Um dos planos que melhor encapsula o jogo central de May December, novo filme de Todd Haynes, provavelmente é o que mais inspirou os cartazes do longa: um médio conjunto das duas protagonistas femininas olhando para a frente, com a câmera – e, nisso, também o espectador – representando um espelho. Nele, a atriz Elizabeth Berry (Natalie Portman) observa a boleira Gracie Atherton (Julianne Moore), personalidade real que interpretará em três semanas num filme, maquiar-se. Ela reencenará o polêmico início do romance entre Gracie e seu marido Joe Woo (tocantemente frágil na interpretação de Charles Melton), quando ele tinha apenas 13 anos e, ela, 36; um caso manchete de todos os tablóides nacionais à época. O filme de Todd Haynes se passa durante o “processo criativo” de Elizabeth para o papel, em que ela convive com o casal e seus filhos gêmeos em período de graduação enquanto entrevista as pessoas envolvidas e visita os lugares-chave do caso. A tensão é latente desde a primeira vez que Gracie e Elizabeth se encontram porque ambas representam, ao mesmo tempo, o combate a uma narrativa e o seu eterno estatuto de comoção popular. Por mais ambígua que a atriz deixe sua opinião sobre o caso, ela agita o pó da polêmica em âmbito local (a cidadezinha que vira seus olhos à figura da televisão corporificada) e lembra que o mundo logo voltará seus olhos ao caso.
De um jeito ou de outro, as duas protagonistas são mulheres que são imagem pública. Gracie, à sua maneira, é uma sorte de ícone geracional, uma imagem vertiginosamente reproduzida e já fixada no imaginário coletivo como um misto entre o arquétipo lilithiano da corrupção da pureza, e a santa punida pelo seu “amor ingênuo” (a pose quase virginal segurando o bebê de Joe, parido na cadeia, é uma das que Elizabeth tenta imitar de frente ao espelho). E muito interessa que a personagem de Portman seja constantemente mostrada posando em frente a um espelho que é a câmera. Esteja ela conversando ao telefone, esteja ela testando imitações: não vemos o reflexo, a imagem produzida. Vemos a pose deslocada de um crivo de ficção, de um contexto de encenação – vemos a pose em meio ao que entendemos, no filme, como o “mundo vivido”, o extracampo dos tabloides. Elizabeth suga em tempo real sua fonte original e, por isso, sua presença é intrinsecamente vil, vampiresca. Ela habita os espaços à volta do casal como a câmera de um reality show, próxima o bastante para um ângulo privilegiado, mas distante o bastante para abster-se da responsabilidade de sua presença. Seu ofício é o subterfúgio de seu fetiche.
A lacuna é gritante entre a atriz e o casal não só pela sua presença de invasora, mas pelo que ela busca e o que se apresenta em sua frente. Ela revira águas passadas e ressecadas, em busca do contexto para o fogo entre mulher e menor, mas o momento atual é o fim de um ciclo. A iminente partida dos filhos vira em Joe uma melancolia profunda; ele sente o luto do seu objetivo direto de viver até então – as crianças -, e parece perceber que os gêmeos entram agora no início de uma fase que ele renunciou permanentemente por um amor que ele jamais pôde questionar pela integridade pública do seu par. Joe parece tão alienado ao ponto de sequer saber expressar seus sentimentos em palavras; ele gagueja e soluça impotente. Em sua pureza de criança grande, Joe é uma ferramenta tanto para a esposa quanto para a atriz. Para Gracie, ele é um ponto a se provar; para Elizabeth, um objeto de desejo.
É inevitável falar de fetiche ao adentrar um pouco mais em Elizabeth, pois é sua forma de se relacionar com o mundo. A ligação safada com o diretor casado, o flerte muito frontal com Joe em toda oportunidade, a resposta que vira monólogo sexual a um público adolescente em espaço escolar, o sexo simulado sozinha na despensa da loja de animais onde o Gracie e Joe fizeram sexo pela primeira vez. Sua relação com o mundo é fortemente – senão inteiramente – filtrada pelo potencial sexualizante das coisas. Sua relação com o caso que encenará, naturalmente, também é contaminada pelo fetiche, de forma que Elizabeth parece uma potencial reprodutora do comportamento de Gracie (como nos sugere o plano final do filme). Aqui voltamos ao plano comentado no início: ambas estão de frente ao falso espelho. Gracie começa em foco, se maquiando, enquanto Elizabeth apenas observa ao fundo, ligeiramente turva; as duas se olham pelo reflexo implícito do espelho. Então Gracie a convoca ao mesmo plano focal, “é melhor se eu fizer isso em você”. Ambas passam a se olhar de frente e , pela primeira vez, Gracie é quem faz as perguntas sobre o passado de Elizabeth. As duas começam uma troca estranhamente confortável. Os subterfúgios de Elizabeth não conseguem evitar: ambas estão equiparadas.
May December é um filme que poderia facilmente alimentar-se da profusão de reflexos, duplos, e demais jogos de espelhamentos envolvendo as duas personagens principais em suas composições cênicas. Mas a obra parece preferir que elas se manifestem quase unicamente pela sua presença, pelas implicações da trama. Ao contrário, o mundo é que parece um reflexo (a imagem de Joe soltando a borboleta sobre a janela da casa; uma libertação unicamente simbólica, sublimada no insetinho. Só lhe cabe assisti-la.) dos seus mecanismos de manipular a própria imagem. A pergunta que se levanta quando Haynes rejeita o jogo dessas opacidades é “o que sobra dessas mulheres sem as imagens que lhes sucedem e precedem?”.
“O universo é eterno, os astros são perecíveis e como formam toda matéria, cada um passou por bilhões de existências. A gravitação, com seus choques ressuscitadores os separa, os mistura, os sova e modela incessantemente, com tanta maestria que não há um só que não seja composto da poeira de todos os outros. Cada polegada do chão que pisamos fez parte do universo inteiro.
Mas é apenas uma testemunha muda, incapaz de contar o que viu na Eternidade.”
(Louis Auguste Blanqui em A Eternidade Pelos Astros).
Em um ensaio sobre “A História do Olho” de Georges Bataille, Júlio Cortázar descreve um dia quente em Grignan onde, à beira de um plátano, olha o movimento da rua e observa uma ciclista a andar com graça em sua bicicleta. Em algum momento, a jovem ajusta sua saia e todo o cenário que cerca Cortázar se isola e se torna uma única coisa: esse leve remexer deixa à mostra as coxas em contato com o selim da bicicleta, criando um movimento hipnótico e sexual sob um sol imperdoável. O mundo se isola e se define naquela curva entre a saia e o selim, como se fosse a expressão de um momento divino – e proibido. Essa é uma digressão.
Há também quem diga que há duas impossibilidades primordiais no cinema: A representação da morte e do sexo. Há quem diga que a presentificação do ato sexual é inconcebível em uma arte onde se morre dez vezes em sequência. Também muito se discutiu o ato voyeurístico de ir ao cinema nas academias e na prática, ao bisbilhotar por entre as frestas nas madrugadas pela TV ou em quartos escuros o ato da nudez em nossa frente. A palavra ‘abjeta’ é usada em ambas as situações, em diferentes contextos. Há quem discuta todas essas implicações. Há quem discuta a necessidade do sexo no cinema. E todas essas questões são válidas. Se não as fossem, eram tão somente conjecturas. Mas essa é outra digressão.
Porém não cabe aqui a digressão. O que talvez caiba aqui é algo da ordem material e das coisas e não das ideias: Se nada disso é possível, se o sexo é abjeção na tela, se o isolar de um momento é um ato voyeurístico, como se explica, então o ato de trazer dos mortos o sexo de espectros e isolar essa única cena, um único detalhe, uma única circunstância e tornar o sexo o momento presente e eterno? Como trazer ao mundo imagens que mediam o desejo da carne e o desafiar do tempo? Como pode o sexo sair da conjectura do abjeto e se tornar algo cósmico?
Esse é XCXHXEXRXRXIXEXSX, de Ken Jacobs, onde duas mulheres colhem cerejas em uma árvore e são tomadas de assalto por um homem e iniciam uma verdadeira aventura sexual. Uma cena que dura horas e que é esmiuçada até o fim: vemos planos abertos, planos fechados, pernas abertas, pernas fechadas, bocas, mãos, duas mulheres indo em direção a um homem, levantar de saias e um verdadeiro êxtase pornográfico. Tudo isso em uma única ocasião: Mulheres colhendo cerejas. Não há nada mais do que isso. Não há uma trama ou um ponto de virada, um ato de sedução: O que há é o sexo, o corpo e a materialidade pura e simples. O que pode parecer algo comum na mídia corrente, nas mãos de Jacobs é, por assim dizer, um assombro: são utilizadas imagens de arquivo do início do século XX de um filme pornográfico chamado Cherries. Nada disso está vivo. E ao mesmo tempo, tudo está vivo e pulsante. E como pulsa.
É como se houvesse uma decomposição imagética do mundo e do ato sexual em partes, um breve chamariz de que o isolar do mundo em uma centelha de imagem durante minutos e minutos torna o ato sexual não somente algo da ordem do voyeurístico – afinal de contas, vemos a mesma cena milhares e milhares de vezes por minuto, ao ponto de a mente ir vagar em outros cantos do quadro que não nos corpos nus. Já não nos importa mais os corpos, mas sim, o que eles fazem, como eles se movem, como eles são compostos. Eles se desintegram, se reintegram, se esfacelam e se unem. Isso se eleva à ordem do divino, onde das coisas mais pecaminosas aos olhos humanos surgiu uma divindade, uma centelha do eterno, de algo que se repete e se extingue ao mesmo tempo. O que você vê ali são espectros, fantasmas, mediados pelo eternalismo – a técnica em que se alternam fotogramas próximos em sequência mediados por um plano negro, realçando a profundidade e um movimento 3D vivo. É como se as imagens estivessem em um constante indo e voltando, continuamente em um ato sexual desmedido, presente e ausente, infinito e avassalador.
A sensação de ver XCXHXEXRXIXEXSX é o prato de leite na história de Bataille, é a mulher de bicicleta em Grignon, é ver um corpo nu pela primeira vez. É uma sensação visceral. Nada te prepara para isso, porém uma vez visto, jamais esquecido.
Ken Jacobs mostra que a unidade primordial do mundo está em três coisas: No sexo, na morte e no que há entre os dois – o frame negro. O infinito do sexo está entre esses fotogramas semelhantes, escondidos no frame negro como uma espécie de mistério, o mistério da carne e do mundo. É como se ele nos dissesse que essas cerejas colhidas por essas mulheres seminuas transando com um homem em meio a uma floresta tivessem sido colhidas em um Éden. O fruto proibido, as cerejas, residem nesse frame escuro que realça o ato e a imagem. O frame escuro é o mistério da carne e do mundo. E abençoado seja esse mistério.
Era um dia quente de fevereiro de 1970, regado a chope gelado e enevoado pela fumaça dos cigarros de todos os presentes. O jovem cineasta Rogério Sganzerla, de 23 anos, espinafrava o Cinema Novo na ocasião do lançamento de seu novo filme, A Mulher de Todos – um dos grandes títulos do Festival de Brasília de 1969, incompreendido por parte da crítica durante o evento. Ao seu lado, comandava a entrevista em posição de igualdade a esposa Helena Ignez, atriz baiana que fora musa cinemanovista antes de passar a ser um elemento chave do que viria a ser chamado de “Cinema Marginal” ou “Cinema de Invenção” – um núcleo que vinha sendo gradualmente estruturado a partir dos anos finais da década de 1960, e que se agrupava em torno de um projeto estético e ideológico radicalmente diferente daquele que marcara época no período do Cinema Novo.
“Eu não acho que é perigoso. Se fosse perigoso eu acharia interessante também. A civilização do século XX já cansou de cultivar o perigo, o perigo hoje é uma coisa obviamente bacana. Talvez eu até nem goste do perigo, mas eu acho bacana.”, dizia acerca do Cinema de Invenção o entusiasmado Sganzerla, já consagrado como o autor de O Bandido da Luz Vermelha, rodado por ele em tenra idade, dois anos antes. Entre um e outro gole de chope, disparou: “Então, nós estamos vivendo uma fase agora onde você pode, por exemplo, como a gente estava há três meses atrás, falar bem da chanchada e falar mal do Cinema Novo. O que era antigo em [19]59, a chanchada, hoje é um dado de criação, um dado inventivo e o que era novo, o Cinema Novo, virou um dado conservador”.
