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CineBH: Sol Alegria (Tavinho Teixeira, 2018)

solalegria

Neorrevolução, ou a fadiga dos princípios

Por Felipe Leal

No princípio – estamos falando desta obra de particular e polissêmico nome “Sol Alegria” (2018) – dois estouros: 1) uma glória e 2) um tempo já suficientemente alardeado para não se representar com inerente sobrecapa um tanto engessada, sintomática, cansada. O presente de hashtags e neofascismos enquanto distopia atual – o futuro acinzentado já se enraizou aqui e está à espreita, como bem reitera sua cultura de palavriados resumidos e revoluções tornadas signos ao ar. Como bom esteta, Tavinho pinta-o bem. Chegamos, então, à glória: um travelling de prostitutas e travestis em despedida num porto no mínimo fassbinderiano. À luz escarlate desse tempo devasso e de ruínas implícitas, parecem santas em desfile imperial. Vão à Dubai e se despedem numa comicidade quase realista, o mundo do trabalho e o da sexualidade colidindo aos olhos de cobiça e travessura dos marinheiros internacionais de outrora-agora. Não há menores e maiores, todos são pulsantes pelos gestos que encarnam e torcem. Um inglês afetado, falado e interpretado ao ouvido risonho, atiça o pictórico de delírio já quase literalmente atmosférico. Há algo de Ray, de Fuller, dirão alguns.

Dito simplesmente: (só que) o sonho cai. Ou melhor: sobe em exageros ao olimpo dourado da utopia dentro da distopia. Como num slogan que não precisa mais se entrelaçar ao artifício, porque o enunciado agora é o próprio artefato replicado, tudo acaba por não só parecer, mas desejar o repetitivo do “hino” que já encapsula qualquer política ou ideal ou estética, dito de forma cada vez mais histérica. Há, claro, antes do Eldorado, uma fuga, neste caso da caretice, como não vem a surpreender também por escolha da repetição em dela se distanciar a todo custo. Todos riem abertamente o tempo inteiro, como se para espantá-la. Ainda no decurso de seu início, num frenesi de louras, luvas, maletas e tapa-olhos, até mesmo os planos, sobretudo eles, vibram nesse traço verdadeiro de uma liberdade que é não precisar anunciar sua própria expansão. Mas o motivo da queda repentinamente se revela, e numa outra queda semi-simbólica que é o último instante de vida não autoafirmada aos berros. A família à la Bonnie & Clyde, tendo os cadáveres de um pastor e piloto às costas, salta de paraquedas ao Sol Alegria das freiras e do solo fértil de maconha, pistolas e espingardas. Pode-se logo pensar que a questão que se impõe é uma de caricatura, mas, a bem da verdade, pouco importaria se esses ícones religiosos traficassem cinco outras drogas, órgãos, fadas ou literaturas proibidas. Permanece que a podridão do solo seja uma de não amadurecimento.

Outros pensarão que os ombros do próprio cinema também já pesam com seu histórico de tais signos cristãos pervertidos e desmontados em exímias “máquinas de guerra” (o termo é o brado final de Sol Alegria, não por acaso aplicado aos corpos), e poderíamos culpá-los em revirar os olhos? Não deveria importar, digamos, a facilidade trêmula de alguns e o escandaloso sísmico de outros? Pasolini, Ferrara, Powell & Pressburger, Norifumi Suzuki, Russell, Fellini, muitos de fato já fizeram o signo falar, e do vulgar esgarçado ao febril possessivo. E, no entanto, aqui, parece às freiras que lhe exigiram que atuassem como adolescentes recém-descobertos num universo de sensações cannábicas.

Distante sequer de qualquer binarismo “aquém/além” que possa colocar-lhe em perspectiva, se comparado ao efeito da materialidade de qualquer espécime de nosso cinema boca de lixo, Tavinho e Mariah, para criar um filme que se assume enquanto criador de alegria diante de tamanho momento de seriedade e conservadorismo circundantes, acabam como o estalo eventualmente irritante de um disco emperrado: a não ser que a esquizofrenia impotente, multiforme e colorida sirva de epifania estética, as cenas se seguem numa rota sem liga (é possível, hoje, afirmar assim tão facilmente que a liberdade do conteúdo extravasando para a forma, se mais arroubada por enunciados e justificada pela altura do grito do que propriamente tensionada, é suficiente para sustentar a teoria do filme louco de amor?). Pode-se até supor, com leveza, que todas as cenas foram criadas ali, no instante de uma euforia induzida de festividade e de riso diante de figuras estas também já cansadas. Por trás de toda comicidade deve haver algo de brutalmente sério na intenção, ou nem o circo mais encantado se sustenta.

Girando em torno de si mesmo em sucessivas reencenações de um espetáculo de quatro membros livres e pregadores da revolução pelo cu, pelo… pelo… livre?, pela arte, mesmo que poucos minutos antes tenha ele mesmo contrariado um demônio chamado art pour l’art, porque aparentemente ainda não conseguiu superar 1) uma ideia de sexualidade enquanto grande vernáculo, campo minado e resposta para todas as transformações mundiais, e 2) esse pestilento discurso que hoje podemos afirmar que sempre retornará, ele que diz que, uma vez permitidos todos os corpos para trepar e “ser o que quiserem” (são), e com quem bem entenderem, os sujeitos então se tornarão automaticamente libertos e felizes diante de si mesmos e para outros – porque ainda não superou toda uma sintomática infantilóide, ainda que pertinente na origem de seus apelos, Sol Alegria não consegue fazer outra coisa que não poetizar eternamente o sexo e o ar respirável, a juventude enquanto lugar de retorno e única e obrigatória potência criativa. O grande louro adornando a cabeça de seus jovens, os filhos, é a insistente oralidade sexual em belos contornos de vermelho e verde, como se ainda tentando resgatar o neon eternizante que reifica o apolíneo nos corpos – mas, mais uma vez, só belo, estéril –, de um lado, e do outro, uma porção de frases e vestuários que, tão logo se mostram expressivos e verborrágicos, não há como dizê-lo de outro modo, se exaurem, porque só resguardam a espetacularização da troca perpétua.

Está talvez tudo posto às clarezas: o filme é um eterno apregoar do camarim, do não-pronto, do carnavalesco, e ao eletrizar o passar de seu tempo entre a própria multidireção desnorteante que lhe é ontogênica e o vocabulário que, mal vomitado da boca, só consegue fazer cócegas nas rochas contra as quais batalha, assim se encerra: uma brincadeira entusiasmada e rica de termos para formulação, mas frágil em montar novos significados. Riem, riem, riem, beijam até que o corpo reaja seco. E o rear projection é esse símbolo derradeiro de um espelho incongruente. Reflete em transições e jogos cheios de artifícios dinâmicos, mas o que a face mostra são os rostos mastigados, remastigados, cuspidos e reaproveitados do bon vivant que não cria para ninguém além de si mesmo.

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Festival de Brasília: O Pequeno Mal (Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune, 2018)

temporada-andré-novais-oliveiraDois Godard

Por Pedro Tavares

Uma conversa telepática entre o Godard pré e o de pós maio de 68. O Pequeno Mal é um filme-diagnóstico que está sempre no limiar da intimidade e do manifesto. Com isto, fica a inevitável associação por signos que legitimam o caos que vivemos. A escolha dos diretores Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune é de transformar o filme numa reação automática ao que se vê e vive. O caos urbano, a sufocante rotina e o desespero para se amar e ser amado.

A construção mística de um sentido é a catapulta para o confronto com o real – é possível remeter a Rivette e Hal Hartley no ideal cosmológico, mas o modo de viver a vida é godardiana. Um filme que está sempre para o corte como amparo desses signos da desordem: a impossibilidade de estabilização – em diversos sentidos – que ganha forma de trauma. Não há um só caminho que não leve a ele. Pertinente à direção pessimista que nunca se descontrola, O Pequeno Mal apenas ensaia uma variedade de abordagens com o apoio da linguagem – o corte – como uma sugestão anárquica ao que se conta. É o confronto da situação pronta versus os personagens à deriva, andando em círculos que reconhecemos como rotina.

É o fim da utopia da forma mais curiosa possível – a bricolagem que sufoca a radicalidade como reflexo de um mundo de desarmonias. Este pedido de atenção e submissão à imagem ao mesmo tempo em que se testemunha sua consumação reverbera um sentido comum no cinema brasileiro contemporâneo, entrelaçando a distância e a capacidade de síntese de argumentos puramente sociais. Diminuir ou acabar com o abismo que separa a existência e a ideologia e coloca-los na mesma linha pela ilusão; não há espaço para as duas em cena, portanto a solução de Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune é a fusão, como uma ponte que soluciona – supostamente – problemas locomotivos em uma cidade.

Em primeira visita, O Pequeno Mal é um filme que apenas sugere seu sentido pelo reordenamento e reencenação – a troca de lugar, gostar do que não se gosta, etc. É o caso de concretizar o que é flutuante pelo simbólico e manusear a certeza, um claro princípio do cinema, como uma constante. A famosa cachoeira de Humberto Mauro aqui chega intervalada, como uma possibilidade cognitiva sobre a vida na cidade. E não deixa de ser uma operação relevante.

 

Visto no 51º Festival de Brasília.

 

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SEJA PADRINHO

Criada em 2008 no formato de blog, a Multiplot! tinha a intenção de preencher lacunas no acervo crítico online em língua portuguesa. De 2008 a 2011, diversos dossiês de diretores foram publicados, cobrindo a filmografia completa de nomes como Werner Herzog, Anthony Mann, Max Ophüls, entre outros. Elevado a site em 2011, a equipe de críticos passou por mudanças e o site ganhou novo foco: coberturas de festivais, críticas de filmes em cartaz e de acervos e entrevistas com realizadores e assim seguiu por cinco anos e teve contribuição de redatores como Tiago Macedo Corrêa, Vladimir Lazo, Kênia Freitas, Fernando Mendonça, entre outros.  Em 2016 o desejo dos redatores Pedro Tavares e Arthur Tuoto saiu do papel com ajuda do ex-editor Daniel Dalpizzolo. De lá pra cá a Multiplot se tornou uma revista e lançou cinco números. Hoje a revista é editada por Camila Vieira e Pedro Tavares e teve contribuições de nomes como Nadin Mai, Scott Barley, Adrian Martin, entre outros.

