Mar de Dentro (Lia Letícia, 2024), Confluências (Dácia Ibiapina, 2024) e Yõg Ãtak: Meu pai, Kaiowá (Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna, 2024)

Mostra Competitiva Nacional, noite de 03 de dezembro.

Por Geo Abreu

As sessões da Mostra Competitiva do Festival de Brasília juntam num programa, exibido sempre às 21h, dois curtas e um longa metragem. A ideia deste texto é expressar a unidade da sessão programada para a noite do dia 03 de dezembro, e a forma como os filmes confluíram, como diria um de seus protagonistas. Além das impressões pós exibição, somam-se aqui também ideias surgidas durante o debate, ocorrido na manhã seguinte. Aproveito para informar que todos os debates da Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília, realizado em dezembro de 2024, podem ser acessados no canal do festival no Youtube.
Por ordem de exibição, então, apresento alguns comentários sobre os filmes exibidos:

Mar de Dentro

Divindo a tela em duas, como numa instalação para galeria, Lia Letícia, diretora e performer, apresenta a história de Preto Sérgio, homem negro e insubmisso e sua saga para fugir de uma prisão arbitrária ocorrida durante a ditadura Vargas. Lia conta que encontrou a história de Sérgio ao vê-la contada em paineis pintados em frente a uma pousada de Fernando de Noronha. A partir daí, seguindo o fio da narrativa, encontrou Kelly, neta de Preto Sérgio e dona da pousada. Kelly, então, detalha a história do
avô: ele, preso por ter ferido por engano um rapaz de família rica, se vê exilado na ilha feita de prisão. Com astúcia, estuda a geografia, marés e ventos, constrói uma pequena embarcação e foge, sendo recapturado tão logo chegou em terra firme. Sendo levado de volta pela força policial, foge pela segunda vez, e só retorna à ilha ao descobrir que está sendo procurado, desta vez para ser inocentado e libertado por bravura. A diretora, que também é historiadora, relata que usou a ideia do díptico, dividindo a tela em duas, para pôr em relação diferentes materiais referentes ao caso de Sérgio, tentando transformar a fala do personagem, expressa pelos painéis, como um arquivo “válido”, buscando fazer com que este filme, além de obra audiovisual, atue também com documentação sobre o ocorrido. Além disso, a ideia do díptico, produz também uma dobra do tempo do filme que em 8 minutos conta a história com riqueza de detalhes, relacionando arquivos oficiais e arquivos de origem popular, como os painéis e relatos, buscando assim a validação da versão de Preto Sérgio por contaminação, por relação.

Ao final, com a pintura do homem negro remando contra uma maré agitada, reivindicando o direito de contar sua própria história, somos levados ao filme de Dácia Ibiapina, e como muito bem apontou André Dib durante o debate da sessão, parece que Sérgio de forma diegética está remando ao encontro do Quilombo Saco-Curtume, tema do filme seguinte.

Confluências

Não sei dizer se é possível humanizar ainda mais alguém como Antônio Bispo do Rosário, famoso Nego Bispo, autor reconhecido de diversos livros sobre o pensamento quilombola, que ganhou notoriedade nos últimos anos como divulgador de epistemologias outras, quase no mesmo nível alcançado por Aílton Krenank. Digo quase porque, há exatamente um ano, Nego Bispo fez a passagem e agora nos observa a partir de outro plano, no qual é mais difícil publicar livros.

Dácia Ibiapina diz que escolheu abordar este personagem, já tão conhecido, a partir de um ângulo mais pessoal: a festa de seu aniversário de 60 anos junto aos parentes no quilombo Saco-Curtume. E o que o filme nos apresenta é uma figura confluindo entre suas contradições, lidando com uma família numerosa e amigos que chegam de vários lugares para saudar sua existência.

Desta forma, o curta opera na mesma linha do pensamento que Bispo expressa em fala sobre o fato de que uma história só é história quando se ouve os dois lados. Quando se ouve um lado só, o que temos é ficção e, segundo ele, quase tudo que se sabe sobre quilombos é ficção. E quase tudo que sabe sobre o Quilombo Saco-Curtume está em seus livros e sua falas espalhadas em vídeos pela internet. Mas em Confluências é possível entender as dinâmicas de festa e de construção coletiva e composição da vida daquele lugar, desde a criação das crianças até a forma de monetizar algumas situações expressa pelo leilão de comida ou da discussão sobre o cachê da banda de forró.

No mais, a pequena cena em que Bispo e Dácia dançam forró de forma muito animada e cúmplice, expressa um fazer cinema que dialoga com os personagens e seu entorno, bem como essa pequena-grande diretora brasileira nos ensina: “a gente não consegue domar os filmes.” e as escolhas expressas em tela se manifestam no fazer, descobrindo a história e fluindo com ela, aprendendo com o filme enquanto se realiza.

Yõg Ãtak: Meu pai, Kaioŵá

É muito bom estar viva ao mesmo tempo que Sueli Maxakali, acompanhar sua trajetória como cineasta e a forma como seu cinema vem se transformando a cada filme. Em Yõg Ãtak: Meu pai, Kaioŵá a diretora se coloca em cena como nunca antes, talvez pelo tema tão íntimo, o reencontro com um pai que esteve distante por anos devido a uma história de privação de liberdade, como a de Preto Sérgio, personagem do primeiro curta desta sessão. Logo na cena de apresentação, Sueli produz uma foto viva de sua família, nomeando cada pessoa que entra em quadro, expondo a relação que possui com cada uma, apresentando sua família não só para o pai distante, mas para todos nós. E ao longo do filme o que acompanhamos é o desvelar de uma rede de parentalidade que atravessa a história do país e a luta pela retomada de territórios por povos originários.

A naturalidade com a qual o filme constrói a diferença entre os Maxakali e o Kaiowá expõe com sutileza da diferença entre idiomas e formas de apresentação, pinturas corporais, uso de cores e adornos, e esse jogo de diferenças assume certo protagonismo sem eclipsar o tema do reencontro entre parentes, e o processo de tradução e diplomacia entre etnias ocupa boa parte da história: necessária toda uma rede de relações e negociações para que Sueli se reaproxime de seu pai e o convença a participar do filme. Pela primeira vez também se expressa a dinâmica de co-direção entre Sueli e Isael, quando ambos assumem o protagonismo da direção de acordo com aquilo que talvez entendam melhor: Sueli nas entrevistas; Isael na condução do ritmo. Em determinado momento, as cores usadas pelos Maxakali são apresentadas a partir de uma dinâmica de pintura de tecidos que se transformarão nos trajes usados pela comitiva que irá ao encontro dos Kaiowá na culminância do filme e o grande reencontro entre esse pai e essa filha, que tanto tem em comum talvez sem se dar conta disso.

Para finalizar, deixo essa imagem que fiz da tela durante a sessão e a forma como as cores e composição do quadro me fizeram lembrar dos filmes dos anos 1960 de Jean-Luc Godard, e que remetem a uma certa vivacidade e a necessidade de um cinema muito novo de manifestar que está tentando mudar o mundo a partir de imagens. Vida longa ao cinema dos Maxakali e a sua Aldeia Escola.

