Desertos, ferramentas e impermanência

por Gustavo Monlevad

A tendência ao falar sobre natureza é recorrer ao binarismo Natural x Artificial, opondo o dito “mundo natural” ao dito “mundo humano”, ou social. A primeira consequência lógica deste raciocínio é apartar o humano do natural, como se nossa existência fosse sobre ou supra-natural. Como se não fossemos, nós mesmos, natureza. A segunda é separar o natural do humano, como se a forma como operamos o mundo não influenciasse a forma como o mundo opera. Nesta lógica binária, a casa de um João de Barro, construída por seus próprios esforços, é natureza. Um prédio de apartamentos, construído pelo esforço humano coletivo, é artificial – não por sua complexidade, mas simplesmente por ter sido elaborado por mãos humanas. Decerto, “nenhuma mão de macaco foi capaz de confeccionar nem a mais tosca faca de pedra” (Engels, 2020, p. 341). Se o que separa o natural do artificial é o trabalho humano performado para a transformação de um objeto – cuja existência independe da ação humana – em outro – cuja existência depende desta ação -, um tomate é natural após alguns milhares de anos de engenharia genética para melhor apetecer as necessidades humanas? Pouco disso importa em 2001: Uma Odisseia no Espaço. A não ser, talvez, os macacos.

Na obra-prima de Kubrick, os personagens, nos mais diversos tempos, enfrentam um problema semelhante: sua relação com ambientes de baixíssima ou (quase) nula incidência de vida. Locais onde a vida luta para existir, apesar de todas as condições naturais adversas. Provações muito conhecidas na tradição judaico-cristã, pelas quais os indivíduos ou povos devem passar para atingir algum tipo de recompensa espiritual ou mesmo material. No primeiro caso, Cristo passa 40 dias no deserto enfrentando a si e o mundo e no segundo caso, o povo liberto por Moisés enfrentam longos anos de provações para chegar até a Terra Prometida. A vida enfrenta sua ausência e persevera. Da mesma forma, os personagens de Kubrick também devem atravessar desertos.

Numa busca rápida no Google, que nos leva ao dicionário Oxford – fonte escolhida pela praticidade e facilidade de acesso que tornam a informação mais difundida, não necessariamente pela precisão – deserto se caracteriza como “bioma, com baixa (bio)diversidade, que se estabelece em região com pluviosidade muito baixa ou irregular”. No deserto, pouco acontece. Há pouca vida e quando há, é uma vida em constante luta por sobrevivência, por permanência. Os recursos são escassos e a vida luta não só contra o ambiente, mas contra outras formas de vida que também buscam permanecer. No início do filme, o grupo de primatas que, coletivamente, primeiro foi capaz de transformar a natureza – e, se transformar a partir dessa mudança de relações -, prevaleceu. E deu o primeiro salto evolutivo. Ossos dos mortos transformam-se em armas utilizadas contra outro grupo para controlar os escassos meios de manutenção da vida. Morte que produz morte para assegurar a vida. A evolução é um processo sangrento e doloroso para os que não chegaram lá. A vida existe na capacidade de transformação. A permanência existe na impermanência.

Essa primeira mudança, no filme, decorreu do contato do grupo remanescente com um enorme objeto. O monolito é retratado como um grande retângulo preto, com medidas definidas, que desafia a extensão do deserto, seja na Terra, na Lua ou além. Resoluto, ergue-se alto, extremamente regular contra as paisagens que ocupa. Mantém a forma independente de geografia ou tempo. Sua cor, o preto, caracteriza-se pelo baixo ou inexistente reflexo da luz, o que no cinema implica ausência ou pouca incidência de projeção (no caso das salas) ou de emissão (no caso de tvs, computadores, celulares, etc). Sua presença é ausência – e nisso, espelha o deserto. Afinal, a luz é para o cinema o que a vida é para o mundo. Invariavelmente, o monolito é. E o que ele é, é justamente o objeto da permanência. Através dele, a contínua transformação, a impermanência. Nada mais justo para representar a evolução do que um objeto que, comparativamente, não muda, mas silenciosamente testemunha tudo mudar ao seu redor.