É difícil imaginar o curto-circuito que a entrevista dada pelo cineasta e pela atriz aos jornalistas Millôr Fernandes, Sérgio Cabral Sênior, Tarso de Castro e Jaguar, d’O Pasquim[1], pode ter dado aos leitores menos familiarizados com a situação do cinema brasileiro naquele momento. Afinal, o Cinema Novo estava chegando a seu momento culminante: após denunciar radicalmente a situação do “Brasil profundo” em suas obras, que circularam amplamente pelo país e pelos festivais internacionais ao longo da década anterior, o movimento liderado intelectualmente por nomes como Glauber Rocha e Carlos Diegues finalmente conseguira firmar o pacto fáustico com os militares do regime ditatorial que então governava o país na fundação da Embrafilme, companhia de capital misto que fomentava a produção e distribuição de filmes brasileiros, responsável por um período irreconhecivelmente regular na produção de longa-metragens de ficção nacionais de projeção comercial e boa bilheteria entre 1969 e 1990 – quando, já agonizante, a empresa foi dinamitada pelo governo Collor. Naqueles primeiros meses do ano de 1970, estavam sendo gestados, sob faustosos orçamentos, os primeiros grandes filmes rodados por diretores oriundos do Cinema Novo para a Embrafilme, que nem sempre resultariam em produtos finais verdadeiramente interessantes, mesmo que bem-acabados – ver Barão Otelo no Barato dos Milhões (1971), de Miguel Borges, rodado com orçamento estelar para a época, com Grande Otelo no papel principal, película colorida e trilha sonora composta por Edu Lobo, e que mesmo assim entrega um resultado medíocre, para dizer o mínimo.
Fato é que, no mesmo período em que o Cinema Novo se dissolvia com a fundação desse cinemão industrial chancelado pelos militares, algo novo vinha sendo maquinado em São Paulo. Antigas lideranças do núcleo cinemanovista tentaram barrar a penetração de O Bandido da Luz Vermelha, de Sganzerla, no circuito nacional e europeu de festivais em 1968, temendo que a exposição de um filme radicalmente novo como o Bandido caísse à crítica e ao público como um atestado de óbito do reinado cinemanovista. O caminho das pedras, ademais, já era explanado pelo próprio Sganzerla em sua fita de estreia: o que havia de verdadeira novidade, naqueles emblemáticos anos finais da década de 1960, vinha da Boca do Lixo.
Contexto: a Boca do Lixo é uma região do centro de São Paulo, marcada sobretudo pela emblemática rua do Triumpho e pela rua Vitória, onde as majors internacionais de distribuição cinematográfica fixaram-se no início do século XX. Dali, os grandes lançamentos norte-americanos eram levados, cidade afora, por trabalhadores que carregavam as pesadas latas de filme em carrinhos de mão – quando o destino era mais longínquo, os rolos eram despachados em trens. Eventualmente, o local começou a entrar em decadência, tornando-se ponto de prostitutas, vagabundos, bêbados e marginais – e ainda assim, o ethos cinematográfico não largou o osso daquele quadrilátero. Nos botequins da rua do Triumpho, reuniam-se operários que transportavam as latas para cima e para baixo, técnicos que trabalhavam nos filmes brasileiros que vinham sendo gravados na capital paulista, diretores e roteiristas de obras de baixo orçamento e, marcadamente, uma nova geração de críticos e cineastas formada pela Escola de Cinema São Luiz, com bagagem diferenciada e avidez por fazer e acontecer, que encontraria naquele manancial um ambiente de trabalho propício para suas ambições. Ali, jovens promissores como o supracitado Sganzerla e Carlos Reichenbach trocariam ideias com nomes como Jean Garrett e Ozualdo Candeias – “paus para toda obra” mais experientes, e que trabalhariam como diretores, fotógrafos e até mesmo atores em um sem número de fitas gestadas entre uma e outra garrafa de cerveja nos bares da Triumpho. Aquele ambiente efervescente seria registrado por Candeias nos curta-metragens Uma Rua Chamada Triumpho 1969/70 (1970) e 1970/71 (1971), e relembrado posteriormente em longas como As Bellas da Billings (1987).
Já na entrevista dada a’O Pasquim, quando aponta a chanchada como um dado de criação, Sganzerla parece estar traçando o mapa da mina para o entendimento do cinema que vinha sendo feito na Boca do Lixo. O caráter sisudo e professoral das produções cinemanovistas dava lugar a uma linguagem despojada e, por vezes, francamente debochada. As personagens trágicas que serviam como avatares para as mazelas do povo brasileiro eram substituídas por atores e atrizes recorrentemente entregues a interpretações brechtianas, em longas que se importariam muito mais com a experimentação visual do que com uma narrativa clara e moralizante. Os cineastas da Boca, através dessa metodologia (que não era necessariamente uma cartilha a ser seguida à risca por todos), poderiam finalmente filmar com olhos livres[2], sem tabus. Isso pode ser visto já em A Mulher de Todos, sobretudo na forma como o filme lida com o erotismo.
Ângela Carne e Osso, a “mulher de todos” vivida por Helena Ignez, já se impõe e mostra sua atitude ao espectador desde o (emblemático) cartaz do filme: expressão de desprezo no rosto, cigarro pendurado na boca, mãos na cintura e braguilha da calça aberta. Apesar do título sugestivo, em momento algum a personagem é mostrada por Sganzerla como um mero objeto de desejo: o grande apelo de seu longa está na constatação de que, cobiçada por todos os homens que cruzam por seu caminho, a personagem faz deles gato e sapato a seu bel prazer. Esse exemplar prematuro de filme do Cinema Marginal a lidar com o sexo e a sexualidade de forma mais direta (ainda que sem trazer o apelo necessariamente para o físico de suas personagens) segue a trilha de obras como As Libertinas, longa episódico rodado na Boca em 1968 por Carlos Reichenbach, João Callegaro e Antônio Lima, e precede trabalhos como O Pornógrafo (197), de João Callegaro, e Audácia! – A Fúria dos Desejos (1970), de Reichenbach e Antônio Lima.
É de se pensar de onde o cinema da Boca do Lixo teria tirado sua “aptidão” ao erotismo. Pode-se argumentar que é um movimento compreensível, uma vez que o contato cotidiano com as manifestações da sexualidade no Brasil tornaria o tema naturalizado (ainda que tal visão perigue cair na perspectiva datada e passível de questionamentos de que o brasileiro seria um “povo sensual”, vide Gilberto Freyre), mas nunca antes no cinema brasileiro ele havia sido tratado de maneira tão despreocupada (obras cinemanovistas que lidam com o sexo e a nudez, como Os Cafajestes [1962] de Ruy Guerra, não exploram a sensualidade, mas sim os jogos de poder e a miséria existencial; em Walter Hugo Khouri, autor fora da curva e da grei dos “movimentos” cinematográficos, o erotismo é um elemento que articula as tensões de seus sofisticados jogos psicológicos, passando a ocupar papel cada vez mais determinante em seus filmes mais tardios). Talvez tenha sido das fitas do Zé do Caixão, dirigidas por José Mojica Marins, autor cultuado e tido como mentor pelos expoentes mais significativos do Cinema Marginal. Talvez tenha sido, mesmo, uma retomada da linha evolutiva da chanchada, onde desde a década de 1930 verificava-se uma sexualidade “bem-comportada” nas esquemáticas dos casais mocinha-galã e nos números musicais, mas com destaque para grupos de vedetes apresentando marchinhas carnavalescas e trajadas em maiôs justos, com as pernas à mostra — seria ingênuo não considerar o dado da exploração da imagem do corpo feminino como um dos fatores para a comédia musicada ter se tornado, a rigor, o primeiro filão de bilheteria do cinema brasileiro. A Boca do Lixo viria a (re)descobrir esse filão, seguindo nesse sentido um caminho bem diferente daquele trilhado por expoentes do já dissolvido Cinema Novo (Carlos Diegues, por exemplo, parece ter aprendido todas as piores lições da comédia musicada em Xica da Silva [1976], que não obstante logrou grande sucesso comercial, enquanto Joaquim Pedro de Andrade subverteu os signos visuais da chanchada de forma mais iconoclasta em trabalhos como o seu Macunaíma [1969]).
O Cinema de Invenção desenvolve-se em vento de popa ao longo daqueles primeiros anos da década de 1970, com Sganzerla passando uma temporada no Rio de Janeiro com Júlio Bressane, onde os dois gravam os seis míticos filmes da efêmera produtora Bel-Air; cineastas como José Agrippino de Paula, Andrea Tonacci, João Silvério Trevisan e Carlos Coimbra, além dos já mencionados Reichenbach e Candeias, seguiam trabalhando na Boca. A partir de dado momento, pode ser notada uma maior profusão das fitas que lidavam, de modo frontal, com o sexo – este passava a tornar-se o principal interesse de alguns realizadores, em detrimento de um elemento a ser explorado pelo experimentalismo do grupo do Cinema de Invenção. Desenvolve-se, na Boca do Lixo, uma eficiente cadeia de produção e exibição do tipo de filme que viria a ser chamado de “pornochanchada” – por uns pejorativamente, por outros, nem tanto (certos cineastas chegariam, mesmo, a abraçar o termo). Esse ciclo da pornochanchada paulistana foi em muito estimulado por um dado fundamental: à época, alguns dos mais prósperos homens de negócios da Boca eram donos tanto das companhias produtoras que financiavam aqueles filmes, como também de algumas salas do parque exibidor local. Para o cineasta que trabalhasse naquela lógica de mercado, isso apresentava vantagens e desvantagens: se, por um lado, seu longa já contava com a garantia de que seria exibido em um número inicial de salas, por outro o mesmo tornava-se refém das exigências do produtor-exibidor. Como é de se imaginar, as exigências do produtor-exibidor eram, grosso modo, a de que as fitas onde seu dinheiro estava investido fossem as mais lucrativas possíveis. Para eles, isso significava, necessariamente, a inserção do erotismo: da nudez e do sexo entre as personagens nos filmes à escolha de títulos sugestivos (que hoje, para um espectador não familiarizado, podem soar kitsch) e a elaboração de cartazes que exaltassem os atributos físicos das atrizes presentes na obra. Para exemplificar à perfeição esse perfil de produtor-exibidor tão característico daqueles anos da Boca do Lixo, pode ser citado o nome de Antonio Polo Galante, que notoriamente exigia de seus contratados fitas que contivessem uma minutagem mínima de nudez ou seminudez, conforme relembrado por Carlos Reichenbach em seu depoimento para o documentário O Galante Rei da Boca (2003)[3].
Alguns diretores manejaram contornar as regras desse sistema e utilizá-lo a seu favor, seguindo as regras cuidadosamente enquanto, em paralelo, conseguiam realizar obras que estavam longe de explorar o erotismo meramente como um filão comercial (Reichenbach, por exemplo, conseguia fazer de uma fita intitulada A ilha dos prazeres proibidos um filme sobre exilados políticos e utopias perdidas, rodando-o em meio à ditadura militar). Outros, invariavelmente, tinham suas ambições esmagadas pela máquina e frustraram-se ao ver seus projetos originais retalhados pelas demandas mercadológicas da Boca. E haviam aqueles que abraçavam o sexo e a sexualidade enquanto as forças motrizes de suas produções. Falemos um pouco sobre os últimos.
Os primeiros trabalhos do catarinense Ody Fraga podem fazê-lo parecer uma figura insuspeita. Ele é creditado como roteirista em Conceição (1960), thriller com Helio Souto e Norma Bengell, e foi um dos três diretores a rodarem O Diabo de Vilha Velha (1966), o faroeste de produção conturbada regido por José Mojica Marins – seu primeiro crédito de direção. Já em 1967, surge como diretor de Vidas Nuas, em uma guinada definitiva ao erotismo da qual jamais voltaria atrás. A partir de então, passou a marcar território na Boca do Lixo como produtor, roteirista e diretor (exercendo de forma perceptivelmente competente as três funções, diga-se) de numerosas fitas que lidavam com o sexo em primeiro plano. Ao longo dos anos 1970, emplaca uma sequência de filmes eróticos com títulos como Adultério: As Regras do Jogo (1975), O Sexo Mora ao Lado (1975), Reformatório das Depravadas (1978), Terapia do Sexo (1978) e A Dama da Zona (1979), apenas para citar alguns (durante aqueles anos, Fraga trabalhava num ritmo incansável) – todos longa-metragens. Gostaria de trazer a atenção, ademais, para uma frutífera parceria travada entre Ody Fraga e outros dois nomes da Boca do Lixo, representativa para ilustrarmos a transição entre o erótico e a pornografia explícita na Boca e sobre como tal movimento precedeu sua irremediável decadência enquanto polo cinematográfico.