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Palimpsesto (André di Franco e Felipe Cañedo, 2024)

“O fogo comeu Luzia”

Por Geo Abreu

Uma aflição possível do acadêmico que também é cineasta passa pelas dúvidas sobre como abordar assuntos não tão populares de maneira cinematograficamente interessante. No caso dos arqueólogos, Palimpsesto surge como respiro em meio a filmes comumente duros de assistir.

Tratando sobre o desaparecimento por incêndio da coleção arqueólogica do Museu de História Natural da UFMG,ocorrido em junho de 2020, o filme constrói sua narrativa sobre o luto dos pesquisadores e estudantes que atuavam na reserva técnica dosando as idas e vindas entre informação e ensaio visual, valorizando a própria condição lacunar e a requalificação de um material arqueológico destruído pelo fogo após 40 anos de salvaguarda. Na condição de palimpsesto, a história se inscrevendo nas peças, mais uma vez, a reserva se transformando em sítio arqueológico.

Dividido em blocos temáticos, o filme começa com o encontro dos pesquisadores com o espaço em ruínas, suas dúvidas sobre o processo de resgate e o entendimento sobre a perda para logo se transformar em blocos de encenação sobre o evento, como quando acompanhamos um dos pesquisadores transitando pelo espaço destruído, nos apresentando a ele como se os materiais ainda pudessem ser acessados; a ritualística da entrada no agora sítio arqueológico, antes acervo; a leitura coletiva de diversas notícias sobre a perda de diversos acervos de guarda da memória do país, como o incêndio da Cinemateca Brasileira em 2018 e a uma forma de analisar a progressiva destruição da memória de um país já tão frágil no acesso à sua própria história.

Será que aquelas coisas perderam muito de sua agência? Será que no futuro haverá lugar para a Arqueologia? Em alguns planos, vemos árvores que mais parecem objetos, enquanto o professor aponta sua pá de trabalho, as vezes como pessoa cuja agência o ajuda a lidar com os vestígios que encontra, as vezes como prótese que se acopla ao seu corpo e ao de outras pessoas; noutro momento, alguém adverte que na prática arqueológica é proibido se apropriar de objetos achados, mas que ela quis salvar um pedaço, um traço sem forma daquele acervo desaparecido, como para conter algo da agência que se fragmentou ali.

As árvores são coisas.

Coisas são pessoas.

E o fogo é um dos maiores arquivos do mundo, pois contem tudo aquilo que consome.

De certa forma, essa ideia sobre o fim do mundo como conhecemos tem nos trazido de volta ao pensamento sobre a importância da memória e o cinema tem reflito isso, com muitos filmes se debruçado sobre essas modalidades de apreensão da história, seja via oralidade, escrita ou materialidade. Acompanhar a degradação das coisas que nos rodeiam com tanta consciência tem nos transformado em criaturas melancólicas e ciosas da necessidade registrar tudo. Em breve seremos apenas arquivos digitalizados de nós mesmos? Sigamos.

Visto na Mostra Caleidoscópio do  57o Festival de Brasília.

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Suçuarana (Clarissa Campolina e Sérgio Borges, 2024)

Sem teto nem lei

Por Geo Abreu

Geralmente, mulheres, inclusive enquanto personagens de ficção, tem sua existência relacionada à casa, ao ambiente doméstico e à domesticação das coisas. Por isso mesmo, na fuga desse lugar comum, encontrar filmes que se inscrevam na tradição de mulheres andarilhas é uma espécie de reparação. Em Suçuarana, a protoganista Dora é uma mulher sem teto nem lei, que percorre o mundo com rumo: a terra prometida por sua mãe, outra mulher andarilha.

Assim como em Os Renegados (1985), de Agnes Varda, filme em que acompanhamos Mona em sua jornada de libertação (“Você escolhe a liberdade total e encontra a solidão”), Dora caminha pelo mundo aceitando todo tipo de emprego, dormindo em barracos e lugares ao quais não foi convidada apenas por não querer se apegar a nada nem ninguém para além do fardo de suas lembranças. Ainda assim encontra um companheiro, um cachorro caramelo com feições e orelhas de lobo, o tipo de cachorro ancestral cuja natureza vem sendo moldada por anos e anos de experiência entre o campo e a cidade, a lida com a selvageria do mato e a selvageria das pessoas. A certo ponto, depois de aceitar sua companhia, Dora o nomeia Encrenca e apesar de não termos qualquer indicativo sobre a sexualidade da protagonista, a
presença cênica daquele cachorro me remeteu a história contada por Donna Haraway sobre uma história contada a ela por Paul Preciado, sobre a parceria entre mulheres lésbicas e buldogues, algo que remonta a histórias antiguíssimas da presença indomável de algumas mulheres no mundo e a construção de relações significantes com outros que humanos.

Nessa jornada a protagonista encontra outras tantas mulheres que tocam a vida de maneira solitária e em algum grau se parecem com ela, vagando num mundo em que não há paz para nós, as mulheres andarilhas. Até que, num golpe de mágica cinematográfica, Encrenca a salva de uma situação perigosa e a conduz para um lugar cuja comunidade se organiza em torno das ruínas de uma fábrica, tirando dela o que ainda tenha valor, objetos de ferro e outra máquinas. Aqui cabe a digressão de um breve momento em que as escolhas do cinema de Clarissa Campolina, que nos acostumamos a ver, como em Solón, se impõem como uma experiência de estranhamento do conhecido: a sequência de imagens trêmulas de uma mina de ferro como símbolo de perturbação do mundo como conhecemos e do arruinamento progressivo dele. Uma forma peculiar de assinar a mineiridade e a estética deste filme.

A partir de então, Dora se conecta a um universo de comunidade, troca e ancestralidade, o que teoricamente poderia significar o apaziguamento da busca, a ideia que a movimenta através da história. E como nos momento anteriores suprimidos pela narrativa e aos quais só nos resta imaginar, a personagem se orienta, observa e aprende com os modos de vida daquela comunidade num movimento que nos lembra Arábia (2017), de João Dumans e Affonso Uchoa. Essa imersão por um mundo do trabalho, que em Suçuarana apresenta sua face mais desconstruída, como um pós-mundo, algo que já ocupa um lugar para além de seu próprio fim: os rasgos das minas de ferro como cicatrizes do solo mineiro e a fábrica, totalmente destruída; a antiga vila de seus trabalhadores, cujas casas também estão arruinadas, dando lugar a um outra forma de se relacionar com os espaços e o vestígios daquele velho mundo.

Dora, como essa espectadora privilegiada, observa a tudo de dentro da máquina do filme e, como nós, resolve partir porque o tempo de estar ali é finito e ela precisa voltar a caminhar. No fim, talvez, sua terra prometida seja mesma a estrada.

Visto na Mostra Competitiva Nacional do 57o Festival de Brasília.

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UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA (MUGUNZÁ, 2022)

Por Geo Abreu

Séculos distante da trilogia tebana, da tragédia fundadora de Édipo, que marca o destino de sua família, em Mugunzá o que vemos é uma história tipicamente brasileira: a vida de uma mulher negra e lésbica lutando contra as opressões cotidianas em uma cidade pequena e cuja luta por dignidade e liberdade parece atravessar gerações, todas marcadas por dilemas de fundo semelhante: raça, sexualidade e classe.

