O lugar da paisagem em um programa ético

por Fábio de Carvalho Penido

O que seria do humano se expresso pelos elementos? 

A pergunta nos provoca a uma rearticulação da posição humana em relação às paisagens nos filmes Chuva Serpente (2016) e 4-Waters: Deep Implicancy (2019), de Denise Ferreira da Silva e Arjuna Neuman. Os visuais têm um teor ensaístico, vindos de manifestações políticas, gravados por câmeras amadoras, registros de câmeras de vigilância e de guerra, de animações digitais, pinturas, desenhos e projetos arquitetônicos. Em ambos os filmes as paisagens consistem nos planos de maior duração, sendo apresentadas à medida que vozes e textos conduzem linhas críticas e reflexivas sobre a violência racial, as noções de valor e extração no capitalismo, a compreensão eurocêntrica do humano e fenômenos físicos da natureza. 

Serpent e 4-Water lidam com a violência racial por lampejos. Cortes bruscos que conferem aos filmes ritmos irregulares, com mudanças de pulsação que periodicamente retornam à extensão das paisagens florestais, marítimas, montanhosas, congeladas, como um mar que subitamente retorna à calmaria depois da onda. Se há um propósito de tornar indiferenciáveis esses tantos registros da violência, aos quais só atribuímos origens precisas nos créditos finais, o objetivo é ressaltar um regime de semelhança ao qual os corpos racializados em cena são submetidos no mundo. 

A repetição desses lampejos no decorrer das obras ancora um discurso através das imagens, que expõe um regime em que a categoria do valor e os processos da extração no capitalismo se encontram no momento fundador da modernidade de subjugação das vidas racializadas à escravidão. Serpent e 4-Water rapidamente se revelam filmes que almejam propor uma visão de mundo na qual um dos dados primários é a permanência da extração de força de trabalho do sujeito racializado e a situação de sua vida em uma zona de valor abaixo do humano, abjeta. 

A proposição de realização de um filme que abole o tempo, como antecipado pelos realizadores em entrevistas e apresentações, parece encontrar na semelhança e permanência da violência seu dado fundador. O sujeito racializado submetido à extração de sua matéria, no trabalho, na agressão, na valoração social, se atualiza no presente, de modo que a noção de progresso, de um avanço temporal benéfico ou necessário, se torna questionável. A partir desse ponto, ambos os filmes vão propor um novo programa ético, uma nova relação da humanidade consigo mesma e com as outras matérias do mundo do qual faz parte. 

A paisagem é aquilo que liga os objetos esparsos da natureza em torno de uma unidade. Talvez ela seja uma das formas de produzir imagens em que os rastros do procedimento estejam menos evidentes para o espectador, pela moderna equivalência entre natureza e paisagem que desconsidera os saberes e técnicas que configuram a composição do quadro. Cauquelin, em seu livro Invenção da Paisagem, nos diz que a perspectiva e sua invenção é uma das bases do acesso ilusoriamente imediato dos sentidos humanos aos objetos do mundo exterior. Tal transparência eu-mundo, aplicada à pintura desde o período renascentista, revela o desejo de uma conformação dos objetos exteriores uns aos outros pela vontade humana. 

Aplicada à paisagem, a perspectiva produz um olhar sobre os objetos do mundo fundado do ponto de vista individual humano. A paisagem é delimitada pelos olhos do pintor, articulada a partir de procedimentos matemáticos de transposição do visível para o ecrã, e apresentada ao espectador como uma síntese da natureza. O gesto, para Cauquelin, representará um marco na produção do conhecimento moderno. A paisagem, por excelência, será o alicerce entre saber estético e científico sobre a natureza com origens europeias.   

O que os discursos de Serpent e 4-Water inicialmente provocam são as bases que permitiram a separação entre os objetos do mundo e a sua síntese neste saber que hierarquiza humanidade e natureza. Em 4-Water, a lava goteja na água do oceano, as rochas sofrem os danos das bactérias que viajam no mar, as pedras de uma antiga construção submersa servem de morada para os peixes. São imagens que dão a ver a diferença sem separabilidade, postulada pelo filme, quando observamos os quatro elementos, água, fogo, terra e ar, se encontrando nesses planos. A profunda implicação entre os elementos, tornando visíveis as metamorfoses por meio das quais um afeta o outro nos processos de transformação da matéria. 

