Olhar de Cinema: Sonhos de Damasco (Emilie Serri)

Por Camila Vieira

A partir de uma viagem de carro encenada com seu pai, Emilie Serri inicia e encerra Sonhos de Damasco. A estrutura circular envolve um percurso a ser feito, com a companhia da figura paternal que pode evocar a ideia de origem. O ponto de partida é a indagação ao pai sobre o que ele se recorda de sua vivência como jovem em Damasco, capital da Síria. Ele é um expatriado no Canadá e mantém o costume de falar árabe, da mesma forma que outros tantos personagens entrevistados ao longo do filme. De início, a imagem idealizada do pai nas filmagens domésticas em que a realizadora aparece criança, ainda em 1986, acabam por ser desmontadas e confrontadas com imagens da Síria em ruínas.

O filme faz uso de diferentes materiais de arquivo: desde vídeos de família a fotografias registradas em preto e branco em diferentes tempos. O procedimento documental recorre a depoimentos tanto de sírios que moram em outros países quanto de seus descendentes  que já assimilaram outras culturas. Um dos entrevistados afirma que todas as suas memórias estão em Montreal, no Canadá, e não mais em Damasco, porque a Síria como ele conhecia está completamente destruída e a guerra acabou por esfacelar as famílias envolvidas. A fala de Mohamad coloca em desequilíbrio toda a tentativa do filme de qualquer busca romantizada pelas origens: “Não há espaços para sonhos. Para nós, tem sido um pesadelo desde que a guerra começou”. 

Alguém apresenta a hipótese de que, no futuro, os países desaparecerão e já não existirão mais fronteiras. Em uma construção que também lança mão do uso da câmera que a realizadora enxerga como única âncora, a materialidade fílmica desmonta qualquer possibilidade de certeza sobre as raízes partilhadas. Sonhos de Damasco costura fragmentos de memórias em uma espécie de corda bamba, na medida em que possui consciência do trauma, mas ao mesmo tempo também deseja esquecer para construir lugares imaginados.

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Olhar de Cinema: Um Céu Tão Nublado (Álvaro F. Pulpeiro)

Por Camila Vieira

Composto por planos noturnos e crepusculares, Um céu tão nublado alterna sequências da paisagem venezuelana, quase sempre em lugares de passagem, como estradas e portos; ambientes onde trabalhadores circulam, em navios cargueiros e porta-aviões ou territórios ocupados por atravessadores de gasolina e câmbio, além de soldados que cercam determinadas regiões do país. A sensação inicial é de terra devastada: uma Venezuela que alimenta o desejo de um plano de integração de nação e, ao mesmo tempo, seus habitantes parecem estar à deriva. 

O azul escuro do céu e do mar no cais contrasta com o fogo expelido das chaminés das fábricas. As travessias de carro pelas rodovias são substituídas pela espera de militares por helicópteros nos navios. As sequências de controle e vigilância na saída das fronteiras são seguidas por outras em que cantores populares pedem carona às margens das estradas. A montagem de Um céu tão nublado procede por acúmulos, oposições, diferenças que complexificam a experiência venezuelana, sem recorrer ao procedimento fácil da explicação didática.

O mesmo acontece com a ambiência sonora do filme, que é marcada por transições em que uma voz over masculina interpela como “filho da pátria” a se sentir órfão. Os noticiários da Rádio Nacional, tratam da reeleição de Nicolás Maduro, a oposição de Juan Guaidó e a interferência diplomática de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, por meio de sanções ao governo venezuelano. O choro insistente de um bebê transportado dentro de um carro é amplificado com o som dos mesmos noticiários ao fundo. Em outra sequência, diversas vozes de atravessadores se superpõem em planos de detalhe com bocas falantes e as mãos cheias de dinheiro. A composição mais impactante do filme apresenta jovens e crianças que enchem barris de gasolina e descarregam dos caminhões. Com vários galões empilhados ao fundo, o rosto de um menino aparece em primeiro plano a olhar para o céu. É a imagem do futuro aprisionada à contundente crise do presente.

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Olhar de Cinema: Conferência (Ivan Tverdovskiy)

Por Camila Vieira

A revivência do trauma em Conferência implica partilhas de silêncios e corpos quase imóveis, filmados em planos estáticos e frontais. A madre Natasha e sua amiga Svetlana são sobreviventes de um atentado que aconteceu em outubro de 2002, no teatro Dubrovka, em Moscou. Enquanto era apresentado um musical, um grupo de chechenos manteve como reféns artistas do espetáculo e pessoas da plateia, com o intuito de mobilizar publicamente o país para exigir a retirada das tropas russas da Chechênia. No filme de Ivan Tverdovskiy, a rememoração de tal evento que marcou a história política da Rússia só é possível por meio da ficção.