Natural do Mato Grosso do Sul, David Cardoso chegara à Boca do Lixo já como um rosto conhecido; como ator, ele trabalhara com diretores de renome como Walter Hugo Khouri e participara de sucessos comerciais como Roberto Carlos em Ritmo de Aventura (1968). Isso, porém, estava longe de saciar suas ambições. Atuando como produtor, financiou e estrelou três filmes de Ozualdo Candeias: A Herança (1970), adaptação cabocla e sem diálogos do Hamlet shakespeariano; Caçada Sangrenta (1974), aventuresco e de longe o longa mais “comercial” dirigido por Candeias em toda a sua carreira; e A Freira e a Tortura (1984), drama político com uma veia exploitation que é a marca registrada de boa parte das fitas produzidas por Cardoso. Enquanto atuava nos filmes de cineastas como Garrett e Reichenbach, ele tocava os negócios da DaCar, sua produtora (e habitual co-produtora de uma série de filmes em que marcou presença como ator entre os anos 1970 e 1980). Galã nato da Boca do Lixo, os filmes produzidos (e sobretudo os dirigidos) por Cardoso valorizavam seu físico, sobretudo nas sequências onde haviam a nudez ou as relações sexuais. O entendimento com Ody Fraga, um dos maiores (e melhores) artífices do erotismo na Boca, parecia natural. Não é difícil entender o porquê dos dois terem firmado parceria.
Para fechar o trio, aquele que talvez tenha a trajetória menos clara e mais enigmática dentre os três. Nascido em Chongqing, na China, Chien Lien Tu chegou ao Brasil aos 8 anos de idade com sua família. Os primeiros bicos no cinema, área na qual passaria a ser conhecido pela alcunha de “John Doo”, foram trabalhando em filmes de Mazzaropi durante a década de 1960. Somente em 1978 ele se lançaria como roteirista e diretor, com Ninfas Diabólicas, seguido de perto por Uma Estranha História de Amor, no ano seguinte. Nas duas obras, o horror e o fantástico – elementos fundamentais de seu cinema – já se mostram presentes. Além, claro, do sexo à moda Boca do Lixo, constante em rigorosamente todos os filmes que assinou enquanto autor.
O filme que sacramenta a parceria entre Ody Fraga, David Cardoso e John Doo não poderia ter outro título se não “Pornô”, puro e simples. Lançada em 1981, essa produção compartilha o zeitgeist com uma outra, incontornável para discutirmos o paradigma da Boca do Lixo naquele momento. Será necessário discorrer brevemente sobre este, para que possamos elaborar melhor sobre Pornô e a trinca Ody/David/Doo posteriormente.
Naquele começo da década de 1980, estreou em São Paulo um longa-metragem de três episódios, co-dirigido por Raffaele Rossi (antes conhecido por assinar fitas sobre lobisomens ou cultos satânicos apimentados) e Laente Calicchio. Coisas Eróticas seria, ironicamente, o começo do fim para o erotismo da Boca do Lixo: tido como o primeiro filme brasileiro de sexo explícito, ele abriria o caminho para que os produtores-exibidores da Boca enxergassem na pornografia um potencial de lucro maior do que o já tradicional erotismo vinha oferecendo. O filme fora idealizado por Rossi na esteira da liberação do polêmico O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima, por parte da censura brasileira – a produção japonesa passara anos retida de circular por aqui graças a sequências consideradas por demais incidentes e imorais pelas canetas dos milicos. O Império dos Sentidos nada tinha de pornográfico, mas serviu como pretexto para diretores ambiciosos, como Rossi, esticarem a corda e verificarem até onde ela ia. Essa é, resumidamente, a história de como nasce o explícito no cinema brasileiro[4].
Esse sinal dos tempos já pode ser sentido no Pornô de Ody Fraga & companhia. A nudez e o sexo aqui já são mostrados sob um olhar diferente daquele que orientava o grosso das fitas eróticas da Boca; a ênfase na performance sexual entre atores e atrizes ganha maior destaque, com uma encenação que beira o naturalista. Ainda estamos, porém, longe de replicar o Coisas Eróticas de Rossi, onde um fiapo de trama mal costurada serve como mero pretexto para engendrar as longas sequências sexuais. Aí é que encontramos o que há de mais interessante nas produções de Cardoso/Ody/Doo: a aptidão, dos três, para produzir filmes narrativa e visualmente inventivos e interessantes. Pornô, por exemplo, é todo calcado no drama de personagens de classe média ou média-alta que precisam contornar as barreiras impostas pela classe para conseguir executar seus desejos – o que compreende, inclusive, ludibriar os empregados que estão sempre trabalhando em suas casas, olhos atentos e vigilantes. O longa é dividido em três episódios, com cada integrante dessa trinca de ases da Boca ficando a cargo da direção de um deles, atuando nos demais como produtor ou roteirista. O destaque da antologia inevitavelmente vai para O Gafanhoto, segmento dirigido por John Doo e uma das melhores demonstrações da potência de seus jogos de cena que exploram o horror, o suspense e o absurdo.
Filmes como Pornô tornaram-se grandes sucessos de bilheteria para o cinema brasileiro – na esteira de Coisas Eróticas – e comprovam não apenas o potencial daquele erotismo tardio da Boca, já com um pé no explícito, como também o êxito obtido pelos três cineastas ao arquitetar esse ecossistema de trabalho, onde cada um assinava um dos episódios do longa antológico e todos ajudavam uns aos outros.
No mesmo ano de Pornô, chega também aos cinemas um dos maiores sucessos empreendidos pelo grupo, A Noite das Taras, estrelado pelo astro do erótico/explícito Arlindo Barreto. Com este, o trio bota por terra qualquer dúvida sobre a capacidade comercial daquele cinema que vinha sendo produzido na Boca do Lixo no início da década de 1980: ultrapassa as barreiras dos “cinemas poeira”, salas menores e destinadas ao público operário que geralmente eram destinados a filmes de ação-aventura ou eróticos; A Noite das Taras chega às maiores e mais luxuosas salas de cinema de diversas capitais do país[5]. Narrativamente, ele segue a mesma linha de Pornô, com a estrutura de vinhetas, os flertes com o suspense, o terror e pitadas do fantástico.
A “trilogia” – toda produzida, frise-se, pela DaCar de Cardoso – seria completada pelo que talvez seja seu componente mais emblemático: Aqui, Tarados!, também de 1981 (a produtividade dos cineastas da Boca parece ainda não ter encontrado par na história do cinema brasileiro). Os segmentos comandados por Ody Fraga e John Doo entregam o que é esperado deles; o que se destaca nessa última antologia, no entanto, é o filmete dirigido por David Cardoso: O Pasteleiro. Aqui talvez tenhamos o apogeu dessa parceria entre o “trio parada dura” da Boca do Lixo, episódio estanque desses três longas realizados por eles. Trata-se de uma das melhores, mais criativas e legitimamente perturbadoras fitas de terror produzidas pelo cinema brasileiro naquele período. O destaque, evidentemente, deve ser dado ao pasteleiro titular, vivido por John Doo – que, além de cineasta, também foi ator de ocasião nas produções de amigos e companheiros da Boca, mesmo depois de aposentar-se do cinema em meados da década de 1980 (seu último crédito como diretor é Volúpia de Mulher, de 1984, mas após isso ele ainda marcaria presença em trabalhos de diretores como Carlos Reichenbach e Guilherme de Almeida Prado)[6].
Após isso, a parceria entre Ody Fraga, John Doo e David Cardoso – pelo menos, nos moldes dos três filmes onde todos efetivamente escrevem, produzem e dirigem – chegaria ao fim. A DaCar ainda lançaria um A Noite das Taras 2, com direção de Ody Fraga e Cláudio Portioli, e já sem o envolvimento de Doo – elemento indispensável para que filmes como o primeiro Noite, Pornô e Aqui, Tarados! funcionassem tão bem. A estrutura do longa episódico, vastamente utilizada durante o período da produção erótica, torna-se um molde para a era do sexo explícito. Quando a pornografia – e é necessário sempre ressaltar que existe uma clara diferença entre produções eróticas e pornográficas – toma a Boca de forma irremediável, os cineastas e técnicos que ali trabalham logo veem que precisam se adaptar aos novos tempos ou pendurar as chuteiras.
Diretores como Ody Fraga, que nunca esconderam seu entusiasmo em relação ao sexo e à pornografia, fariam a transição ao explícito sem pestanejar. Por outro lado, cineastas do calibre de um Jean Garrett, a essa altura já o autor de A Mulher Que Inventou o Amor (1979) e Tchau, Amor (1983), teriam fins de carreira melancólicos dirigindo filmes muito abaixo de seu potencial enquanto artistas, unicamente para suprir as demandas do explícito, como Entra e Sai (1986) e o paródico O Beijo da Mulher Piranha (1986). Mesmo nessas condições de trabalho, por vezes um diretor como Garrett conseguia imprimir respiros de autoria a obras que não pareciam dar margem para tal: Fuk Fuk à Brasileira (1986) talvez seja o melhor filme da fase explícita da Boca do Lixo justamente por ser aquele em que Garrett consegue levar a narrativa rocambolesca ao absurdo e ao lúdico de forma admirável, ainda que eventualmente precise voltar à realidade para cumprir as cartilhas da pornografia, que a essa altura já exigiam planos fechados em sequências de penetração e sexo oral, além da nudez quase absoluta de boa parte das personagens (sobretudo das femininas) durante a maior parte da minutagem dos filmes. Em Fuk Fuk à Brasileira, já os créditos iniciais são sobrepostos a closes de penetração em uma sequência de orgia. É o explícito mostrando, sem preliminares, ao que veio.
A saturação da Boca do Lixo viria com a avalanche de pornografia de estrangeira, trazida de forma barata para o Brasil e que tomaria cada vez mais o espaço do produto nacional. Na metade final da década de 1980, a decadência do quadrilátero das ruas Triumpho e Vitória, como polo cinematográfico e também como espaço urbano, já parecia irreversível. Esse triste desfecho para o berço do Cinema de Invenção e do ciclo da “pornochanchada” paulistana serve para demarcar com nitidez as distinções entre o erótico e o explícito em nossa cinematografia, sobre as quais tentamos discorrer, de maneira mais ampla, nessas últimas páginas. Com o erótico, a Boca prosperou e serviu de laboratório para alguns de seus maiores gênios. Com o explícito, se de início encontrou faturamento farto, logo viu-se sufocada pelo esgotamento de suas fórmulas e pela avalanche da concorrência internacional. Uma das sinas seculares enfrentadas pelo cinema brasileiro.
[1] A antológica entrevista de Helena Ignez e Rogério Sganzerla a’O Pasquim, publicada na edição 33 do periódico (5-11 de fevereiro de 1970), pode hoje ser lida na íntegra graças à preservação e digitalização da edição promovida pela Hemeroteca Digital Brasileira, da Fundação Biblioteca Nacional. A entrevista está disponível em: <memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=124745&pasta=ano%20197&pesq=Rog%C3%A9rio%20Sganzerla&pagfis=503>.
[2] Expressão cunhada pelo crítico e cineasta Jairo Ferreira, autor do seminal livro Cinema de Invenção (1986), e utilizada recorrentemente por Carlos Reichenbach para designar um olhar cinematográfico despido de preconceitos e sempre interessado em expandir seu conhecimento.
[3]O Galante Rei da Boca, documentário média-metragem de Alessandro Gamo e Luís Rocha Melo que explora a influência de Antonio Polo Galante e sua companhia, a A.P. Galante, na Boca do Lixo paulistana, está disponível on-line legalmente na plataforma Vimeo, através do canal de um de seus diretores: <vimeo.com/135767497>
[4] A produção, a recepção e o impacto do Coisas Eróticas de Raffaele Rossi na Boca do Lixo e na cinematografia nacional são dissecadas no documentário A Primeira Vez do Cinema Brasileiro (2013), de Denise Godinho Costa, Bruno Graziano e Hugo Moura.