Apresentando Arlete – interpretada por Arlete Dias –  como narradora e personagem principal, acompanhamos o desenrolar de alguns capítulos de uma vida insubmissa: mãe, dona de bar e crítica da situação política de sua cidade, Cachoeira, essa figura se vê perseguida dentro de sua própria casa, onde a encontramos devastada desde a sequência de apresentação. 

Arlete vive enquanto narra, reivindicando sempre a palavra a partir da necessidade que sente de contar a própria história. Na esteira disso é possível dizer que uma das forças desse filme é seu texto, que tem uma importância antiga, muito anterior ao cinema, remontando a oralidade como transmissão de conhecimentos. 

Essa força da palavra, aliás, é característica da já profícua trajetória da dupla de diretores Glenda Nicácio e Ary Rosa, cujos filmes, desde Café com Canela, entre diferentes escolhas de procedimentos, se ancoram sempre na importância de uma comunidade, nas formas como as opressões cotidianas atravessam os corpos negros e o desenrolar de histórias de pessoas que se negam a ceder a elas.

Entre escolhas que chamaremos aqui de artesanais, como locações únicas e a forte presença dos atores em cena, com seus textos e sotaques afiados, a impressão é de que todos os procedimentos arranjados para contar essa história são calcados em pressupostos ancestrais, desde griôs e a oralidade, passando por bardos e arautos – de onde tirei a referência às tragédias gregas clássicas -, passando pelo teatro, – escolha escancarada em Mugunzá -, esses artifícios artesanais, experimentais para o cinema, se resolvem concentrando toda a potência do que vemos na tela no corpo dos atores, e não há dúvida de que o filme exista em função de Arlete Dias, antiga colaboradora de Nicácio e Rosa.

Recusando encarar esses procedimentos ou escolhas dos realizadores como necessidade pautada pelo material e encarando o minimalismo da estrutura de palco, locação única e um ator – Fabrício Boliveira, em cinco papéis diferentes – como potência narrativa, é feita uma economia de estímulos que guia a atenção na direção da história contada, apostando no jogo de criação de mundo conjunta com o espectador. 

As canções originais compostas por Moreira ganham uma dimensão popular de discurso público cifrado em algumas cenas, como a despedida do casal de amantes, Arlete e Prefeitinho, cada um, ao seu modo, declarando intenções de forma difusa sobre o futuro da relação. E é esse apelo popular ancorado por personagens que, se não documentais, são inspirados em figuras facilmente encontráveis na realidade de Cachoeira, que vem como outro ponto forte do filme. 

A anedota sobre a presença de uma empresa de exploração mineral que busca apoio na força de uma mãe de santo local para ter acesso a riquezas num fundo de rio traz aspectos religiosos, mas também de uma inteligência e modo de navegação social muito próprias do lugar, mais uma vez espelhando essa ancoragem popular do discurso fílmico, que na interpretação de Arlete Dias perde qualquer traço caricatural.

Essa arqueologia de formas de discurso popular, algo de pedagogia mas também de aviso sobre si, a revelação das armas possíveis de serem manipuladas por Arlete, passam despercebidas pelo olhar pouco apurado de Prefeitinho que, seduzido pela forma, não percebe as intenções declaradas da personagem frente a qualquer ameaça possível e ao seu profundo conhecimento do lugar Cachoeira, de onde ela se recusa a sair, mesmo sob forte pressão.

Ao final, a heroína destroçada produz uma teia elaborada para conduzir sua vingança, livrando a cidade de vários homens de poder numa única jogada, e, que azar de meu nego, que acabou levado a reboque. Que azar. “O mundo seguirá melhor sem você”, Arlete sentencia.

Ainda que a presença do personagem do Pastor sirva ao propósito de elencar mais uma opressão, a religiosa, no já pesado fardo crítico da personagem, a construção de sua entrada em cena não parece ter sido tão cuidada quanto os demais, carecendo de melhor elaboração. E, mesmo com toda a cênica da mãe que conta ao filho histórias de ninar nem tão bonitas, saímos do clímax para um dos poucos momentos em que o discurso não parece ter sido usado com toda a força que se constrói ao longo do filme.

Imperfeito, mas nem por isso menos interessante e propositivo de formas outras de narrar, Mugunzá é um exercício de estilo precioso, que referencia arquétipos populares, baianos, ao mesmo tempo em que dialoga com estruturas clássicas, num jogo gostoso de ser visto, seja pelo ritmo, pela presença em cena de ótimos atores, embalados por canções e a cadência do sotaque baiano que arremata um cinema muito brasileiro, um cinema do recôncavo.

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Orlando, minha biografia política (Paul B. Preciado, 2023)

Por Geo Abreu

Paul B. Preciado, o conhecido filósofo e autor de Manifesto Contrassexual e Apartamento em Urano, dirige seu primeiro filme. Uma biografia multivocal, com diversos Orlandos interpretando a personagem do livro homônimo de Virginia Woolf, cuja história é utilizada pelo diretor como espelho, renovando assim o interesse por esse clássico da literatura.

Existe um meme correndo por aí que pode ajudar a entender a relação de Preciado com o cinema e a literatura: uma foto dele com a frase “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem” (tradução minha). Comentando sobre outro livro seu, Testo Junkie, o filósofo afirma ter produzido uma auto ficção, relatando a experiência com uso de testogel em sua transição, ao mesmo tempo em que elabora a ideia de regime farmacopornográfico, historicizando as mudanças tecnológicas e intervenções medicamentosas que vão sendo normalizadas e aplicadas em massa em nome da produção da sociedade heternormativa.   

A autoficção funciona então como experimentação, livro e filme como externalização dos relatos. Essa aparência muitas vezes pedagógica que Orlando assume me lembrou Vênus de Nyke (2021), filme dirigido por André Antônio. Nele, o personagem principal aparece em consultas com sua analista fazendo um inventário de seus desejos e pulsões, que de tão fortes, dominam boa parte de sua vida. Ao mesmo tempo, o filme da produtora Surto & Deslumbramento inventaria também livros, músicas, personagens e diretores gays, como Pier Paolo Pasolini e Kenneth Anger, por exemplo, deixando nos créditos uma lista de referências a quem porventura as esteja procurando.

Orlando/Preciado é econômico nesse sentido e usa apenas o texto de Woolf, adotando o romance como obra de referência queer, num gesto de tomada para si, de aproximação com a obra de uma autora notadamente identificada com a causa feminista. O talento de Woolf com as palavras, compartilhado com o diretor, também se transforma no mote para a criação de novos mundos, em que a existência de experiências trans é marcada numa linha do tempo bastante extensa.

Usar a ideia de poesia como alegoria para discurso é o que dá o tom político ao filme. No lugar de pôr os personagens para contar suas experiências em entrevistas clássicas, Preciado escolhe misturar os relatos pessoais de cada um com a ficção escrita por Woolf, embaralhando os limites entre “realidade” ou ficção. Em alguns momentos, os personagens trazem a tona essa ideia das pessoas trans como “poetas de gênero” – praticando esse exercício de nomear as coisas num mundo novo, em que suas existências são verificadas e historicizadas – e chegando ao limite do esforço empregado nesse ativismo: “somos poetas contra vontade.”, o que nos faz retomar o meme: “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem”.