Por outro lado, a narrativa ficcional também precisa ser ancorada em lastros do real: a cerimônia de luto organizada por Natasha acontece no próprio ambiente do teatro onde o incidente de fato aconteceu. Entre as cadeiras, são dispostos manequins com três cores que representam quem estava no dia: branco para as vítimas que não sobreviveram ao ataque, preto para os terroristas e azul para os que não compareceram à cerimônia. Em uma longa sequência com personagens que relatam sobre suas lembranças do dia fatídico, o filme desenvolve-se a partir de um trabalho rigoroso de encenação das narrativas por atores e atrizes, que irão interpretar os relatos dos sobreviventes reais ouvidos durante a pesquisa do diretor. Apenas dois jovens – que hoje são atores – foram reféns na época e, na mesma sequência, ambos aparecem e relatam suas próprias experiências. 

O modo como o testemunho se alia ao gesto ficcional ganha outra dimensão dentro do teatro: não só por ser o lugar onde tudo aconteceu, mas sobretudo por se tratar de um espaço cênico. Um microfone passa de mão em mão e alguns planos aproximam-se dos rostos dos personagens. Os relatos são prolongados e incomodam os proprietários atuais do teatro. Natasha insiste que os participantes não abandonem o teatro até encerrar a cerimônia. Ela defende ser importante não ter medo e não esquecer, em memória dos que morreram. “Precisamos encontrar a força dentro de nós para fazer isso. Sentamos e não falamos nada e acontece um desastre atrás do outro. Somos covardes para dizer algo”, afirma Natasha. Mas a personagem alimenta uma contradição dentro de si: apesar de querer falar sobre o que aconteceu, ela não sabe como lidar com sua filha Galya que a culpa por uma decisão drástica que ela precisou tomar para conseguir escapar da morte. Conferência é também um filme de embate entre o que é necessário lembrar e o que se deve esquecer dos traumas históricos.

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Olhar de Cinema: Estilhaços (Natalia Garayalde)

Por Camila Vieira

As imagens iniciais de Estilhaços dão a impressão de que seria intocável a felicidade da família de classe média em que a diretora argentina Natalia Garayalde nasceu e cresceu. Aos 10 anos, ela ganhou de presente uma câmera Sony 8 mm do seu pai e passou a filmar seu cotidiano em Rio Tercero, uma cidadezinha de 40 mil habitantes, na província de Córdoba. Registradas nos anos 1990, as imagens domésticas mostram o frescor da vida em um bairro comum, com uma praça, uma escola, uma delegacia, um rio e uma fábrica. Ali residem as memórias dos passeios com o pai médico e a mãe professora de história, as brincadeiras com o irmão mais novo e a festa de ano novo de 1994. Seria o último ano em que a diretora conseguiria dormir sozinha, segundo suas próprias palavras no filme, e tal frase é seguida por um corte: as imagens de felicidade são interrompidas pelo impacto de uma tragédia.

Um plano sequência é filmado dentro de um carro que se desloca pelas ruas em meio a um bombardeio inesperado: pessoas gritam e correm desesperadas, projéteis explodem e estilhaços caem do céu. Enquanto ouvimos o ruído constante de bombas, uma mulher com um bebê nas mãos é resgatada. Após o caos e a desorientação, vem o contexto: em novembro de 1995, a fábrica de munição militar explodiu com 20 mil projéteis, causando a morte de moradores e a destruição de casas e estabelecimentos. O incidente alterou a rotina da comunidade, inclusive da família Garayalde. Autoridades e o próprio presidente Carlos Menem difundiam a versão oficial de que as explosões foram causadas por um acidente e um operário da fábrica é demitido e investigado. No entanto, descobre-se mais à frente que o evento foi proposital para ocultar o contrabando de armas para a Croácia, na Guerra dos Balcãs. O ataque tinha sido planejado para apagar os rastros da operação.

Diante da força e das consequências do incidente, Estilhaços movimenta-se do familiar para o coletivo, do íntimo para o público. Aquela inocência inicial das imagens felizes de classe média é diluída e o que se mostra como imagem são vestígios das casas destroçadas no dia seguinte à explosão, os projéteis ainda ativos que voltam a explodir, os relatos do pai sobre o receio de ser contaminado com fósforo branco. Mesmo que a menina Natalia se alegre por um instante com as aulas suspensas e com suas simulações como repórter a entrevistar moradores sobre a tragédia, a permanência do trauma na comunidade é o que a leva a parar de filmar. Até mesmo a escola começa a dar aulas sobre os riscos dos produtos químicos.

