Orlando, minha biografia política (Paul B. Preciado, 2023)

Por Geo Abreu

Paul B. Preciado, o conhecido filósofo e autor de Manifesto Contrassexual e Apartamento em Urano, dirige seu primeiro filme. Uma biografia multivocal, com diversos Orlandos interpretando a personagem do livro homônimo de Virginia Woolf, cuja história é utilizada pelo diretor como espelho, renovando assim o interesse por esse clássico da literatura.

Existe um meme correndo por aí que pode ajudar a entender a relação de Preciado com o cinema e a literatura: uma foto dele com a frase “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem” (tradução minha). Comentando sobre outro livro seu, Testo Junkie, o filósofo afirma ter produzido uma auto ficção, relatando a experiência com uso de testogel em sua transição, ao mesmo tempo em que elabora a ideia de regime farmacopornográfico, historicizando as mudanças tecnológicas e intervenções medicamentosas que vão sendo normalizadas e aplicadas em massa em nome da produção da sociedade heternormativa.   

A autoficção funciona então como experimentação, livro e filme como externalização dos relatos. Essa aparência muitas vezes pedagógica que Orlando assume me lembrou Vênus de Nyke (2021), filme dirigido por André Antônio. Nele, o personagem principal aparece em consultas com sua analista fazendo um inventário de seus desejos e pulsões, que de tão fortes, dominam boa parte de sua vida. Ao mesmo tempo, o filme da produtora Surto & Deslumbramento inventaria também livros, músicas, personagens e diretores gays, como Pier Paolo Pasolini e Kenneth Anger, por exemplo, deixando nos créditos uma lista de referências a quem porventura as esteja procurando.

Orlando/Preciado é econômico nesse sentido e usa apenas o texto de Woolf, adotando o romance como obra de referência queer, num gesto de tomada para si, de aproximação com a obra de uma autora notadamente identificada com a causa feminista. O talento de Woolf com as palavras, compartilhado com o diretor, também se transforma no mote para a criação de novos mundos, em que a existência de experiências trans é marcada numa linha do tempo bastante extensa.

Usar a ideia de poesia como alegoria para discurso é o que dá o tom político ao filme. No lugar de pôr os personagens para contar suas experiências em entrevistas clássicas, Preciado escolhe misturar os relatos pessoais de cada um com a ficção escrita por Woolf, embaralhando os limites entre “realidade” ou ficção. Em alguns momentos, os personagens trazem a tona essa ideia das pessoas trans como “poetas de gênero” – praticando esse exercício de nomear as coisas num mundo novo, em que suas existências são verificadas e historicizadas – e chegando ao limite do esforço empregado nesse ativismo: “somos poetas contra vontade.”, o que nos faz retomar o meme: “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem”.

Vale dizer que nesse trabalho com as palavras, Preciado não escreve nem dirige filmes de forma rebuscada. O ritmo é sexy e empolgante. No trecho abaixo, retirado de uma resenha sobre Testo Junkie, algo de fundamental em sua obra ganha destaque:

“Diante disso, parece haver algo de novo na escrita do filósofo Paul B. Preciado: a experiência de ler seus textos filosóficos excita. Suas palavras incendeiam o corpo. Mostram a força do erotismo em sua versão não sublimada. Tesão, portanto, não é aqui apenas uma força de expressão.”[1]

Assim também Preciado dirige o filme, fazendo da auto ficção aquilo que nos move e incendeia, jogando para que nos tornemos aliadas, amantes, fãs. As imagens criadas por ele nos colocam em posição de combate a respeito da política de produção de corpos, da reprodução de um sistema binário que trata a diferença como desvio, ao mesmo tempo em que nos leva a pensar em outras possibilidade de acesso ao desejo, além da projeção de formas livres de estar vivo e criativo no mundo.

Nesse contexto, uma das frases mais românticas que vi em filmes ultimamente aparece na encenação do reconhecimento entre Orlando e Sasha:

“- Você percebeu que eu não sou homem, tampouco mulher?

– Sim. Você é diferente de todo mundo que eu já conheci”

Clichê ressignificado aqui. Viver o amor em tempos que ainda estamos inventando.


[1] https://revistacult.uol.com.br/home/sobre-a-filosofia-paul-b-preciado/

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DESCRIÇÃO SILENCIOSA: REASSEMBLAGE (Trinh T. Minh-Ha)

Por Georgiane Abreu

Enquanto estudante de antropologia, muitas questões éticas e delicadas passam pela cabeça a respeito do encontro e das trocas com os chamados “interlocutores”: é possível construir relações simétricas? Quais os limites entre a curiosidade comum e o modo curioso invasivo? Não sabendo como responder a estas questões, escolhi como interlocutores, um arquivo e uma série de documentos.

Convivendo com o ressentimento de poder ser classificada como antropóloga de gabinete, esbarrei com uma cópia de Reassemblage em um curso sobre arte como imaginação política e que boa surpresa esse encontro: um documentário produzido por uma mulher e que, apesar de realizado há 40 anos, apresenta questões muito próximas às minhas. Foi como encontrar um tesouro obscuro, capaz dessa identificação mágica que só os filmes atemporais carregam. 

A tal descrição silenciosa a que me refiro no título do texto diz respeito à maneira como a multiartista vietinamita Trinh T. Minh-Ha pensa a forma discursiva de seu filme, expressa pela conjunção entre as escolhas formais e políticas que vão da captação das imagens à densidade produzida pela montagem, com jogos de transição em cortes rápidos. Privilegiando a opacidade e o rompimento com a descrição verticalizada dos acontecimentos, a diretora utiliza a camada sonora como aquilo que move o filme. 

No caminho contrário de alguns documentários recentes, em que o voice-over fica entre a autoficção e o egocentrismo disfarçado, em Reassemblage o documentário etnográfico ganha uma camada ensaística com as intervenções em voz da realizadora, um voice-over econômico, sussurrado.

Essa economia no discurso falado parece uma forma de respeito pelo que está acontecendo à sua frente: a vida das pessoas senegalesas que Minh–Ha acompanha e que ganha movimento fílmico a partir de uma observação muito atenta às camadas sonoras, produzindo um silenciamento inverso ao esperado e que, de maneira delicada e ativa, busca por um lugar menos assimétrico entre a observadora, a estranha, aquela figura chegante e as pessoas locais.

Não pretendo falar sobre, apenas falar por perto.

Na sequência do letreiro inicial, com o título do filme e o nome da realizadora, a tela preta indica lugar e tempo – Senegal, 1981 – e é preenchida por música, um código localizado, com suas batidas ritmadas. Depois de uma sequência muda, com imagens de pessoas de todas as idades, a diretora finalmente fala: I do not intent to speak about, just speak nearby. Suas intenções estão condensadas nesta frase.

Ao aportar numa África, tantas vezes visitada e categorizada por estrangeiros, inserindo-se num espaço já consagrado dos documentários, que descrevem e sedimentam o outro como o africano, o primitivo, o elo perdido das civilizações, Minh-Ha chega falando baixo e ouvindo bem, ainda que não domine as línguas que encontra pelo caminho.

