Orlando, minha biografia política (Paul B. Preciado, 2023)

Por Geo Abreu

Paul B. Preciado, o conhecido filósofo e autor de Manifesto Contrassexual e Apartamento em Urano, dirige seu primeiro filme. Uma biografia multivocal, com diversos Orlandos interpretando a personagem do livro homônimo de Virginia Woolf, cuja história é utilizada pelo diretor como espelho, renovando assim o interesse por esse clássico da literatura.

Existe um meme correndo por aí que pode ajudar a entender a relação de Preciado com o cinema e a literatura: uma foto dele com a frase “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem” (tradução minha). Comentando sobre outro livro seu, Testo Junkie, o filósofo afirma ter produzido uma auto ficção, relatando a experiência com uso de testogel em sua transição, ao mesmo tempo em que elabora a ideia de regime farmacopornográfico, historicizando as mudanças tecnológicas e intervenções medicamentosas que vão sendo normalizadas e aplicadas em massa em nome da produção da sociedade heternormativa.   

A autoficção funciona então como experimentação, livro e filme como externalização dos relatos. Essa aparência muitas vezes pedagógica que Orlando assume me lembrou Vênus de Nyke (2021), filme dirigido por André Antônio. Nele, o personagem principal aparece em consultas com sua analista fazendo um inventário de seus desejos e pulsões, que de tão fortes, dominam boa parte de sua vida. Ao mesmo tempo, o filme da produtora Surto & Deslumbramento inventaria também livros, músicas, personagens e diretores gays, como Pier Paolo Pasolini e Kenneth Anger, por exemplo, deixando nos créditos uma lista de referências a quem porventura as esteja procurando.

Orlando/Preciado é econômico nesse sentido e usa apenas o texto de Woolf, adotando o romance como obra de referência queer, num gesto de tomada para si, de aproximação com a obra de uma autora notadamente identificada com a causa feminista. O talento de Woolf com as palavras, compartilhado com o diretor, também se transforma no mote para a criação de novos mundos, em que a existência de experiências trans é marcada numa linha do tempo bastante extensa.

Usar a ideia de poesia como alegoria para discurso é o que dá o tom político ao filme. No lugar de pôr os personagens para contar suas experiências em entrevistas clássicas, Preciado escolhe misturar os relatos pessoais de cada um com a ficção escrita por Woolf, embaralhando os limites entre “realidade” ou ficção. Em alguns momentos, os personagens trazem a tona essa ideia das pessoas trans como “poetas de gênero” – praticando esse exercício de nomear as coisas num mundo novo, em que suas existências são verificadas e historicizadas – e chegando ao limite do esforço empregado nesse ativismo: “somos poetas contra vontade.”, o que nos faz retomar o meme: “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem”.

Vale dizer que nesse trabalho com as palavras, Preciado não escreve nem dirige filmes de forma rebuscada. O ritmo é sexy e empolgante. No trecho abaixo, retirado de uma resenha sobre Testo Junkie, algo de fundamental em sua obra ganha destaque:

“Diante disso, parece haver algo de novo na escrita do filósofo Paul B. Preciado: a experiência de ler seus textos filosóficos excita. Suas palavras incendeiam o corpo. Mostram a força do erotismo em sua versão não sublimada. Tesão, portanto, não é aqui apenas uma força de expressão.”[1]

Assim também Preciado dirige o filme, fazendo da auto ficção aquilo que nos move e incendeia, jogando para que nos tornemos aliadas, amantes, fãs. As imagens criadas por ele nos colocam em posição de combate a respeito da política de produção de corpos, da reprodução de um sistema binário que trata a diferença como desvio, ao mesmo tempo em que nos leva a pensar em outras possibilidade de acesso ao desejo, além da projeção de formas livres de estar vivo e criativo no mundo.

Nesse contexto, uma das frases mais românticas que vi em filmes ultimamente aparece na encenação do reconhecimento entre Orlando e Sasha:

“- Você percebeu que eu não sou homem, tampouco mulher?

– Sim. Você é diferente de todo mundo que eu já conheci”

Clichê ressignificado aqui. Viver o amor em tempos que ainda estamos inventando.


[1] https://revistacult.uol.com.br/home/sobre-a-filosofia-paul-b-preciado/

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