Para manter a revista online, precisamos de padrinhos. Além dos números, a Multiplot! publica coberturas de festivais e entrevistas. Os custos de servidores, divulgação e gastos adicionais de logística são altos e nenhum editor ou redator recebe para tal função. Contamos com a ajuda dos leitores para manter a revista no ar! Como contrapartida, faremos sorteios esporádicos de recompensas como livros de teorias de cinema e ingressos.

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A ONTOLOGIA DA IMAGEM PARTINDO DA HEURÍSTICA DO RECONHECIMENTO NO CINEMA DE LISANDRO ALONSO

Por Diogo Serafim

Os dois dialogantes não haviam percebido a solidão que os rodeava. As salas de aula tinham ficado vazias, pelos corredores o silêncio se estendia como uma serpente. Sentado num banco, numa solidão que se tornava inoportuna por seu realce, Foción observava os gestos, as modulações da voz no desenvolvimento, a intensidade do olhar que viajava com as palavras. Ouvia como um espectador ocupado apenas com a reconstrução de uma imagem interior?

José Lezama Lima, Paradiso

 

    Não há como abrir-se para um filme como Jauja (2014) fora do escopo da heurística do reconhecimento, a matéria fílmica sendo absorvida e amalgamada em minhas memórias, um processo de anamnese sensível, perdendo-se entre a realidade e a mitologia, o cinema como potência desestabilizadora não apenas metalinguística, mas também psicossomática, um fluxo de imagens que aos poucos me apodera fisiologicamente, uma matéria que resiste para além da morte, em um campo idealista que se estrutura por um viés materialista até atingir seu potencial transcendental. Há poucas palavras melhores para definir o cinema de Lisandro Alonso além desta: transcendental, a transposição de fronteiras, seja do retrato à fábula, do estático ao dinâmico, da matéria ao espírito, da imagem à vida.

    O que associa a odisseia do engenheiro em busca de sua filha nos sertões da Patagônia no século XIX à derradeira sequência da jovem dinamarquesa retomando certos elementos anteriormente apontados no filme? Como esse conflito temporal por sua vez se associa ao subtexto colonialista do massacre indígena na Patagônia? No filme Carta Para Serra (2011), como o lenhador Misael se encontra com os outros personagens e como esse encontro metatemporal dialoga com sua metalinguagem constituinte? A mitologia do cinema de Alonso é oblíqua, rigorosa em sua execução, mas sempre nos escapa, permitindo lacunas, interstícios hermenêuticos que se encontram em constante expansão.

    Ao ser indagado acerca da origem do título de seu filme Liverpool (2008), Alonso afirma que foi devido a uma mulher que ele viu pedindo dinheiro durante o concerto de uma banda cover dos Beatles chamada Sounds of Liverpool. Nas palavras do diretor, as imagens dessas duas coisas vieram juntas e se recusavam a ir embora. Ele fez assim uma associação entre Liverpool como uma cidade portuária e cidades portuárias na Argentina, chegando finalmente em Ushuaia, que possui um histórico com imigrantes ingleses. Conclui o comentário afirmando categoricamente que o cinema é sobre essas associações ilusórias. Seriam apenas associações no processo de confecção ou estas associações poderiam de alguma forma exercer uma influência definitiva na matéria? A transposição de um estado de espírito para um fluxo de imagens por um terceiro permite a apreensão de um intruso na torrente emocional e pessoal embutida em uma matéria particular?

    É assim estabelecida uma dúvida salutar sobre o estatuto da imagem, esta existe simplesmente como representação do que retrata (seja na sua ontologia ou no seu valor narrativo) ou possui na sua constituição alguma propriedade que lhe confere esse potencial ascético, o deslumbre que ela provoca pode ser originado de uma simples abstração ou este vem de uma impressão da imagem no meu espírito? Essa dúvida pode até soar excessivamente metafísica, mas ela se mostra pertinente devido a uma característica facilmente percebida no cinema de Alonso: o deslumbre que este provoca não é proveniente pura e simplesmente de uma proeza estética (por mais que seus planos sejam cuidadosamente construídos e desenvolvidos) nem de um processo de identificação propriamente, tendo que o seu cinema se estrutura em uma lógica de distanciamento, existindo por si próprio, alheio a mim, em um regime epistemológico absoluto que parece ter um funcionamento fora da minha consciência. Se esse deslumbre não tem uma ontologia própria definida pelos predicamentos essenciais da nossa apreensão empírica na nossa constituição neurológica, como pode este apresentar-se de forma tão potente para mim? Como se dá essa transcendência de espectro senão pelas faculdades fisiológicas que os limites de minha mente estabelecem?

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    O cinema de Alonso se estabelece aí, nesse ponto de inflexão analítico, onde o que compreendo do que está sendo mostrado é subvertido em prol da sensibilização que essa matéria provoca. Se a ascese não é originada por meios convencionais, não aparentando ser sequer consequência daquele fluxo de imagens, ela deve surgir de algum outro lugar: de mim mesmo. A matéria do cinema em perpétuo devir, pois ela se altera conforme minha própria psicologia se transforma, partindo de uma ontologia muito particular que fundamenta a imagem como uma confluência do meu espírito com o espírito de quem a decupou além do evento que está efetivamente sendo mostrado. Daí surge a natureza conflitante do cinema, entre o real e o psicológico, este segundo partindo de duas origens distintas. Entre o racional e o empírico, uma estrutura aberta como um sintoma de rasgadura, onde algo me provoca arrebatamento não apenas pelo que me é apreendido de forma mais ou menos definida, mas também por aquilo que me escapa.

liverpool

    Filmes como Os Mortos (2004) e Liverpool (2008) partem de uma ambiência narrativa simples – a história de um homem fazendo uma jornada de volta para casa – para se estabelecerem como espetaculares romagens espirituais. Através do aspecto contemplativo das imagens, o cinema de Alonso se traduz como puro movimento, seja da câmera ou dos elementos efetivamente apresentados em cena. Dado o caráter conflitante das imagens de Alonso (entre o perfeitamente retratista e o arrebatamento fabulista), traduz-se uma aporia entre o incontestável e o transcendental. No ínterim da matéria, um sintoma fleumático de desestabilização, quando tudo que me é inicialmente tomado como banal ou puramente contemplativo se traduz como instável, fabular, despertando infinitas associações possíveis.

Se A Liberdade (2001) aparenta enganosamente partir de um viés documental, emulando a lógica baziniana de salvar o ser pela aparência através de um retrato fiel do seu cotidiano, a famosa cena final é aqui contestar o que há de objetivo na imagem. O que é realidade e o que é fabulação? O que me é proposto como garantia, o que pode ser definido como alicerce da imagem?

A Liberdade (2001) talvez seja o filme de Alonso em que essa investigação acerca da ontologia da imagem mais fortemente se associa com uma ontologia natural. O filme não aparenta intentar nenhuma mediação mais objetiva com relação às suas possibilidades temáticas, tudo é subordinado à fenomenologia. As possibilidades vão se acumulando, contradizem-se e se complementam, em um eterno percurso de elevação espiritual que vai se assimilando e se recontextualizando conforme progride.

O argumento para Jauja (2014) partiu da morte de uma amiga do diretor nas Filipinas. Alonso afirma que a provável maneira que ele encontrará para lidar com a perda de alguém querido é reimaginar esse alguém no tempo e espaço ao seu redor, preservando de alguma forma a sua existência. Partir da matéria para o infinito, com a fé de que o gesto persiste para além da sua fisicalidade.

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ALBERT SERRA E A MORTE REAL

Por Carla Oliveira

O nome do cineasta catalão Albert Serra é citado já nos primeiros postulados sobre slow cinema. Matthew Flanagan, em 2008, ao apontar as bases estéticas desse cinema (categorizado, em 2003, por Michel Ciment), alude aos longos planos utilizados por Serra na estruturação da narrativa de seus segundo e terceiro longas-metragens — Honra de Cavalaria (2006) e O Canto dos Pássaros (2008) — como exemplos de um dos principais traços de uma corrente de cinema caracterizada pela contemplação da passagem do tempo, enredo enxuto e composição formal rigorosa. A longa caminhada pelo deserto dos três reis magos em busca do Messias recém-nascido em O Canto dos Pássaros é referida como típica, assim como a redução da grandiosa e aventuresca obra de Cervantes a uma pequena variação abarcante de um trecho da vida de Quixote, quando, envelhecido, contempla os ideais da cavalaria e a perspectiva de seu próprio fim em Honra de Cavalaria. Parte da galeria de personagens históricos, literários ou míticos presentes no cinema de Serra, como Dom Quixote, Sancho Pança, os reis magos e Casanova, está em franca e lenta trajetória rumo à morte. Figuras tidas por eternas, como o Drácula e Jesus, cruzam alguns de seus caminhos. Em sua última e melhor obra, A Morte de Luís XIV (2016), que fez parte da seleção oficial do Festival de Cannes e recebeu o prêmio Jean Vigo no mesmo ano, é o agonizante fim da figura real o foco de sua atenção.

bloin e os médicos de paris

Em seu célebre ensaio Ontologia da Imagem Fotográfica, André Bazin expõe bases e referências de sua complexa concepção de realismo (tantas vezes citada e revitalizada nos textos sobre slow cinema): a criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo; a busca da expressão dramática no instante (não apenas a expressão das formas) e a constatação de que a imagem das coisas é também a de sua duração (o que o cinema torna possível) são algumas delas. Ressalto que o termo “real” será usado neste texto sobre a obra de Serra em referência ao rei e à realidade/verdade que se busca retratar com realismo (na maior parte das vezes, sem a intenção de gerar ambiguidade). No referido ensaio, Bazin escreve que “Luís XIV não se faz embalsamar: contenta-se com seu retrato, pintado por Lebrun.” Ao contrário dos faraós, soberanos também identificados com o sol, o rei francês não manifesta o desejo de conservar sua aparência na própria carne. Amante das artes e criador da sua própria imagem de poder, cerca-se em sua corte de renomados artistas, como Charles Lebrun, que, além de retratar o rei em seu apogeu, é responsável, junto ao paisagista André Le Nôtre e os arquitetos Louis Le Vau e Jules Hardouin-Mansart, pela criação de um de seus maiores símbolos de seu poder: o Palácio de Versalhes. O compositor Jean-Baptiste Lully, o dramaturgo Molière e o escritor Louis de Rouvroy — o duque de Saint-Simon — também frequentam a corte. É a partir das extensas Memórias de Saint-Simon, registradas com obstinação no intuito de fixar a realidade de um tempo no papel, que Serra e o produtor Thierry Lounas adaptam o roteiro de A Morte de Luís XIV, debruçando-se na análise dos seus últimos dias, vividos em 1715, quando o rei contava com 77 anos.

com o herdeiro luis XV

Seus anos de juventude, dedicados à construção da própria imagem, são muito bem retratados no cinema em O Absolutismo: A Ascensão de Luís XIV (1966), filme de Rossellini, neorrealista preferido de Bazin. Ciente de que aparência e poder estão intimamente ligados, o rei constrói cenários faustosos e os decora com pompa. Com intenção de manter a nobreza controlada, cerca-se, em Versalhes, de cortesãos de quem exige lealdade, etiqueta, maquiagem e bons figurinos. Protagonista absoluto, submete seus atores secundários e figurantes a um roteiro exaustivo e rigorosamente decupado, onde cenas de suas aparições públicas são intercaladas pela exaltação de sua rotina em incansáveis cerimônias palacianas. Mise-en-scène real filmada por Rossellini.