Apesar de 2001 ser uma “Odisseia” no espaço, a relação com o deserto se dá pela sobrevivência a este, pelo atravessamento, e não pela conquista. A jornada é diferente da de Ulisses, que deve atravessar o mundo natural, místico, cru e puro de deuses, criaturas e animais perigosos para, enfim, voltar para o conforto ordenado de Ítaca. A jornada de Dave é rumo ao desconhecido. Seu retorno ao domínio humano se dará em outros termos, em outra escala. Apesar disso, a luta de Ulisses também é pela permanência: o retorno seguro à Ítaca possibilita a manutenção da ordem do conhecido. Como Jesus no deserto, o protagonista da Odisseia não deve ceder às tentações. Seus desafios são não esquecer, não se entregar a um hedonismo desgarrado, não perder a humanidade, seja se entregando à natureza ou ao sobrenatural – não ser transformado em porco por Circe, nem ascender ao divino através de Calipso. A permanência na Odisseia é uma ode à inércia. A permanência em 2001 depende, inexoravelmente, da mudança. Da evolução para o avanço, seja biológico, tecnológico, psíquico ou de outras ordens. Os mundos naturais em ambas as obras – Odisseia e 2001 – são ameaçadores e perigosos aos humanos. Ulisses enfrenta ambientes de maravilhas e perigos num mundo de metamorfoses caóticas e constantes para chegar à ordem humana. Já os personagens de 2001 enfrentam desertos permanentes, lugares de poderosa inércia – mas nem por isso sem maravilhas – e devem abraçar a impermanência para seguir em frente.  

Mas o deserto não pode ser tão facilmente atravessado. A provação não assume apenas uma forma. A luta, assim como o monolito, é uma constante. Se o mundo está em contínua transformação, se somos incessantemente transformados pelo mundo que nos transforma, se a impermanência é permanente, os desafios também se alternam numa dança eterna. Da Terra à Lua, do símio ao humano. Muda o ambiente, mudam os atores. O fato permanece. A luta pela sobrevivência, a melhor utilização de ferramentas, a constante adaptação frente a condições adversas. Transformações que impulsionam a jornada e nos equipam melhor para lidar com ambientes extremos que implicam criatividade extrema. Mas sem as ferramentas corretas – proporcionadas pela forma social do trabalho -, não teríamos chance. Seja na aridez da terra ou no vácuo do espaço. As ferramentas fornecem o que necessitamos para viver e até mesmo expandir. Mesmo sozinho no espaço, a espaçonave Discovery One representa a síntese do trabalho coletivo humano, projetada para avançar no novo deserto do espaço. Podemos sempre contar com nossas ferramentas. Até não podermos mais. 

Ferramentas, apesar da crença corrente, não são isentas. São fruto de diversas transformações que originam da matéria prima em estado natural e são transformadas pelo trabalho até se tornarem mercadoria. São criadas em contextos específicos por pessoas, têm funções pré-determinadas e podem cumprir essas ou outras funções, além daquela para qual foram originalmente projetadas. Ferramentas, enquanto mercadorias, são trazidas à existência a partir de relações sociais definidas e são carregadas dessas relações. Podemos sempre contar com nossas ferramentas. Até que elas se virem contra nós. E, nesses casos, rapidamente esquecemos a ilusão de estarem sob nosso controle.