Vale dizer que nesse trabalho com as palavras, Preciado não escreve nem dirige filmes de forma rebuscada. O ritmo é sexy e empolgante. No trecho abaixo, retirado de uma resenha sobre Testo Junkie, algo de fundamental em sua obra ganha destaque:

“Diante disso, parece haver algo de novo na escrita do filósofo Paul B. Preciado: a experiência de ler seus textos filosóficos excita. Suas palavras incendeiam o corpo. Mostram a força do erotismo em sua versão não sublimada. Tesão, portanto, não é aqui apenas uma força de expressão.”[1]

Assim também Preciado dirige o filme, fazendo da auto ficção aquilo que nos move e incendeia, jogando para que nos tornemos aliadas, amantes, fãs. As imagens criadas por ele nos colocam em posição de combate a respeito da política de produção de corpos, da reprodução de um sistema binário que trata a diferença como desvio, ao mesmo tempo em que nos leva a pensar em outras possibilidade de acesso ao desejo, além da projeção de formas livres de estar vivo e criativo no mundo.

Nesse contexto, uma das frases mais românticas que vi em filmes ultimamente aparece na encenação do reconhecimento entre Orlando e Sasha:

“- Você percebeu que eu não sou homem, tampouco mulher?

– Sim. Você é diferente de todo mundo que eu já conheci”

Clichê ressignificado aqui. Viver o amor em tempos que ainda estamos inventando.


[1] https://revistacult.uol.com.br/home/sobre-a-filosofia-paul-b-preciado/

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DESCRIÇÃO SILENCIOSA: REASSEMBLAGE (Trinh T. Minh-Ha)

Por Georgiane Abreu

Enquanto estudante de antropologia, muitas questões éticas e delicadas passam pela cabeça a respeito do encontro e das trocas com os chamados “interlocutores”: é possível construir relações simétricas? Quais os limites entre a curiosidade comum e o modo curioso invasivo? Não sabendo como responder a estas questões, escolhi como interlocutores, um arquivo e uma série de documentos.

Convivendo com o ressentimento de poder ser classificada como antropóloga de gabinete, esbarrei com uma cópia de Reassemblage em um curso sobre arte como imaginação política e que boa surpresa esse encontro: um documentário produzido por uma mulher e que, apesar de realizado há 40 anos, apresenta questões muito próximas às minhas. Foi como encontrar um tesouro obscuro, capaz dessa identificação mágica que só os filmes atemporais carregam. 

A tal descrição silenciosa a que me refiro no título do texto diz respeito à maneira como a multiartista vietinamita Trinh T. Minh-Ha pensa a forma discursiva de seu filme, expressa pela conjunção entre as escolhas formais e políticas que vão da captação das imagens à densidade produzida pela montagem, com jogos de transição em cortes rápidos. Privilegiando a opacidade e o rompimento com a descrição verticalizada dos acontecimentos, a diretora utiliza a camada sonora como aquilo que move o filme. 

No caminho contrário de alguns documentários recentes, em que o voice-over fica entre a autoficção e o egocentrismo disfarçado, em Reassemblage o documentário etnográfico ganha uma camada ensaística com as intervenções em voz da realizadora, um voice-over econômico, sussurrado.

Essa economia no discurso falado parece uma forma de respeito pelo que está acontecendo à sua frente: a vida das pessoas senegalesas que Minh–Ha acompanha e que ganha movimento fílmico a partir de uma observação muito atenta às camadas sonoras, produzindo um silenciamento inverso ao esperado e que, de maneira delicada e ativa, busca por um lugar menos assimétrico entre a observadora, a estranha, aquela figura chegante e as pessoas locais.

Não pretendo falar sobre, apenas falar por perto.

Na sequência do letreiro inicial, com o título do filme e o nome da realizadora, a tela preta indica lugar e tempo – Senegal, 1981 – e é preenchida por música, um código localizado, com suas batidas ritmadas. Depois de uma sequência muda, com imagens de pessoas de todas as idades, a diretora finalmente fala: I do not intent to speak about, just speak nearby. Suas intenções estão condensadas nesta frase.

Ao aportar numa África, tantas vezes visitada e categorizada por estrangeiros, inserindo-se num espaço já consagrado dos documentários, que descrevem e sedimentam o outro como o africano, o primitivo, o elo perdido das civilizações, Minh-Ha chega falando baixo e ouvindo bem, ainda que não domine as línguas que encontra pelo caminho.

Ao falar por perto daquelas pessoas, que também a observam de longe – com a desvantagem de não poderem ativar o zoom -, a diretora vai tentando responder a uma pergunta que lhe fazem: 

– Um filme sobre o que?

– Um filme no Senegal.

– Mas o que no Senegal?

A beleza da não resposta a essa pergunta faz com que experimentar aquela aldeia seja nosso único compromisso ao embarcar no fluxo das descobertas do filme. Coordenar o ritmo da música com o ritmo do trabalho na comunidade; a capa azul do senhor que aparece produzindo corda me remete a Noir Blue (2018) e os movimentos ritmados de Ana Pi; o corpo está presente e ativo em tudo naquela comunidade senegalesa.

“Criatividade e objetividade parecem correr em conflito. O observador ansioso coleta amostras e não tem tempo de refletir sobre a mídia usada. ”- foi como consegui traduzir uma das falas de Minh-Ha, que escolhe pensar criticamente sobre o seu papel ali, ao invés de descrever o que vê. A imagem por si só já não serviria como descrição? “Para muitos de nós [antropólogos], uma maneira de ser neutro e objetivo é copiar a realidade meticulosamente. Falar sobre. ”

A certa altura a diretora diz “A realidade é delicada” e cruzar essa realidade com os conhecimentos que adquirimos ao longo da vida nos leva a produzir significados sobre tudo que experimentamos. Uma nota no caderno de campo de Trinh T. Minh-Ha e os significados que ela deve ter produzido e escolheu guardar para si mesma. 

Um atravessamento de significações que a diretora compartilha fala sobre o calor e a escolha de usar um chapéu para proteger-se do sol, fato que vira chacota entre as mulheres locais. A pesquisadora assinala o fato de se perceber observada. Porque acreditamos que somos os únicos com o olhar ativo numa relação como esta? Será a câmera? Lembrar que está sendo vista também te deixa desconfortável? Voltamos ao filme. As mulheres pilando e um zoom no seio descoberto, plano que dura segundos. “Um filme sobre o que, meus amigos perguntam”. Sobre ser mulher no interior do Senegal? Talvez. Também. 

Interessada, tomei esse filme como aula e uma das lições mais preciosas diz respeito a forma como a diretora define o que aconteceu enquanto esteve naquela comunidade: “O que vi foi a vida olhando para mim”. Escolher a forma de dizer e mostrar isso é o que torna tudo mais interessante. 

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No Cemitério do Cinema (Thierno Souleymane Diallo, 2022)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Geo Abreu

Cinemas decoloniais seguem morrendo

Foram dois filmes ou mais? Num festival de cinemas contemporâneos, alguns filmes feitos em países subalternos trazem figuras de morte ao falar de suas cinematografias e assim se somam. Carros fúnebres e fantasmas são usados como condutores das histórias escolhidas pela curadoria do Olhar de Cinema. Na simbologia do tarô, a carta da morte na verdade significa renascimento, algo novo que se aproxima. E no primeiro longa-metragem de Thierne Souleymane Diallo todo o discurso parece se organizar para enganar o sentido comum da morte.