Em A Morte de Luís XIV, o cenário, fotografado com elegância por Jonathan Ricquebourg, já está rigorosamente composto. O quarto real do Palácio de Versalhes é reconstituído e iluminado com velas, o que confere sobriedade ao ambiente recoberto de ouro e sumptuosidade, onde se sobressaem quadros e um busto de um rei jovem (sabe-se que Luís XIV teve um busto esculpido em mármore por Bernini pelo qual nutria grande apreço) e o ruído de um relógio, assinalando a inexorabilidade do tempo. Em seus filmes anteriores, Serra havia trabalhado com atores não-profissionais para dar a ilusão de realidade e também por uma escolha moral, com a intenção de se manter afastado do sistema capitalista de produção fílmica (resolução típica dos realizadores do slow cinema). Aqui, em seu primeiro filme falado em francês, cria um espaço tão cheio de detalhes e realismo que favorece ainda mais a assombrosa interpretação de Jean-Pierre Léaud (admirado por Serra por sua pureza e incorruptibilidade) de um rei em agonia após extenso reinado. O ator, que estreou no cinema como um menino em Os Incompreendidos (1959), filme de Truffaut dedicado à memória de Bazin, impressiona na caracterização da velhice — nos tremores e trejeitos de um rosto enrugado, com grandes bolsas sob os olhos e emoldurado por uma espantosa peruca grisalha, nos típicos ruídos feitos com a boca, na rabugice e teimosia em manter o rigor na etiqueta e no cerimonial (o que é observado até o final) — e, principalmente, na manifestação do sofrimento decorrente da progressão de uma gangrena na sua perna esquerda. A expressão da dor, a gemência, a ofegância, os gritos e súplicas em voz débil e trêmula são gigantescos. Tanto o sublime quanto o grotesco são caros a Serra. O sorriso do rei é visto apenas um vez, ao brincar com seus cães logo após um passeio pelos jardins do palácio na sua única aparição em cenário natural durante todo o filme. Sutis sinais de contentamento também surgem ao escutar os oboés e tambores em comemoração ao dia de São Luís, quando uma imagem da paisagem francesa é mostrada através de uma janela. No mais, não se sai do quarto, da intimidade real. Serra não tem intenção de fazer comentários políticos ou sociais. A moral cortesã apenas transparece sutilmente em momentos em que o rei recebe assessores pretendendo angariar fundos de forma suspeita ao propor edificações ou quando ele pergunta detalhes íntimos das cortesãs ao seu médico, que acaba comentando sobre a nudez e o comportamento de suas pacientes.

bloin e os médicos de paris

.Os médicos são as principais figuras em torno do rei, assim como Blouin (Marc Susini), seu fiel valet de chambre. Luís XIV confia na ciência. O cargo de Primeiro Médico do Rei, ocupado por Fagon (Patrick d’Assumçao) é de grande prestígio na corte. Maréchal (Bernard Belin) é o cirurgião que o acompanha. Valem-se de unguentos, faixas, massagens, considerações sobre a dieta na tentativa de tratar a doença do rei. Frente à inocuidade de tais medidas, Blouin sugere a intervenção dos médicos da Universidade de Paris. Fagon rechaça a ideia, argumentando que, segundo Molière, os médicos são mais perigosos quando em grupo. Molière foi um crítico feroz da classe médica, satirizada em sua célebre peça O Doente Imaginário (1673), dedicada pelo dramaturgo a Luís XIV. Serra não se apropria do escracho ou mesmo da crítica, mas de uma fina ironia e observação, que torna por humanizar os médicos em seu erro. Não há má intenção, Fagon e Marechal permanecem o tempo inteiro junto ao rei e são solidários ao seu sofrimento, mas hesitam no diagnóstico e na tomada da conduta que poderia se mostrar resolutiva: a cirurgia na perna gangrenada do rei. Os médicos de auditório — os da Universidade de Paris na definição de Fagon — examinam, enfim, o rei, assim como um charlatão de Marselha. A sangria proposta pelos primeiros e o elixir preparado pelo segundo também não surtem nenhum efeito. A putrefação, a febre, a dor e a náusea desfiguram o rei.

Presença constante no aposento real é também a da envelhecida Madame de Maintenon (Irène Silvagni), a esposa secreta de Luís XIV, cujo nome ele pronuncia ao final de um plano longo, estático, esteticamente perfeito, onde sua imagem quase inanimada nos comove ao som do Kyrie da Missa em Dó Menor de Mozart. Ao pressentir a proximidade de sua morte, chama também seu pequeno herdeiro, o futuro Luís XV, para lhe aconselhar a evitar construções, guerras e a se aproximar da religião. Há tempo e espaço para arrependimentos. Le Tellier (Jacques Henric), padre jesuíta, confessor de Luís XIV, é igualmente uma personalidade estimada: é à sua ordem que Luís XIV deseja que seu coração — único órgão a ser mumificado — seja entregue. Após sua morte, o corpo de Luís XIV é cortado e examinado em partes que não correspondem a sua figura. Na necrópsia do rei, a imagem que se sobressai é a do pesar de Fagon.

com fagon e bloin

Apesar de ter uma gênese conceitual apontada no pensamento de Bazin e no cinema europeu moderno surgido no pós-guerra, o slow cinema não é uma simples continuidade do neorrealismo. O uso da tecnologia digital torna o método de fazer filmes distante do purismo. Serra acumula centenas de horas de filmagens, usando várias câmeras digitais. É apenas durante a edição que a forma de seu filme começa a surgir, transformando-se no processo. Particular de Serra é também a inspiração na literatura, de onde capta a essência de um evento vital, de uma narrativa. Registros históricos, memórias e imagens eternizaram a vida e a morte de Luís XIV. O quadro que o imortalizou no campo pictórico foi realizado por Hyacinthe Rigaud e mostra sua imagem envelhecida, porém altiva. O filme de Serra, com seus longos planos contemplativos dos últimos e penosos dias de um rei interpretado de forma tão genuína por Léaud, nos dá a melhor representação da figura real vulnerável, mortal, tomada de humanidade.

fagon reconhece erro

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IMAGEM ENQUANTO GESTO E GESTO ENQUANTO POTÊNCIA

Por Alan Campos

Tsai Ming-liang conheceu Lee Kang-sheng, seu principal colaborador, em um arcade de jogos eletrônicos (cenário principal de seu primeiro longa-metragem para cinema, Rebeldes do Deus Neon, 1992) no final dos anos 80, quando o último trabalhava na manutenção das máquinas. Nas vésperas do início de uma grande parceria, que iria render mais de 10 longas metragens e alguns curtas ao longo de mais de 20 anos, Lee não era ator e Tsai mal havia começado sua carreira.

A gramática cinematográfica de Tsai Ming-liang é quase compartilhada com muitos cineastas que ascenderam nos anos 90 e início dos anos 2000 e que ficaram conhecidos como integrantes de um slow cinema. Uma tendência contemporânea feita por diretores com afinidades pelo plano longo, por uma montagem que à primeira vista era desprovida de artifícios, por não atores e pela escassez de trilha sonora não diegética. Realizadores que priorizam um novo tempo com a imagem em movimento, tais como Lisandro Alonso, Apichatpong Weerasethakul, Kelly Reichardt, Naomi Kawase, Béla Tarr, Pedro Costa e James Benning, são alguns dos principais personagens desse cenário cinematográfico. No geral, são filmes que se utilizam das ferramentas apresentadas para desenvolver um cinema que diminua um senso de narrativa clássica. O slow cinema* prioriza outro tipo de ritmo com as imagens, um que não chegue às conclusões explícitas e que nos coloque a vagar pelo plano em um contato mais próximo e corporal com aquelas imagens, como se estivéssemos lá, experimentando o tempo ao lado dos personagens.

Tais cineastas compartilham desse interesse, mas de maneira alguma seria possível reduzi-los à dimensão de suas ferramentas cinematográficas. Não nos cabe diluí-los a uma investigação desvinculada dos efeitos que essas escolhas adquirem no projeto individual de cada cineasta. No caso do cinema de Tsai Ming-liang, o esgarçamento do plano longo, o ritmo mais contemplativo e quieto é direcionado ou, até mesmo, construído em função da corporeidade de Lee Kang-sheng. O não-ator fez urgir a necessidade da invenção de uma linguagem.

O próprio Tsai Ming-liang chegou a admitir a importância do ator para a composição de seus filmes, afirmando um desejo em não desviar seu olhar do rosto de Lee**. O impacto de um encontro reverberaria por toda a filmografia. A recorrente falta de expressão no rosto do ator conduz o espectador para um caminho não óbvio pelo cinema de Tsai Ming-liang.