No último movimento do filme, as imagens de arquivo misturam-se às filmagens recentes feitas por Natalia em retorno a Rio Tercero. O que antes era apenas o medo coletivo de contaminação química materializa-se como doença no corpo da irmã: ela morre de câncer e, mais tarde, o pai da cineasta também será acometido pela mesma enfermidade. Mas a realizadora lembra que “as imagens sobrevivem aos corpos”. Se a vida familiar se estilhaçou diante dos fatos brutos que aconteceram, o desfecho busca restituir uma intimidade que sobreviveu como fragmento.

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Olhar de Cinema: Garotas/Museu (Shelly Silver)

Por Camila Vieira

Garotas/Museu, de Shelly Silver, lança mão de um dispositivo para compor o filme: meninas de diferentes idades compartilham suas impressões sobre as obras que elas observam em visita ao Museu de Belas Artes de Leipzig. Os planos são frontais: tanto para as obras quanto para as meninas entrevistadas. A “percepção da arte” que o filme deseja alcançar não passa pelo olhar de mulheres adultas, mas de garotas ainda em processo de amadurecimento e construção de visões de mundo. De imediato, a proposta produz um gesto de inversão: as garotas são convocadas a falar sobre seus olhares para a arte, universo que historicamente sempre colocou mulheres na condição de objetos a serem vistos e contemplados. Dentro de um espaço institucionalizado como o museu, é uma forma de repensar padrões legitimados de compreensão da história da arte.

Na relação de uma obra como “Adão e Eva” (1533), de Lucas Cranach, as entrevistadas questionam o desenho repuxado dos olhos de Eva como característica de uma mulher ardilosa e malévola. “A ninfa da fonte” (1518), do mesmo autor, traz o corpo nu de uma figura mitológica, que é vista pelas garotas como uma mulher sozinha, que pode ter sofrido algo de ruim. Ao olharem para o quadro “Dançarina” (1926), de Paul Kleinschmidt, elas observam que o corpo da mulher aparece objetificado, com quadril e bunda em primeiro plano. No geral, as meninas indagam por qual motivo mulheres jovens são retratadas com o corpo exposto e as mais velhas encobertas. Uma garota do Afeganistão levanta a hipótese sobre como seriam os quadros se as figuras retratadas não tivessem gênero definido.

Da mesma forma que o espaço do museu expõe um amontoado organizado de obras, o filme também vai acumulando não só o que as meninas falam sobre os trabalhos artísticos com suas perspectivas bastante heterogêneas, mas também em que medida elas conseguem se enxergar no lugar das figuras retratadas ou mesmo identificar se um quadro foi criado por um homem ou uma mulher. Não há dúvida de que o debate de gênero está implicado em Garotas/Museu, mas de algum modo o uso de um dispositivo enrijecido parece se esgotar no percurso e o que o filme consegue alcançar ainda limita-se ao repetitivo e superficial – menos pelo que as meninas falam e mais pelo que o filme cria como articulação discursiva. 

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Olhar de Cinema: Zinder (Aïcha Macky)

Por Camila Vieira

Dois homens passeiam pela cidade em uma moto que ostentam uma bandeira branca com suástica. Eles fazem parte da gangue de Hitler, compreendido como “guerreiro invencível” e modelo a ser espelhado em um dos chamados “palais” que dominam o distrito de Kara Kara, em Zinder, no Níger. A imagem escancara contradições em um território marginalizado: leprosos, cegos e pessoas em situação de rua convivem com integrantes dos palais. A precariedade de uma região sem oportunidades para seus moradores alia-se à violência de quem ali pretende sobreviver. Em “Zinder”, de Aïcha Macky, há o cuidado de não explicitar ou tornar redundante os atos de violência em si, mas entender como seus vestígios atravessam os corpos e os discursos de quem faz parte dos “palais”.

Três personagens principais são acompanhados pelo filme: Sinyia Boy, que é líder da gangue de Hitler; Idrissa Salam (Bawo), que é ex-chefe de um palais e atualmente trabalha como mototaxista; e Ramsess, contrabandista de gasolina na fronteira do distrito. A abordagem de Aïcha Macky, que nasceu em Níger, é olhar tanto para o que foi possível ser mostrado do cotidiano dos personagens quanto para o que eles querem falar diante da câmera. É possível pensar que houve diversas formas de negociação para as filmagens, na medida em que a presença da câmera por si só também é uma manifestação de poder.

Em determinado momento do filme, a diretora indaga Sinyia Boy sobre o motivo pelo qual o mesmo faz parte do “palais”. Só podemos escutar a voz de Aïcha que permanece no fora de campo. Ela afirma – não só para ele como para nós espectadores – que ela e Sinyia não tiveram as mesmas oportunidades. Aïcha vem de outra região do Níger e teve acesso aos palais por meio do projeto Search for Common Ground, em que trabalhou como voluntária na instrução de jovens para se opor ao extremismo violento. Sinyia dá uma breve resposta à Aïcha: “educação”. Em outra sequência quase ao final do filme, outro personagem fala: “O desemprego leva à violência e à ladroagem”.