Corrosivas, mutualistas, interpenetradas, mescladas, sobrepostas, as figuras dessas imagens informam de uma impossibilidade de estabelecer limites rigorosos entre forma e matéria. Em outras palavras, trata-se de averiguar a cada cena da “natureza” a insubordinação da matéria a qualquer procedimento de formalização a partir do plano cinematográfico. Aquilo que era paisagem, síntese, se torna um complexo mineral, vegetal, animal e social que não se esgota em um telos do olhar humano que conquista a natureza. 

Essa materialidade que toma corpo nos planos de Neuman e Denise não há de ser pensada somente ao pé da letra daquilo que está diante dos olhos. Algo também atravessa esses planos da ordem do lastro, remetendo ao arqueológico, ou ao tempo geológico, de movimentação de forças irredutíveis ao alcance da perspectiva humana individualizada. Os mares, geleiras, florestas são agentes que participaram dos processos fundadores da modernidade à sua maneira. Um mar foi atravessado séculos atrás como rota para os processos de extração de valor do trabalho escravo. Esse mesmo mar é hoje atravessado por perseguidos políticos, famintos, os condenados da terra para quem noções como progresso e modernização não lograram bons frutos.   

Tempos minerais, tectônicos, das cosmovisões não europeias, dos saberes que não foram incorporados pelos processos coloniais: são essas as forças que se manifestam. Não mais a redução das possibilidades dos objetos exteriores – natureza – à compreensão humana. Mas, justamente, a instalação da crise, da pergunta de como olhar para essas imagens, tão centrais nos filmes de Neuman e Denise, mais anti-paisagens do que paisagens em si, e que apontam para uma outra economia da matéria do mundo. Regime em que a forma não vem para dominar, mas no qual a matéria extrapola os princípios formais, determinantes de uma essência ou teleologia. 

É preciso reaprender a observar essa profunda implicância, essa dimensão abismal que escapa à escala humana, que se manifesta na violência dos séculos, nas ruínas sedimentadas no fundo do mar, nas formas de vida e suas inteligências. Não se trata, como se vê, somente de uma visão catastrófica da história. Por um lado, os filmes parecem anunciar o que se impõe, o que é incontornável para seus realizadores: que o humano voltará a se encontrar com os elementos em sua materialidade de base, irredutível à metaforização e instrumentalizações. Há, nisso tudo, uma pedagogia das imagens, que Denise e Neuman nos convidam a participar. Mas, talvez como maior qualidade das obras, há o convite também para uma nova erótica do cosmos. Jogo com a distância, como o erótico prevê. 

É no jogo das formas que o erotismo se dá. Não na sua estabilização, mas na transposição dos limites que determinam que cada coisa tenha sua forma. Crise, sim. Mas também é um transbordamento atrativo, que seduz pelo seu mistério e opacidade. Jogo, porque negociação entre agentes outros, para além do humano. Jogo, também, porque comporta lições, aprendizagens do corpo e do cosmos. Serpent Rain e 4-Water, filmes entre o ensaio crítico e a pedagogia das imagens, em seus melhores momentos oferecem respiros discursivos, tornando o ritmo dos filmes menos didático e mais dançante. Sabendo que, pela dureza da denúncia que o filme produz, as brechas vão se abrindo e atraindo os espectadores para novas possibilidades de mundo. 

Por fim, são eloquentes as transições entre sequências de Chuva Serpente, quando as mãos de Denise embaralham cartas de Tarot em brevíssimos planos. Os saberes que convidam a uma nova relação com o mundo decerto já podem ser acessados, nas bordas da razão ocidental. O Tarot, carregado de uma dimensão atemporal, é o lance de dados simbólico, imagético. Convite para a aposta no acaso ou nas forças que não se veem, que não pertencem ao domínio da metafísica ocidental, nem em suas configurações teológicas e nem racionalistas. Não seria o Tarot, em si mesmo, uma anti-paisagem? Aquela imagem irredutível, quadro inesgotável de sentidos. Nó em uma rica trama de conexões com forças conhecidas e desconhecidas. 

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