No cinema, já existiram casos de uma parceria diretor/ator com um mesmo personagem ao longo de vários filmes, entretanto, o caso de Tsai com Lee se destaca tanto pelo número de filmes em que o ator/personagem aparece, como pela abordagem de pouquíssimos diálogos por parte do protagonista – em que as situações muitas vezes são apresentadas com ele imóvel em cena ou fazendo gestos corporais, à primeira vista, sem sentido aparente. Filmar o ator se tornou a marca do diretor; Lee é sinônimo para o cinema de Tsai.

O estilo de um cineasta foi adequado ao corpo de um ator. Tal corpo se tornou a marca de uma cinematografia por mais de vinte anos, portanto a experiência de olhar se torna um caso exemplar na história da sétima arte. Do jovem Lee Kang sendo um jovem adulto carregado de fúria juvenil em Rebeldes, passando para o adulto cada vez mais melancólico de Viva o Amor (1994), ao morador de prédio solitário de O Rio (1997) que se torna ator pornô em O Sabor da Melancia (2005) e que termina (?) como pai e morador de rua no angustiante Cães Errantes. Dessa maneira, o cinema de Tsai registra uma verdadeira experiência de vida de um rosto (e corpo) masculino inserido em um contexto urbano.

Em geral, os personagens de Tsai estão fora de ritmo com a paisagem urbana, sempre se colocam em uma espécie de não sintonia com a vida na cidade. Muitas vezes, são marginalizados ou possuem empregos banais que os fazem sentir o peso do isolamento que o capitalismo contemporâneo é capaz de proporcionar. Personagens que sempre parecem à beira de entrarem em colapso. A desestruturação familiar é um tema recorrente, bem como a insatisfação sexual e as condições precárias dos menos abastados. Tsai explora tais temáticas a partir do corpo, em direção aos gestos. Há algo que escapa de um sentido unilateral. Existe sempre uma transbordação do quadro, uma potência que é própria do gesto.

Mas há dois tipos de gestos no cinema do autor. Um que só se revelou inteiramente em Cães Errantes, um gesto de sua imagem enquanto ato. O outro é relativo à Lee, ao seu corpo no cinema, gestos expressos enquanto potências que extrapolam as dimensões do quadro. Tratemos do primeiro, por ora.

Indo de Rebeldes até No No Sleep, Tsai buscou um afrouxamento de sua narrativa em pouco mais de vinte anos, a criação de um ritmo que buscasse dentro de suas cenas sua própria vida, iniciando em si e colocando em si um ponto final ao cortar para uma nova cena. Em meio a elipses temporais ou cortes que interrompem a cena para outro contexto de personagens ou cenários, Tsai buscou criar imagens que se erguem por si, interessando bem mais ao realizador o presente de tais momentos e não sua união em prol de subtextos narrativos.

Em Cães Errantes, é possível ver esse processo em estágio bem avançado e sendo totalmente abarcado em sua duração fílmica. Sua estrutura é simples: Pai (interpretado por Lee), filhos, e ocasionalmente uma figura feminina (a mãe?), fazem diversas atividades pela Taipei moderna. Em situação de extrema miséria, o pai trabalha embaixo da ponte, enquanto os filhos exploram a praia, o supermercado. São cenas de um único plano e que não são difíceis de serem descritas: o pai se alimenta, as crianças e o pai escovam os dentes, o pai trabalha como anunciante de imóveis. Enquanto gesto fílmico, levando em consideração a imagem enquanto ato, Cães é semelhante aos primeiros filmes dos irmãos Lumière. Tenhamos em mente A Saída dos Operários da Fábrica Lumière (1895) e A Chegada do Trem a Ciotat (1895) que existem unicamente em um plano, potencializando a experiência da imagem em movimento pela força embutida nele e não por um truque de montagem. O interesse desses filmes é o registro de uma ação com a menor quantidade de artifícios possíveis. Portanto, o acontecimento existe, é capturado, e o filme cessa de existir ao seu término. Existe a excitação pelo dispositivo cinematográfico como mídia capaz de captar diversos gestos em movimento, em reproduzir banalidades como pessoas saindo de uma fábrica, trens chegando em estações, etc. A imagem enquanto gesto em Tsai caminha para uma direção cujo enfoque varia de cena em cena. O gesto de seu cinema desenvolveu-se rumo aos pequenos acontecimentos, às energias próprias dos gestos corporais embutidos, o que leva ao interesse por outro tipo de gesto.

Ao redimensionar seu cinema ao corpo de Lee Kang, Tsai conferiu aos gestos do corpo do ator, bem como os de outros autores, o motivo condutor de seu cinema. Partindo do esgarçamento temporal enquanto ferramenta que potencializa as emoções gestual, Tsai Ming-liang fez com que a quietude de seus filmes fosse experimentada sob a presença corporal de seu protagonista.

Em Rebeldes, Lee Kang não tem mais que algumas linhas de fala ao longo de mais de 100 minutos. Sua presença como adolescente frustrado, minado por não ter o que deseja (algo que nunca assume uma condução explícita), o corpo dos outros, em especial o de Ah Tze (Chao-jung Chen) – ser que se porta à margem do universo de Lee, de suas frustrações sexuais e sociais. Em um gesto conflituoso de fascínio e repulsa/inveja por Ah Tze, Lee destrói sua moto e picha “AIDS” na sua lateral. O que se segue são imagens de um corpo em ebulição (em contrapartida ao seu caráter reservado ao longo da narrativa), queimando em sua própria alegria secreta de apreciar seu rival descobrindo o estrago causado por um sujeito que lhe é oculto.

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Libertar-se por meio dos gestos íntimos e expressivos na imagem. Nesse momento, tais gestos não são exclusivos do personagem; são indícios de um arcabouço mais amplo, de um imaginário relativo a uma sensibilidade própria de adolescentes revoltados e entediados. O gesto cravado no corpo, quase livre de roupas, no intuito de se colocar para além de uma realidade que exige a dominação desse corpo e que só o liberta no momento dessas pequenas “vitórias”, por mais ambíguas que elas sejam, pois o corpo não pode ser inteiramente reduzido à significação clara e exata. Tal gesto não surge no intuito de “cena chave” que joga a narrativa rumo a novas direções. A aparição do gesto se dá mais em um contexto que retira o corpo da dimensão em que ele é frequentemente inserido, nesse caso, uma rotina entediante, e o joga em uma realidade nova: a alegria efêmera. Tal momento inicia e termina em si, com a mesma estrutura estilística, sendo uma espécie de suspiro do próprio filme. O cinema de Tsai Ming-liang é carregado de momentos como esse.

Corta-se para o corpo do mesmo ator em O Rio (1997), dessa vez, se debatendo em desconforto e angústia na forma de uma dor no pescoço que vai chegando a proporções cada vez mais alarmantes. Recorre-se à ajuda espiritual (seria obra de um espírito invasor?), bem como a médicos convencionais em uma tentativa em vão. Mas o filme não é apenas preocupado com Lee, sua história corre em paralelo com as narrativas do pai – personagem que busca conforto em flertes com outros homens em saunas – e da mãe – que se relaciona em seus momentos livres com um diretor de vídeos pornôs. Três histórias que mal se cruzam, que existem como núcleos isolados de uma família instável.

    Em determinado momento, Lee vaga pelo hotel com sua habitual dor de pescoço, com a cabeça em espasmos nervosos, até encontrar uma sauna. Ele caminha pelos corredores escuros com homens saindo e entrando, quase como uma realidade paralela ou um deslocamento desnorteado, até que ele entra em uma das salas e se senta. De olhos fechados, ele é tocado por uma mão. Em um primeiro momento, com dor e receoso do contato, ele hesita. Com os minutos se passando, vai se desenvolvendo uma relação sexual quando a mão começa a acariciar o peito de Lee e a masturbá-lo. Revela-se que é o pai de Lee no final da cena, fato que ambos desconhecem até então. A dor vai se transformando em prazer e, no final, tem-se a imagem de uma Pietà secularizada do pai segurando seu filho. O gesto novamente escapa a Tsai Ming-liang, vai em direção a uma cultura visual mais ampla que o filme. Entretanto, se opera outro gesto nesse momento: a imagem funde duas narrativas distintas do filme, a dor do personagem e o desejo do pai por corpos masculinos. O filme entrelaça tais dimensões de mundo, separadas à princípio, mas que se imbricam em uma nova realidade imagética. O plano longo, que antes estava à serviço específico de um dos três personagens, agora brinca com eles em suas particularidades em prol da criação de um novo sistema sensível entre esses corpos.

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Algo semelhante ocorre em Viva o Amor (1994), onde em meio a encontros e desencontros em um apartamento à venda, três estranhos se esbarram em um triângulo amoroso nunca inteiramente concretizado, apesar de dois deles fazerem sexo constante nesse espaço neutro. Desenvolvem-se momentos ora irônicos, ora íntimos entre eles, que decidem ocupar tal casa como refúgio de suas vidas. Apesar do filme nunca inteiramente definir do que eles fogem. Entre rotinas marcadas por empregos banais (a personagem feminina anuncia imóveis) e fugas para o apartamento vazio, os personagens pouco revelam no contraste do espaço público com o privado. Como imagem, o filme coloca a disparidade dessa duplicidade quando sua protagonista caminha por várias minutos em um parque durante o amanhecer da cidade – onde pessoas começam a sair para as ruas, carros começam a surgir nas avenidas –, em determinado momento a câmera solta-se da personagem e filma a cidade acordando, para segundos depois voltar à protagonista. Ela se senta em um banco e começar a chorar diante de tal paisagem. Durante vários minutos, ela chora, soluça, fuma um cigarro e volta a chorar.

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O gesto da imagem aqui, consiste em unir duas formas de cinema que até então estavam separadas. Ao diluir-se, ao permitir que o íntimo seja despertado pelo espaço público por vários minutos, Tsai Ming-liang desmonta sua realidade e a reconstrói em uma nova forma de vida. Seu gesto liberta-se de um registro simples e desinteressado para uma potência emocional – aquilo posto para fora do eu – que transborda do gesto de chorar.