Ao falar por perto daquelas pessoas, que também a observam de longe – com a desvantagem de não poderem ativar o zoom -, a diretora vai tentando responder a uma pergunta que lhe fazem: 

– Um filme sobre o que?

– Um filme no Senegal.

– Mas o que no Senegal?

A beleza da não resposta a essa pergunta faz com que experimentar aquela aldeia seja nosso único compromisso ao embarcar no fluxo das descobertas do filme. Coordenar o ritmo da música com o ritmo do trabalho na comunidade; a capa azul do senhor que aparece produzindo corda me remete a Noir Blue (2018) e os movimentos ritmados de Ana Pi; o corpo está presente e ativo em tudo naquela comunidade senegalesa.

“Criatividade e objetividade parecem correr em conflito. O observador ansioso coleta amostras e não tem tempo de refletir sobre a mídia usada. ”- foi como consegui traduzir uma das falas de Minh-Ha, que escolhe pensar criticamente sobre o seu papel ali, ao invés de descrever o que vê. A imagem por si só já não serviria como descrição? “Para muitos de nós [antropólogos], uma maneira de ser neutro e objetivo é copiar a realidade meticulosamente. Falar sobre. ”

A certa altura a diretora diz “A realidade é delicada” e cruzar essa realidade com os conhecimentos que adquirimos ao longo da vida nos leva a produzir significados sobre tudo que experimentamos. Uma nota no caderno de campo de Trinh T. Minh-Ha e os significados que ela deve ter produzido e escolheu guardar para si mesma. 

Um atravessamento de significações que a diretora compartilha fala sobre o calor e a escolha de usar um chapéu para proteger-se do sol, fato que vira chacota entre as mulheres locais. A pesquisadora assinala o fato de se perceber observada. Porque acreditamos que somos os únicos com o olhar ativo numa relação como esta? Será a câmera? Lembrar que está sendo vista também te deixa desconfortável? Voltamos ao filme. As mulheres pilando e um zoom no seio descoberto, plano que dura segundos. “Um filme sobre o que, meus amigos perguntam”. Sobre ser mulher no interior do Senegal? Talvez. Também. 

Interessada, tomei esse filme como aula e uma das lições mais preciosas diz respeito a forma como a diretora define o que aconteceu enquanto esteve naquela comunidade: “O que vi foi a vida olhando para mim”. Escolher a forma de dizer e mostrar isso é o que torna tudo mais interessante. 

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No Cemitério do Cinema (Thierno Souleymane Diallo, 2022)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Geo Abreu

Cinemas decoloniais seguem morrendo

Foram dois filmes ou mais? Num festival de cinemas contemporâneos, alguns filmes feitos em países subalternos trazem figuras de morte ao falar de suas cinematografias e assim se somam. Carros fúnebres e fantasmas são usados como condutores das histórias escolhidas pela curadoria do Olhar de Cinema. Na simbologia do tarô, a carta da morte na verdade significa renascimento, algo novo que se aproxima. E no primeiro longa-metragem de Thierne Souleymane Diallo todo o discurso parece se organizar para enganar o sentido comum da morte.

Enquanto o diretor sai em busca de um filme-fantasma rodado em 1953 na Guiné e hoje desaparecido, a cada etapa importante vai até a mãe para pedir sua benção, seguindo a jornada sempre descalço. Quando confrontado a esse respeito, responde que aquilo é uma forma de protesto pelo fato de que sua pesquisa não seja propriamente apoiada financeiramente, e que, portanto, não lhe sobra dinheiro para comprar sapatos. Mas estar sem sapatos andando pelo mundo é também bastante simbólico, e entre tantas possibilidades pode tanto representar humildade, a lembrança dos africanos escravizados que não podiam usar calçados ou também o contato via aterramento com seus antepassados.

Pra mim significa a coragem de fazer do mundo a sua casa, o seu terreiro. Enfrentar o mundo descalço passa também a mensagem de que nada o impedirá de continuar caminhando. E homens mortos não caminham, tampouco carregam seu cinema por aí.

Souleymane está vivo, enquanto os arquivos que encontra pelo caminho não estão. Na antropologia contemporânea é comum a ideia do arquivo como uma prática colonialista. Na Guiné, com a força de sua tradição oral, arquivos físicos tem tanta importância quantos os sapatos de Diallo. “Tudo está arquivado na Cinemateca Francesa” diz um antigo cineasta e professor.

Antes de chegar à França, o diretor passa por diversas turmas de iniciação ao cinema, usando câmeras de papel e a oralidade como artifícios cinematográficos: Seus alunos devem voltar para sala de aula, depois de gravarem seus filmes na memória, e contar o que acontece neles para toda a turma. Lembra um pouco da magia de Rebobine, por favor! de Michel Gondry, que mostra uma comunidade reunida para refazer um filme perdido.

Passando por turmas de adultos e crianças o diretor, enquanto professor, incentiva o uso de materiais e histórias que estão disponíveis no repertório de seus alunos, e nada mais próximo do método Paulo Freire do que a significação do cotidiano para incentivar a aprendizagem. Aliás, para quem já foi oficineira de audiovisual, esse filme é como um abraço. Assim, na esteira de toda a falta de estrutura e recursos que se apresenta sobre o cinema da Guiné nesse filme, posturas como a de Souleymane Diallo subvertem a ideia de falta (ou de morte) e apontam caminhos para a propagação da prática e do amor pelo fazer cinema.

No final das contas, a jornada empreendida atrás do filme citado por estudiosos do cinema africano como um dos primeiros a serem filmados após os processos de descolonização das colônias europeias na África serve apenas como pano de fundo para a caminhada do diretor. Na verdade, ninguém se importa com a materialidade do filme desaparecido: a partir de um texto e do reconto da lenda que dizem fazer parte dele, Souleymane refaz o filme, usando todas as técnicas de que dispõe – da oralidade a improvisação de materiais – para deixar gravada uma mensagem: a de que o cinema da Guiné está vivo.

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Notas do Eremoceno (Viera Čákanyová)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Geo Abreu

Um álbum de imagens perdido no sotão

Dizer que este filme é mais um a trabalhar com a ressignificação de imagens de arquivos públicos e privados e também com a ideia de ficção distópica é fazer uma leitura rasa dele. Acredito que essa profusão de filmes que pensam o mundo pós humanidade ajudam também a refinar o argumento, e é assim que Notas do Eremoceno se apresenta.

Viera Čákanyová cria um universo em que o humano e o analógico estão desaparecendo, enquanto a imortalidade via memórias digitais se configura como num jogo de multientradas. Nesse processo, a protagonista, um ser bastante curioso, percorre seus arquivos pessoais em busca de rastros da língua eslava e sobre a civilização botomori, aquela que deu lugar a humanidade. 