Enquanto o diretor sai em busca de um filme-fantasma rodado em 1953 na Guiné e hoje desaparecido, a cada etapa importante vai até a mãe para pedir sua benção, seguindo a jornada sempre descalço. Quando confrontado a esse respeito, responde que aquilo é uma forma de protesto pelo fato de que sua pesquisa não seja propriamente apoiada financeiramente, e que, portanto, não lhe sobra dinheiro para comprar sapatos. Mas estar sem sapatos andando pelo mundo é também bastante simbólico, e entre tantas possibilidades pode tanto representar humildade, a lembrança dos africanos escravizados que não podiam usar calçados ou também o contato via aterramento com seus antepassados.

Pra mim significa a coragem de fazer do mundo a sua casa, o seu terreiro. Enfrentar o mundo descalço passa também a mensagem de que nada o impedirá de continuar caminhando. E homens mortos não caminham, tampouco carregam seu cinema por aí.

Souleymane está vivo, enquanto os arquivos que encontra pelo caminho não estão. Na antropologia contemporânea é comum a ideia do arquivo como uma prática colonialista. Na Guiné, com a força de sua tradição oral, arquivos físicos tem tanta importância quantos os sapatos de Diallo. “Tudo está arquivado na Cinemateca Francesa” diz um antigo cineasta e professor.

Antes de chegar à França, o diretor passa por diversas turmas de iniciação ao cinema, usando câmeras de papel e a oralidade como artifícios cinematográficos: Seus alunos devem voltar para sala de aula, depois de gravarem seus filmes na memória, e contar o que acontece neles para toda a turma. Lembra um pouco da magia de Rebobine, por favor! de Michel Gondry, que mostra uma comunidade reunida para refazer um filme perdido.

Passando por turmas de adultos e crianças o diretor, enquanto professor, incentiva o uso de materiais e histórias que estão disponíveis no repertório de seus alunos, e nada mais próximo do método Paulo Freire do que a significação do cotidiano para incentivar a aprendizagem. Aliás, para quem já foi oficineira de audiovisual, esse filme é como um abraço. Assim, na esteira de toda a falta de estrutura e recursos que se apresenta sobre o cinema da Guiné nesse filme, posturas como a de Souleymane Diallo subvertem a ideia de falta (ou de morte) e apontam caminhos para a propagação da prática e do amor pelo fazer cinema.

No final das contas, a jornada empreendida atrás do filme citado por estudiosos do cinema africano como um dos primeiros a serem filmados após os processos de descolonização das colônias europeias na África serve apenas como pano de fundo para a caminhada do diretor. Na verdade, ninguém se importa com a materialidade do filme desaparecido: a partir de um texto e do reconto da lenda que dizem fazer parte dele, Souleymane refaz o filme, usando todas as técnicas de que dispõe – da oralidade a improvisação de materiais – para deixar gravada uma mensagem: a de que o cinema da Guiné está vivo.

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Notas do Eremoceno (Viera Čákanyová)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Geo Abreu

Um álbum de imagens perdido no sotão

Dizer que este filme é mais um a trabalhar com a ressignificação de imagens de arquivos públicos e privados e também com a ideia de ficção distópica é fazer uma leitura rasa dele. Acredito que essa profusão de filmes que pensam o mundo pós humanidade ajudam também a refinar o argumento, e é assim que Notas do Eremoceno se apresenta.

Viera Čákanyová cria um universo em que o humano e o analógico estão desaparecendo, enquanto a imortalidade via memórias digitais se configura como num jogo de multientradas. Nesse processo, a protagonista, um ser bastante curioso, percorre seus arquivos pessoais em busca de rastros da língua eslava e sobre a civilização botomori, aquela que deu lugar a humanidade. 

Considerando um tanto piegas que Eremoceno seja traduzido como a civilização da solidão, podemos passar por cima disso enquanto observamos a forma como algumas imagens de paisagens e animais são ampliadas e reconfiguradas dimensionalmente, explorando uma realidade desconhecida e suas possibilidades de preenchimento de um espaço tridimensional na realidade bidimensionalizada dos dados, nos pondo no lugar daquela protagonista que já não possui conhecimento sobre a existência de um corpo, do mar ou de um sapo. Tudo são apenas imagens que podem ser tratadas plasticamente e a partir de vários artifícios sem com isso conseguir materializar a experiência de um banho de mar ou do naufrágio de um barco. 

A ideia da comunicação via bastões de cristal nos lembra os universos comunicacionais de Ursulla K Le Guin e a ampliação do estatuto de humanidade a outros seres mais que humanos. Essa humanidade ampliada pela ideia da imortalidade virtual ao mesmo tempo em que o humano perde a soberania sobre o mundo é uma das possibilidade aventadas por esse pequeno filme, que joga com apenas alguns fatores possíveis de um futuro cada vez mais automatizado e nossa terceirização das memórias. No fim podemos pedir que a assistente virtual toque nossa música predileta enquanto nos perdemos mais uma vez no universo de dados que chamaremos um dia de eu.

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Revisitando “Caixa Preta” (Bernardo Oliveira e Saskia, 2022)

Visto no Olhar de Cinema 2023

Por Georgiane Abreu

“Aprendi a entrar pelos fundos quando se convencem de que eu não volto mais”

Alguns minutos de tela preta, música ao fundo. Um descanso ativo para mentes cansadas de desentendimento, de sequestros de protagonismos e falsos apaziguamentos. As vozes de Bernardo Oliveira e Negro Léo se alternando em embalar imagens em diferentes qualidades, sem vontade alguma em ser didáticos, seja com relação a raça, religião ou montagem. 

Saskia por sua vez entrega uma narrativa onde o som é a linha que devemos seguir para aproveitar a experiência de estarmos “como cachorros dentro d’água no escuro do cinema”: perdidos, incomodados e sem farol. O melhor é se deixar flutuar;  fechar os olhos e ouvir as histórias como nos tempos em que não se escrevia nem se filmava.

Caixa Preta opera com os arquivos de forma muito semelhante ao que produz Arthur Jaffa em seus filmes e videoclipes, forma que se tornou também elemento constante em alguns episódios de Atlanta: usar a torrente de imagens com a qual estamos aprendendo a lidar e conviver numa sobreposição maníaca, que flui e devolve violência,  opacidade e desentendimento. 

Difícil de classificar pelo excesso de sentidos possíveis, dos gatilhos disparados e dos traumas (você escolhe fugir ou encarar?). No final, é melhor mesmo nem entender o que canta aquela pastora. Aceite o transe e deixe o corpo responder.

Link para o texto original sobre “Caixa Preta” por Georgeane Abreu.

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Desvío de Noche. (Paul Chotel e Ariane Falardeau St-Amour)

Visto no Festival Olhar de Cinema 2023

Por Georgiane Abreu

O encontro dos diretores com a vila mexicana de Zipolite promove a abertura de uma espécie de portal para a cosmologia daquele povo e suas histórias, muitas vezes particulares e noutras vezes a repetição de contos sobre o amor, a saudade e o surgimento do universo. 

Entre o nascimento e o desaparecimento de pessoas e estrelas cadentes, Zipolite e seus moradores – entre eles a patinadora Violeta Martinez –  surgem a partir de suas histórias como ponto de partida para as investigações dos diretores sobre luz e escuridão, superexposição e camuflagem, assim como o eclipse que dizem ser o mito fundador daquela vila, formada a partir do ajuntamento de pessoas que foram até ali para apreciar o fenômeno natural, a caracterizado pela gradativa escuridão.