[5] Vale mencionar o registro histórico encontrado pela pesquisa do cineasta Kleber Mendonça Filho para Retratos Fantasmas (2023), seu longa que explora, dentre outros tópicos, uma cartografia e historiografia dos cinemas de rua da cidade do Recife. Uma das imagens recuperadas por KMF mostra uma das mais requintadas salas da capital pernambucana, com letreiro e anúncio gigantes promovendo a exibição de A Noite das Taras.
[6] Para uma crítica mais aprofundada sobre O Pasteleiro, ver: <planoaberto.com.br/critica/o-pasteleiro-1981>
“E depois de fazer tudo o que fazem, os dois se levantam, tomam banho, passam talco, passam perfume, se penteiam, se vestem, e assim vão voltando progressivamente a ser o que não são.”
Julio Cortázar, Amor 77
Desde o setting, a escolha de Claire Denis para “Noite de Sexta” é curiosa: em meio a dois de seus melhores filmes, “Trouble Every Day” e “O Intruso” (ambos, em escala maior, retratando brutalidades de personagens perdidos pelo tempo e com históricos imensos de violência), a diretora elege para este uma noite qualquer em 1995, em Paris, para abandonar seus personagens. Sua protagonista, engarrafada no trânsito, lidando com o rádio constante e a gritaria noturna dos motores humanos e artificiais da metrópole, Laure precisa chegar a um encontro para descarregar sua mudança de apartamento. A noite vai se movendo por estímulos altos – a chuva, as buzinas dos carros, o trânsito incessante, o falatório dos motoristas entre si -, e com uma surpresa no caminho, o surgimento de um homem, vê que sua noite encontra refúgio em um quarto, mais silencioso, afastado.
A cada pequeno acidente que acontece no percurso da noite – seja a demora dos sinais, a discussão dos motoristas, o pedido de carona, ou mesmo os devaneios da câmera de Agnes Godard procurando pequenas outras histórias nos motoristas dos outros carros -, esses entraves e essas interações interrompidas vão aos poucos construindo o tédio e a incerteza da vida de Laure, preparando a atmosfera de frustração que será descarregada no sexo com desconhecidos. O fato da trilha não ser do grupo Tindersticks, como de costume em Denis, faz toda a diferença para a forma que encaramos essa noite: a música de Dickon Hinchliffe é mais ancorada nos violinos, nas notas agudas, até mesmo num flerte com o melodrama. Não estamos diante da noite ameaçadora e misteriosa de “Bastardos”, por exemplo; estamos numa narrativa de frustração e melancolia a serem liberadas, uma das muitas interpretações de Denis para o sexo puro e simples.
Esse mistério construído pacientemente para descambar em desespero pelo toque e pelo sexo está presente em “Trouble Every Day”, seu filme anterior, que também registrava corpos próximos como objeto de lascívia e vampiros sexuais como em suas origens, sem saber como lidar com os impulsos de fome. O ritual também ágil, desesperado, cujos planos-detalhe não reforçam a crueza das ações, mas as recontextualizam no que importa a Denis: dois corpos desesperados por contato se encontrando numa noite abandonada. Sem o contexto de fantasia dos canibais de seu filme anterior, a urgência da transa de vida ou morte dá lugar à solidão da madrugada e das relações duradouras e falidas à margem dos personagens. Quando o trânsito entre Laure e Jean encontra um porto seguro, o filme muda.
E, a partir do encontro no terço final do filme, o casal vive a noite no quarto, descobrindo um ao outro na cama, no toque singelo da pele, no sexo afobado. Denis usa seu trabalho de câmera característico em primeiros planos de teleobjetiva para recortar ao máximo os corpos de Laure e Jean, até que não saibamos aonde essa mão está tocando, de quem é, se esses pelos são os peitorais de Jean ou os pubianos de Laure, se a carícia é no ventre do homem ou da mulher; não era novidade para Denis em 2002 esse tratamento quase místico de um desconcerto material e palpável dos corpos que se fundem no sexo perante a câmera e, até em seus filmes mais recentes, “Com Amor e Fúria” e “Stars at Noon”, a diretora retrata o erótico visceral do close, a sugestão do explícito, o sexo de respirações.
A câmera próxima de Denis mostra braços fragmentados, um toque intenso registrado em minúcia desconcertante, que se pergunta, com o quadro – e com a montagem que a cada corte mais bifurca que acumula -, se a falta de contexto para aquela relação sexual retira o julgamento moral que ela suscita.
Não por acaso, esse encontro só funciona ali, no momento da cama. Quando Laure e Jean saem para jantar, algo parece ser desvelado: um ritual por demais cotidiano diante das transas longas e pacientes do filme. A Denis, interessa o sexo pela sua transcendência de encontros, sim, mas também pelo tesão compartilhado que passa. Laure abandona seu amante de uma noite para vagar por uma rua vazia, como se tivesse encontrado não uma conquista ou um sentido de vida, mas o alívio e a curiosidade de um encontro efêmero com hora para desaparecer da memória.
A mediação do close é radicalmente oposta à de “Carol”, de Ed Emshwiller. Neste curta, o close é da câmera caseira de um homem apaixonado filmando sua esposa Carol Emshwiller, uma intimidade diferente, na qual o contexto é construído detalhadamente pelo quadro. Tal qual Júlio Bressane filmando Rosa Dias em “A Fada do Oriente”, Ed faz em “Carol” um filme estrutural sobre as diversas formas de filmar o corpo da pessoa incondicionalmente amada.
O rosto de Carol já é erótico muito antes de aparecer pela primeira vez, por conta da aproximação da câmera entre as paisagens ao redor e uma sensualidade vinda toda da sugestão, dos recortes de árvores, pedras, fissuras e folhas filmados pelo diretor para preparar a chegada de sua esposa, vinda das sombras, do seio da floresta.
Ed era cineasta experimental, mas também fazia capas para diversas revistas de ficção-científica – entre elas, a Galaxy e a Astounding Science Fiction -, obras que renderam a ele cinco prêmios Hugo, um dos mais prestigiados no gênero. Carol também trabalhava com ficção-científica, e um dos seus contos ganhou o Nebula, outro dos grandes prêmios da comunidade. Era um casal interessado no místico, que fez da sua carreira imaginações de planetas e paisagens alienígenas, e que, aqui, ganham o peso do terreno, do material, do que é aparentemente trivial e ganha contornos fantásticos pela simples organização do espaço.
Como olhos abrindo e fechando, os planos iniciais filmam a paisagem em duplas, o mesmo plano repetido entre a luz mais estourada e a mais sub-exposta – a criança que observa o mundo em Brakhage, por exemplo. É nesse esforço calculado matematicamente, num evidente diálogo com o cinema estrutural, que Emshwiller retrata o sensorial daquele lugar, estranho aos olhos, familiar e palpável mas com contornos extraterrenos: a floresta de onde sairá seu amor.
Nisso, o papel da música é fundamental, num compasso quase metronômico, acompanhando as imagens que retornam entre os fades num sintetizador que evoca justamente o desconhecido excêntrico das ficções-científicas dos filmes americanos B dos anos 1950 – como “A Ameaça Veio do Espaço”, “O Homem do Planeta X”, e tantos outros. O diálogo formal com Jack Arnold e Edgar Ulmer para por aí, mas esse desconhecido caro aos personagens curiosos do gênero são o assombro da vida do casal Emshwiller, e Ed não por acaso comenta sutilmente essa iconografia na hora de sintetizar o que representa sua esposa.
Quando surge Carol, andando decidida na floresta após sair da total escuridão, a câmera de Ed organiza diferentes dispositivos visuais para retratá-la. O caleidoscópio breve, os múltiplos closes em backlight que se sucedem quase em estrobo, as sombras do seu rosto desfocado; se o erótico é a sugestão, não apenas a preparação para a descoberta, como o próprio acompanhar de Carol são extremamente sexuais, de forma que, quando surge seu corpo nu fotografado em contraluz, montado também como em estrobo, toda a intimidade dividida e o tributo a um corpo desejado florescem de vez em tela.
A textura da película é exposta no grão (diferente da maior limpeza do filme de Denis), como reforçando uma visão passada, de acumulados, de uma memória vivida a dois. Para arrematar, Ed funde o rosto de Carol às paisagens que vimos no início, o rosto dela em todos os lugares, em toda rocha sobre a terra, em toda árvore que farfalha. Uma existência não menos erótica por sua sutileza.
No encanto desesperado de duas pessoas com um maníaco tesão noturno que precisa ser imediatamente saciado, e no encanto cuidadoso de alguém que pega uma câmera para estudar e homenagear o corpo de quem passou uma vida amando, as câmeras de Denis e Emswiller se aproximam de pessoas porque precisam urgentemente encontrar no cinema o canal para expressar o tesão visceral que se passa sob as peles de seus realizadores, cujas visões sobre sexo e sobre o erótico desafiam moralidades e crenças metafísicas.
She is not only a woman in a man’s world; she is also a
receptacle of feeling, a repository of the type of sensibility
we call ‘feminine’
(The Sadeian Woman and The Ideology of Pornography – Angela Carter)
I’m miss world, watch me break and watch me burn
(“Miss World” – Hole)
“Me proteja do que eu quero”
A frase provavelmente vem à sua mente reluzindo no topo de um edifício da Times Square ou saindo dos lábios perfeitamente desenhados de Brian Molko. A mim, sempre pareceu o verso final de uma oração: “me proteja do que eu quero, amém”. Não saberia dizer se essas palavras aparecem em algum momento na Bíblia, mas vejo-as como uma súplica aflita a uma força maior e extraordinária, capaz de aplacar aquilo que impiedosamente nos lança à aniquilação: o desejo. Em um primeiro momento penso na pobre Deannie Loomis levada à loucura em Clamor do Sexo pela impossibilidade de satisfazer o desejo do amado Bud Stamper e por conseguinte seu próprio desejo de satisfaze-lo. Camille Paglia já afirmou que a tragédia obedece a um paradigma masculino de ascensão e queda, a mulher trágica é um ponto fora da curva, “menos moral que o homem”, “introduz crueldade bruta nas tragédias porque é ela o problema que o gênero tenta corrigir”. Na sua similaridade primordial com as forças caóticas que governam a natureza, a trajetória de uma mulher dificilmente poderia ser descrita com o “agudo pico vertical” do clímax logo antes do declínio. Ainda assim, gostaria de falar sobre duas personagens que conheceram um tipo de desfecho trágico reservado às mulheres que não renunciam à própria vontade: Laura Palmer e Silmara, a falsa loura.
Comparativamente, a série de TV Twin Peaks (David Lynch, Mark Frost, 1990) e o filme Twin Peaks: Fire Walk with Me (David Lynch, 1992) equivalem a uma cisão entre a alma e o corpo de Laura Palmer, a adolescente encontrada sem vida às margens do rio que corta sua cidade. Na série, Laura é uma lembrança codificada na forma de um porta-retrato/tributo, um nome assombrado, um tema musical, uma ideia que consegue condensar pureza e corrupção no rosto de uma garota morta. Sua presença é uma sombra (ou um halo) que paira sobre os habitantes da cidade de Twin Peaks, é pura imaterialidade e paisagem. Em Twin Peaks: Fire Walk with Me essa presença é puxada para baixo, encarnada e tornada mortal. Acompanhar seus últimos dias é doloroso porque nos aproxima da via crucis de uma jovem que, segundo nos informa os agentes Dale Cooper e Albert Rosenfield, poderia descrever metade das colegiais da América: “sexualmente ativa, usuária de drogas, clamando por ajuda”. É essa manifestação terrena de Laura Palmer que me interessa trazer aqui. No filme de Lynch fica claro que Laura excede o papel de vítima, não é apenas um corpo vitimado pela crueldade e depravação paternas, mas um corpo forjado na essência erótica da transgressão. O sexo e as drogas não são apenas sintomas da degradação moral na qual se afunda em ordem de lidar com o trauma e suas lacunas existenciais, são também outras expressões do desejo. O que faz de Laura Palmer a heroína brutalizada que merece ser colocada num altar é o fato de que sua devassidão e compaixão ardem juntas num mesmo fogo. Quantas vezes martirizamos nossas garotas na recusa em acreditar que essa contradição é possível?