Considerando um tanto piegas que Eremoceno seja traduzido como a civilização da solidão, podemos passar por cima disso enquanto observamos a forma como algumas imagens de paisagens e animais são ampliadas e reconfiguradas dimensionalmente, explorando uma realidade desconhecida e suas possibilidades de preenchimento de um espaço tridimensional na realidade bidimensionalizada dos dados, nos pondo no lugar daquela protagonista que já não possui conhecimento sobre a existência de um corpo, do mar ou de um sapo. Tudo são apenas imagens que podem ser tratadas plasticamente e a partir de vários artifícios sem com isso conseguir materializar a experiência de um banho de mar ou do naufrágio de um barco. 

A ideia da comunicação via bastões de cristal nos lembra os universos comunicacionais de Ursulla K Le Guin e a ampliação do estatuto de humanidade a outros seres mais que humanos. Essa humanidade ampliada pela ideia da imortalidade virtual ao mesmo tempo em que o humano perde a soberania sobre o mundo é uma das possibilidade aventadas por esse pequeno filme, que joga com apenas alguns fatores possíveis de um futuro cada vez mais automatizado e nossa terceirização das memórias. No fim podemos pedir que a assistente virtual toque nossa música predileta enquanto nos perdemos mais uma vez no universo de dados que chamaremos um dia de eu.

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Revisitando “Caixa Preta” (Bernardo Oliveira e Saskia, 2022)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Georgiane Abreu

“Aprendi a entrar pelos fundos quando se convencem de que eu não volto mais”

Alguns minutos de tela preta, música ao fundo. Um descanso ativo para mentes cansadas de desentendimento, de sequestros de protagonismos e falsos apaziguamentos. As vozes de Bernardo Oliveira e Negro Léo se alternando em embalar imagens em diferentes qualidades, sem vontade alguma em ser didáticos, seja com relação a raça, religião ou montagem. 

Saskia por sua vez entrega uma narrativa onde o som é a linha que devemos seguir para aproveitar a experiência de estarmos “como cachorros dentro d’água no escuro do cinema”: perdidos, incomodados e sem farol. O melhor é se deixar flutuar;  fechar os olhos e ouvir as histórias como nos tempos em que não se escrevia nem se filmava.

Caixa Preta opera com os arquivos de forma muito semelhante ao que produz Arthur Jaffa em seus filmes e videoclipes, forma que se tornou também elemento constante em alguns episódios de Atlanta: usar a torrente de imagens com a qual estamos aprendendo a lidar e conviver numa sobreposição maníaca, que flui e devolve violência,  opacidade e desentendimento. 

Difícil de classificar pelo excesso de sentidos possíveis, dos gatilhos disparados e dos traumas (você escolhe fugir ou encarar?). No final, é melhor mesmo nem entender o que canta aquela pastora. Aceite o transe e deixe o corpo responder.

Link para o texto original sobre “Caixa Preta” por Georgeane Abreu.

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Desvío de Noche. (Paul Chotel e Ariane Falardeau St-Amour)

Visto no Festival Olhar de Cinema 2023

Por Georgiane Abreu

O encontro dos diretores com a vila mexicana de Zipolite promove a abertura de uma espécie de portal para a cosmologia daquele povo e suas histórias, muitas vezes particulares e noutras vezes a repetição de contos sobre o amor, a saudade e o surgimento do universo. 

Entre o nascimento e o desaparecimento de pessoas e estrelas cadentes, Zipolite e seus moradores – entre eles a patinadora Violeta Martinez –  surgem a partir de suas histórias como ponto de partida para as investigações dos diretores sobre luz e escuridão, superexposição e camuflagem, assim como o eclipse que dizem ser o mito fundador daquela vila, formada a partir do ajuntamento de pessoas que foram até ali para apreciar o fenômeno natural, a caracterizado pela gradativa escuridão.

Inicialmente utilizando procedimentos documentais, o filme parece partir de uma etnografia que, por falta de subsídios baseados na escala do real, segue naturalmente o detour da ficção, avolumando-se nesse sentido, criando camadas e mais camadas de histórias, que vão a cada vez retornando ao ponto inicial, como a serpente do tempo cíclico. Experimentando imagens de caráter pictórico,  aproximando o céu do eclipse e das estrelas com o chão da vila e suas pedras iluminadas pela luz da lua, o segundo momento do filme, que desvia para a noite, como sugere o título, é o que guarda suas melhores performances .

Momentos em que o descontrole é a medida e a ficção toma conta de tudo ao ponto de estarmos diante de uma narrativa sobre o surgimento do universo e suas primeiras personagens, ainda perdidas num tempo sem antes e nem depois. Assim como a personagem de Tilda Swinton em Memória, de Apichatpong Weerasethakul, parece ser uma caçadora de histórias cuja sensibilidade a faz mergulhar de cabeça no universo das personagens que encontra até o ponto de borrar os limites da temporalidade, os diretores de Desvío de Noche se deixam levar pelas possibilidades que encontram nas histórias que lhes são contadas, extraindo delas as rupturas, jogando assim com a matéria tempo como só o cinema é capaz.

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Festival de Brasília: Mandado (João Paulo Reys e Brenda Melo)

Por Geo Abreu

Voltar ao Complexo da Maré ocupado pelo Exército. Brasil, 2015.

Em 2014, por conta dos Jogos Olímpicos que foram realizados na cidade do Rio de Janeiro, o Governo Dilma Roussef autorizou a ocupação militar do Complexo de Favelas da Maré, devido ao fato de que as principais vias expressas da cidade cruzem esse território, além da proximidade com o Aeroporto Internacional do Galeão, porta de entrada da maioria dos turistas que tomariam conta da cidade naquele período.

Neste processo, um mandado coletivo foi expedido para que qualquer residência em pelo menos duas das 17 favelas que compõem o Complexo pudessem ser alvo de buscas e invasões executadas pelos militares, sem maiores justificativas. Há excepcionalidade nessa medida? É disso que trata Mandado, longa exibido na noite de 17/11, na Mostra Competitiva do Festival de Brasília.

O filme escolhe perseguir a legalidade desse mandado coletivo, entrevistando juristas e especialistas em direito, além daqueles que atuaram junto às ONGS e demais órgãos de luta e direitos humanos durante esse episódio, intercalando esses depoimentos “especializados” com os de alguns moradores, entre eles, Cadu Barcellos, cineasta e roteirista morto num assalto enquanto voltava para casa em 2020, e Marielle Franco, a vereadora mareense assassinada junto com o motorista Anderson Gomes, que a conduzia quando o carro em que estavam foi alvejado por arma de calibre de uso restrito às Forças Armadas, em 14 de março de 2018.

Esse é o ritmo que se impõe como normalidade da perda violenta de parentes, amigos, irmãos e que envolve o documentário num clima pesado, reforçado ainda mais pela trilha sonora original que reforça a dramaticidade do assunto e algumas vezes antecipa o tom com o qual o expectador deve receber a próxima informação.