Um cinema do gesto que chega ao seu ápice na sequência final de seu derradeiro longa metragem, Cães Errantes: observam-se dois personagens por cerca de 14 minutos sem cortes. Cena de pouca movimentação e com gestos escassos. A mulher olha para fora do quadro e Lee se posiciona atrás dela durante todo o tempo de duração do plano. Ele busca tocá-la, desejando um contato físico com o corpo dela, se sentindo visivelmente nervoso em como proceder e vai andando lentamente em direção a ela – que mantém sua visão para fora do quadro. Em mais de dez minutos, a cena não se torna mais do que é: um homem buscando se aproximar de uma mulher.

O leitmotiv de um cinema é redimensionado em sua simplicidade: o desejo pelo toque, o gesto receoso ou atrofiado de um personagem que nunca foi, sempre esteve à margem de seus sentimentos. Um momento entre pintura e cinema, entre estabilidade e movimento. A persistência de uma imagem com pouca movimentação em um único plano tende a suspender o tempo inserido nela, ocasionando uma imagem carregada de estranhamento em seus movimentos. A experiência estética da imagem em movimento infecciona-se pelo ato de estar diante de uma pintura. Curiosamente, a figura da mulher está encarando uma pintura paisagista na parede. A experiência cinematográfica de Tsai é posicionada no gesto da mulher em observar passivamente a paisagem bucólica, em ser afetado por ela a ponto de chorar, em paralelo à busca incessante de seu protagonista pelo toque. Nesse momento, o gesto da imagem se confunde com o gesto simbólico de uma cinematografia-protagonista, reconfigurando um encontro que não poderia resultar em outra coisa que não um fim. O confronto de duas realidades em resultados, sempre, não claros. Ao final, só resta a imagem na tela de concreto, ambígua, persistente, à mercê do tempo. Fim do cinema.

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KELLY REICHARDT E OS ACUMULADOS DE TEMPO NO GÊNERO

Por Gabriel Papaléo

“Meus filmes são sobre pessoas que não tem um porto seguro.”

Kelly Reichardt

Das principais bases narrativas do cinema de gênero, de trabalhar com estruturas consagradas e arquétipos de personagens para criar mundos cujas ideias se renovam justamente no rearranjo de elementos conhecidos, é o controle de ritmo. Estabelecer em montagem o exercício de ritmo na qual um filme transcorre é das características do terror, da ficção-científica, do faroeste, do suspense. A suspensão da tensão até a catarse.

E quando essa velocidade não propõe uma progressão de eventos, e sim acumulados? O que acontece quando o tempo da ação de gênero não é o que interessa, mas as reações psicológicas dos personagens nela inseridos? O cinema de Kelly Reichardt busca algumas dessas questões à medida que controla o tempo com precisão para alterar as dinâmicas de poder e especialmente relações nos personagens que cronica. O movimento, a ação, como matérias-primas e alteradores de mundo dos personagens de Reichardt como em qualquer filme de ação, de terror, ficção-científica – mas a forma, e principalmente o tempo, em que as ações transcorrem se pautam mais pelo acúmulo de situações e pela reflexão através da mediação entre sujeitos e menos pela urgência de objetivos. Se cineastas como John Woo e John Carpenter estruturam seus contos a partir da urgência da informação, da gravidade das situações, Reichardt estrutura através das trocas pessoais, das conversas ao pé de ouvido. A montagem privilegia silêncios, porque o movimento é raro e, por isso, tão importante. Mas como nos pares mais tradicionais do gênero, é o deslocamento espacial que faz o status quo ser alterado.

Ao longo de sua filmografia, Reichardt usa da estrutura do trânsito, do road movie, desde sua estreia em River of Grass (1994) – e de certa forma todos os filmes da norte-americana são filmes de estrada, sediando suas ações em fronteiras e lugares a pertencer e esquecer. Entre Wendy e Lucy (2008) e Certas Mulheres (2016), seu filme mais recente, a diretora enveredou-se pelos seus discursos mais frontais na aproximação com uma tradição de gênero no cinema: o faroeste de travessia em O Atalho (2010) e o thriller político em Movimentos Noturnos (2013).

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O contexto histórico de O Atalho já é dado pela cartela inicial, bordada como as roupas das mulheres do comboio que acompanhamos. O Oregon de 1843 ainda é um ambiente hostil, deserto, e já conhecemos o comboio com eles perdidos ao tomar o atalho de Stephen Meek do título original. O espaço já fala por si nos quadros 1.33 de Reichardt, mas a diretora aposta na bela fusão que mescla a água do rio com o deserto para antecipar a escassez do recurso durante a narrativa – e também para demonstrar a dimensão fantasma que opera o mito do cowboy desbravador, do pioneiro, aqui uma miragem fervendo à distância. O processo de andar, a sobrevivência, retornar ao rumo com promessa de desbravamentos torna-se o objetivo primário.

É como se os filmes de Reichardt fossem localizados nas elipses do gênero, no procedimento até a ação. O ambiente árido tende à repetição cujos labirintos trazem uma lisergia que atravessa o filme e, para desafiar as percepções desses ambientes similares, acompanhamos a câmera registrar as poucas particularidades de cada espaço através da escala, da altura de quando existe uma montanha ao redor. Vemos escalas diferentes, os homens menores no quadro vasto de terra, pequenos diante de seus objetivos que em discurso abrangem tanto essa conquista – a impotência. Não é um libelo de conflito humano vs. natureza, como as descidas ao inferno de Herzog em Aguirre (1972) e Friedkin em Comboio do Medo (1977). Reichardt é atenta às dinâmicas pessoais que desabrocham de uma jornada para o nada que evoca mais um cansaço, um esgotamento do tempo, do corpo, do que necessariamente uma febre.

Portanto a escala de espaço é fundamental para intuir o comando do comboio. Temos os homens que criaram essa grandiosidade pra si através do discurso oral (como Meek) ou através da retórica civilizatória (como Gatlesby). As mulheres sempre estão à distância, ouvindo as conversas decisivas em baixa voz, nunca tendo acesso ao poder de decisão, passando a água de mão em mão enquanto os pioneiros discutem seus rumos. O valor revisionista do faroeste de travessia da diretora e do roteirista Jon Raymond aqui é também na destruição do mito do cowboy pioneiro e especialmente nas mortes utópicas de desbravamento. Emily, a personagem de Michelle Williams, começa como uma das mulheres cujo papel resume-se a costurar e dar apoio aos maridos e demonstra um senso de coletividade mais forte que de qualquer homem ali.

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Isso logo causa a dúvida em Meek, com seus contos de glória, o homem dos mitos, dotado de histórias e alteradores de realidades passadas, mas que não se prova na ação. Com a chegada do elemento mais forte do extracampo misterioso do filme, o indígena vivido por Rod Roundeaux, Emily encontra um semelhante a quem respeita para conduzir. Não por acaso, quando o personagem faz um de seus rituais religiosos, a dúvida é colocada no mito do indígena por Meek, o homem que perpetua os mitos de cowboy. A aproximação que Reichardt faz é do relato como algo religioso, que dá forma à curiosidade, mas que traz respeito e confiança apenas quando aliado à capacidade de agir em coletivo.

O indígena, surgindo como o verdadeiro íntimo da terra, quem sabe das rotas, é quem gera a empatia de Emily não apenas pela disposição para a ação como também pela empatia de ambos serem vítimas da incomunicabilidade com os homens brancos – ele pelo idioma, ela pela distância espacial das conversas de decisão. Como em Wendy e Lucy, a protagonista testa seus limites no trânsito, na impossibilidade utópica – antes pela crise financeira, agora pela inexistência da conquista de assentamento. Emily representa assim esse arquétipo do faroeste, do protagonista cuja disposição à ação lhe traz destaque diante de um grupo, para Reichardt desconcertá-lo ao colocar a mulher no comando. É sobretudo uma mudança no registro do tempo – como Emily vê o mundo, paciente, tomando cuidado, de olho nos arredores e sem desejos de resoluções no cano quente do revólver.

As estruturas de poder são questionadas de forma mais direta quando surge a travessia das diligências, o mais próximo de sequência de confronto e ação que Reichardt concebe, objetivo palpável de superação de um obstáculo. É quando surge a primeira câmera na mão de todo filme, como se a diretora e o fotógrafo Christopher Blauvelt sinalizassem a urgência sentida nessa cena em detrimento da jornada lisérgica do tédio da sobrevivência dos personagens abandonados pelos mitos de Meek à própria sorte e competência diante das adversidades.

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Se a passagem de bastão da condução da diligência é o que importa a Reichardt, não a interessa uma solução concreta e, portanto, a busca não termina com o desfecho prometido, mas com a esperança de sobrevivência. Uma árvore que sinaliza a presença de água, longe do oásis prometido por Meek, suficiente em manter a dúvida do destino por perto. É quando o mito baixa a guarda para quem age, para Emily, que a partir daí dá as ordens para seguir ou não a jornada – um poder adquirido pela sobrevivência, pelas desventuras, não pela conquista, mas pela capacidade de diálogo com a terra, com o outro. Quando percebe que a liderança do comboio está em boas mãos, o indígena parte para sua jornada pessoal, entendendo que a empatia pode ser agradecida apenas com uma troca de olhares, de pessoas cujo laço emocional fora forjado na morte de utopias construídas pela tradição oral dos pioneiros, mais interessada em perpetuar opressões masculinas brancas que em transmitir a cultura adquirida pelos corpos e mentes que por ali passaram antes de nós.

Já em Movimentos Noturnos, a aproximação com o thriller político é mais convencional, mas não por isso menos potente: a estrutura do roteiro foca na apresentação de três personagens com o objetivo claro de explodir uma represa como ato de ecoterrorismo. Os diálogos do roteiro de Reichardt com seu parceiro habitual Jon Raymond focam tanto no cotidiano quanto na exposição, com informações diretas entre os personagens para permitir a câmera enfatizar o conflito não-dito: a paranoia do personagem vivido por Jesse Eisenberg.

A primeira hora se concentra nos detalhes do atentado com foco procedural. Dena é a mais jovem, Josh o líder introspectivo, e Harmon o mais experiente. As dinâmicas de relação entre os personagens são mostradas especialmente por olhares, uma vez que o texto é quase devoto apenas de trocas sobre o planejamento do atentado. Enquanto Josh maquina os planos e não faz questão de interações sociais mais explícitas, Dena lida com a provação da mulher no mundo – e na cena da compra de fertilizantes precisa se provar diante dos homens mais velhos para executar o plano.