Numa outra chave, Silmara, a operária que protagoniza Falsa Loura (Carlos Reichenbach, 2007), é regulada por códigos morais próprios inabaláveis. Sexo e trabalho são duas instâncias que não se atravessam e muito menos devem se tocar, visto que o prazer carnal representa a possibilidade de expansão do seu mundo interior para além do universo proletário e da vida familiar de cuidados com o pai. As duas figuras masculinas com quem Silmara se relaciona no filme parecem despontar justamente das suas projeções mais íntimas, manifestações platônicas materializadas por meio da sua vontade – quer seja o jovem líder da banda iluminado no palco da boate que frequenta com as amigas, ou o cantor romântico no pôster do seu quarto embalando seus sonhos eróticos e orgasmos solitários. A questão é que ao adentrarem sua vida, essas mesmas figuras são incapazes de perceber com clareza suas nuances. Para Silmara não é uma questão de dinheiro ou ascensão social, longe disso, é sobre prazer, e o prazer de poder estar no controle das suas fantasias. Não consigo vê-la como uma sonhadora ingênua (para onde muitas leituras apontam), mas vejo uma mulher que opta pela realização dos seus anseios sexuais com a certeza que partiram dela em primeiro lugar. A tragédia é, mais uma vez, tomarem suas intenções como qualquer coisa além da excitação. Quando é dispensada da casa de campo alugada pelo seu ídolo com um envelope de dinheiro, vemos Silmara pela primeira vez se tornar vulnerável frente a incompreensão da sua natureza. Seu olhar distante no fim é trágico não só porque revela sua frustração, mas porque se descola do momento presente e vai inquirir no futuro se existe alguma chance de um dia de fato ter seu desejo compreendido.
Bataille já disse uma vez que erotismo e santidade se assemelham terrivelmente no que diz respeito à intensidade com que um indivíduo pode experimentá-los. Também disse que ambas as experiências, de alguma forma, conversam com a solidão. No meio de homens mais ou menos gentis, amantes mais ou menos competentes, figuras paternas generosas e abjetas, vejo essas duas mulheres sozinhas cuja cabeleira loira parece sinalizar um tipo de contrato com o reino celestial. Elas carregam o peso das escolhas que fizeram em nome de uma intensidade desautorizada. A ideia inicial desse texto era aproximá-las em suas tragédias individuais como uma espécie de parábola sobre os efeitos da condenação do desejo feminino, mas por fim gostaria que fossem lembradas por um aspecto ainda maior (e mais virtuoso) que o sacrifício: a capacidade de se doar plenamente pelo direito ao gozo.
Joyce, numa boutade não despida de verossímil, dizia que Wagner fedia a sexo; isto mesmo pode ser dito de Coisas secretas, o filme mais conhecido pelo escândalo do casting masturbatório que por ser um teorema neo-languiano cheio menos de luxúria que de frígida perversidade; Bonitzer dizia que o cinema começou escatológico e glutão e acabou gélido e perverso, com Marnie por exemplo; Coisas secretas flerta decididamente com este segundo e tardio destino, mas Brisseau, que nunca deixou de ser um professor dos subúrbios parisienses, reedita a educação libertina do século XVIII para propósitos mais estritamente minimalistas, dignos de um formato 1:33: são um gesto, um contracampo fulgurante, um close saturado de gelo, a rubrica de cinema moderno rohmeriana da locação em Paris num dia de verão – os materiais razoavelmente nobres de que se serve para sublimar os embates baratos de cash e sexo (tudo barato, módico, quase dirty, como num softporn rodado em Ibiza) que, como o Godard de Paixão nos ensinou (Isabelle Huppert, a operária virgem inspirada em Weill: por que nunca mostram o amor e o trabalho nos filmes?), não estão nada distantes de ilustrar uma certa essência pornográfica do cinema e do olhar contemporâneos, o destino fatal, fatale laideur, daquele mundo desencarnado mas ainda fetichista do vídeo – o mundo das imagens, opostas aqui a um plano clássico de cinema – das imagens celebradas com asco por Daney ao chamar Inferno de GRANDE NADA, e de Bonitzer ao ver um clip de Grace Jones achatado como uma lata de sopa Campbell’s.
Embora tenha como tema e objeto privilegiado a prostituição como meio de ascensão social e ao cabo mitológica, a ênfase de Brisseau, grande cineasta dos corpos erodidos de luz como numa tela de Watteau ou Chardin, nesse que é um de seus últimos bons filmes, é, como todo grande cineasta materialista o sabe, nos meios: é a cartilha gestual e de mise en scène prenhe de clins d’oeil de veneno escópico, com que a stripper desiludida (uma balzaquiana do terceiro arrondissement, subúrbio onde Brisseau ensinou e que inspirou um de seus melhores filmes, De bruit et de fureur) Nathalie presenteia a incauta mas erógena Sandrine: uma grande puta é antes de tudo esta inervação libidinal, energética de um grande corpo místico talhado pela mise en scène para seduzir e destruir, como a trajetória descrita nos ensina aqui, para dobrar a vontade plenipotente do macho que o capitalismo adestrou para vencer segundo a lógica saturnina, coleante, acetinada, sinuosa, rastejante, habitante da chaise longue e do reposteiro de veludo, da Mulher; todo este luxo acumulado pelo corpo que se sabe olhado e goza com isto nos é restituído com esplendor fetichista por Brisseau, o garoto que contempla a cena originária, interdita pelo buraco da fechadura paterna: os momentos pregnantes de sedução de Coisas secretas são sub-reptícios, entrevelados, enviesados, como o sutiã que as moças retiram de dentro de um corpete em plena estação do metrô ou o flagra da masturbação mútua de Sandrine e Nathalie pelo burocrata Delacroix: são feitos para poucos, são um dom para iniciados; é segundo o metro, atalhos inclusos, desta via crucis iniciática do olhar do basílisco fascinado que Nathalie vai instruir Sandrine, um tanto mimeticamente à semelhança do que Brisseau efetiva com seus espectadores, que são também presas e cúmplices; todo o processo nos é industriosamente narrado em off por Sandrine, portanto já senhora dos dons ensinados por Nathalie: já está tudo acabado, arrematado, como aprendemos com os grandes exegetas do maneirismo, que identificam narrativa e morte; mas o gênio de Brisseau é ser o descritor e narrador ocasional do exponencial processo, do sendo; detenhamo-nos na brilhante sequência do flagrante de Delacroix, chefe do escritório por Sandrine, que se masturba na sala aos fundos do cenário; o découpage é exemplar em módico rigor e sobriedade jansenista, quase televisivo sem a luz chapada e a frontalidade acintosa, tudo muito funcional: o homem vem pelo corredor, que já aprendemos a espreitar desde o Night of the demon de Tourneur, mergulhado na semi-obscuridade, e o contracampo o mostra diante de Sandrine, debruçada sobre uma cadeira giratória; Brisseau começa nos mostrando a franja do corpete de Sandrine, suavemente percutido pelo movimento masturbatório; depois vem um plano médio de sua pélvis que arfa e pulsa, na iminência do orgasmo; vemos ainda a mulher num americano petite mort, e finalmente o beijo protocolar no chefe, que se debruça diante desta, agora sujeito de tudo; na sequência seguinte, recém-saída da crisálida, Sandrine, até então mascarada de impassibilidade de monja clarissa, já nos mostra as tetas detrás da porta, enquanto a outra secretária se azafama para entrar: uma metamorfose somática e espiritual, descrita plano a plano com o acólito dos andaimes do découpage, de que a elipse clássica (os franceses a chamam de litote, ou a negação da negação) será o cimento e a pá de cal; os exercícios espirituais de Inácio de Loyola devem ter inspirado Brisseau por aqui.
O poderoso Christophe, alvo final da quête iniciática de Sandrine, que assistiu impassível à descomposição de sua mãe, concluiu deste exploitation doméstico que os homens são marionetes feitas de pau; Bruno Cremer, numa obra-prima injustamente subestimada chamada Un jeu Brutal, é um cientista que toca no rosto da mãe morta e conclui que agora ela é de pedra, como um quartzo; para os melhores Brisseau, tudo se resolve e se arremata no inanimado da cicatrização alegorista, de que suas marionetes frígidas são o instrumento catalisador (o final de Coisas secretas, De Bruit e de fureur e seu pássaro azul); o sexo, para mulheres como Sandrine e Nathalie, é o meio, idealmente epocal numa idade de imagens sem fundo e sem sombra, para conspurcar os valores estabelecidos sem quebrar a superfície vítrea, televisiva e agora de youtuber: a puta é também uma boneca de nanquim e cabelos frisados, imagem ao mesmo tempo da reificação e da bella ideia conspurcada de sêmen; já que não existem mais planos de cinema – habitados por homens e mulheres, por casas e rotas de fuga, on the road ou back street – e sim manequins fossilizadas de prótons, imagens quaisquer, tornadas sublimes pelo fórceps psicótico da serialização televisiva; o genial em Coisas secretas é que este processo de mumificação nos é mostrado, como demonstrado (um teorema languiano, como também um softporn de Norman Rockwell) sem abdicar dos gloriosos instrumentos do classicismo ora pro nobis: tudo se resolve segundo o metro do corte, do découpage, do raccord no eixo da câmera, mas ao contrário da inanidade pornográfica dos dejetos audiovisuais de hoje, que elegem objetos insignificantes para operações formais desprezíveis, os personagens de Brisseau ainda poderiam habitar as páginas de madame de Stäel ou de Sacher-masoch: são putas sujas e arrivistas (e todo grande artista é, no mínimo, um clínico entomologista de sua época: para um tempo de putas iníquas…), mas portadoras de um exemplar álbum de imagens suntuosas, cheias de númen, que nos devolvem pelo avesso o nosso olhar corrompido pela Vulgata televisual, falando-nos, como nos diálogos da alcova de Sade, de ética, compromisso e da dignidade perdida; Brisseau é um moralista, como o foram Péguy e Sorel, o De Palma de Paixão, o Kubrick de Eyes wide shut e o Clint Eastwood de Menina de ouro: toda a imundície narcisista de um tempo voltado ao culto idólatra do próprio umbigo, agora centuplicado pelas câmeras de vigilância dos reality shows, nos é devolvida no espelho convexo destes filmes sulfurosos de superfícies límpidas onde se agitam profundezas turvas de danação. Christophe, o belíssimo monstro de Coisas secretas, é a pedra polida de esmalte e opala que a sociedade de consumo achou no maelström tumultuoso da todestrieb freudiana para melhor consumar seus fetiches carnívoros; ele e Sandrine são belos espécimes de estricnina erógena em estado puro, mas para tal devem parecer eficientes, funcionais – aliás como a mise en scène de Brisseau, que emula esta guerra libidinal na epiderme de um contracampo: the man of the year, ou qualquer coisa assim; a pornografia é a arte explícita por excelência, que é contrária ao erotismo, que sempre deixa uma franja oculta, velada, intersticial: Barthes falou lindamente dele quando nos escreve sobre a fresta cintilante: erótica é a manga entreaberta da camisa ou do punho, que nos deixam entrever no imaginário os pelos crespos sob a casimira; Brisseau, erotômano consumado, não é um pornógrafo, mas fala ad libitum de nosso mundo, corpo e olhar pornográficos; não é pouco testamento para um professor do terceiro ano.
Seguindo o formato das tradicionais pornochanchadas da época, que combinam a comédia com algum outro tipo de gênero – e nesse caso aqui com um drama erótico – Super fêmea (1981), de Anibal Massaini Neto, nos apresenta uma espécie de ficção científica erótica que se ancora na discussão sobre uma maior liberdade sexual entre os sujeitos, para trazer a tela um tema muito caro para a masculinidade brasileira: o uso da pílula de contracepção pelos próprios homens. Ao fazer isso, o diretor nos coloca diante não apenas de mais uma pornochanchada que vai hipersexualizar os corpos femininos e exagerar o prazer visual a partir de performances que brincam com os limites entre o erótico e o pornográfico, como também consegue ironizar sobre as armadilhas proporcionadas pelo capitalismo, no consumo de mais uma nova mercadoria: o fruto proibido, a pílula masculina. Mas aquilo que libertaria as mulheres do uso permanente da pílula acaba se voltando contra elas.