Muitas dúvidas surgiram sobre o timing do filme e seu lançamento, tantos anos depois dos depoimentos tomados e da ocupação militar que durou 14 meses, com a presença de um policial para cada 55 moradores. Enquanto escrevo esse texto, manhã de 26 de novembro de 2022, a Maré amanhece mais uma vez devastada pelas mortes ocorridas no contexto de uma operação policial que durou quase 24 horas, descumprindo os dispositivos jurídicos que estabelecem horários de início e finalização de operações em favelas, entre outras ilegalidades.

Observando as coisas por esse prisma, o da circularidade desse tipo de ação político-militar, amparada por excepcionalidades que só se aplicam a comunidade periféricas, e que tem o Rio de Janeiro como espécie de laboratório de práticas eugenistas em pleno ano de 2022, o assunto abordado por Mandado nos parece em processo e urgente.

A aposta da curadoria do Festival na escolha desse filme merece destaque, pois se alinha à proposta de apresentar “narrativas atravessadas por escombros, nas quais não há garantias.” Lembrar que nossa democracia representativa, essa mesma pela qual lutamos voto a voto no último pleito para presidência, é também aquela que, mesmo quando ocupada por representantes da “esquerda” trata a periferia como algo descartável. E aqui estamos nós, espectadores do mundo Brasil, de volta ao movimento violento da garantia de mais um dia de vida. Só mais um dia comum.

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Festival de Brasília: Sessão de curtas

Por Geo Abreu

Nossos Passos Seguirão Os Seus…, Ulton Oliveira (RJ)

Não é a Primeira Vez que Lutamos Por Nosso Amor, Luis Carlos De Alencar (RJ)

Calunga Maior, Thiago Costa (PB)

Rumo, Bruno Victor E Marcus Azevedo (DF)

A criação de memórias tem aparecido como tema em muitos dos filmes exibidos aqui em Brasília nesses dias de festival. A necessidade de pôr em marcha uma série de materiais, entre fotos e vídeos,  sobre histórias que “vieram antes de nós” acabam trazendo para a discussão ideias como preservação e acesso a arquivos públicos (Nossos Passos Seguirão os Seus), a importância de arquivos pessoais para composição de histórias publicas (Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor) e a necessidade de registrar encontros e performances políticas, na preemência da  criação de grupos de ativistas (Rumo) para que assim as “novas gerações” saibam quanta luta foi necessária para que alguns direitos básicos fossem garantidos.

Qual a relação entre produzir um documentário sobre um personagem fundamental de greves acontecidas no começo do século XX, outro sobre a formação de grupos de discussão e ação política no terreno das lutas travestis/lésbicas/gays dos anos 70/80/90 e a história de um grupo ativista negro, fundamental para que a UnB fosse a primeira universidade brasileira a implantar o sistema de cotas no Brasil? Os arquivos – públicos e particulares -, em sua complexidade de conservação, acesso e reelaboração.

Na vontade de produzir um filme como registro da existência de Domingos Passos, importante figura do movimento operário do começo do século XX no Rio de Janeiro, Uilton Oliveira encara a ausência de imagens de seu personagem a partir da produção de episódios ficcionais com os quais intercala o discursivo do filme. Entre páginas de jornais e publicações operárias vai montado uma memória possível de Passos e apresenta um procedimento que que tem se tornado comum nos documentários contemporâneos: buscando na ficção a composição das lacunas que o material de arquivo traz.

Em Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor, Luis Carlos de Alencar se baseia numa robusta pesquisa sobre a história dos movimentos e associações travestis, lésbicas e gays brasileiras, suas histórias, os núcleos regionais na Bahia, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, além de trazer em paralelo também alguma história de associações de caráter semelhante surgidas nos Estados Unidos e as discussões que pautaram as reivindicações destes movimentos entre as décadas de 70 e 90.

Contradições internas, as tentativas de aproximação com o movimento operário – aquele mesmo, do ABC Paulista, que nos rendeu um ex-operário presidente – e medidas necropolíticas aplicadas principalmente sobre corpos travestigêneres no Brasil, muito antes que o termo virasse moda, são alguns dos assuntos abordados pelo longa documentário que cumpre papel importante na organização da memória dos movimentos políticos de contestação da binarismo heterossexual. Vale frisar a importância do acesso à arquivos particulares dos entrevistados, ressaltados pelo diretor durante debate pós-sessão.

Nesse sentido também, não fosse uma escolha dos próprios membros do coletivo EnegreSer por uma autoprodução da memória e a salvaguarda desse material em arquivos particulares, um filme tão potente quanto Rumo – dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo -, talvez não fosse possível. A história do grupo de estudantes negras que se reuniu para reivindicar não apenas as cotas quanto a própria respeitabilidade das existências pretas nos cursos da UNB, acabou por se auto afirmar, na medida em que muitos da grande equipe envolvida na produção do documentário é fruto desse processo contínuo de luta.

“Produzir-se à frente, como uma memória do futuro”, frase do filme Calunga Maior, de Thiago Costa, arremata a ideia de que, para além da pesquisa em arquivos já existentes, é a própria produção de material que se impõe hoje, conscientes de que, independente de quantas gestões antidemocráticas passem por nós, a luta por direitos entre as comunidades negra, indígena, travesti, LGBTQIA+ é uma constante. Pensar seriamente sobre arquivos particulares como alternativa para a não preservação de arquivos públicos demanda experiência no auto registro, na produção de memórias escritas dos encontros, além do cuidado com a integridade desse material.

Em Rumo há também a escolha por uma auto ficção que parece ocupar o lugar de ligação entre os blocos documentais. A solução de sair de um momento ficcional, em que a câmera acompanha um personagem que com a simples quebra da quarta parede, passa da ficção ao documentário, se apresentando e revelando sua ligação com a UNB e o movimento negro contemporâneo que vive a universidade pública em Brasília hoje é um dos maiores acertos do filme.

Sugere uma transição sutil entre tempos sobrepostos, como a própria ideia de escrever o passado enquanto atira uma pedra hoje. As várias possibilidades de uso e também de confronto com o arquivo que estes filmes apresentam sugerem ainda uma abertura para que, numa ecologia em que tantas imagens são produzidas o tempo todo, filmes possam cada vez mais se apropriar desse acervo quase infinito, reelaborando passado e presente na intenção de produzir imagens de futuro para o cinema brasileiro

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Festival de Brasília: Mato Seco em Chamas

Por Geo Abreu

“A única coisa que nos interessa são as nossas lendas, as lendas da Ceilândia.”

Em questão de meia hora, Mato Seco em Chamas resume sua história num prólogo: Chitara se transforma numa das gasolineiras mais respeitadas da Ceilândia e, a partir de seu lote no bairro do Sol Nascente, passa a extrair petróleo e produzir gasolina, abastecendo os motoboys da região. Enquanto aguarda o retorno de sua irmã Léa à liberdade, Chitara constrói sua reputação, atraindo inimigos que tentam tomar sua plataforma à força. Ao se impor à realidade, a heroína se firma como lenda viva daquela comunidade.