Inicialmente utilizando procedimentos documentais, o filme parece partir de uma etnografia que, por falta de subsídios baseados na escala do real, segue naturalmente o detour da ficção, avolumando-se nesse sentido, criando camadas e mais camadas de histórias, que vão a cada vez retornando ao ponto inicial, como a serpente do tempo cíclico. Experimentando imagens de caráter pictórico,  aproximando o céu do eclipse e das estrelas com o chão da vila e suas pedras iluminadas pela luz da lua, o segundo momento do filme, que desvia para a noite, como sugere o título, é o que guarda suas melhores performances .

Momentos em que o descontrole é a medida e a ficção toma conta de tudo ao ponto de estarmos diante de uma narrativa sobre o surgimento do universo e suas primeiras personagens, ainda perdidas num tempo sem antes e nem depois. Assim como a personagem de Tilda Swinton em Memória, de Apichatpong Weerasethakul, parece ser uma caçadora de histórias cuja sensibilidade a faz mergulhar de cabeça no universo das personagens que encontra até o ponto de borrar os limites da temporalidade, os diretores de Desvío de Noche se deixam levar pelas possibilidades que encontram nas histórias que lhes são contadas, extraindo delas as rupturas, jogando assim com a matéria tempo como só o cinema é capaz.

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Festival de Brasília: Mandado (João Paulo Reys e Brenda Melo)

Por Geo Abreu

Voltar ao Complexo da Maré ocupado pelo Exército. Brasil, 2015.

Em 2014, por conta dos Jogos Olímpicos que foram realizados na cidade do Rio de Janeiro, o Governo Dilma Roussef autorizou a ocupação militar do Complexo de Favelas da Maré, devido ao fato de que as principais vias expressas da cidade cruzem esse território, além da proximidade com o Aeroporto Internacional do Galeão, porta de entrada da maioria dos turistas que tomariam conta da cidade naquele período.

Neste processo, um mandado coletivo foi expedido para que qualquer residência em pelo menos duas das 17 favelas que compõem o Complexo pudessem ser alvo de buscas e invasões executadas pelos militares, sem maiores justificativas. Há excepcionalidade nessa medida? É disso que trata Mandado, longa exibido na noite de 17/11, na Mostra Competitiva do Festival de Brasília.

O filme escolhe perseguir a legalidade desse mandado coletivo, entrevistando juristas e especialistas em direito, além daqueles que atuaram junto às ONGS e demais órgãos de luta e direitos humanos durante esse episódio, intercalando esses depoimentos “especializados” com os de alguns moradores, entre eles, Cadu Barcellos, cineasta e roteirista morto num assalto enquanto voltava para casa em 2020, e Marielle Franco, a vereadora mareense assassinada junto com o motorista Anderson Gomes, que a conduzia quando o carro em que estavam foi alvejado por arma de calibre de uso restrito às Forças Armadas, em 14 de março de 2018.

Esse é o ritmo que se impõe como normalidade da perda violenta de parentes, amigos, irmãos e que envolve o documentário num clima pesado, reforçado ainda mais pela trilha sonora original que reforça a dramaticidade do assunto e algumas vezes antecipa o tom com o qual o expectador deve receber a próxima informação.

Muitas dúvidas surgiram sobre o timing do filme e seu lançamento, tantos anos depois dos depoimentos tomados e da ocupação militar que durou 14 meses, com a presença de um policial para cada 55 moradores. Enquanto escrevo esse texto, manhã de 26 de novembro de 2022, a Maré amanhece mais uma vez devastada pelas mortes ocorridas no contexto de uma operação policial que durou quase 24 horas, descumprindo os dispositivos jurídicos que estabelecem horários de início e finalização de operações em favelas, entre outras ilegalidades.

Observando as coisas por esse prisma, o da circularidade desse tipo de ação político-militar, amparada por excepcionalidades que só se aplicam a comunidade periféricas, e que tem o Rio de Janeiro como espécie de laboratório de práticas eugenistas em pleno ano de 2022, o assunto abordado por Mandado nos parece em processo e urgente.

A aposta da curadoria do Festival na escolha desse filme merece destaque, pois se alinha à proposta de apresentar “narrativas atravessadas por escombros, nas quais não há garantias.” Lembrar que nossa democracia representativa, essa mesma pela qual lutamos voto a voto no último pleito para presidência, é também aquela que, mesmo quando ocupada por representantes da “esquerda” trata a periferia como algo descartável. E aqui estamos nós, espectadores do mundo Brasil, de volta ao movimento violento da garantia de mais um dia de vida. Só mais um dia comum.

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Festival de Brasília: Sessão de curtas

Por Geo Abreu

Nossos Passos Seguirão Os Seus…, Ulton Oliveira (RJ)

Não é a Primeira Vez que Lutamos Por Nosso Amor, Luis Carlos De Alencar (RJ)

Calunga Maior, Thiago Costa (PB)

Rumo, Bruno Victor E Marcus Azevedo (DF)

A criação de memórias tem aparecido como tema em muitos dos filmes exibidos aqui em Brasília nesses dias de festival. A necessidade de pôr em marcha uma série de materiais, entre fotos e vídeos,  sobre histórias que “vieram antes de nós” acabam trazendo para a discussão ideias como preservação e acesso a arquivos públicos (Nossos Passos Seguirão os Seus), a importância de arquivos pessoais para composição de histórias publicas (Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor) e a necessidade de registrar encontros e performances políticas, na preemência da  criação de grupos de ativistas (Rumo) para que assim as “novas gerações” saibam quanta luta foi necessária para que alguns direitos básicos fossem garantidos.

Qual a relação entre produzir um documentário sobre um personagem fundamental de greves acontecidas no começo do século XX, outro sobre a formação de grupos de discussão e ação política no terreno das lutas travestis/lésbicas/gays dos anos 70/80/90 e a história de um grupo ativista negro, fundamental para que a UnB fosse a primeira universidade brasileira a implantar o sistema de cotas no Brasil? Os arquivos – públicos e particulares -, em sua complexidade de conservação, acesso e reelaboração.

Na vontade de produzir um filme como registro da existência de Domingos Passos, importante figura do movimento operário do começo do século XX no Rio de Janeiro, Uilton Oliveira encara a ausência de imagens de seu personagem a partir da produção de episódios ficcionais com os quais intercala o discursivo do filme. Entre páginas de jornais e publicações operárias vai montado uma memória possível de Passos e apresenta um procedimento que que tem se tornado comum nos documentários contemporâneos: buscando na ficção a composição das lacunas que o material de arquivo traz.

Em Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor, Luis Carlos de Alencar se baseia numa robusta pesquisa sobre a história dos movimentos e associações travestis, lésbicas e gays brasileiras, suas histórias, os núcleos regionais na Bahia, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, além de trazer em paralelo também alguma história de associações de caráter semelhante surgidas nos Estados Unidos e as discussões que pautaram as reivindicações destes movimentos entre as décadas de 70 e 90.