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O ambiente americano de espaços vazios, como em Old Joy e Wendy e Lucy, traz a fantasmagoria presente nas cidades registradas pela diretora, mas aqui no registro de suspense – o que era calmo e de certa forma pacífica nesses dois filmes vira uma tensão, instaurando-se como penumbra no escopo solar do filme. O respeito de Josh por Dena medido pela forma que ela se preocupa com detalhes, um sinal de paranoia que ditará a segunda metade.

O tempo da sequência da explosão é o mais próximo de um ideal consagrado de suspense, investindo em conflitos baseados nos erros não-previstos, na capacidade de improvisação dos personagens e em uma atenção aos rostos apreensivos enquanto a situação de risco é instalada. A diretora organiza essa sequência com rigor, privilegiando o ponto de vista do barco dos personagens e insistindo nele para estabelecer uma tensão que deriva justamente da distância espacial entre conflitos. Interessante ver a diretora e o fotógrafo Blauvelt se enveredarem pelo terreno do mais franco suspense e sair bem dele, quando sua carreira experimentava com a observação dos dramas cotidianos.

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É após a explosão, ademais, que Reichardt sinaliza timidamente que está interessada mais nas consequências do ato: o plano fixo dos três personagens andando no carro, durando por mais de um minuto, para focar no alívio de cada um após o objetivo cumprido. A dinâmica de planos mais ágil em relação a Old Joy, Wendy e Lucy e mesmo O Atalho é o que dita as sequências que culminam nesse clímax. É quando Reichardt puxa o tapete do espectador ao encerrar o conflito em uma hora de filme que sua câmera revela as intenções apenas através do tempo: inicia a segunda metade apenas com um travelling lento, por cerca de um minuto e meio, contemplando os objetos da casa de Josh – que não tínhamos visto até então.

A concentração no estudo psicológico de Josh torna difusa aquela concisão da montagem até o atentado, porque a visão de mundo agora é paranoica, misteriosa, como a do personagem que agora acompanhamos. Não existe a visão de mundo compartilhada do início, o registro agora é do cotidiano que sucumbe à paranoia, da ansiedade de não encontrar o outro, de mitos se instalando como propostas narrativas pela pura falta de comunicação.

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A opção pelo díptico revela muito desse tempo dilatado proposto ao gênero por Reichardt. O gênero é responsável pelos mecanismos narrativos na primeira metade e o tempo dilatado da diretora pelas reações da segunda. Se existem dúvidas entre a potência da conciliação do chamado slow cinema, com suas elipses e ritmo cênico difusos e a agilidade do cinema de gênero, Reichardt as encara com a propriedade de quem entende que ambas as vertentes teóricas dependem essencialmente do rigor formal, do controle do tempo narrativo – e quem as domina consegue transitar entre dispositivos narrativos com personalidade e desafios recompensadores.

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INTRODUÇÃO AO SLOW CINEMA

Em seu percurso histórico, a crítica de cinema constantemente se depara com filmes realizados em períodos próximos com proposições estéticas semelhantes ou convergentes, apesar das singularidades de cada realização. Como estratégia de mapeamento de certas configurações do cinema, novos termos são criados por críticos e/ou pesquisadores, sem a intenção de fundar algo programático – como apontar movimentos cinematográficos estabelecidos – e com o esforço de estabelecer conceitos ainda que à revelia dos cineastas.

Nos anos 2000, o termo “slow cinema” desponta como conceito recorrente em textos de críticos que se dedicaram a pensar determinado conjunto de filmes realizados na contemporaneidade. A nova edição da Multiplot! propõe uma reflexão sobre o “slow cinema”, desde apresentar como o termo se desenvolveu em um debate complexo entre críticos e pesquisadores até indicar de que modo o cinema contemporâneo reverbera tal designação.

Primeiras aproximações

Dentro da crítica de cinema, o conceito de “slow cinema” começa a ser configurado a partir do uso da noção de “slowness” (“lentidão”). Em 2003, o crítico francês Michel Ciment usa a expressão “cinema of slowness” (“cinema da lentidão”) para pensar filmes que se posicionam como contraponto ao modelo de curta duração dos planos do cinema recente hollywoodiano e da televisão. Em texto escrito para o 46º Festival Internacional de Cinema de São Francisco, Ciment argumenta: “Ao se tornarem impacientes com o bombardeamento de som e imagem em que eram submetidos como espectadores de TV e de cinema, alguns diretores reagiram com um cinema da lentidão, da contemplação, como se quisessem viver novamente a experiência sensorial de um momento revelado em sua autenticidade”*. Béla Tarr, Tsai Ming-liang, Abbas Kiarostami, Theo Angelopoulos, Nuri Bilge Ceylan e Sharunas Barthas são alguns dos cineastas citados por Ciment dentro desta designação do “cinema da lentidão”.

Em 2008, o pesquisador Matthew Flanagan se apropria da expressão de Ciment e desenvolve o uso teórico do termo no artigo “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. Ele aponta como características formais compartilhadas por alguns cineastas: “o emprego (muitas vezes, em extremo) de longos planos, modos descentrados e discretos de narrar e uma ênfase acentuada na quietude e no cotidiano”**. Flanagan considera que já não seria suficiente empregar a noção abstrata de “lentidão” para compreender o cinema feito por tais realizadores, mas reposicioná-los em um projeto formal que ele nomeia de “estética do slow”.

O conceito de “slow cinema” só irá ganhar popularidade entre críticos e cinéfilos anglo-saxões, a partir de 2010 com uma série de textos da revista britânica Sight & Sound, em especial o editorial escrito por Nick James que questionou o efeito político dos “slow films”. A partir daí, o debate se polariza entre críticos e pesquisadores de cinema: alguns celebram o “slow cinema”, enquanto outros rechaçam. Nos Estados Unidos, Steven Shaviro (2010) considerou o “slow cinema” como esteticamente retrógrado, enquanto Manohla Dargis e A. O. Scott (2011) se posicionaram em defesa do conceito em artigo no jornal New York Times.

Possíveis origens

Alguns pesquisadores (como o próprio Matthew Flanagan) situam a origem do slow cinema no cinema moderno do pós-guerra, procurando traçar uma genealogia que inclui filmografias tão distintas quanto as de Michelangelo Antonioni, Yasujiro Ozu, Carl Theodor Dreyer e Robert Bresson. Outros preferem restringir o slow cinema como fenômeno específico do cinema contemporâneo, em um contexto global e intercultural que busca resgatar por meio da estética fílmica uma temporalidade mais dilatada em contraposição ao tempo acelerado do capitalismo tardio.

Apesar do debate bastante controverso em torno do “slow cinema”, o conceito não se diluiu ou perdeu força. Ele passou a ser o foco de pesquisas acadêmicas, como as teses de doutorado de Matthew Flanagan (2012) e Nadin Mai (2015). A partir do estudo da obra de Lav Diaz, Nadin Mai criou o blog The Art of Slow Cinema e uma distribuidora de filmes com o perfil, a tao films. Em 2014, três livros importantes foram lançados como referências para o estudo do “slow cinema”: Tsai Ming-liang and a Cinema of Slowness, de Song Hwee Lim; Slow Movies: Countering the Cinema of Action, de Ira Jaffe, e On Slowness: Toward an Aesthetic of the Contemporary, de Lutz Koepnick. Há dois anos, Tiago de Luca e Nuno Barradas Jorge organizaram o livro Slow Cinema, que reúne um conjunto de artigos escritos por diferentes autores que pensam o conceito.

De modo geral, críticos e pesquisadores caracterizam o slow cinema como filmes que investem no prolongamento da duração, na experiência da contemplação, na manutenção da espera, na permanência do olhar. Seria menos a exploração do longo take, mas sobretudo uma reelaboração da mise-en-scène a favor dos pequenos acontecimentos. Song Hwee Lim (2014) acrescenta outros parâmetros do slow cinema, como a ênfase nos silêncios, na quietude, na contenção do plano. Lucia Nagib (2016) explica que a defesa do slow cinema pressupõe “a existência de um cinema rápido, contra o qual ele se posiciona como alternativa vantajosa. Em uma época em que a mercantilização da velocidade está obliterando impiedosamente a fruição dos nossos prazeres mais básicos, de comer a desfrutar de uma bela paisagem, parece realmente prudente defender a lentidão como antídoto contra o consumismo insensato”*** .

Apesar das características gerais acima mencionadas, é arriscado enquadrar o slow cinema em padrões completamente definidos ou fórmulas rigidamente pré-estabelecidas. As estratégias fílmicas mudam de acordo com a proposta de cada realizador. No lugar de responder o que seria o slow cinema por um pressuposto unívoco e essencialista, a atual edição da Multiplot! é um convite para pensar como o conceito se desdobra em filmes particulares ou como se materializa na filmografia de determinados cineastas contemporâneos.

  • CIMENT, Michel. “The State of Cinema”. Unspoken Cinema, 2003. Disponível em: <http://unspokencinema.blogspot.com/2006/10/state-of-cinema-m-ciment.html>.
  • FLANAGAN, Matthew. “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. 16:9, nov. 2008. Disponível em: <http://www.16-9.dk/2008-11/side11_inenglish.htm>.
  • NAGIB, Lucia. “The Politics of Slowness and the Traps of Modernity”. In.: LUCA, Tiago de; JORGE, Nuno Barradas (orgs). Slow Cinema. Edingburgh: Edingburgh University Press, 2016. . 26
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DANAÇÃO: O PESO DA EXISTÊNCIA PRESENTE NA ESTÉTICA

Por Bruna Dantas

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O cinema contemplativo em máxima. Extremismo estético, filosófico e existencial. Béla Tarr bebe da tradição tarkovskiana, uma das grandes precursoras do slow cinema, mas seu trabalho aprofunda essa tradição ao bifurcar novos caminhos para lançar e discutir questionamentos sobre a condição humana e, aproveita esse momento, para polir sua estética cinematográfica. Mais tarde, impulsionou outros cineastas a utilizar várias facetas do cinema enquanto estética da contemplação, a exemplo do cinema de Gus Van Sant e Jim Jarmusch.