Com esse mote de odisseia – uma das personagens segue criando mundos enquanto espera o retorno da outra, que voltará para contar tudo o que viu do outro lado dos muros de uma penitenciária -, o filme acomoda essas interrupções e o desaparecimento de Léa, com cenas sobre o cotidiano do Sol Nascente – essa Ítaca sulamericana -, com a história de Andreia e sua campanha política voltada às mulheres encarceradas, e, claro, com a vida da plataforma de petróleo comanda por Chitara.

A etnografia da ficção, conceito desenvolvido por Adirley Queirós e Joana Pimenta para esse movimento que questiona as estruturas do documentário e as relações do cinema com a realidade encontra em Mato Seco seu melhor desenvolvimento. A extrapolação das histórias de vida das atrizes soma-se ao que seriam possíveis soluções para seus problemas reais executados no campo da ficção, sendo moldadas também pelo fluxo de uma história pública que acompanhamos via noticiário, e que segundo os diretores, molda o filme no seu corte final.

Num movimento pendular de ida e vinda, alguns episódios retornam, como uma história contada repetidas vezes na esquina do bairro. Esse procedimento de repetição é que garante que as trajetórias de Chitara e Léa sejam lembradas por anos, ou enquanto durem as pessoas de sua geração remanescentes do Sol Nascente.

Enquanto procedimento narrativo também, Adirley e Joana trabalham com performances públicas que ajudam a produzir uma memória do filme na comunidade: a constância do trabalho no lote, com o barulho das máquinas em atividade; a produção de todo um aparato ancorado na realidade de uma campanha política para a candidatura fictícia de Andreia (criação de comitê, realização de reuniões, panfletagem e carreata com carro som); as várias rondas noturnas do caveirão Brutus pelas ruas do bairro. A produção dessa memória do filme ajuda a criar a ideia entre os moradores do Sol Nascente de que aquele filme já foi visto.

Esse compromisso com a contra-narrativa, essa que cria memórias e se inscreve no cotidiano das pessoas, marca o trabalho dos diretores, aqui fazendo cinema para a cidade-satélite da Ceilândia que, sem uma sala de cinema sequer, tem como espelhos de si mesma os muros, as ruas e a memória de seus moradores.

É radical propor um cinema que é projetado enquanto se realiza como produto, já que essa é a única possibilidade de exibir um filme na Ceilândia: fazê-lo. Buscando suporte em outras modalidades artísticas, como a performance – da motociata, do caveirão – e a instalação – a plataforma de petróleo no quintal do vizinho– os diretores executam também uma longa observação de personagens reais pinçados da própria comunidade.

Essa observação participante dedica longos planos a um culto evangélico: onde uma criança de colo que acompanha sua mãe já começa a cantar aquelas canções, enquanto fora do templo o mundo parece escoar junto com a chuva que cai na rua sem esgoto. O baile no ônibus libera a energia daquelas mulheres de todas as cores e tipos de corpos, que se esfregam e se beijam porque o desejo das trabalhadoras precarizadas é do final de semana, é da boca das amigas, é ritmado pelo funk. Já quase no fim do filme, vemos os documentos do processo que levou à prisão de Léa acompanhados da sua leitura em voz over e é impressionante como nenhuma informação espanta porque já conhecemos muito da personagem, a partir de sua performance como narradora das próprias histórias, aquelas que não passaram pelo processualismo judicial mas, formam a figura, o arquétipo da guerreira urbana, o mito, a lenda do Sol Nascente.

Operando entre ficção e inscrição em processos reais, Adirley Queirós e Joana Pimenta levam Mato Seco em Chamas a tomar uma materialidade expandida que radicaliza não só a forma, mas a essência do cinema, a vida mesmo como obra de arte, já nem tão burguesa assim (e ainda bem).

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CINEMA DE GIRA: NOTAS SOBRE ALGUNS FILMES-MACUMBA BRASILEIROS

por Geo Abreu

Rituais, segredo, discriminação, comida e comunidade. No geral, são esses os termos que me vêm à cabeça quando penso na palavra macumba. Muitas vezes ligado a enunciados preconceituosos, o termo se confunde com a história dos africanos trazidos ao Brasil à força de uma assimilação violenta. Violência essa que, fundante, segue marcando o país-brasil de forma indelével e poucas vezes é transformada em algo positivo.

Acredito que caiba ao cinema, como plataforma de articulação daquilo que excede o real, apresentar algumas imagens-feitiço, com o propósito de nos aproximar do universo dessas religiosidades mestiças, de traços africanos e também indígenas.

O agnóstico muitas vezes elabora objetos de culto em lugares não-convencionais. A cultura pop e o cinema produzem um vasto cabedal de possibilidades nesse sentido: de musas a autores, e frames como extratos de imagens em movimento que tornam-se objeto de uma adoração tanto diversa quanto aproximada de uma devoção de cunho quase religioso. Muitas vezes também é o léxico do cinema que nos faz relacionar com o desconhecido: paisagens, sotaque e catarses.

Sem a intenção de criar qualquer lista de filmes imperdíveis sobre macumba, esse texto vem convocar algumas produções nacionais em que rituais, deidades e símbolos ligados aos cultos afro-indígenas praticados no Brasil sejam tema ou conduzam a narrativa. Dentre diretores conhecidos, dois nomes se destacam: Nelson Pereira dos Santos e Rogério Sganzerla.

Partindo uma ideia de cinema popular brasileiro, Nelson Pereira e Sganzerla utilizam expedientes diferentes para alcançar talvez o mesmo objetivo: levar às telas filmes cujos temas encontrem pouso entre uma audiência de trabalhadores pobres e migrantes das periferias das grandes cidades brasileiras.

Em O Amuleto de Ogum, Gabriel chega ao Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida e acaba esbarrando com o crime organizado da Baixada Fluminense dos anos de 1970. Entre a história da Baixada e a recorrência de migrantes nordestinos que ainda chegam ao Rio de Janeiro todos os dias, a religiosidade do protagonista o transforma no operário perfeito para a função de criminoso profissional. 

O Amuleto de Ogum de Nelson Pereira dos Santos

A ideia do bandido de corpo fechado aqui serve a pelo menos dois propósitos: conjugar a narrativa dos marginais míticos da periferia – aqueles que sobrevivem a atentados e tiros e cujas histórias são como ouro para o jornalismo sensacionalista –  e a macumba como prática de produção dos corpos.

A fim de proteger o filho da violência que acerta quase sempre corpos negros e periféricos, a mãe de Gabriel o leva ao terreiro para que seu corpo seja preparado e fechado, pondo a própria alma como garantia da proteção do filho. Assim é criada uma deidade propriamente brasileira, o filho de mãe pobre e solteira cujos dribles da morte estão condicionados à fé de sua mãe, transubstanciada através desse ritual, cujo amuleto o rapaz carrega e no qual deposita bravura e a capacidade de se meter em encrencas (às expensas do coração materno). Aqui os filmes de herói e de boneco se encontram com a linguagem da macumba, forjando um herói, brasileiro como poucos, nesse que é um clássico do cinema “BR”.