Da gangue de Sinyia Boy, várias cenas apresentam os corpos musculosos dos integrantes, os treinos pesados que eles fazem e as poses para registros fotográficos a serem compartilhados com amigos e famílias. Na conversa com Bawo, a atenção volta-se para as cicatrizes que marcam os corpos e relatos sobre os instrumentos usados nas batalhas entre gangues rivais, desde socos ingleses a pedaços de pau. Com Ramsess, que se afirma meio-homem e meio-mulher, indaga-se sobre as performatividades de gênero na vivência cotidiana dos palais, os assassinatos permanentes de mulheres livres e a prostituição de crianças e adolescentes. Com os três personagens, o que se coloca em primeiro plano é o corpo e suas formas de sobreviver ao entorno. 

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Editorial: Ouvir um Filme

Por Camila Vieira

“Imagens e sons como pessoas que se encontram em uma jornada e não podem mais se separar.”

Robert Bresson – Notas sobre o cinematógrafo

No cinema, a escuta é tão importante quanto o olhar. A percepção dos sons de um filme acontece com a percepção das imagens. Em um filme, imagens e sons constroem dinâmicas e fluxos. Ao analisar filmes por meio de textos, raramente abordamos algo a partir das nossas percepções sobre o som e, no entanto, imagem e som fazem parte da integralidade fílmica. Como críticos de cinema, somos bastante oculocêntricos e deixamos de lado considerações pertinentes ao som dos filmes. Colocamos a visualidade em primeiro plano de análise e esquecemos a sonoridade. 

Ao final do longa-metragem português “Aquele querido mês de agosto” (2008), o realizador Miguel Gomes questiona o diretor de som Vasco Pimentel sobre sons fantasmas que foram registrados em alguns planos e que não deveriam existir no filme. “Como é possível haver sons que não estão lá?”, pergunta Miguel Gomes. Vasco responde que tecnicamente isso é impossível, porque ele registra os sons que quer. “Eu sou diferente de você”. O embate entre os dois alude à forma como a materialidade sonora de um filme envolve a escolha entre sons desejáveis e descartáveis.

Em determinados filmes, as dinâmicas da escuta tornam-se elementos constitutivos da narrativa, como é o caso da franquia Um lugar silencioso, que Felipe Leal analisa em um dos textos desta edição da Multiplot. Os sons podem acentuar ou reforçar o que é visto nas imagens, mas efeitos sonoros e temas musicais também podem criar tempos e espaços imaginados apesar da tela, como argumenta Chico Torres em texto sobre Blue (1993), de Derek Jarman. 

Nem sempre o acoplamento do som à imagem resulta em uma codificação unívoca de sentidos dentro da estrutura narrativa. A fala como elemento sonoro não se sustenta apenas por meio do diálogo, mas sobretudo a partir de seus instantes silenciosos. No ensaio “Por um cinema falado” – traduzido nesta edição pelo Bernardo Moraes Chacur -, Éric Rohmer afirma ser “necessário que a palavra desempenhe um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual”.

É possível também pensar o som fora da ideia de correspondência à imagem ou de vínculo com a representação por uma forma propositiva de disjunção entre olhar e escuta. A partir dos anos 50, Stan Brakhage recusa o uso do som em seus filmes experimentais, por afirmar que as imagens em si mesmas já continham sonoridades. A sugestão sonora estaria na cadência, no ritmo, na pulsação das imagens. Pensar as frequências sonoras de um filme teria a ver com pensar a montagem das próprias imagens. 

Em suas múltiplas possibilidades, o som no cinema pode estabelecer vínculos diretos com as imagens ou pode transbordar os limites da visualidade. A nova edição da Multiplot propõe aguçar nossos sentidos para as escolhas das sonoridades dos filmes que escolhemos falar. 

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Notas breves sobre alguns filmes – Parte 1

Por Camila Vieira

Mate-o e Saia desta Cidade

Mate-o e Saia desta Cidade (Zabij To I Wyjedz Z Tego Miasta, 2019)

O diretor polonês Mariusz Wilczyński posiciona o imaginário caótico e sombrio de seu protagonista, um homem que teve muitas perdas e agora tenta recuperar na memória as imagens de quem morreu. Os traços dos desenhos são sujos no papel. As figuras humanas transformam-se em formas de animais. Cenas surreais são pontuadas com tinta vermelha como se fosse sangue jorrando. A animação cria um ensaio sombrio sobre o medo do envelhecimento e da morte.

