A natureza é um templo: As paisagens inquietantes de Emily Richardson

por Natália Reis

Não se trata de uma questão de “natureza”. A “natureza”, tal como é mais frequentemente entendida, é uma abstração, assim como a ideia de o homem estar perante ela. O que é real é a terra, o mar, o céu, a areia, os pés no chão e a respiração, o cheiro da grama e do carvão, o crepitar da eletricidade, o enxame de pixels… Não há real a não ser a terra, com todos os seus cantos e recantos  (“Paysage avec dépaysement”, Jean-Luc Nancy)

“Para que a montanha possa representar o papel de Monte Análogo é necessário que seu pico seja inacessível, mas a base acessível aos seres humanos, tais como a natureza os fez. Ela deve ser única e deve existir geograficamente. A porta do invisível deve ser visível.”

Quando soube que não poderia mais praticar alpinismo, paixão recentemente adquirida através do irmão, René Daumal decidiu escrever sobre a busca de um grupo de aficionados como ele por uma montanha impossível. Tuberculoso, o poeta deu início ao manuscrito de O Monte Análogo: Romance de Aventuras Alpinas, não Euclidianas e Simbolicamente Autênticas em 1939, mais ou menos quando recebeu recomendações médicas para desfrutar do ar da montanha, mas abdicar das escaladas. “Se não posso escalar as montanhas, irei cantá-las daqui de baixo”, e assim fez até sucumbir à doença em 1944, deixando o livro inacabado. 

Segundo o narrador de Daumal, o Monte Análogo é um elo entre o mundano e o divino, seu cume se eleva para além do céu e sua base se ramifica pelo mundo dos mortais, oferecendo “uma porta visível para o invisível”. O conto, entre tantas outras coisas, é uma alegoria simbólica sobre a ascensão espiritual e o desapego material, mas penso nesse visível que se abre ao invisível para além da montanha: é possível acessar o imaterial através da paisagem? 

Jean-Luc Nancy vai dizer que a paisagem é o lugar do distanciamento e da estranheza. Não pode ser povoada por deuses, entidades, forças políticas ou teológicas, pois deixaria de ser paisagem para se tornar “cena”. Nessa dissolução de presenças, ela passa a ser toda a presença em si, convocando o que Nancy chamou de “sentido da paisagem”, uma sensação ou sentimento de ausência “justamente porque aqui, neste ‘aqui’ da paisagem, ele não consiste em si mesmo, mas na sua abertura” – um esvaziamento que “se abre sobre nós”, colocando-nos não diante da paisagem, mas dentro dela.

Tente se lembrar se alguma vez já sentiu a desolação inexplicável e inescapável proporcionada pela visão de um horizonte distante, o céu pálido se derramando sobre o relevo ao cair da noite, ou ainda, pelo rumor vegetal da mata fechada numa manhã silenciosa. Essa inquietação (quem sabe próxima do unheimlich freudiano) vem à tona quando tomamos consciência de que, superada a representação, a paisagem é pura suspensão. O trabalho da artista visual e realizadora inglesa Emily Richardson pode ser descrito como um prolongamento desse gesto de constatação. 

Em seu primeiro filme, Redshift (2001), Richardson vai estabelecer o leque de procedimentos que a acompanham desde então, como o uso da bitola 16mm, longas exposições, câmera fixa, planos longos e técnicas de animação em time-lapse. É um cinema rítmico, dos desdobramentos da luz, do tempo e do movimento, mas para além disso, é um cinema da natureza assombrada e viva. 

“Redshift”, ou “desvio para o vermelho”, é um termo usado na astronomia para descrever o cálculo da distância de objetos (como estrelas) através da distorção do comprimento da onda de luz que eles emitem. No filme de Richardson, esse tema é replicado nos corpos celestes distorcidos pela longa exposição e pelo time-lapse, que faz com que pareçam halos ascendendo (ou descendendo) pelo firmamento. Massas densas de névoa e de nuvens se movimentam sobre a silhueta de uma escarpa e pontos luminosos atravessam de um lado para o outro na linha do horizonte enquanto a trilha sonora de Benedict Drew, colaborador de longa data nos trabalhos da diretora, vai compor com ruídos e estática a imagem de um mundo eletrizado, desperto na escuridão. 

Leio a descrição do filme que fala em tentar “transmitir a vasta geometria cósmica do céu noturno e fornecer uma perspectiva alterada da paisagem”, mas acredito que há algo em Redshift que não pode ser sintetizado por palavras como “geometria” e “perspectiva”, por mais que consiga enxergá-las ali. É algo do domínio sensorial e sobrenatural – um ritual animista dissimulado pela técnica. 

O mesmo ocorre em Aspect (2004), terceiro filme de Emily Richardson. A luz do sol escapa por entre folhagens e galhos de um bosque lembrando as intervenções de Brakhage respingadas quadro a quadro. A câmera paira sobre a vegetação para logo em seguida penetrá-la obstinadamente com movimentos de zoom, e é quase subjetiva, como se incorporasse uma presença criatural. Aqui a passagem do tempo vai conduzir os efeitos práticos de Richardson. As sombras projetadas dançam, árvores se agitam num cenário que acomoda tanto a fábula quanto os primeiros experimentos no cinematógrafo. O desenho de som, mais uma vez de Ben Drew, foi realizado a partir de “fragmentos de sons florestais tipicamente não registrados, formigas no formigueiro, o vento varrendo o solo da floresta e o estalar de um galho”. Amplificados e reconfigurados, esses registros sonoros contribuem para a atmosfera de horror folclórico que parece percorrer a superfície de Aspect.

No conjunto de sua obra, Emily Richardson vai ainda lidar com outras configurações de paisagens como ruínas, ruas desertas, campos de petróleo, instalações militares abandonadas e conjuntos habitacionais. A presença humana nesses filmes é quase nula (salvo os moradores de uma antiga torre residencial londrina em Block, de 2005) e é anunciada através de vestígios mais ou menos visíveis, desde as luzes ectoplasmáticas de faróis em Redshift aos escombros de um radar experimental usado na Guerra Fria em Cobra Mist (2008). 

Quis falar de Redshift e Aspect porque acredito que são filmes de manifestações do invisível no visível. É difícil nomear as sensações que mal se traduzem no decorrer da minha experiência com as duas obras, mas fico com o “inquietante” porque diz respeito a um “desassossego que impede o repouso”. Richardson nos coloca em estado de alerta, mas também em contemplação. A montanha, a névoa, o céu noturno, o chacoalhar de galhos e os ruídos mais profundos da terra, tudo pode ser assustador e maravilhoso ao mesmo tempo, se prestar bastante atenção. 

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