Em Copacabana, Mon Amour, outra figura periférica, Sônia Silk, se vê perseguida por um fantasma ao mesmo tempo em que precisa descer o morro e se prostituir no calçadão de Copacabana para sustentar a família, ao invés de seguir seu sonho de cantora. Em paralelo, seu irmão, parece estar enlouquecendo amedida que assume a paixão proibida que sente por seu patrão.

Copacabana Mon Amour de Rogério Sganzerla

Duas figuras perturbadíssimas como muitas que transitam entre centro e periferia das grandes cidades brasileiras, marcadas por um adoecimento psíquico que os conduzem a atos impensados, pequenos/grandes crimes, e novamente, às páginas ou telas de notícias populares. Em meio ao tumulto de suas vidas, Sônia e seu irmão encontram o pai de santo Joãozinho da Gomeia e mesmo sua benção já não é capaz de apaziguar os ânimos dos personagens, perdidos entre a sobrevivência e talvez a falta de dedicação ao culto de sua ancestralidade, que talvez lhes restituísse a força que vemos no protagonista de Amuleto de Ogum.

Helena Ignez e sua performance-transe faz muitos dos melhores momentos de Copacabana, Mon Amour e algo do gestual lembra muito os transes filmados em Ritos Populares, Umbanda no Brasil, que apesar de posterior a Copacabana, mostra que tanto o diretor quanto a atriz fizeram suas pesquisas em torno do tema e de como performa-lo. Otoniel Serra e seu personagem possuído de paixão, que oscila entre gritos e pontos de macumba, descendo e subindo o morro, opera num registro mais livre e espontâneo, com uma capa que remete aos parangolés de Hélio Oiticica, com sua pesquisa sobre corpo e samba espelhada aqui numa gira urbana e esquizofrênica que Serra conduz tão bem.

Falando em esquizofrenia, é interessante como estes filmes servem também para desmistificar alguns preconceitos com a macumba, como seu caráter feral e distanciado da ciência: em Jubiabá, o pai de santo interpretado por Grande Otelo geralmente é encontrado em casa em meio a muitos livros, o que nos leva a crer que sua sabedoria venha de uma conjunção entre experiência, leituras e sua missão perante àquela comunidade da periferia de Salvador; em Ritos Populares, o personagem principal também é um homem de idade, que diz ter aprendido tudo que sabe sobre a religião com seus guias astrais, que por sua vez lhe conferiram a missão de escrever sobre a mitologia, os orixás e curiosamente diz acessar esses conhecimentos por via de duas entidades que lhe visitam: um preto velho e um pajé indígena, “de tempos pré-cabralinos”, como diz a certa altura do documentário.

De todos os filmes aqui citados, Bahia de Todos os Exus é aquele de caráter mais científico, próximo a uma pesquisa de campo, com um pesquisador curioso portando microfone e gravador em meio a uma ladeira de Salvador. Em seus 45minutos de duração, o entrevistador visita diversas autoridades no tema, entre cientistas, artistas e pessoas comuns para entender a importância e a natureza mutante da figura de Exu entre os cultos afro  a Bahia.

Sem condescendência, o filme apresenta a naturalidade da feitura de um ebó para Exu, com uma galinha sendo decapitada e o sangue sendo espalhado sobre a comida do santo. Suas explicações sobre o Ifá, as diversas formas como Exu se apresenta e aqueles que guardam relações muito particulares com essa entidade de tantos nomes fazem dele um documento tanto textual quanto imagético sobre as relações entre a religiosidade e as camadas populares.

Nas favelas, nas organizações trabalhistas e no terreiro todos os personagens desses filmes-macumba poderiam cruzar suas histórias e desdobrá-las em diversas outras, todas elas com um fundo de brasilidade muito peculiar e violento, como a própria história desse país, rico de tantos personagens e contos míticos populares. Pela valorização dos filmes-macumba e seus desdobramentos possíveis.

Referências:

Bahia de Todos os Exus. Dir.: Tuna Espinheira, 1978.

Copacabana, Mon Amour. Dir.: Rogério Sganzerla, 1970.

Jubiabá. Dir.: Nelson Pereira dos Santos, 1986.

O Amuleto de Ogum. Dir.: Nelson Pereira dos Santos, 1974.

Ritos Populares, Umbanda no Brasil. Dir.: Rogério Sganzerla, 1986.

Sem Essa, Aranha. Dir.: Rogério Sganzerla, 1970

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Seis parágrafos sobre cinco curtas

Sobre cinco curtas visto em Tiradentes 2022 que continuarão comigo por um tempo.

Por Geo Abreu

A discussão sobre as vantagens e desvantagens de acompanhar um festival de cinema online tem sido recorrente e esse texto não traz novidades a respeito, apenas a constatação de que mergulhar numa sessão na sala de cinema é sempre uma experiência mais rica, de corpo e atenção envolvidas. Apesar disso, seguem abaixo os curtas que, mesmo vistos na tela de um computador, conseguiram permanecer por aqui ou talvez queiram ser mantidos por perto.

Ladeira não é rampa – Antônio Ribeiro e Sandro Garcia

Na quarta revisão e ainda descobrindo detalhes que mantém o filme em movimento ascendente. Belford Roxo tinha cinco pistas de skate públicas que foram desativadas e nenhuma sala de cinema. Desafiando os carros, Antonio desce a ladeira com seu skate. Usando calça e camisa social, enrola um pouco de camomila para fumar enquanto pensa sobre a próxima ação. O filme não dissimula, não apela para nenhum salto de fé ou suspensão da descrença: “Onde ele vai ser exibido?”, é a pergunta feita a certa altura. Ao respondê-la, a história executa uma manobra perfeita, um giro sobre si: amanhece descendo a ladeira e anoitece sendo exibida num cineclube, com crianças, cerveja e realizadoras presentes. Onde os equipamentos públicos são sucateados por pura ganância, a política do “faça você mesmo” floresce em coletivo e, nesse caso, atende pelo nome de Baixada Cine.

Manhã de Domingo – Bruno Ribeiro

Tem sido um prazer viver na mesma época que Bruno e seus curtas, acompanhar o amadurecimento de um realizador tão jovem e já tão afinado na regência: a história de Manhã de Domingo vibra a partir do piano de Gabriela, nos mantém atentas, nos atira contra a dor daquela perda, a angústia que antecede o primeiro grande recital, a repetição da história da criança prodígio que tem ouvido absoluto. A economia da forma existe para que o som preencha tudo e assim nos aproxime do que a protagonista não diz, ou diz através de sua música. O rigor da professora que no recital se atira sobre o instrumento, fazendo com que ele fale por vias incomuns é também o incômodo da filha que se mantém de pé mesmo perturbada por uma grande saudade. Um belo filme, de movimentos elegantes e fortes, seja ao piano, na expressão da atriz ou na quebra de expectativa após uma cena gigante.