Welcome to Chechnya

Welcome to Chechnya (2020)

A produção estadunidense da HBO carrega todos os vícios da maioria dos documentários protocolares feitos para a televisão. Os depoimentos são filmados como talking heads. Alguns personagens servem de guia para legitimar as informações. O recorte temático é investido de tom de denúncia jornalística. As imagens de arquivos são jogadas para reiterar a violência e chocar o espectador. Se por um lado, o que há de mais envolvente no documentário de David France é a forma como acompanha os personagens em fuga, outras estratégias enfraquecem o gesto de denunciar os abusos e as ameaças sofridas por LGBTQIA+ na Chechênia.

Kubrick por Kubrick

Kubrick por Kubrick (Kubrick by Kubrick, 2020)

Com uma estrutura protocolar em que a grande novidade parece ser a entrevista que Stanley Kubrick concedeu ao crítico Michel Ciment, o documentário de Gregory Monro não apresenta nada de diferente do que já se sabe sobre o cineasta estadunidense. Lá estão informações sobre o perfeccionismo de Kubrick, seu desgaste com os atores que repetiam inúmeros takes, sua forma inventiva de filmar, os trechos de seus principais filmes. Não escapa do tom celebratório da maioria dos documentários que revisitam a vida e a obra de grandes cineastas.

Limiar

Limiar (Threshold, 2010)

Da dupla de diretores e roteiristas Rouzbeh Akhbari e Felix Kalmenson, Limiar é um filme de paisagens e derivas. A narrativa em torno de um cineasta que busca locações para seu novo filme é um pretexto para visitar galpões abandonados, monumentos em ruínas, territórios desérticos. Os planos sequências exploram a espacialidade pelo movimento suave dos travellings. Em meio à neve e à paisagem acinzentada, ele pega carona com moradores locais e encontra celebrações nas comunidades.

Mosquito

Mosquito (2020)

O grande problema de Mosquito (2020), do moçambicano-português João Nuno Pinto, é tomar uma história pessoal – inspirada na vida do avô do diretor – como instrumento para a construção de uma grande narrativa sobre a decepção com o sonho em defender uma nação e menos como questionamento sobre as consequências do colonialismo português. O delírio do personagem em planos desfocados e distorcidos é só uma engenharia para reforçar estereótipos de imagens dos nativos de Moçambique. Não ter nem mesmo legendas para as falas do outro representado já é sinal bem contundente de como a cena se coloca pela perpetuação do olhar colonizador. E mesmo que a trajetória do personagem principal seja cheia de obstáculos, a raiva final tá longe de provocar qualquer desestabilização.

Vistos durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Panquiaco

Por Camila Vieira

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Ao escolher retratar o drama de um personagem de ancestralidade indígena que migrou para Portugal, a diretora panamenha Ana Elena Tejera precisou driblar o realismo de seu documentário Panquiaco (2020) com o mistério encantatório das narrativas míticas pré-coloniais da aldeia Guna Yala, na costa leste do Panamá. Em território português há muitos anos, Cebaldo trabalha em um mercado de peixes, mas suas noites parecem solitárias em um bar onde toca um jukebox.

Um homem misterioso se senta ao lado de Cebaldo no bar e conta uma história que começa com um “era uma vez…” Fala de um marinheiro que naufragou em uma ilha deserta e, para sobreviver, começou a criar paisagens, ruas, pessoas, que lembravam o lugar onde nasceu. Aquele novo espaço imaginário tornou-se uma imagem de sua terra de infância e essa pequena história alude à sensação de deslocamento do protagonista, que sonha em voltar para sua aldeia.

O filme intercala o cotidiano de trabalho de Cebaldo com cenas de indígenas em tarefas laborais artesanais. A proporção de tela maior dos planos do cais do porto, da pesca em alto-mar, do movimento de lançar as redes alterna-se aos enquadramentos em 4:3 de mulheres e crianças indígenas no dia a dia da aldeia. O paralelismo ao longo de Panquiaco embaralha as memórias de Cebaldo, que precisa retornar ao seu lugar de origem para lidar com o aniversário da morte do pai.

Durante o retorno de Cebaldo ao território de origem, o filme também narra a história mítica de Panquiaco, um indígena cujo espírito vaga entre dois mares. É como se Cebaldo também estivesse a vagar entre dois mundos: seu árduo cotidiano de sobrevivência na Europa e seu legado espiritual na América Latina. “Sinto que tudo o que me pertencia desapareceu”, diz o personagem. A casa de infância está com as paredes desgastadas pela ação do mar. As frestas das portas e das janelas deixam entrar pequenas incidências de luz que iluminam os interiores escuros. No filme de Ana Elena Tejera, o regresso pode ser um caminho doloroso, mas também é uma forma de cura.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Miss Marx

Por Camila Vieira

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Como a maioria das cinebiografias inspiradas na vida e na obra de personalidades históricas, Miss Marx não deixa de seguir algumas características: as cartelas situam os anos de cada acontecimento; a narrativa é linear e procura abarcar eventos importantes; a caracterização de figurinos e cenários aproximam-se do contexto da época. Dentro dessa estrutura mais tradicional do subgênero, a diretora e roteirista Susanna Nicchiarelli também insere uma roupagem pop e contemporânea ao filme: os letreiros floridos, as músicas de rock do grupo Downtown Boys e a insistência em levar a personagem a quebrar a quarta parede e falar diretamente para a câmera.