O diretor teve uma carreira curta e concisa. Sua obra pode ser “dividida” (entre aspas, porque não se trata de uma cisão profunda) em dois momentos: o começo de sua filmografia (onde há uma preocupação maior com o realismo e a análise sobre as condições sociais e políticas da Hungria, com filmes que se assemelham à proposta da new wave húngara) e, mais tarde, quando seus filmes se entregam completamente ao slow cinema: takes longos, minimalistas, mais alertas em relação ao niilismo e às questões existenciais, individuais. Tarr alcança o ápice de sua carreira. Danação (ou também Condenação, no Brasil) é o filme que desponta essa segunda fase e, por ser o primeiro de um novo momento para o diretor, vem muito potencializado de pessimismo e de uma estética dramaticamente carregada, quase em uma forma mais crua.

Danação não é um filme onde o plot é fundamental. No geral, a narrativa em si dos filmes de Tarr está muitas vezes pautada no cotidiano mais banal. A grandiosidade mora exatamente na poesia visual que o filme pode alcançar. Ele se pauta na construção de imagens, sons e curtos diálogos que buscam remontar e trazer à tona emoções e sentimentos, que parecem residir na camada mais profunda do subterrâneo humano, do desespero em suspensão. O plot está ali apenas como chave inicial para levar o espectador a uma experiência niilista, sensorial, do cinema que potencializa a observação e usa o silêncio como elemento narrativo. Os poucos momentos de diálogo são sempre muito reveladores, no sentido de serem os únicos momentos onde há uma verbalização de tudo aquilo que se acompanha pelo silêncio insistente.

O primeiro plano já mostra suas intenções – cinco minutos a observar um teleférico que diminui a um zoom out e vemos o personagem principal, Karrer, contemplando uma paisagem húngara sórdida, fria e desoladora. Na espera de algo acontecer (estamos sempre à espera de algo acontecer), há a possibilidade do sentir seguido de reflexão.

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A ausência de diálogo engendra-se em cada frame e a música tradicional está quase sempre presente, embalando uma nação de iludidos. No Titanik Bar, reduto de concentração da trama, canta a amante: “Acabou. Está tudo acabado. É o fim e não há mais volta. Não ficará bem. Não mais. Nunca mais. Talvez nunca mais. Tudo tornou-se um pesadelo. Tudo. Talvez, quem ainda virá? De onde virá? Se é que vem. Ou não virá. Ninguém mais? Talvez nunca mais. É pegar ou largar, só com isso se pode contar. O que fazer? Não há mais palavras. Já não se pode mais partir. Já acabou há muito tempo. Seria bom se todos esperassem. Bom saber que logo partirei[…]”

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Os planos são longos, interminavelmente lentos. Essa estagnação, a chuva perene, o vagar sem rumo do personagem entre a “natureza-morta”, são elementos que estão ali para contestar o próprio tempo. Eles evidenciam que nos planos de Tarr não existe a possibilidade do novo e muito menos do progresso individual. A condenação da espécie humana está dada como algo impalpável, mas presente, irreversível e intrínseca.

A câmera na mão é sorrateira, segue os personagens em seu íntimo, aproximando-se do estilo documental. Há um formalismo no uso do preto e branco contrastado, fotografia esta que é recorrente em seus filmes, deixando clara a proposta de uma dureza mórbida do transcorrer da vida.

O movimento dos personagens é fundamental nos filmes de Béla Tarr – a constante perambulação e o ir e vir incessante. Contudo, esses elementos não representam mobilidade. O ato de andar está sujeito ao imóvel, é como andar em círculos num quarto fechado. Esse deslocar não leva a um objetivo, muito menos a algum lugar.

Ainda assim é visível a pretensão dos personagens em avançar, buscar uma realidade material diferente daquela. A migração ou o sonho de uma carreira artística são desejos rapidamente embotados pela forma trágica como Béla Tarr molda esse universo. Há um pessimismo que praticamente beira o apocalíptico e se realiza na forma como ele trata da condição humana e sua progressiva danação, passando assim, para uma análise mais frontal de possível identificação universal.

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A tônica que Tarr demonstra em tela nada mais é que a vontade de desvelar o que está debaixo da ponta do iceberg. É tentar tornar visível, através do slow cinema, o que parece ser invisível e de impossível representação, pois tange uma camada humana muito íntima. Ele faz do espectador um canalizador do sensível, acompanhando por muito tempo, em suspenso, o desdobramento das relações humanas. Porém, nada há em oferecer ou concluir senão o vazio e o irremediável.

É o esforço patético da vida. No ato final, Karrer fica de quatro e late contra um cão, revelando todo o lado primitivo que carrega os homens. Como um covarde, está cercado pela desesperança. Movimento desesperado para tentar se diferenciar da ambiência das pessoas daquele lugar, retomando ao homem anômalo nesse possível escape do poder, da imaginação coletiva, do entendimento social.

Danação é o primeiro passo revelador de como se moldou o slow cinema nos subsequentes trabalhos do diretor, características que se firmam ainda mais em trabalhos posteriores como Sátántangó, As Harmonias de Werckmeister, O Cavalo de Turim, entre outros.

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A MORTE DA LÍDER DE TORCIDA

Por João Pedro Faro

“Gosto de voltar aos locais para verificar as suas mudanças, mas também as modificações produzidas em mim mesmo por relação àquele espaço. Tento criar um sentido a partir do encontro das duas variáveis da mudança, a minha e a do espaço.”

James Benning em entrevista ao À Pala de Walsh

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Ao final do primeiro segmento de Landscape Suicide (1987), uma voz anônima narra sua primeira noite na cidade onde ocorreu o crime que acabamos de acompanhar: “Quando comecei a história me senti tão mal por Bernadette que negligenciei sua vítima. Na noite que fui para Orinda, tudo ficou mais real. Alucinei com uma figura escura em meu quarto de hotel”. Como mais um dos segmentos fragmentados que formam Landscape Suicide, essa narração dura pouco mais de 15 segundos e acontece enquanto James Benning fixa a imagem em um mapa da cidade. O trecho é seguido por diversos enquadramentos da paisagem suburbana de Orinda, que concluem a breve narrativa do assassinato de uma jovem cometido por sua colega em um momento de fúria. Nesses momentos finais da primeira parte do filme, impulsionam-se as perguntas essenciais de Benning que estruturam todo o filme: Quais acontecimentos permitem com que determinado som, espaço e tempo transformem-se em uma memória fílmica? Quais são esses sons, quais são esses espaços e, o mais essencial, qual a duração desse tempo?

Em primeiro lugar, o crime de tabloide: a menina sem graça da escola que esfaqueia até a morte sua colega popular. O ponto de partida é o terreno mais frágil possível para uma análise sociológica das mais típicas relações do norte-americano comum e que parecem importar tanto ao cinema, ainda mais ao cinema oitentista. No caso de Benning, as intenções são bem mais cinematográficas. Ao diretor, não interessa a análise do que não conseguimos ver, mas sim de tudo que já vemos. Interessa o que existe imageticamente para qualquer cidadão médio, mas que parece nunca se relacionar com um evento tão extraordinário quanto um assassinato. Porém, a partir desse evento, tudo que é visualmente banal irá inevitavelmente integrar o macabro. A rua em que Bernadette morava será a partir de agora registrada como o espaço em que morava uma assassina. Uma cidadezinha tão remota quanto Orinda agora é palco de um crime que ocupa matérias em revistas de grande circulação. A manhã em que se descobre um cadáver parece ter uma paisagem diferente de qualquer outra manhã, mesmo que nada tenha realmente mudado. Esse local tão comum estará registrado em todas as testemunhas como parte de um total maior que é a memória, onde ele será um local mórbido. Consequentemente, os sons (um rádio tocando Pretty Young Thing, as bolas de tênis batendo em uma quadra, a passagem movimentada de carros em uma rodovia) e as imagens (um estacionamento, uma colina, um outdoor) assimilam o ideal cinematográfico que o autor procura ao registrar o que fica marcado com cada espectador desse crime. Benning comprova as transformações semânticas de um lugar através dos planos e da precisão com o que enquadra, como se fossem definitivamente flashes de alguma (ou algumas) memórias.

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O que permite potencializar o que poderia ser descrito como documental, como busca de um cinema que se aproxima da realidade, é justamente a encenação. No segmento de mais de 20 minutos, em que a atriz Rhonda Bell reencena o diálogo de Bernadette com a polícia, Benning cria um senso hipnótico perturbador (parecido com o que o diretor faz em seus filmes constituídos apenas por paisagens). Primeiro, há uma sutil e curiosa decisão em buscar uma atriz muito mais parecida com a vítima de Bernadette do que com a própria. Segundo, a performance de Rhonda carrega um peso quase dreyeriano em que o close da condenada possibilita tudo em quadro. O olhar impassível de Bernadette ao relatar seu crime e a voz mecânica de seu interlocutor, nunca mostrado, centralizam o poder de Benning em experimentar a paisagem de um rosto em estado pós-traumático. Aqui retornamos ao que temos como essência: ao deixar com que o plano se estenda, ao dilatar o tempo daquele determinado espaço, Benning consegue enquadrar todos os elementos que lhe interessam da personagem em um único plano que se mantém entre breves cortes para o preto, que funcionam quase como sinapses nervosas transmitidas pela montagem. Não faz parte de Landscape Suicide estudar o que motiva ou o que constrói um assassino, mas sim como as ações destes afetam toda a constituição de uma cena.

Bernadette encara seu interlocutor enquanto diz “Tenho muitos sentimentos de inferioridade. Penso muitas coisas ruins sobre mim mesma”, tentando explicar como chegou ao ponto de matar sua amiga. Mas ao invés de centrar-se nessa frase para tentar compreender melhor o acontecimento, ela apenas existe para dar mais força ao que é mais custoso nesse momento para o filme: os olhos de Rhonda Dall enquanto repete as frases de Bernadette. É o contexto que justifica a potência de suas imagens.