Não Vim Ao Mundo Para Ser Pedra – Fabio Rodrigues Filho

Atravessando a relação estabelecida entre o personagem épico criado por Mário de Andrade e o ator Grande Otelo, responsável pela interpretação de Macunaíma no cinema, o filme de Rodrigues Filho se debruça sobre o livro mais do que sobre o filme, em busca de homenagear o ator e seu talento frente aos papéis que lhe eram confiados. Baseado em pesquisa e reativação de imagens de arquivo, o curta inventaria gestos – modulados entre altivez e preconceito – e discursos que fortalecem a relação entre ator e personagem, até quase descobrir-se que o personagem tenha sido feito de encomenda para aquele grande ator. Grande Otelo chega a pontuar ser preciso voltar aos arquivos de um certo jornal em busca de crítica escrita por Mário de Andrade e anterior a publicação do livro. Prova de que o autor tenha descoberto o ator e vislumbrado Macunaíma? Mais do que reavivar essa história através da pesquisa e da montagem, o filme também emoldura a trajetória de Grande Otelo, uma homenagem delicada e merecida. Ao fim desse parágrafo me sinto devedora da beleza que ilumina este filme.

Olho Além do Ouvido, Bruna Schelb Correa e Luis Bocchino

Assim como a discussão sobre festivais de cinema online, as características de filmes pandêmicos ou filmes de pandemia – aqueles que vem sendo realizados em condições de isolamento – tem sido outro ponto de interesse da crítica. Olho Além do Ouvido faz parte da Trilogia do Papelão, pesquisa desenvolvida por Bruna Schelb e Luis Bocchino em torno das condições de produção de filmes durante as restrições exigidas pela pandemia, em que o papelão é utilizado como elemento narrativo. No caso específico de Olho Além, as diretoras produzem uma fábula baseada no teatro de sombras para falar de um mundo onde se escolhe abordar a realidade de olhos fechados, até que uma garota que resolve questionar isso. Apesar de acompanhar as produções pandêmicas em vários aspectos como equipe reduzida, revezamento de funções e locação única, Olho Além do Ouvido encara as contingências, como  diria Roberto Santos, transformando a falta de condições em elemento de criação.  Reelaborando objetos do cotidiano e trabalhando o jogo de luz e sombras cenicamente, o filme discute temas como desinformação programada e a pesquisa de fontes confiáveis de crítica sobre o mundo de maneira lúdica.  A narração de Bruna dá o tom de oralidade, roda de contação de história, e embala as aventuras da menina curiosa que muda o seu mundo.

Tito, uma videopera pop do cerrado mineiro em chamas – Fernando Barcellos

Enquanto muitos filmes se baseiam no textão e na vontade de lacrar maiores que o desejo de filmar, Tito consegue articular seu discurso a partir de batalhas de dança e dublagem, transpondo para o cinema os realities shows e séries, populares justo pelas performances e figurinos, mas também pelas personagens que apresentam. Shakespeare é evocado e reconhecido por todo som e fúria, em meio à figuração de violência, para lembrar quão agressivo é o mundo para alguns corpos, representados em cada ato do filme: homossexualidade e negritude, heterossexualidade compulsória, mulheres masculinizadas e os homens afeminados, todes juntes disputando espaço para respirar e performar suas verdades, muitas vezes precisando guerrear entre si para se afirmar e se por em evidência. No fim, o número ao som de Marina Lima apazigua temporariamente as diferenças. Divertido e embalado por uma trilha de sucessos, Tito e sua videopera pop lacram demais, entregando entretenimento e audiovisual de qualidade.

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Anotações sobre Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, de Érica Sarmet

Por Geo Abreu

 Mais uma edição da Mostra de Cinema de Tiradentes vai terminando. Apesar de nunca ter participado presencialmente, pude acompanhar a mostra nos últimos anos por consequência das medidas sanitárias de combate à Covid-19 e do pouco que pude observar até aqui, a força dessa 25ª edição deve muito ao cinema queer.

Se o cinema negro – aqui, entendido em amplo espectro – esteve à frente das experimentações mais interessantes produzidas pelo cinema brasileiro recente, agora é o cinema queer, despontando em bando e apresentando temas e formas de abordar a realidade que nos entregam muito, e não só em discurso.

Em Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, curta dirigido por Érica Sarmet, que vem fazendo carreira por festivais, inclusive os internacionais, fala sobre o encontro entre duas gerações de mulheres, lésbicas e não-binárias. A liberdade do grupo de garotes impressiona a mulher mais velha, que faz um paralelo entre a atualidade e a cena lésbica de uma Niterói de trinta anos antes, quando Vange Leonel ficou conhecida pela música que é tema do filme e que também já foi tema de novela. Nessa dinâmica de por em relação a experiência de mundo de cada grupo, o filme trabalha com a ideia de invisibilidade a qual as vidas lésbicas foram mantidas por tanto tempo, esse tempo da paciência selvagem de que fala o título.

Interessante que, ainda que essa necessidade de ser invisível seja pontuada, a abertura do filme postula o justo oposto: usando imagens de arquivo em que mulheres se apresentam nas mais diversas situações, entre festas, atos públicos e composições de mesas (de bar e políticas),elas apareçam vivas, felizes e ativas, no que o filme desenvolve seu melhor argumento: a necessidade de catalogar referências e discursos para as próximas gerações.

 Há um chamado explícito a isso que o curta desenvolve em toda sua duração: do monólogo inicial de Zélia Duncan até o jogral que finaliza com Lorre Mota chamando a próxima conversa, o que se apresenta é essa indiscernibilidade entre gozo e luta, entre festa e protesto, entre cinema e vida que lembra Dyketactics e Women I Love, curtas de Barbara Hammer, cineasta que conheci através de Érica e de uma mostra sobre a cineasta norte-americana acontecida no Rio de Janeiro em 2017 e para a qual fui atraída pelo chamado a um cinema lésbico experimental feito num tempo anterior ao meu. Aliás, essa ideia de uma geração anterior ou posterior é bem trabalhada no curta de Sarmet: se estamos vivas – ainda que menos novas do que já fomos um dia -, esse não deixa de ser o nosso tempo, o tempo de estarmos vivas e desejantes.

Fonte de referências de modos de agir, reagir e filmar, Uma Paciência Selvagem nesse sentido faz par com Vênus de Nyke, curta de André Antônio lançado em 2021 que, traçando o perfil psicológico de um rapaz em relação com sua terapeuta, fala sobre a descoberta da sexualidade, infância queer e fetiches, inventariando referências – filmes, sites, músicas, livros – e estabelecendo um corpus de pesquisa sobre o universo gay masculino. Assim como Paciência, Vênus fala às crianças queer, aquelas que Paul Preciado diz ter seus cuidados e escolhas negados pela sociedade patriarcal[1], indicando caminhos de pesquisa e criação de comunidade para atravessar o caminho até o vale.