Há quem imediatamente possa associar o que Miss Marx elabora com o mesmo gesto de encenação proposto por Sofia Coppola com Maria Antonieta (2006). Mas a direção de Nicchiarelli é bem mais sisuda, menos fluida e mais propensa à seriedade ao retratar um período da vida de Eleonor, a filha mais nova de Karl Marx. É curioso como a fluidez sensorial que caracteriza boa parte do trabalho de direção de fotografia de Crystel Fournier (principalmente em parceria com Céline Sciamma, em Lírios d’Água, Tomboy e Garotas) parece se apagar em meio à composição de planos frontais em que a centralidade da personagem no quadro é colocada como primeira opção na maioria das sequências.

Ao abordar uma personagem que se colocou à frente das lutas trabalhistas, dos direitos das mulheres e na defesa do pensamento do próprio pai, o filme não se permite ser disruptivo à altura da força da própria personagem que retrata. O máximo que consegue escapar de sua própria estrutura convencional é criar uma sequência em que a personagem dança um rock, com seus longos cabelos soltos e roupas soltas esvoaçantes. No restante da trama, tudo parece convergir em um grande retrato de resignação e passividade da personagem, com uma ou outra mudança aqui e ali que não altera em nada a ordem dos fatores.

Em boa parte das cenas, o que se vê é uma personagem conformada às situações que surgem: ela prefere preservar a boa imagem deixada pelo pai; mal consegue verbalizar o que incomoda na relação a dois com Aveling; e até mesmo mantém uma jovem como criada, sem questionar sua ação em casa como contraditória em relação ao seu discurso público contra a precarização do trabalho de mulheres. Quando finalmente tenta explicitar algum incômodo maior da personagem – sobretudo em relação à sua posição como mulher –, Miss Marx ora engana com a encenação de um trecho de Casa de Bonecas, de Ibsen, ora transforma o apelo em um solilóquio que pode até funcionar como discurso, mas que se dilui fácil em posição aos atos da personagem.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Apenas Mortais

Por Camila Vieira

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Os momentos mais extraordinários de Apenas Mortais (Being Mortal, 2020) elaboram uma permanente indistinção entre a visualidade do presente e as memórias que os lugares evocam para seus personagens. Para dimensionar as alterações da relação da protagonista com o pai que, aos poucos, vai se definhando por causa do Alzheimer, a direção do chinês Liu Ze embaralha diferentes temporalidades que acontecem simultaneamente em um só espaço.

Com tal estratégia de encenação que permite criar presenças e ausências, o filme não se limita a ser apenas um melodrama familiar. Existe também o interesse em preencher os lugares afetivos com imagens do passado. O cruzamento de tempos distintos extrapola a relação com um presente em que as coisas, as pessoas e as relações estão ameaçadas de desaparecer.

Se o olhar do pai de Xia Tian é conduzido à renovação constante daquilo que é visível, algo parece desaparecer nessa relação que foi construída entre os dois durante tanto tempo de convivência. Outras situações de perda são vivenciadas pela protagonista: ela abandona seu emprego estável e rompe com seu amante para voltar à cidade onde os pais moram e ajudar a mãe nos cuidados com o pai. Os lapsos recorrentes de memória distanciam cada vez mais o pai da filha.

Em determinada cena, o pai é levado a sair de casa em direção à aldeia de sua infância, após ser atraído pela presença de um menino que brincava com uma bola no corredor (seria esta presença um vislumbre dele mesmo como criança?). Aquele mesmo garotinho reaparece já na aldeia procurada pelo pai, mas é a filha que é levada a olhar. O filme produz exercícios de encantamento com as pequenas lembranças que se misturam à narrativa, que nunca recorre ao didatismo dos flashbacks para pontuar sobre o passado dos personagens.