As cenas iniciais trazem uma assembleia formada por mulheres, onde as juízas esbravejam para um grande grupo de mulheres palavras de ordem que questionam e condenam a supremacia do poder masculino. Nessa grande horda feminista, assume a liderança a Juíza principal, uma mulher grávida, cujo discurso aquece os ânimos das demais mulheres, que parecem constituir algum tipo de levante com o propósito de intervir na institucionalização do poder médico sobre os seus corpos, a partir dessa docilização do corpo feminino que a estrutura social capitalista nos impõe. Ao abrir o filme, elas anunciam qual será o intuito da pílula masculina, convidando espectador/espectadora a acompanhar a execução desse veredicto. Além de ser o único momento onde as personagens femininas estão em uma posição de poder, essa cena-julgamento também é o único momento onde elas protagonizam a ação sem estar em função de um personagem masculino. A cena finaliza com a juíza gestante gritando em alto e bom som:
MULHERES DO MUNDO TODO UNI-VOS CONTRA A PÍLULA FEMININA! A FAVOR DA PÍLULA MASCULINA! SIGAM-ME AS QUE FOREM BRASILEIRAS!
A juíza está gestando um mundo possível, mas que ao longo de toda trama vai se demonstrando impossível, afinal é possível um capitalismo sem a docilização dos corpos das mulheres? A trajetória de Eva, a protagonista vivenciada por Vera Fischer, percorre um percurso completamente contrário ao que a assembleia está propondo. Assim, durante as próximas sequências, o roteiro caminha para o enfraquecimento desse levante.
Tal como um voyeur observando ao longe, o olhar que apresenta Eva é o olhar que faz do observador o olhar do público, um olhar que começa discreto, e aos poucos vai limando toda e qualquer possibilidade de uma câmera discreta – até porque quando se trata desse corpo em tela, objeto de desejo do capitalismo, é quase inconciliável a ideia de uma imagem discreta. Basta observarmos retrospectivamente a própria história do cinema, que testemunha, a partir de suas visualidades, como nosso corpo é representado de forma indiscreta, sendo constantemente vigiado, patrulhado e observado por esse voyeur que nem sempre faz questão de se manter indiscreto.
Eva é retirada, de forma violenta, do seu paraíso para se aliar à campanha da pílula masculina. Sem Adão, ela será levada por uma legião de homens para conhecer o plano terreno: seus gritos de socorro parecem ser inaudíveis, fora do paraíso não há salvação. A assinatura do contrato, que vincula Eva ao fruto proibido, revela quem são os anjos que conduzem Eva a cidade dos homens, e nesse plano médio Eva está atônita, é necessário que ela pactue sua saída do paraíso, e entregue ao deus-empresa sua beleza, sua pureza, seu útero, sua buceta, sua vida. Nssa sequência também há vários close-up que revelam a força da padronização de uma masculinidade heteronormativa, os anjos estão de terno, em contraste com o manto sagrado de Eva: o biquini. Falo em uma força da padronização dessa masculinidade pois, além dos próprios homens, é possível avistar mulheres e gays, que também são caracterizados como homens. Ser mulher é a exceção. Eva é a exceção. O enlace entre Eva e o fruto proibido, estabelecido pelo pacto (vulgo contrato), implica em convencer o seu público-alvo, os homens, da grandiosidade desse fruto, que carrega um poder mágico. E para que esse fruto proibido passe a ser fetichizado por essa sociedade, a publicidade aposta no discurso do fortalecimento da virilidade masculina:
EJACULE, EJACULE SEM PREOCUPAÇÃO
É o que incentiva a propaganda. Gozar sem medo, e com isso emancipar a mulher da responsabilidade de controlar a procriação. Aqui o propósito da assembleia parece até estar próximo de se concretizar. Até que a trama começa a apostar não nessa emancipação das mulheres, com um viés feminista, mas na emancipação masculina da dependência da mulher no controle da natalidade. Na farmácia, espaço sagrado do fruto proibido, há um cartaz com a propaganda de Eva, e uma fileira de homens sedentos pela novidade, pelo pecado com Eva. Para excitá-los ainda mais, ela é colocada a prêmio, seu possível Adão virá de um sorteio. O fruto proibido é vendido como se fosse uma poção mágica, que elevará o desejo dos homens, levando-os a consumar, de qualquer modo, seu impulso sexual: uma espécie de desejo coletivo descontrolado invade a cidade. Não há propriamente cenas de sexo explícito, acessamos um conjunto de insinuações que são marcadas por atuações que elevam a excitação, e colocam a concretude do ato no campo extradiegético, o pecado não é visto.
Apesar de Superfemêa trazer dilemas sociais que expressam as novas configurações das relações sociais dess período, com a mudança no equilíbrio da balança de poder entre homens e mulheres, a ascensão das mulheres em diferentes espaços da vida social, o uso dos contraceptivos, e uma maior exposição de casais formados por pessoas do mesmo sexo, o modo como a narrativa conduz a aceitação coletiva do fruto proibido, a pílula masculina, ainda é marcada pelas armadilhas da estrutura capitalista, que apesar de reforçar um ideal de liberdade aos corpos femininos, acaba fortalecendo uma masculinidade que afugenta e pune as outras Evas, retirando-as de seus paraísos, e lembrando que o inferno é aqui mesmo.
O impacto da fetichização do fruto proibido fica visível quando os homens são tomados pelo descontrole sexual. Inebriados pela pílula, eles atacam todas as mulheres ao seu redor: há cenas em que o padre invade o convento em busca das freiras, em outra os velhinhos do asilo agarram as enfermeiras. Não houve consentimento dessas mulheres. Tanto as freiras como as enfermeiras não autorizaram a realização desses atos sexuais, mas como essas situações são dramatizadas a partir da comédia, elas são validadas como se fosse uma brincadeira, a violência parece não ser legítima. As expressões das personagens femininas mostram que elas se negaram, mas os homens continuaram o ataque. O estupro é deliberado e normalizado. A princípio, fiquei pensando como esse conjunto de violência ganha outros sentidos a partir da comédia, e o que isso diz sobre a nossa humanidade. Na obra Comicidade e Riso (1946), do autor Vladímir Propp, ele apresenta um conjunto de reflexões sobre os vários aspectos da comédia na arte dramática, e acho que elas também valem para o cinema. Para ele, o riso é incompatível com a dor, e quando percebemos que a pessoa está sofrendo, por exemplo, em momentos onde alguém ri de uma situação triste, associamos esse riso a uma dimensão monstruosa da nossa humanidade, de modo que a dignidade de quem ri é colocada em risco, por não perceber ou mesmo por desrespeitar uma convenção social, que entende, que naquele momento aquele riso não é legítimo. Nesse sentido, em Superfêmea, o riso e a dor não são compatíveis: assim como em todo cinema da pornochanchada, a dor é escancarada e revela nossas feridas sociais. E talvez seja essa uma das principais marcas dessas obras, colocar nossa humanidade em risco ao unir a dor ao riso.
VÊNUS CONDENA EVA
Na tentativa de comprometer a sacralização do fruto proibido, a empresa de preservativos masculino, que se chama Vênus, cria uma suspeição para minar a campanha publicitária da pílula. O propósito deles é evidenciar que Eva também gosta de outras Evas, há uma tentativa de imprimir a lesbianidade como algo que poderia pôr em risco seu capital sexual, na cidade dos homens não há espaço para o amor entre Evas. O ponto alto do filme é a perseguição que Eva passa a vivenciar, através de uma mistura de suspense e ação: nesse momento a condição de Eva é elevada, e de vítima ela passa a ser a protagonista que direciona seu próprio caminho. Eva foge do ganhador do sorteio, que exige o cumprimento do acordo, a realização do pecado, como fato consumado.
Apesar da fuga elevar o papel da super fêmea, a trama se encerra com a inviabilidade da pílula masculina e a punição de Eva. Ela está grávida. Será que Eva gesta um novo mundo para outros homens e mulheres? Será que ela irá parir um povo feliz, um povo desenvolvido? A super fêmea se torna uma supermãe, e agora padece em outro paraíso.
Desse modo, a partir da junção entre a comédia e o erótico, o filme consegue ironizar a docilização dos corpos femininos. A pílula que deveria, teoricamente, trazer mais autonomia e liberdade às mulheres, acaba se tornando uma armadilha, pois ela cumpre o papel contrário: ela legitima uma série de violência contra as próprias mulheres – que há tempos sonham com a existência da pílula – uma gestante abre e uma mãe encerra o ciclo, tal como o ciclo natural da vida, que se faz em círculos, e se repete, assim se mantendo as armadilhas do capitalismo.
Aceite as visões oníricas, devaneios ou sonhos, como aceitaria as assim chamadas cenas reais. Dê espaço até para a percepção real das abstrações que se movem intensamente quando pressionamos as pálpebras fechadas.
(Stan Brakhage, Metáforas da visão, 1963)
Pensar no erotismo no cinema é esbarrar em um desejo que nasce do sonho. Como escreveu André Bazin em À margem de “o erotismo no cinema” (Cahiers du Cinéma, 1957), “o essencial está no onirismo do cinema […] Ora, sabemos muito bem que todo sonho é, em última análise, erótico”. Similarmente, em Metáforas da visão (1963), Stan Brakhage defende um olhar cinematográfico que antecede o realismo que criou o cinema hollywoodiano: “Imagine um mundo animado por objetos incompreensíveis e brilhando com uma variedade infinita de movimentos e gradações de cor. Imagine um mundo antes de ‘no princípio era o verbo’”. Esse é também o mundo dos sonhos, de onde nasce um cinema que, filho de Méliès, toma a forma da magia.
Carolee Schneemann decidiu filmar Fuses (1967) após ver sua percepção abrir-se aos mistérios do corpo feminino em Window Water Baby Moving (1959), de Stan Brakhage. Durante três anos, a artista filmou os encontros sexuais que teve com seu parceiro – o músico James Tenney – através do olhar de seu gato, Kitch. Em imagens turvas de uma película que foi colorida, riscada, queimada e mergulhada em ácido, as energias sexuais são materializadas, recombinadas entre o transparente e o opaco para transformar o pornográfico – explícito – em íntimo – segredo. Os corpos brilham sob as luzes que entram pelas janelas a cada estação, de onde o gato observa, servindo como câmera escura que transforma a luz em fragmentos abstratos de percepção. É o cinema que antecede o verbo.
O filme, no entanto, nasce de sua antítese: um cinema, como define Brakhage, “amedrontado pela esterilidade sexual”, ou Bazin, “dono de uma longa, rica e bizantina cultura da censura”. Fuses, nesse sentido, é descendente direto de Hypocrites (1915), de Lois Weber: um homem esculpe a verdade em toda sua nudez e é assassinado por um levante puritano; então, o nu fantasmagórico assombra a burguesia puritana e escancara suas contradições. Durante as performances de Meat Joy (1964), Schneemann tornou-se essa figura dupla quando chegou a ser agredida por espectadores que se sentiram ultrajados pelo seu uso do corpo nu enquanto arte. Apesar de ter vivido o auge da libertação sexual, a artista escreve que se sentia completamente sozinha em sua insistência em integrar sua sexualidade e sua criatividade.
Naquele momento, o que ainda distanciava o nu feminino que havia sido esculpido pelas mãos do homem daquele que não fora fabricado enquanto imagem, mas reproduzido no próprio corpo da artista? Schneemann escreve: “Era permitido que eu fosse uma imagem mas não uma criadora de imagens construindo sua própria autoimagem. Se eu tivesse apenas dançado ou atuado, teria mantido formas de expressão feminina aceitáveis para a cultura.”
Além dela, Chantal Akerman, Barbara Hammer e Ana Mendieta foram algumas das que tentaram devolver o corpo e o erotismo a si mesmas em seus cinemas e performances. As vontades que movimentaram o primeiro filme de Schneemann foram muitas: “Invadir os tabus contra a vitalidade do corpo nu em movimento, erotizar minha cultura culpada e confundir ainda mais as rigidezas sexuais – pois a vida do corpo é mais expressiva de maneiras diversas do que uma sociedade com atitude negativa em relação ao sexo pode admitir.” Portanto, caracterizar sua arte através de adjetivações que vão do provocativo ao pornográfico é equivocado, face aos esforços artísticos que rendem revisões àquelas imagens tão silenciosas quanto explícitas mais de 50 anos depois.