Contradições internas, as tentativas de aproximação com o movimento operário – aquele mesmo, do ABC Paulista, que nos rendeu um ex-operário presidente – e medidas necropolíticas aplicadas principalmente sobre corpos travestigêneres no Brasil, muito antes que o termo virasse moda, são alguns dos assuntos abordados pelo longa documentário que cumpre papel importante na organização da memória dos movimentos políticos de contestação da binarismo heterossexual. Vale frisar a importância do acesso à arquivos particulares dos entrevistados, ressaltados pelo diretor durante debate pós-sessão.

Nesse sentido também, não fosse uma escolha dos próprios membros do coletivo EnegreSer por uma autoprodução da memória e a salvaguarda desse material em arquivos particulares, um filme tão potente quanto Rumo – dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo -, talvez não fosse possível. A história do grupo de estudantes negras que se reuniu para reivindicar não apenas as cotas quanto a própria respeitabilidade das existências pretas nos cursos da UNB, acabou por se auto afirmar, na medida em que muitos da grande equipe envolvida na produção do documentário é fruto desse processo contínuo de luta.

“Produzir-se à frente, como uma memória do futuro”, frase do filme Calunga Maior, de Thiago Costa, arremata a ideia de que, para além da pesquisa em arquivos já existentes, é a própria produção de material que se impõe hoje, conscientes de que, independente de quantas gestões antidemocráticas passem por nós, a luta por direitos entre as comunidades negra, indígena, travesti, LGBTQIA+ é uma constante. Pensar seriamente sobre arquivos particulares como alternativa para a não preservação de arquivos públicos demanda experiência no auto registro, na produção de memórias escritas dos encontros, além do cuidado com a integridade desse material.

Em Rumo há também a escolha por uma auto ficção que parece ocupar o lugar de ligação entre os blocos documentais. A solução de sair de um momento ficcional, em que a câmera acompanha um personagem que com a simples quebra da quarta parede, passa da ficção ao documentário, se apresentando e revelando sua ligação com a UNB e o movimento negro contemporâneo que vive a universidade pública em Brasília hoje é um dos maiores acertos do filme.

Sugere uma transição sutil entre tempos sobrepostos, como a própria ideia de escrever o passado enquanto atira uma pedra hoje. As várias possibilidades de uso e também de confronto com o arquivo que estes filmes apresentam sugerem ainda uma abertura para que, numa ecologia em que tantas imagens são produzidas o tempo todo, filmes possam cada vez mais se apropriar desse acervo quase infinito, reelaborando passado e presente na intenção de produzir imagens de futuro para o cinema brasileiro

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Festival de Brasília: Mato Seco em Chamas

Por Geo Abreu

“A única coisa que nos interessa são as nossas lendas, as lendas da Ceilândia.”

Em questão de meia hora, Mato Seco em Chamas resume sua história num prólogo: Chitara se transforma numa das gasolineiras mais respeitadas da Ceilândia e, a partir de seu lote no bairro do Sol Nascente, passa a extrair petróleo e produzir gasolina, abastecendo os motoboys da região. Enquanto aguarda o retorno de sua irmã Léa à liberdade, Chitara constrói sua reputação, atraindo inimigos que tentam tomar sua plataforma à força. Ao se impor à realidade, a heroína se firma como lenda viva daquela comunidade.

Com esse mote de odisseia – uma das personagens segue criando mundos enquanto espera o retorno da outra, que voltará para contar tudo o que viu do outro lado dos muros de uma penitenciária -, o filme acomoda essas interrupções e o desaparecimento de Léa, com cenas sobre o cotidiano do Sol Nascente – essa Ítaca sulamericana -, com a história de Andreia e sua campanha política voltada às mulheres encarceradas, e, claro, com a vida da plataforma de petróleo comanda por Chitara.

A etnografia da ficção, conceito desenvolvido por Adirley Queirós e Joana Pimenta para esse movimento que questiona as estruturas do documentário e as relações do cinema com a realidade encontra em Mato Seco seu melhor desenvolvimento. A extrapolação das histórias de vida das atrizes soma-se ao que seriam possíveis soluções para seus problemas reais executados no campo da ficção, sendo moldadas também pelo fluxo de uma história pública que acompanhamos via noticiário, e que segundo os diretores, molda o filme no seu corte final.

Num movimento pendular de ida e vinda, alguns episódios retornam, como uma história contada repetidas vezes na esquina do bairro. Esse procedimento de repetição é que garante que as trajetórias de Chitara e Léa sejam lembradas por anos, ou enquanto durem as pessoas de sua geração remanescentes do Sol Nascente.

Enquanto procedimento narrativo também, Adirley e Joana trabalham com performances públicas que ajudam a produzir uma memória do filme na comunidade: a constância do trabalho no lote, com o barulho das máquinas em atividade; a produção de todo um aparato ancorado na realidade de uma campanha política para a candidatura fictícia de Andreia (criação de comitê, realização de reuniões, panfletagem e carreata com carro som); as várias rondas noturnas do caveirão Brutus pelas ruas do bairro. A produção dessa memória do filme ajuda a criar a ideia entre os moradores do Sol Nascente de que aquele filme já foi visto.

Esse compromisso com a contra-narrativa, essa que cria memórias e se inscreve no cotidiano das pessoas, marca o trabalho dos diretores, aqui fazendo cinema para a cidade-satélite da Ceilândia que, sem uma sala de cinema sequer, tem como espelhos de si mesma os muros, as ruas e a memória de seus moradores.

É radical propor um cinema que é projetado enquanto se realiza como produto, já que essa é a única possibilidade de exibir um filme na Ceilândia: fazê-lo. Buscando suporte em outras modalidades artísticas, como a performance – da motociata, do caveirão – e a instalação – a plataforma de petróleo no quintal do vizinho– os diretores executam também uma longa observação de personagens reais pinçados da própria comunidade.

Essa observação participante dedica longos planos a um culto evangélico: onde uma criança de colo que acompanha sua mãe já começa a cantar aquelas canções, enquanto fora do templo o mundo parece escoar junto com a chuva que cai na rua sem esgoto. O baile no ônibus libera a energia daquelas mulheres de todas as cores e tipos de corpos, que se esfregam e se beijam porque o desejo das trabalhadoras precarizadas é do final de semana, é da boca das amigas, é ritmado pelo funk. Já quase no fim do filme, vemos os documentos do processo que levou à prisão de Léa acompanhados da sua leitura em voz over e é impressionante como nenhuma informação espanta porque já conhecemos muito da personagem, a partir de sua performance como narradora das próprias histórias, aquelas que não passaram pelo processualismo judicial mas, formam a figura, o arquétipo da guerreira urbana, o mito, a lenda do Sol Nascente.

Operando entre ficção e inscrição em processos reais, Adirley Queirós e Joana Pimenta levam Mato Seco em Chamas a tomar uma materialidade expandida que radicaliza não só a forma, mas a essência do cinema, a vida mesmo como obra de arte, já nem tão burguesa assim (e ainda bem).

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CINEMA DE GIRA: NOTAS SOBRE ALGUNS FILMES-MACUMBA BRASILEIROS

por Geo Abreu

Rituais, segredo, discriminação, comida e comunidade. No geral, são esses os termos que me vêm à cabeça quando penso na palavra macumba. Muitas vezes ligado a enunciados preconceituosos, o termo se confunde com a história dos africanos trazidos ao Brasil à força de uma assimilação violenta. Violência essa que, fundante, segue marcando o país-brasil de forma indelével e poucas vezes é transformada em algo positivo.

