mesma Copacabana que foi palco de todo um sonho estadonovista por uma indústria de cinema para chamar de sua. A Copacabana das chanchadas, o material arqueológico escavado e regurgitado no cinema da produtora Belair.  E o que seria a Belair, se não a concretização de um sonho de pequena indústria? Uma continuação da Atlântida Cinematográfica feita de dinheiro retroalimentado, injetado em filmes excruciantemente cariocas.

Nisso, Cuidado Madame serve como atestado de princípios do uso do espaço público. Habita um cartão postal, percorrendo a Vieira Souto para chegar na praia, mas paga o preço necessário para isso. E qual seria o preço? Sem dúvidas, a vida dos patrões. Maria Gladys esfaqueia as patroas para fazer Carnaval em dia de serviço. Os limites que lhe são impostos, a barreira entre a cozinha e a sala, naqueles enormes apartamentos de beira-mar que poluem e embarreiram a praia de toda a cidade do Rio, são destruídos por uma nova gestão de trabalho. Esta gestão – a das tripas para fora – permite que o cadáver das patroas sirva de ponte para a livre circulação entre os espaços que habita.

Se Copacabana Mon Amour (1970) viria a convulsionar o limite físico entre o morro e a calçada, o que ocorre em Cuidado Madame é um processo anterior de articulação entre a possibilidade de ocupar as ruas e a necessidade de ocupar os apartamentos. Maria Gladys, após suas matanças, leva Helena Ignez para as casas das patroas, a fim de puxar um baseado no sofá caro, roubar peças de roupas que lhe interessam e gozar dos corpos das madames que deixou ensanguentados à beira das piscinas. Logo depois, descem de volta para a rua.

A câmera, guiada por Bressane, balança ao andar de seus passos, atrás de Gladys e Ignez. Bressane não filma apenas na rua, como também filma a rua, uma adição que existe por tratar o maquinário fílmico como instrumento de registro visível. Ou seja, a câmera nunca desaparece, nunca finge não existir. Ao filmar suas personagens em contato direto com os fluxos vivos de uma Copacabana movimentada, esbarrando em pedestres, sendo observada por curiosos que chegam a olhar diretamente para a lente da câmera, ele aceita a rejeição daquele espaço em ser encenado e faz disso o processo da encenação.

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A rua da cidade, imparável, não deseja ter nenhum de seus processos diários interrompidos pela simples vontade de um cineasta em filmar na locação. Portanto, a cidade rejeita naturalmente a presença de um maquinário fílmico que tente fingir ser invisível, que peça para os pedestres não passarem em frente à câmera, que feche uma rua para evitar barulho dos carros. Se o cineasta ocupa a rua para filmá-la, que pelo menos permita que ela reaja de volta à sua presença. É exatamente isso que acontece nas grandes sequências de Cuidado Madame, em que não só os passantes interagem com a presença de Bressane, Ignez e Gladys, como também deixam com que as atrizes sejam formalmente integradas ao espaço urbano que ocupam. Praticamente nenhuma linha dos diálogos entre as duas na rua é minimamente audível, sendo esmagados pela barulheira de carros, pessoas e comércios. Copacabana deixa de ser um palco idílico, um estúdio sonhado que reúne uma alma carioca, para se tornar um espaço de encenações do erro, do tropeço, das milhões de possibilidades oferecidas pela filmagem sísmica declaradamente suspensa de grandes intromissões.

A jornada da câmera, a passos, percorre do terreno baldio ao terraço do apartamento de luxo. Os extremos existem em semelhança, pois as transições entre eles estão possibilitadas, já que os donos das terras estão mortos. Certamente, podemos dizer que Cuidado Madame estabiliza os intensos fluxos de um bairro-turismo planificando suas construções (e suas especulações) em um mesmo horizonte de uma ocupação iconoclasta. Já que as domésticas homicidas têm acesso a toda a extensão de um território de limitações fortificadas, elas podem caminhar sobre esse chão em tom de despreocupação e de avacalho, sendo os limites anteriores uma risível tentativa atual de impedir sua passagem pelo espaço. Como símbolo maior de uma fortificação ridícula, está o Copacabana Palace. Esse castelo imperial que ocupa todo um quarteirão, essa força de retomada do Brasil Colônia em um forte branco que reluz o sol de meio-dia, não é nem vislumbrado pela dupla de protagonistas, que deixam apenas um rastro de sangue ao lado de suas extensões.

Em outra recorrência que aponta para uma livre ocupação urbana, estão as vazias viaturas policiais, enquadradas mais de uma vez por Bressane. Acumuladas e ocas, como carcaças de animais em bando, as viaturas surgem nas imagens de Cuidado Madame como uma representação de uma ameaça inexistente às forças caminhantes das domésticas assassinas. Não há qualquer momento em que seu triunfo de circulação despreocupada seja regulado por uma força advinda da manutenção das propriedades privadas, pois não há qualquer interesse de Bressane em interromper sua encenação que institui o enquadramento como uma liberta entidade de circulação, que processa os planos no andar ora aproximado, ora distanciado das duas atrizes.

E onde está, então, o resto da cidade do Rio? Não existe. Copacabana está em Cuidado Madame para concentrar todo o ícone de uma cidade. Está refletida nas janelas dos prédios de metro quadrado mais caro, enquadrada pelos limites das bordas desses vidros que refletem replicações de si mesmos. Copacabana existe como centro de representação do Rio de Janeiro da mesma forma que Gladys existe como a personagem de chanchada que deve representar toda uma classe, todo um núcleo de existência popular; choque de ícones totalizantes em um processo de carnificina libertadora.

Uma empregada esfaqueia a patroa e vai à praia, rompendo com qualquer impossibilidade de ação. Seria esse, enfim, o emprego perfeito? A matança é um trabalho duro, que requer suor e força braçal, mas que possibilita um Carnaval permanente pelas ruas de uma cidade maravilhosa.

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