A paixão que o curta apresenta entre as tantas possibilidades de encarar a vida a partir de uma vivência dyke/quer/não binária contagia e reverbera, e faz coro com O Nascimento de Helena, Tito, uma videópera pop do cerrado mineiro em chamas, Sad Faggots + Angry Dykes Club e Seguindo Todos os Protocolos, todos filmes que compõe a Mostra de Tiradentes nessa 25ª Edição.


[1] “Quem defende as crianças queer?” – texto de 2013 escrito por Preciado na reação a uma marcha do tipo orgulho hétero ocorrida na França no mesmo ano.

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Meus Santos Saúdam Teus Santos: Carta a Rodrigo Antônio

Por Geo Abreu

Filho, larga a vaidade, prepare-se

És do povo és da mata

garanto-lhe

Rodrigo,

sei que entendes o que vou dizer: como é bom encontrar filme amazônida na programação de um festival. Nosso sotaque anasalado guiando o percurso de um filme e dessa vez não pelo viés da exotização mas sim de algo que pouco se fala: a força da mistura entre religiões de matrizes africanas e indígenas discretamente representadas naquele plano do maracá junto a imagem de Cosme e Damião. 

Não vou chamar de zombaria a representação que geralmente se faz dos espíritos da floresta em muitos materiais audiovisuais sobre a Amazônia, mas de uns tempos pra cá, a caricatura feita disso me assombra como falta de respeito. Curupira, Mãe D’água, a filha de boto da novela das nove, não pegam da força desses arquétipos sequer o farelo. Enquanto numa cena de Meus Santos – aquela do contra-plongée das árvores balançando ao vento -, o barulho das folhas me fez sentir como se fosse possível respirar aquelas imagens. Me senti pequena e abraçada no meio daquela mata. 

É sob a forma de expressão desse mistério que repousa o limite entre um exotismo esvaziado e o respeito com a transmissão de conhecimentos cujos multiplicadores se tornam mais e mais escassos. E do que trata teu filme senão de assumir o compromisso com esse papel de transmissão? 

Em A Memória de Sangue (2021, Elom 20ce), a personagem-narradora também nos conta sobre seu processo de autoconhecimento a partir da religião, no caso, o Vodu. A serenidade com que fala sobre o segredo, que ao mesmo tempo em que é guardado também deve ser multiplicado, é aquele da pessoa cujo processo de formação se completou. Lakoélé, a protagonista, hoje canta numa banda e usa elementos desse conhecimento ancestral em suas performances, seja nas letras, no ritmo ou nas pinturas do rosto e, para além do trabalho efetivo junto às irmãs do Vodu, estabelece a música como lugar de experimentar essa força em outras medidas e encontrar algum equilíbrio entre esses dois mundos. Ouvir Lakoélé e sua história me fez lembrar de Mateus Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã (2020, Tenille Bezerra) e a missão que se traduz em música. Encontrar esse equilíbrio entre manutenção e partilha é uma chave poderosa e apaziguadora.

Cavalo tá pronto?“, “Ainda não, mas quer estar”. 

Interessante que tu escolhas mostrar a jornada com suas dificuldades, os diferentes tempos que se cruzam em expectativa e suspensão, e que o filme nos deixe ainda no começo desse caminho. Abristes uma janela para o quintal da tua avó. Mostrastes fotos, cartas. Essa pesquisa que faz parte do processo e que nos fala de como é difícil reprogramar para estar de volta por completo. Reaprender a ver é um exercício demorado, não é isso também que teu filme nos mostra?

Fui realmente pega por algo que dizes a certa altura: Mistério não cabe na boca e o que eu sinto no corpo, grita“. Alguma janela interior se abriu a partir disso, como enxergar para dentro. 

Me despeço aqui, torcendo por ti e pelo restabelecimento da comunicação entre tu e tua avó.

Beijos.

Geo Abreu.

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Mostra de Cinema de Tiradentes: O Dia da Posse

Por Geo Abreu

A tradição do encontro com personagens documentais comuns e extraordinários, que muito deve ao cinema de Eduardo Coutinho, é resgatada por O Dia da Posse, de Allan Ribeiro. O cineasta nos apresenta Brendo, rapaz de fala fácil que cruza diversas referências pop em suas preleções, indo desde pronunciamentos políticos a discursos de eliminação em reality show, alimentando assim um sonho de infância: ser presidente do Brasil. 

Ribeiro e sua câmera tiram partido do confinamento ao expor uma das características desse período: a crescente importância da relação com telas na vida da cidadã comum. Tevês, monitores, telas de dispositivos móveis, visor de câmera, olho mágico, janelas. A imposição desse regime de economia da atenção traz consigo a necessidade de manter uma imagem íntegra de si para ser mostrada, enquanto os rostos de Allan e Brendo expressam a dificuldade disso. A vida entre frestas e a imposição desse contato mediado por telas como as únicas possibilidades de comunicação com o fora nos últimos dois anos. 

Nesse ponto é que se misturam dispositivo e personagem, com Brendo mostrando desenvoltura diante do confinamento e do excesso de exposição frente às diversas possibilidades de enquadramento, como alguém que passou a vida inteira sendo treinado pela cultura audiovisual até este momento. 

O diretor desempenha bem o papel de provocador, estabelecendo alguns jogos para que Brendo ganhe desenvoltura e, brincando, produza discursos dignos dos personagens que deseja ser. Ele conta histórias de quando se descobriu pobre ou de como pretende cursar medicina, logo após a graduação em direito. Esse gancho é puxado a partir do encontro da câmera com vestígios de uma pequena cirurgia de extração de dente feita pelo próprio Brendo no apartamento em que ambos estão confinados. 

Entre os blocos de apresentação e adensamento do personagem principal, o diretor também se expõe, em tomadas na praia, construindo assim episódios que promovem uma quebra na narrativa, suavizando a monotonia da locação única. Marcando o caráter de externalidade desses trechos em relação a linha

narrativa principal, Ribeiro elabora jogos de dentro/fora, mostrar/esconder, a partir dos quais reforça a diferença entre as subjetividades expostas no filme, mantendo o foco e o zoom no rosto de Brendo, enquanto brinca na areia sozinho com sua câmera. 

Entre o experimental e o vídeo caseiro, duas categorias que o próprio filme aventa sobre si, Ribeiro explora as possibilidades dessa multiplicação de telas. O comportamento de Brendo, que parece ter nascido pronto para o momento em que – quase – todas as casas tenham se tornado o palco de um show com transmissão via web,produz pontos de contato com o filme Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi, quando, por exemplo, o vemos despedir-se de seu pequeno Palácio da Alvorada e de todos nós, ao fim de um mandato curto e ainda assim marcante. É nesse ponto também que (re)conhecemos um cineasta maduro, capaz de tirar um filme do bolso como quem brinca de fazer cinema.

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