É claro que há sempre o peso de lidar diretamente com as consequências da doença. Com o avanço do Alzheimer no patriarca, o cotidiano vai se tornando cada vez mais árduo para todos: a mãe fica esgotada com as tarefas diárias, a irmã insiste em levar o pai para uma casa de repouso e Xia Tian vai aos poucos deixando em segundo plano tanto seu novo trabalho quanto seu novo namorado. No entanto, é justamente a aproximação da morte do pai que desencadeia uma abertura ao mistério pelo acionamento dos vestígios da memória.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mamãe, Mamãe, Mamãe

Por Camila Vieira

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Apesar de ser um filme que toma a morte como ponto de partida para o desenvolvimento de sua própria dramaturgia, não há qualquer desconforto nas imagens de Mamãe, Mamãe, Mamãe (Mamá, Mamá, Mamá, 2020), da argentina Sol Berruezo Pichon-Rivière. Os planos são todos muito bem controlados. O uso da paleta de cores fica restrito à instrumentalidade tautológica: são frias quando remetem à melancolia da perda e são quentes quando mostram o passado feliz das irmãs. Nem mesmo o fora de campo produz algum mistério, já que ele só é usado como mera ilustração da ausência que já acontece desde o início da narrativa.

A encenação da perda parece ser um subterfúgio para abordar uma história que só é possível ser narrada com mulheres: a mãe solo e sua filha Cleo; a tia e as três primas; a vizinha; a cuidadora da avó e sua filha. Mas as representações das mulheres aqui são reduzidas às imagens mais genéricas e cristalizadas de uma idealização do feminino: as crianças estão sempre calmas, dóceis e bem educadas; a mãe chorosa e reclusa no quarto; a fantasmagoria da irmã se manifesta como presença angelical; a tia é a protetora sempre preocupada com o bem-estar da sobrinha e de suas filhas. Tem até uma coelha fofinha entre as meninas que vai gerar filhotes – qualquer metonímia simplória da relação mãe e filha é bem-vinda nesse filme.

Não é de se estranhar que todas as mulheres – crianças, adultas e idosas – estão aqui restritas ao espaço da casa e, mesmo quando há um breve momento de fuga, elas sempre retornam ao lar. Nada vai perturbar esse espaço apaziguado, nem mesmo a necessidade de inserir na trama a menina Aylin, que vem do Paraguai, pelo simples exotismo de que ela está ali apenas para narrar histórias de sequestros e desaparecimentos. A jornada das crianças pelo desconhecido em um caminho fora do espaço doméstico nem chega a ser ameaçadora – um contrassenso com a própria ideia de morte que o filme quer aludir. Desta maneira, Mamãe, Mamãe, Mamãe limita-se a ser um filme fofinho, palatável, que não desconcerta, nem foge das expectativas do conforto da audiência.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Al Shafaq – Quando o Céu Se Divide

 Por Camila Vieira

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Um pai à procura do filho é o leitmotiv de Al-Shafaq – Quando o Céu se Divide (Al-Shafaq – When Heaven Divides, 2019), da diretora e roteirista turca Esen Isik. Morando na Suíça há anos, o turco Abdullah mantém em casa os costumes de sua cultura de origem, ao mesmo tempo em que se adapta à rotina em território ocidental. Sua esposa e filhos seguem os mesmos preceitos, com exceção de Burak, o caçula, que é o grande pivô de insatisfação do patriarca da família.

Talvez o grande problema do filme seja a construção unidimensional do personagem de Burak. Se de início, o jovem não demonstra interesse em rezar o Alcorão, quer se divertir com colegas ocidentais da mesma idade e não suporta a violência centralizadora do pai, a suposta mudança forçada dele deverá ser como o fundamentalista recrutado a serviço da Guerra Santa na Síria. De uma forma ou de outra, a aparente transformação de Burak não altera absolutamente nada dentro de sua função familiar: ele parece ser apenas uma peça jogada no roteiro para motivar a decepção do pai.

A história de Abdullah em busca de seu filho – que inevitavelmente é encontrado morto – é colocada em paralelo ao drama do menino sírio Malik, que também perdeu o irmão em um campo de refugiados na Síria. Apesar de ser breve, a trama de Malik é desenvolvida de forma mais complexa: sua família é obrigada a migrar de sua residência, mas não consegue escapar da ameaça de soldados bandeiras negras do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS). Ele consegue sobreviver junto com o irmão, que logo depois também morre em outro ataque.

A narrativa aproxima Abdullah e Malik não só pelo vínculo que existe entre eles e parentes mortos. Enquanto a trama intercala o presente com acontecimentos do passado dos dois personagens, sabe-se que Burak foi recrutado para as ações do ISIS que afetaram diretamente a vida da família de Malik. A amarração esquemática de roteiro que conecta a história dos dois personagens apenas serve a uma agenda humanista forçada que não contribui e nem traz olhares diferenciados para os conflitos no Oriente Médio.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: 17 Quadras

Por Camila Vieira

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Há algo nas imagens de 17 Quadras (17 Blocks, 2019) que altera a relação de poder de quem filma em relação a quem está sendo filmado. Em um primeiro momento, o documentarista estadunidense Davy Rothbart se sentiu interessado em registrar com sua câmera o cotidiano da família dos irmãos ainda pequenos Emmanuel e Smurf que ele conheceu a partir de um jogo de basquete, em 1999. Com o pacto de aproximação estabelecido, todos os integrantes da família passam também a filmar a si mesmos, construindo e materializando suas próprias encenações. Não se trata mais apenas do olhar de alguém de fora, mas de quem vive intensamente aquela realidade por dentro daquela casa em Washington a 17 quadras do Capitólio.