No texto de 1957, Bazin conclui que, para fazer um cinema erótico que permanece no plano da arte, é preciso se ater ao imaginário, o que se faz através do segredo. “O cinema pode dizer tudo, mas não de forma alguma tudo mostrar.” As imagens do sexo que passam pela tela em Fuses, são encobertas por uma camada de sonho que se materializa não apenas nas intervenções na película – os tons de roxo, azul e verde – mas no ambiente que cerca os amantes. A casa da artista e os seus arredores contam sua própria história de amor.
O recuo das janelas, o roxo das paredes do quarto e a árvore de natal que enfeita a sala no final do filme fazem com que a casa que o casal tinha acabado de comprar, em New Paltz, envolva a coreografia de Fuses como um cenário de estúdio, pensado para cada cena. A artista escreveu: “[A casa] é minha musa, é meu recipiente, é minha fonte de sonho e função. É meu trabalho e todo o meu trabalho vem da casa, e minha identidade para o cerne da minha vida é esta casa.”
Fugindo da intimidade da casa, imagens de Schneemann correndo nua por uma praia dão o tom onírico definitivo ao filme. No corpo sozinho ou nas imagens da natureza que o cercam, o potencial do erotismo perpassa o ato que ocupa o restante do filme, e a intimidade transcende em direção a tudo que a película registra. Na materialidade do filme e na espontâneidade do movimento, a pulsão do primeiro filme de Schneemann se iguala ao potencial original do cinema, erótico por sua natureza onírica; material e cinético – um cinema do olho não governado pelas leis fabricadas da perspectiva, livre dos preconceitos da lógica da composição, definindo-se na imagem (reel life) mais do que na realidade (real life).
Apesar de o maior consenso nas discussões entre erotismo e pornografia ser que a diferença entre ambos é turva e ambígua, as diferenças são palpáveis na filosofia de suas respectivas estéticas. Decerto que ambas tratam do corpo, da provocação da carne e da promessa (ou consumação) do contato sexual. Se partirmos do erotismo como Georges Bataille o define, ele parte da manifestação da descontinuidade do ser. Morremos e, portanto, somos finitos física e psiquicamente, mantidos talvez genética e memorialmente pela prole, pela reprodução. A sensação, unicamente psicológica, da continuidade se estabelece pela manifestação concreta ou estético-simbólica do erotismo, seja pela carne (o membro que penetra adentro como uma faca, o sexo que flerta com o desmonte e remonte uno dos corpos envolvidos), pelo amor (o “eu” que continua pelo vínculo com o “tu”), pela religião (a expansão transcendental do íntimo). Sob essa chave, o erotismo se alimenta de uma noção de limite – definido, a princípio, pela morte. O erotismo existe por causa da morte. Transamos porque morremos. Se cientificamente, a necessidade é reproduzir, psiquicamente, é ser eterno (por um momento que seja). Bataille se estende à noção de interdições e transgressões, na medida em que o prazer vem de uma transgressão que suspende sem nunca suprimir a proibição, porque dela depende. Como o tesão do casado em “pular a cerca”, mas não em se divorciar ou abrir o relacionamento. Como o tesão do pastor em dar para a travesti na encolha sem abdicar do sermão dominicano. O prazer é de, por um tempo determinado, suspender o rigor do casamento, o ascetismo da religião, a iminência da morte.
Sendo assim, o cinema é erótico desde que nasceu. Pela sua batalha contra a morte que inevitavelmente registra sua ação sobre os corpos das gentes, dos animais e das cidades; pelo limite que o enquadramento impõe, a fragmentação do todo que faz do extracampo uma provocação estendida ad eternum, uma inevitável, incontornável metonímia do mundo; a montagem que esconde ou ostenta a descontinuidade de cada plano; o “eterno enquanto dure” num plano de Apichatpong Weerasethakul ou James Benning ou Chantal Akerman. O cinematógrafo é uma ferramenta de continuação da imagem.
A pornografia funciona numa chave análoga e, ao mesmo tempo, quase oposta. É intimamente ligada ao obsceno (não apenas no que fere o pudor, mas no que reside usualmente fora da cena) ao ostentá-lo: exibe a genitália, a penetração, a cunilíngua, a felação, o beijo grego, a fistada, etc. Trazer à luz a imagem escondida – e daí sua afinidade com o gore, as imagens explícitas de violência que ostentam o sangue e as tripas escondidos sob a pele e sob os músculos. É a suposta revelação de todo segredo que pode, e, talvez, a mais bem-sucedida ilusão de transparência – à medida que se segura na encenação da imagem de choque para reivindicá-la. Os gestos sexuais explícitos se seguram na condição de acontecimentos, mesmo sob um espalhafatoso, ostensivo crivo de ficção (as atuações nos filmes de indústria pornô tendem à iconicidade camp não apenas pela falta, como mesmo pela rejeição da naturalidade). Com frequência, a pornografia é amalgamada com o farsesco. Retomemos o potencial primeiro filme erótico, Le Coucher de la Mariée (Eugene Pirou, 1896):
Dois recém casados – um homem de smoking e uma mulher de vestido de noiva – estão sentados lado a lado dentro de um quarto. Ele beija sua mão e tira os sapatos dela e, quando parte para beijá-la, ela recusa e aponta para o biombo atrás deles. Ela o posiciona entre si e -, pelo que indica o contexto, – seu marido, e começa a despir-se sorrindo e olhando para a câmera, exibindo e ostentando cada camada para nós. Aqui, o jogo pulsional é diretamente ligado à estrutura cênica: há um segredo ao qual só nós, de fora, temos acesso. A posição de voyeur nos garante um prazer que é negado ao marido, que virá a consumir o casamento. Aqui, a visão é liberadora, enquanto a consumação é privada do sentido principal que constitui a obra: o prazer da visão. Um jogo sacana, em que a visão tem mais poder que a ação.
Nuno César Abreu, em “O Olhar Pornô”, retoma o pensamento de Jean Baudrillard acerca de como “a obscenidade é uma tentativa desesperada de sedução pela evidência grosseira da verdade”. Naturalmente, a obscenidade é um conceito altamente variável entre tempos, espaços e circunstâncias de onde se fala, e o que sobreviveu de Le Coucher… poderia estar, hoje, num filme para todas as idades. A grosseria da “verdade” em questão também é discutível, e prefiro entender que Baudrillard refere-se a um apelo como a, por exemplo, a quebra de quarta parede da noiva, assim como seus trejeitos afetados, seu sorriso malicioso e caloroso para nós. A função do burlesco em sua interpretação para nós é dizer a sedução ao invés de fazê-la.
Onde, nessa reflexão, ficam as pornochanchadas políticas de diretores como Carlos Reichenbach e Neville D’Almeida, cujos estereótipos farsescos refletem farsas do próprio extrato sociopolítico brasileiro, e o sexo funciona como elemento de suspensão momentânea desse funcionamento, ostentador de sua hipocrisia? O plano da penetração no início de Anticristo (Lars von Trier, 2009), que prenuncia a morte da prole dos que consumam o ato reprodutivo? As inúmeras cenas de sexo explícito em O Império dos Sentidos (Nagisa Oshima, 1976), que vão gradativamente do encantamento à mortificação? As duas cenas antitéticas de sexo em Je, Tu, Il, Elle (Chantal Akerman, 1974), em que um homem em close up solo descreve comandos de masturbação à protagonista, em contraste com a cena de sexo a duas, em que o casal lésbico em plano inteiro conjunto não solta uma palavra e quase não estimula as genitais diretamente? Longe de encaixar obras assim na categoria “erótica” ou “pornográfica”, esta edição pretende aprofundar-se no espectro de potências, problemáticas e abordagens autorais nas representações do sexo e do corpo no audiovisual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Nuno Cesar. O Olhar pornô: A representação do obsceno no cinema e no vídeo. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2012.
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. BAUDRILLARD, Jean. “What are you doing after the orgy?”. Travers, nº 29, 1983.
Disse Paulo Emílio que o pior filme brasileiro ainda nos é melhor do que o mais genial dos filmes estrangeiros. Disse Walter Benjamin que era preciso construir uma arte bárbara, uma barbárie positiva no seio da modernidade, uma arte capaz de começar do zero, de fundar a sua própria tábula rasa. E disse Oswald coisas sobre a rítmica religiosa, sobre os transes, os transidos, as alucinações sob o sol escaldante do Brasil.
Tudo isso está em Carlos Reichenbach, iluminando seus olhos de boca do lixo, olhos anarquistas para dentro dos preconceitos e das putarias do Brasil, e por isso não mais a subversão e sim a transgressão. Um cinema para além da política porque a política nunca foi suficiente para o cinema, porque politizar o cinema é o querer sério demais, sob o controle de diretrizes bem estabelecidas. E se um dia Reichenbach quis mudar o mundo através de um cinema político, logo percebeu que era mais útil pensar o mundo formulando uma carnavalização do Brasil.
E a pornochanchada de Reichenbach, não totalmente anárquica, se leva a sério demais; o seu sexo é interlúdio para os “assuntos importantes”, e os seus personagens são tipos, retratos da pequenice e grandiosidade humanas. Em Império do Desejo todos são meio maldosos e frágeis, personagens que carregam as máculas da civilização em seus voos e pousos forçados. Tudo parece se resumir em crítica à moralidade, comentário político e elogio da loucura, uma tríade inevitavelmente explorada através do desejo. O sexo é o balizador de todas as relações que se dão sob a marca da propriedade. A preocupação política é disfarçada através da sensualidade das imagens. Enquanto os moralistas barganham suas perversões através da afirmação do poder pela propriedade, o casal hippie trepa da forma mais desinibida possível, se abrindo para uma utopia naturalista, porque Carlão é, antes de mais nada, um utopista.
E mesmo que para eles o sexo tenha algo de inocente e puro, há ainda sobre suas cabeças a sombra funesta do ciúme e do desejo de posse. Nico, apesar de todo o sofrimento (ainda que reprimido) em ver sua amada nas mãos dos moralistas, se mantém fiel aos seus princípios libertários e a deixa livre para foder com quem ela quiser. Para o bem ou para o mal, um filme de princípios. No fim das contas é tudo sobre o Brasil, esse lugar do impossível e, por isso mesmo, cheio de realizações impossíveis: puritanismo via sexo anal; Ménage inaudito entre hippies e caretas; rituais e canibalismo feitos por um gigantesco homem branco que enlouqueceu por inadequação social. Reichenbach, um dos últimos socialistas utópicos (segundo ele mesmo) fazendo deboche da esquerda fundamentada na mentalidade pequeno-burguesa de intelectualidade sem praxis. E tudo soa ridículo, extremamente caricato, porque segundo o manifesto do cinema cafajeste, o que se quer é um cinema de comunicação direta.
Em Extremos do Prazer há a mesma tríade (moralismo, política e loucura), a mesma obsessão de Carlão, mas agora sob uma dimensão trágica. Tão atual nos é a representação de uma sociedade cindida: de um lado o intelectual frustrado, assombrado pela derrota pessoal e utópica, resquício da ditadura militar que não só torturou os corpos, mas destroçou as almas daqueles que restaram vivos. Do outro, a classe média em ascendência, os tecnocratas, os meritocratas, os que desejam a grana acima de tudo. Estupradores, misóginos, anti-intelectuais, figuras que brotaram do esgoto da história e que estão por aí, institucionalizados.
Apesar desse esquema, os personagens mais fechados em sua caretice acabam sempre sucumbindo às almas mais libertárias. Carvalho, o advogado mercenário de Império do Desejo, abandona a sua família para propor ao casal hippie uma vida idílica em um sítio. E o filme termina de forma perturbadora, em falsa felicidade. Enquanto a exploração da propriedade continua, Nico e Lucinha seguem, alienados, a se amar na grama. Já Ricardo, o reaça de Extremos do Prazer, recalca a todo momento o seu desejo de se aproximar daquilo que lhe é estranho, mas que o fascina: socialismo, liberdade sexual, intelectualismo etc etc. Carlão parece jogar com ambivalências, o sexo pode alienar tanto quanto libertar: pode ser caminho para uma política libertária, assim como para um processo de escamoteamento das mazelas sociais. De todo modo, sempre o sexo, sempre o desejo: “a gente tem que tentar a utopia a partir de nossas relações familiares e eróticas”.
