Monsieur Verdoux (Charles Chaplin, 1947)

Monsieur Verdoux, todos sabem, foi um caso de problemas sérios para Charles Chaplin. Sua segunda pátria (os Estados Unidos) nunca viu com simpatia seus ideais sociais, jogados na laia comum da subversão comunista, da ameaça vermelha. São rótulos por si só já desmoralizantes a seus empregadores, mas é um capítulo da história macarthista que não pode evidentemente ser apagado dos quadros da História dos filmes americanos.

Aqui vemos Chaplin arriscando-se de uma maneira bastante notável; após O grande ditador, que assegura um novo bloco temático em sua obra — a disputa agora é entre Homem e Modernidade, e os novos tempos afinal se insurgem nessas manifestações de política e controle das massas —, novamente o artista resolve manifestar seu apreço pela liberdade e pela compreensão entre as pessoas, mas deslocando o eixo de sua crítica: não se trata mais de um fenômeno “isolado” (a Alemanha em guerra, grosso modo), o fascismo que ainda pode ser podado e as técnicas de manipulação de propaganda etc. Agora o embate é mais perigoso, pois menos transparentemente percebido: os problemas são de ordem moral, e o dedo é apontado indistintamente a todos.

Chaplin é hipócrita? Certamente não. Sua decisão de se pôr a prova como um controverso Barba Azul moderno é inclusive uma prova dessa coragem, de dar a cara a tapa e o nome a ofensas. O virtualmente homem mais famoso do mundo (na década de quarenta, possivelmente rivalizado apenas por gente como Walt Disney) despe-se de sua confortável roupagem de vagabundo e tece considerações sobre os caracteres de seus espectadores, de sua sociedade, de seu mundo. Dá a sua contribuição ao debate, e, crime dos crimes, é apedrejado por esse esforço de consciência. Seu filme fracassa com o público, e a crítica acovardada não o ajuda, antes o repreende e censura. Por que a coisa chegou nesse ponto?

Incomoda quando Chaplin materializa o escapismo a que sua audiência se acostumara. Nesse voo por novos ares, faz mal dar um salto sem checar o equipamento de segurança, e Chaplin esbarra no próprio otimismo, minimizando a violência que seu filme provocante fatalmente despertaria. Ainda que não seja um catequizador, a impor com a truculência da acusação uma ordem “dogmática” ou “adequada”, não se pode ignorar que Monsieur Verdoux é um filme de denúncia, de postura hostil frente às incoerências humanas no lidar com os reflexos de sua vida cotidiana, a saber: as leis, os códigos de comportamento, as amarras familiares, as vidas sentimentais, a imprensa e a informação, a cultura, a automatização forçada (que Chaplin tão bem desenha em Tempos modernos), que na época da grande crise de 1929 significavam uma necessária mudança de rumo, de parâmetro. Em Heróis esquecidos, de Raoul Walsh, não é um dos tantos Messieurs Verdoux que, na pele de James Cagney, se volta ao gangsterismo? Pois o ex-banqueiro feito por Chaplin aqui também não é apenas um vilão dos costumes, mas uma vítima da burocratização de uma mentalidade que oferece riscos sem certezas, de estruturas frágeis e imprecisas. Então Verdoux pode ser também visto como um anti-herói, o inconformismo personificado, e tanto faz se na metáfora delirante de Chaplin (influenciado por Welles, influenciado por Landru) o homicídio é um meio torpe de aproximar a rebeldia de seu destino, ácida constatação de uma ordem reacionária que incomoda tanto mais porque é verdadeira — e, pior, retratada de maneira honesta, sem pedantismo didático ou falsa condescendência.

Aí temos que Monsieur Verdoux é um triunfo tanto cinematográfico quanto pessoal de Charles Chaplin, e um filme intenso na medida que revela o real por trás da encenação, porém sem se igualar aos perseguidores de Chaplin/Verdoux; portanto, sem condenar os erros perpetrados por um sistema defeituoso que justamente permite as falhas da imperfeição humana.

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