Registradas ao longo de 20 anos, boa parte das imagens do documentário se colocam sob o risco do real, tal como pensa Jean-Louis Comolli, em que a auto mise-en-scène permite implodir qualquer gesto programado de representação de si. Há algo de espontâneo no modo como a câmera se movimenta, na forma como cada um fala e interage com os outros em cena, que deixa escorrer uma dinâmica de desejo muito particular de quem está sendo filmado por conta própria. Por mais que as escolhas da montadora Jennifer Tiexiera sejam marcadores externos que optam pela contiguidade narrativa das temporalidades distintas dos acontecimentos, ainda assim as imagens por si só produzem fissuras a romper com uma ordenação cristalizada da cena, já que a própria alteridade também se impõe como co-criadora.

Por acompanhar um longo período de tempo, os vínculos afetivos entre a mãe solo Cheryl e seus três filhos, Emmanuel, Denice e Smurf, são dimensionados em suas complexidades. O bairro é cercado por violência, que não é explicitada, mas situada em extracampo: ouvimos o barulho das sirenes dos carros de polícia; Smurf é traficante de drogas, mas não vemos ele negociar diretamente; e mesmo o evento mais trágico só é possível de ser reconstituído pelas memórias dos outros. “Você tem que usar seus punhos como armas”, diz Emmanuel, em um trecho em que relata quantas vezes seu irmão levou tiros nas ruas.

Se o ponto frágil de 17 Quadras é o uso persistente dos acordes indies melancólicos da trilha musical de Nick Urata com supervisão de Dan Wilcox, a força do filme pode ser resgatada com as próprias falas dos personagens, em especial Cheryl, que diz ser necessário se curar e ter esperança. O documentário poderia ser mais um de tantos que são seduzidos pela espetacularização midiática de famílias com vidas precarizadas, mas ele está mais interessado em respeitar essas pessoas e acompanhar como elas sobrevivem apesar da violência.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Lua Vermelha

Por Camila Vieira

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Com olhares cabisbaixos, corpos estáticos ocupam paisagens em um vilarejo na costa da Galícia, na Espanha. Um homem encontra-se sentado em uma pedra na beira do mar. Um casal permanece na margem da estrada. Outro homem está em pé próximo à parede de uma barragem. Uma senhora idosa continua levantada na sala de estar da sua casa. O ambiente sombrio do lar é invadido pelo ruído de passos de alguém que já não está mais ali. Quem desapareceu foi Rubio, um marinheiro que se aventurou pelo mar em um barco naufragado como tantos outros da comunidade.

Para dimensionar a ausência de um morador importante para a vila, Lua Vermelha (Lúa Vermella, 2020), do espanhol Lois Patiño, constrói uma atmosfera em que o tempo parece ficar em suspensão. Os personagens não se movem, mas falam por meio de voz over. O que eles contam são histórias fantásticas que envolvem a viagem de Rubio, o possível encontro com um monstro, o aparecimento misterioso de uma rocha em formato de uma onda na praia, a presença da lua vermelha. As sequências se alternam a cartelas com trechos dessa narrativa. Enquanto os peixes boiam mortos na beira do mar, cavalos e até mesmo uma cabra são os poucos animais a se movimentarem pelos espaços.

Quando aconteceu o desaparecimento de Rubio? Há mil anos? Não se sabe ao certo há quanto tempo os moradores estão assim. “Nós somos o sonho de alguém. O sonho de um mar adormecido”, diz um deles. As poucas mulheres que aparecem são a mãe de Rubio e as três bruxas convocadas por ela para trazer o marinheiro de volta. Elas são as únicas mulheres com o poder de caminhar pelos ambientes, cobrir os corpos com lençóis – algo que permite uma visibilidade iconográfica dos moradores como fantasmas da vila – e vasculhar os vestígios deixados nos barcos naufragados.

A dilatação da duração dos planos, a localização dos corpos como figuras diminutas na paisagem, a cor rubra intensa a invadir as imagens, o som de mar e de vento ruidoso, os lentos travellings a revelar a monumentalidade dos espaços vão compondo a atmosfera de Lua Vermelha. Os habitantes da vila figuram existências sideradas pela mitologia da vila, em que as imagens e os sons são orquestrados em uma espécie de ritual próprio.

Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020

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