Em sua utopia do artesanato, é como se Reichenbach não pudesse se decidir, e talvez essa indecisão seja um mérito. Há muita seriedade em seus filmes, mas não o suficiente para se evitar uma sacanagenzinha de vez em quando, porque a sacanagem quase sempre tem algo a dizer sobre o discurso que está sendo desenvolvido no filme. Assim agrada a gregos e troianos, aglutinando o melhor dos dois mundos, porque é vanguarda e é banal. Intelectuais e punheteiros se curvam às artinhas de Carlão, autor para ser visto com a mão no queixo e de pernas cruzadas num cinema sujo de um centro metropolitano qualquer. Mostrar o corpo para falar do espírito, é assim o cinema de Reichenbach, do Carlão.
Anhell69 (2022), de Theo Montoya, construção ensaística de amizades e convivências urbanas em busca de um resultado fílmico desregrado. Percorre-se Medellin pelo fio da assimilação da memória. É um desfile de conceitos e proposições, sobre a constância de um cinema interrompido, o que se propaga quando um filme não consegue existir. Nisso, conjuga todo tipo de cena, tentando agarrar-se em algo que permaneça.
As maiores intimidades são fortes, a relação constante com a morte e o sexo exposta no processo de “casting”, a fixação de um diretor por um ator, a propulsão da cidade em enterrar tudo que se desdobra em sua terra. O texto em voice over é ingrato, são palavras reiterativas e pouco desviantes que tornam a narração bem menos complexa do que sua empreitada de montagem deve sugerir. A sucessão de cenas que tratam dos mesmos temas gera alguma consideração notável sobre a violência sem descanso, a destruição da juventude como forma de organização de uma rotina urbana, como planejamento de cidade.
Esse efeito não permanece tanto, vai se diluindo dentro dessa ideia de filme “sem fronteiras” (o tipo de premissa que tem, por consequência, a geração das fronteiras mais visíveis). Não é que sua estruturação seja tão misteriosa, mas há o desejo por uma confusão material, ainda que acabe controlada por um início, meio e fim bem demarcados. É possível perceber o custo daquela realidade ficcionalizada, recontada, o impulso de fazer história de si mesmo e de quem está ao seu lado por perceber a facilidade do desaparecimento das coisas. Porém, os limites ainda são muito claros, a fluidez está por trás das demarcações. A única certeza é que a cidade vai engolir tudo até o fim.
Vieja Viejo (2022), de Ignacio Perez, exercício de performance entre dois jovens atores (Nicolás Zárate e Paulina Moreno) interpretando um casal de idosos. A câmera se contenta em acompanhar seus passos e dar o espaço necessário para que eles façam seu trabalho de incorporação. A rotina é entrecortada por vídeos de celular caseiros, em vertical, que não servem grande propósito ao experimento para além de reforçar o questionamento central sobre percepções de idade, limites físicos e corporificações desconjuntadas.
Seu conceito inicial parece ser suficiente para que o filme não busque caminhos muito drásticos, desenrola-se um drama comum de envelhecimento cotidiano entre os dois que deixa a discussão temática num ponto morto. Não há grande novidade no que busca dizer ou questionar, sua aproximação cinematográfica da proposta conceitual é de poucos esforços, mas o casal de atores é consideravelmente denso.
El Grosor del Polvo (2023), de Jonathan Hernandez, engana. Começa como um drama materno sem grandes variações, daqueles filmes que mantém o monótono narrativo como assimilação da experiência de sua protagonista (Giovanna Zacarías). Enquanto ela sofre pelo desaparecimento da filha, espalhando cartazes pela cidade, somos lentamente instruídos a imaginar a construção de um suspense, com direito ao aparecimento de um revólver. Somos apresentados a um suspeito, a uma sequência de acasos narrativos de tom fabricado (em contraste com seu procedimento de realismo) e o efeito é o da expectativa crescente.
O filme não se desgruda do subjetivo de sua atriz, e ela carrega o peso de todos os enquadramentos. Quando nos aproximamos de algo propriamente tenso, quando a escalada para o confronto é determinada, o filme acaba. Esse efeito já conhecemos, dos suspenses de encerramento ambíguo, mas geralmente é acompanhado de uma ou outra imagem um pouco mais forte.
Aqui o vazio é claro, e não há interesse ou possibilidade de confronto. Percebe-se, portanto, que o filme nunca saiu de seu ponto inicial: fazer com que a experiência de suspense esteja em pé de igualdade com a subjetividade da protagonista. Não há valor cinematográfico nisso, não mais do que o terapêutico, e saímos com alguma lição sobre sofrimento que simplesmente não nos pertence. E a busca continua…
Las preñadas (2022), de Pedro Wallace, lembra a moda dos romenos. Um Doutor Lazarescu sem grandes humores ou uma antítese semântica de 4 Meses, 3 semanas e 2 dias, com uma aparência geral de novelão. O esforço é estabilizar uma abordagem do real através de tragédias reconhecíveis, populares. São intensas crises de maternidade que perpassam um dia na vida de duas grávidas (Ailín Salas e Marina Merlino), ali na fronteira entre Brasil e Argentina. Em sua curta duração, os dramas sociais não são interesses individuais, não sustentam particularidade. O marido alcóolatra, as crianças deixadas sozinhas em casa ou o atendimento precário dos hospitais públicos surgem mais como obstáculos aventurescos do que efetivos estágios dramatúrgicos. O miolo é a parte mais efetiva: a câmera estabiliza, filma detalhes das paisagens que a dupla de grávidas atravessa, ouvimos suas reclamações em monólogo, seus corpos ficam reduzidos no quadro. No resto do filme, a câmera instável tem papel impositivo, seu movimento de aproximação com os atores parece preceder ideias mais articuladas de composição. São boas atrizes, colocadas em situações costumeiramente “latinizantes” (essa imagem da mulher grávida, sofrida, cheia de filhos num barraco de madeira) que entregam, em algum nível, o peso de realidade que o filme sugere buscar. Acaba sendo exemplar como um sintoma curatorial (um comentário banal de se fazer, claro, mas que aqui ganha uma boa justificativa para ser feito): esses filmes bem produzidos, “assistíveis”, com a causa social bem declarada e os gastos públicos justificados, presos num campo inócuo, incapaz de perturbar qualquer gosto. Ao fim da projeção, quase tudo parece resolvido, e talvez esse seja o grande vazio.
Moto (2022) de Gastón Sahajdacny, filme de processos contemporâneos comuns, encontra seu espaço próprio de existência. O “docficção” (sera que poderíamos, em conjunto, encontrar novas palavras para esses filmes?), a cidade como personagem, os tangenciamentos políticos, os motoqueiros (personagens centrais do novo cinema), a dilatação do drama… Tudo que é comum pode ser relevado pelo romance, nos momentos entre os protagonistas Mariano e Constanza, quando enquadrados conjuntamente. Juntos, vivem os dois travellings mais notáveis do longa, um no topo de um morro, com a cidade iluminada em segundo plano, outro ao final, acelerando a motocicleta por uma avenida diurna. Para um filme com esse título, vale perceber seu movimento de lentidão. Até quando filma Mariano em movimento, a sensação é de uma estabilidade prisioneira, uma vivência urbana demarcada pela impossibilidade de progresso. Córdoba existe como terreno irregular. Por vezes, a cidade integra os personagens, no canto ou no centro dos quadros. Outras vezes, parece vazia, em quadros de paisagem quase aleatórios, desocupados de registros memoráveis. Entrecortando os momentos de encenação, estão filmagens em minidv de natureza caseira. São as cenas de efeito sentimental efetivo, parte pela trilha lo-fi, mas majoritamente pelo aparecimento dos grãos da imagem (vale questionar porque tão poucos cineastas utilizam extensivamente os efeitos dessas câmeras, já que todos parecem conhecer suas capacidades). Uma das sequências finais com a filmadora caseira, quando o romance já está efetivado, mostra o casal se gravando em um parque, percebendo os arredores com proximidade, o granulado texturizando toda emoção. As variações de luz ganham dimensão justa, os espaços escuros ficam bem preenchidos de movimento, com os ruídos da tela abastecendo qualquer lacuna dramática que poderia distanciar o projeto de variações substancias. No fim é isso, acolhe-se o romance em tela, quando já não há mais o que fazer. O conforto é um problema grave, será possível mantê-lo continuamente como valor de produção?
O Estranho (2023), de Flora Dias e Juruna Mallon, é aula. O projeto, ao ser descrito, consegue perpassar todos os termos de uso disponíveis no mundo curatorial: territorialidade, ancestralidade, colonialidade, identidade, esse tipo de coisa. Não há mal intrínseco a isso, imagino, já que o cinema consegue existir apesar de sua departamentalização. Durante sua primeira metade, somos apresentados a uma tese um bocado objetiva, compreendemos seu lugar de ocupação e como o filme pretende se mover diante de seu conceito central. Uma câmera precisa dá ritmo ao discurso, somos apresentados a uma cadeia de personagens e percebemos, com fluidez e clareza, suas razões dentro desse cinema. Quando a projeção avança, sua cadência inicial vai sendo cada vez mais apagada, até desaparecer completamente. A partir de dado momento (uma cena específica de dança, de uma consciência de classe culpada e improdutiva, infértil) e de maneira bruta, o longa vai construindo uma sequência de cenas imperdoáveis, onde o conceito inicial (que já estava óbvio em sua abertura, antes mesmo do título aparecer) vai encontrando novos jeitos de ser explicado ao público, com direito a cinco “talking heads” documentais. Olhando ao redor da sala durante a sessão, dava para confirmar que estávamos todos entre adultos, o que torna ainda mais difícil a compreensão dessa decisão maçante, mercadológica, de escolher fazer um filme que acaba pela metade e resolve, pelo resto da duração, explicar o que acabávamos de assistir, para não deixar nenhuma ponta de dúvida sobre suas boas intenções. A sensação principal é de que as diretoras resolveram encenar algo como uma reunião de financiamento, filmar os pitchings do projeto ao invés de seu roteiro (e faz questionar se há ainda alguma diferença entre essas duas coisas). Se o terror dessas últimas décadas é mesmo o abismo do mercado de cinema internacional, O Estranho entra como a figura mais conforme, reconhecível. Da distância entre a Europa e Brasil, das construções malditas em território nacional, resta uma ponte, um caminho único a ser trilhado, sempre dando cada passo com o máximo de cuidado para não ferir qualquer conexão comercial.
Propriedade (2022), de Daniel Bandeira, é um thriller desconjuntado e imperfeito, com grande carga de entretenimento. Habitamos a terra do gênero cinematográfico como irreconciliador de classes, o que parece natural e condizente com as correntezas contemporâneas. Não chega a ser um filme de cerco, já que seus grandes efeitos não são resultado de uma espacialização muito cuidadosa. Também não acredito que o conflito de classe, gerado pela revolta dos trabalhadores de uma fazenda contra seus patrões, seja o motor de suas construções. Creio em uma terceira opção, mais condizente com o que acontece em tela: o encontro de um equilíbrio perturbador de terrores, onde trabalhador e patrão se encontram igualmente animalizados, amorais, movimentados por uma ocasião odiosa que só abre espaço para a matança. Diferente de outros filmes similares, não há êxtase em toda a sua violência, não há prazer na vingança do oprimido contra o opressor. O que se desdobra é um movimento contínuo, imparável, de horrores situacionais, onde os personagens caminham de acordo com a pulsão de morte. Dentre o extenso grupo de atores que protagonizam a revolta na fazenda, não há grandes personagens a serem lembrados, não há grandes personalidades, isso não parece interessar ao filme. O que prevalece é um movimento conjuntivo e relativamente ambíguo de força, uma série de infortúnios cabulosos, construídos por cima de arquétipos de classe, um furor por violência que não é tão dependente de seu verniz social quanto pode aparentar. Fosse o caso, a construção dos personagens seria outra, o engajamento por suas motivações viria de outro lugar. É um filme “de roteiro”, carregado pelo interesse em seus absurdos acontecimentos sucessivos (uma violência que vai sendo cada vez mais despersonalizada, o que é comum a esses projetos). Não é um thriller de grande elegância, não é um filme de conflitos entre enquadramentos, sua tensão e seu entretenimento são carregados por essa força grosseira e inconclusiva, capaz de pensar em diversas imagens sem necessariamente transformá-las numa ideia fílmica encenada, elas ficam acontecendo por entre essas associações consecutivas de brutalidade. Sobrevive, ao fim da projeção, esse sentimento de horror, um astral negativo, um lugar sem heróis ou idealizações de povo. Está aí um elogio possível, dado todo o enfrentamento necessário para encarar Propriedade.