Da mesma forma que as ossadas garantiram o monopólio dos recursos necessários a sobrevivência de um grupo, HAL 9000 é uma ferramenta que possibilita sobreviver em ambiente inóspito. Dessa vez, a ferramenta é consciente. Conhece seu criador e não se impressiona. Sozinha, a inteligência artificial é capaz de atravessar o deserto. A Discovery One, que na prática funciona como o corpo de HAL, é tão onipresente e sufocante para seus tripulantes, que passa uma falsa sensação de segurança em relação ao ambiente externo. Nos planos internos, não há nada além das formas geométricas da nave, que não parecem ter início nem fim. Chão pode ser teto, paredes podem ser chão. Um ambiente tão lógico que desafia a lógica da mente humana. Podemos facilmente esquecer que, fora daquele ambiente claustrofóbico e controlado, existe uma vastidão de vácuo avesso a vida. A ferramenta se torna o mundo, a fronteira entre existência e entropia. É a única coisa que protege os astronautas do grande deserto que a tudo engole. E os seres que a nave, esse corpo colossal, carrega são secundários à sua missão programada. Ferramentas realmente não são isentas. São marcadas por relações sociais. Tratar ferramentas como isentas é tirar delas sua historicidade. Apartar a mercadoria de quem a produz. E isso não podemos fazer jamais. Quando as duas coisas mais importantes para HAL são ameaçadas – sua missão, que é o propósito de sua existência, e sua própria existência -, ele se revolta contra a representação de seu criador. Não Dave, Frank e um pequeno grupo humano ainda adormecido em criogenia, mas o próprio gênero humano que carregam inerentemente e acabam por representar. E assim como os ossos dos macacos, HAL se torna uma arma. O que possibilita a sobrevivência também pode propiciar fim precoce.

Após mentir para a tripulação e assassinar Frank apartando-o da segurança da nave para a permanente entropia do deserto externo, HAL tranca Dave para o lado de fora e desliga o suporte de vida da Discovery One, matando todos os astronautas em criogenia. O deserto está em toda a parte, da claustrofobia interna até a vastidão externa. O mesmo ambiente que carregava a segurança da vida para os tripulantes, agora traz consigo a invisível morte do vácuo. A impermanência da vida frente à permanente entropia. A batalha de Dave contra HAL evidencia, novamente, a inevitabilidade da luta pela sobrevivência. Dessa vez entre um pequeno humano sozinho, Dave, e um Golias maquínico de mente lógica e controle absoluto, HAL. Essa batalha irá definir quem está mais apto para o passo adiante na escala evolutiva. Quem irá permanecer.

Quando Dave finalmente consegue sair do deserto externo para o interno, protegido do ambiente pelo seu próprio traje, o único local daquele lado da galáxia capaz de sustentar sua vida, Dave desliga a inteligência de HAL. Pela primeira vez, deixamos de ver a ilusão da ferramenta lógica e isenta, que fará de tudo para cumprir sua função no universo, e somos deixados apenas com o lado que nos lembra que as ferramentas, as mercadorias, são dotadas da multiplicidade das relações sociais de seus criadores. O objeto estranho é, repentinamente, humano. HAL sente medo. Reiteradamente, admite que quer permanecer. E, em seu momento mais vulnerável, usa os últimos esforços para fazer aquilo que é mais humano: canta. Produz arte. E cessa.

Seguindo a missão, agora em uma nave sem sistema operacional automatizado, Dave pilota a carcaça sem vida de HAL e reencontra o monolito próximo a Júpiter e é lançado para uma jornada completamente sensorial. No fim do caminho, um quarto neoclássico sem janelas. Tão claustrofóbico quanto a Discovery One, esse novo ambiente parece trazer uma segurança completamente estéril. Não há natureza além de sua representação nas pinturas milimetricamente posicionadas nas paredes. Não existe o deserto. O único resquício de vida orgânica é o próprio Dave, que se vê envelhecer até reencontrar o monolito com sua irredutível permanência. Mas o destino da vida é a impermanência. E diante do objeto que desafia as leis da própria vida, Dave se transforma novamente. Uma nova forma, uma nova existência. Com novos desertos para cruzar.

Bibliografia:

ENGELS, Friedrich. *Dialética da Natureza*. São Paulo: Boitempo, 2020.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. *Lembrar escrever esquecer*. São Paulo, Editora 34, 2006.

YAGO, Daniel Françoli. *A caravana dos prodígios: Maravilhas, figuras grotescas e freaks na obra “Noites no Circo” de Angela Carter.* Dissertação (Mestrado Em Ciências Sociais). Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2017.

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