Acredito que caiba ao cinema, como plataforma de articulação daquilo que excede o real, apresentar algumas imagens-feitiço, com o propósito de nos aproximar do universo dessas religiosidades mestiças, de traços africanos e também indígenas.

O agnóstico muitas vezes elabora objetos de culto em lugares não-convencionais. A cultura pop e o cinema produzem um vasto cabedal de possibilidades nesse sentido: de musas a autores, e frames como extratos de imagens em movimento que tornam-se objeto de uma adoração tanto diversa quanto aproximada de uma devoção de cunho quase religioso. Muitas vezes também é o léxico do cinema que nos faz relacionar com o desconhecido: paisagens, sotaque e catarses.

Sem a intenção de criar qualquer lista de filmes imperdíveis sobre macumba, esse texto vem convocar algumas produções nacionais em que rituais, deidades e símbolos ligados aos cultos afro-indígenas praticados no Brasil sejam tema ou conduzam a narrativa. Dentre diretores conhecidos, dois nomes se destacam: Nelson Pereira dos Santos e Rogério Sganzerla.

Partindo uma ideia de cinema popular brasileiro, Nelson Pereira e Sganzerla utilizam expedientes diferentes para alcançar talvez o mesmo objetivo: levar às telas filmes cujos temas encontrem pouso entre uma audiência de trabalhadores pobres e migrantes das periferias das grandes cidades brasileiras.

Em O Amuleto de Ogum, Gabriel chega ao Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida e acaba esbarrando com o crime organizado da Baixada Fluminense dos anos de 1970. Entre a história da Baixada e a recorrência de migrantes nordestinos que ainda chegam ao Rio de Janeiro todos os dias, a religiosidade do protagonista o transforma no operário perfeito para a função de criminoso profissional. 

O Amuleto de Ogum de Nelson Pereira dos Santos

A ideia do bandido de corpo fechado aqui serve a pelo menos dois propósitos: conjugar a narrativa dos marginais míticos da periferia – aqueles que sobrevivem a atentados e tiros e cujas histórias são como ouro para o jornalismo sensacionalista –  e a macumba como prática de produção dos corpos.

A fim de proteger o filho da violência que acerta quase sempre corpos negros e periféricos, a mãe de Gabriel o leva ao terreiro para que seu corpo seja preparado e fechado, pondo a própria alma como garantia da proteção do filho. Assim é criada uma deidade propriamente brasileira, o filho de mãe pobre e solteira cujos dribles da morte estão condicionados à fé de sua mãe, transubstanciada através desse ritual, cujo amuleto o rapaz carrega e no qual deposita bravura e a capacidade de se meter em encrencas (às expensas do coração materno). Aqui os filmes de herói e de boneco se encontram com a linguagem da macumba, forjando um herói, brasileiro como poucos, nesse que é um clássico do cinema “BR”.

Em Copacabana, Mon Amour, outra figura periférica, Sônia Silk, se vê perseguida por um fantasma ao mesmo tempo em que precisa descer o morro e se prostituir no calçadão de Copacabana para sustentar a família, ao invés de seguir seu sonho de cantora. Em paralelo, seu irmão, parece estar enlouquecendo amedida que assume a paixão proibida que sente por seu patrão.

Copacabana Mon Amour de Rogério Sganzerla

Duas figuras perturbadíssimas como muitas que transitam entre centro e periferia das grandes cidades brasileiras, marcadas por um adoecimento psíquico que os conduzem a atos impensados, pequenos/grandes crimes, e novamente, às páginas ou telas de notícias populares. Em meio ao tumulto de suas vidas, Sônia e seu irmão encontram o pai de santo Joãozinho da Gomeia e mesmo sua benção já não é capaz de apaziguar os ânimos dos personagens, perdidos entre a sobrevivência e talvez a falta de dedicação ao culto de sua ancestralidade, que talvez lhes restituísse a força que vemos no protagonista de Amuleto de Ogum.

Helena Ignez e sua performance-transe faz muitos dos melhores momentos de Copacabana, Mon Amour e algo do gestual lembra muito os transes filmados em Ritos Populares, Umbanda no Brasil, que apesar de posterior a Copacabana, mostra que tanto o diretor quanto a atriz fizeram suas pesquisas em torno do tema e de como performa-lo. Otoniel Serra e seu personagem possuído de paixão, que oscila entre gritos e pontos de macumba, descendo e subindo o morro, opera num registro mais livre e espontâneo, com uma capa que remete aos parangolés de Hélio Oiticica, com sua pesquisa sobre corpo e samba espelhada aqui numa gira urbana e esquizofrênica que Serra conduz tão bem.

Falando em esquizofrenia, é interessante como estes filmes servem também para desmistificar alguns preconceitos com a macumba, como seu caráter feral e distanciado da ciência: em Jubiabá, o pai de santo interpretado por Grande Otelo geralmente é encontrado em casa em meio a muitos livros, o que nos leva a crer que sua sabedoria venha de uma conjunção entre experiência, leituras e sua missão perante àquela comunidade da periferia de Salvador; em Ritos Populares, o personagem principal também é um homem de idade, que diz ter aprendido tudo que sabe sobre a religião com seus guias astrais, que por sua vez lhe conferiram a missão de escrever sobre a mitologia, os orixás e curiosamente diz acessar esses conhecimentos por via de duas entidades que lhe visitam: um preto velho e um pajé indígena, “de tempos pré-cabralinos”, como diz a certa altura do documentário.

De todos os filmes aqui citados, Bahia de Todos os Exus é aquele de caráter mais científico, próximo a uma pesquisa de campo, com um pesquisador curioso portando microfone e gravador em meio a uma ladeira de Salvador. Em seus 45minutos de duração, o entrevistador visita diversas autoridades no tema, entre cientistas, artistas e pessoas comuns para entender a importância e a natureza mutante da figura de Exu entre os cultos afro  a Bahia.

Sem condescendência, o filme apresenta a naturalidade da feitura de um ebó para Exu, com uma galinha sendo decapitada e o sangue sendo espalhado sobre a comida do santo. Suas explicações sobre o Ifá, as diversas formas como Exu se apresenta e aqueles que guardam relações muito particulares com essa entidade de tantos nomes fazem dele um documento tanto textual quanto imagético sobre as relações entre a religiosidade e as camadas populares.

Nas favelas, nas organizações trabalhistas e no terreiro todos os personagens desses filmes-macumba poderiam cruzar suas histórias e desdobrá-las em diversas outras, todas elas com um fundo de brasilidade muito peculiar e violento, como a própria história desse país, rico de tantos personagens e contos míticos populares. Pela valorização dos filmes-macumba e seus desdobramentos possíveis.

Referências:

Bahia de Todos os Exus. Dir.: Tuna Espinheira, 1978.

Copacabana, Mon Amour. Dir.: Rogério Sganzerla, 1970.

Jubiabá. Dir.: Nelson Pereira dos Santos, 1986.

O Amuleto de Ogum. Dir.: Nelson Pereira dos Santos, 1974.

Ritos Populares, Umbanda no Brasil. Dir.: Rogério Sganzerla, 1986.

Sem Essa, Aranha. Dir.: Rogério Sganzerla, 1970

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