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Após estabelecer sua estrutura na primeira metade, Benning reverte a cronologia de suas cenas para seguir os impactos fílmicos do serial killer Ed Gein. A segunda metade começa com as paisagens da cidade de Winsconsin que cercam o julgamento do assassino, três décadas antes do crime de Bernadette. O choque entre os registros da primeira para a segunda parte pode ser resumido em dois fatores principais. Benning abandona o colorido brega suburbano para estabelecer uma frieza impiedosa de uma ruralidade em nevasca, absolutamente abandona por qualquer vida (mesmo o veado que vemos correndo pelo bosque só é apresentado para que suas tripas sejam abertas no extenso plano final do filme). O diretor também está lidando com um crime histórico, portanto as implicações dos assassinatos de Gein traduzem-se cinematograficamente em uma brutalidade mais expansiva do que anteriormente (os animais presos, o cemitério, a caça, o som dos tratores). As constituições são mais rígidas, tendem ao horror de um isolamento total, como se as únicas imagens que poderíamos assimilar já fossem de uma natureza tenebrosa por si só. A barbaridade de Ed Gein em seu crime viria como consequência dessas imagens e desses sons naturalmente tenebrosos do ambiente em que vive, e agora, através de suas vítimas, estaria apenas retribuindo a esse espaço o terror que lhe foi herdado.

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Elion Sucher interpreta Ed Gein na cena de seu julgamento, com o único plano de duração próxima ao de Bernadette. Existe algo de clássico no personagem de Gein comparado ao da jovem estudante, é de uma ambiguidade emocional muito mais perversa. Não há mais fragilidade no assassino, a ambientação cinquentista cria caminho para um referencial verdadeiramente monstruoso. Afinal, como uma figura marcada na história norte-americana, sua presença constitui um imaginário bem claro de vilão, a memória criada a partir desse personagem tende aos cenários e as paisagens do que já é casualmente amedrontador. Os próprios documentos resgatados que Benning filma seguem essa linha. Enquanto no primeiro caso, o que foi deixado pela assassina foi uma carta ao seus pais, narrada com intimidade por Rhonda, o caso de Gein recebe anotações de como cortar carne humana. As imagens parecem menos banais, a encenação ganha uma força mais totalizadora justamente por representar uma narrativa mais fundamentada na popularidade e na clareza de suas consequências fatais.

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Não havendo nada mais importante para o cinema experimental do que o processo, Benning se torna o grande autor que é dentro desse nicho com a forma em que expõe seu próprio processo como parte integral da obra. Em Landscape Suicide, seu método enquanto realizador se encontra diretamente com a totalização do que quer tratar. Lidando tanto com a tragédia de página dupla da Rolling Stones quanto a tragédia de capa da revista Times, Benning reforça com seu filme o processo de revisitação do cinema que nós mesmos criamos com nossos traumas. Por meio deles, surgem imagens eternas, consequência de um processo muito pontual de registro dentro de um processo mais constante e banal de observação. Seja o que for que estejamos observando, ouvindo, presenciando.

No fim, os rostos só existem para que as paisagens existam, os rostos são as próprias paisagens e as paisagens também são rostos. Por mais que a estruturação de Benning seja precisa, quase matemática, o produto de Landscape Suicide tende a somar essas constituições em presenças similares. Tudo é igualmente contaminado por angústias, medos e traumas relacionáveis. É talvez um dos mais bem-sucedidos em compreender o que há de mais abstrato entre nossas relações psíquicas e geográficas, justamente pelo seu controle de ritmo tão bem estruturado. Se uma paisagem é o que os nossos sentidos depreendem da parte de um espaço e as sensações a ele depreendidas são tomadas pelo fúnebre, todo registro dessa paisagem será como retornar às piores frações de alguma memória. Paisagem/suicídio.

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SLOW CINEMA

Norte-the-End-of-History

INTRODUÇÃO AO SLOW CINEMA
Camila Vieira

ESTÉTICA DAS CONSEQUÊNCIAS E O UNIVERSO DA CONCENTRAÇÃO NOS FILMES DE LAV DIAZ
Nadin Mai

NÃO À CASUALIDADE: EXPERIMENTAL FILM SOCIETY E TAO FILMS EM TEMPOS DE INTERNET
Pedro Tavares

KELLY REICHARDT E OS ACUMULADOS DE TEMPO NO GÊNERO
Gabriel Papaléo

IMAGEM ENQUANTO GESTO E GESTO ENQUANTO POTÊNCIA
Alan Campos

ALBERT SERRA E A MORTE REAL
Carla Oliveira


O SILÊNCIO DE A FÚRIA DE CHANTAL AKERMAN
Zoë Masan

A MORTE DA LÍDER DE TORCIDA
João Pedro Faro

LIÇÕES DE HISTÓRIA
Felipe Leal


A ONTOLOGIA DA IMAGEM PARTINDO DA HEURÍSTICA DO RECONHECIMENTO NO CINEMA DE LISANDRO ALONSO
Diogo Serafim

DANAÇÃO: O PESO DA EXISTÊNCIA PRESENTE NA ESTÉTICA
Bruna Dantas

VÍDEO: O QUE É SLOW CINEMA?
Arthur Tuoto

NOTAS SOBRE O CINEMA
Scott Barley

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LIÇÕES DE HISTÓRIA

Por Felipe Leal

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    É possível arriscar que para Hou Hsiao-Hsien –, que aqui logo chamaremos de ‘HHH’, e não mais por razões de abreviação e sinalização textuais do que pelo que será suscitado enquanto marca indelével e incandescente de autoria, a pequena memória enquanto produtora de história(s) – a luz está para seu cinema assim como a madeleine molhada de chá está para Proust: basta um encontro para que as funções vitais se espraiem em uma multiplicidade de estilhaços, para que o músculo palpite diferente, em busca não de um elo temporal perdido, mas de uma incidência em gradiente luminoso que possa salvaguardar a liberdade como um dia se olhou para fotografias para além da descartabilidade incessante do presente; cristalizar os sucessivos roubos da possibilidade de erigir ou semear futuros diante do país que não pôde respirar livre após a ocupação japonesa, logo recaiu num subsequente governo opressor sob a bandeira continental sangrenta da China. E se o toque do elemento-função, aqui, não fará reverberar as camadas involuntárias daquilo que já foi, ao menos não pelos mesmos princípios, o motivo se esconde neste início de filme que é um duplo nascimento: da luz, que retorna à casa depois de um apagão (e dá nome ao filho) e que não é para Hou senão a matéria bruta, inicial, do mundo.

Pelos mesmos princípios, não, mas decerto pela mesma “aquosidade” dos meios, das técnicas: do epicentro-objeto, Proust extrai as ondas do rememorar infectado, embriagado do exercício imaginativo de uma prosa que serpenteia pelo irresgatável, tornando-o o tempo vivo do amor, o fruto do imaginável; em A Cidade das Tristezas (1989), para a memória daqueles quatro irmãos e agregados destroçados pela guerra, HHH, se já não havia afirmado por obra (testemunho) e palavra a imperiosidade de seu fluxo observatório, distanciado, um laissez-être peculiarmente interativo, vem aqui densificar os gestos, dotá-los com a propriedade de capturar o movimento histórico para fazer o social pesar sobre o particular, e deste, somente deste, mostrar os frágeis fios do tempo que, à conjunção e entrelaçar dos milhões, compõem a verdade da memória, quase literalmente incrustando a equação física em tela: massa sobre um volume: à exceção da imagem violentamente frontal de Hinome, escancarada referência a Ozu, num instante precioso em que só a “rostidade” do cinema pode imaginar a tristeza de todos os mortos, desaparecidos e loucos, todos os planos são a equalização, a trazida a um mesmo grau de todos os ocupantes de um espaço e da extensividade do mesmo.

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O som irrompe de quíntuplas direções e imanta os microacontecimentos – é simultaneamente que os colegas discutirão desemprego, mentalidades escravocratas e intelectualidade e que o par fará confissões um ao outro sobre a surdez dele e sereias de vozes encantatórias, mas também que a melodia doce emanando do toca-discos e que perturba o ar e as folhas esvoaçando através da janela possa não tanto produzir quanto tornar momentaneamente uma dádiva a percepção do enamoramento, quando num corte da montagem um giro de perspectiva fará da luz um novo padrão sobre o rosto e a camisa simples abotoada, uma dobradiça de claros e escuros que culminam no corpo alegre ao fazer mímicas para se expressar. Sabemos que ela se apaixonou, ali, não pelo olhar de Wen-ching, pelas idiossincrasias de seu movimento ou pelo que ele havia escrito no bloco de notas, mas, antes, pelo todo, o momento que é-sendo pela mobilização de todas as suas partes. Não é por acaso, muito menos por autoria tornada palatável pela firmeza e abismo da proposição, que HHH dirá do seu interesse no cinema que este não é o de relatar histórias, mas fabricar ambientes, ou antes ambiências: é no espaço e no que fazemos dele/com ele que os fantasmas se amontoam, que as memórias se dispersam e onde povoam. Que a literatura tenha não só popularizado, como também facultado que lançássemos olhares sobre objetos antes talvez “quaisquer” – os espelhos, as baratas, os subsolos e os duplos, as neblinas e as mansões –, parece curioso que a escolha cênica (moral!) de Hou não consiga não retirar do mundo, também, certos véus, descobrir a tessitura transparente da História.

Ora, há aí quase uma teoria da espacialidade posta em prática, mas cujo requerimento único é o de deter-se, ficar à espreita, pacientar, deslizar o globo ocular, apalpar, com ele, a descamação do fluxo mnemônico já há muito desimpedido das tolices lineares. James Benning já o disse muito bem e sua carga expoente de dedicação, em matéria fílmica e visão-do-mundo, desdobra e reflete o léxico que vem a inseri-lo na santidade disto que veio a se chamar de slow cinema: não interessa de quê, nem para quê: o aprendizado é uma função do tempo. É preciso, em outras palavras, dar, ao tempo, tempo – para que algo advenha em forma de uma apreensão sobre o que se vê, se ouve, se cheira, se sente no epitélio. Mas, se as perguntas refutadas sinalizam à situação espectatorial esse momento indivisível e de certo modo obsceno de co-criação, “co-dotação” do sentido (é angustiante, terrível, sentir-se observado observando algo), aquela que pode interessar é sobre o porquê: por que se aprende no tempo?, e sua resposta não poderia ter se aferroado sobre uma superfície mais triste na filmografia de Hou do que a de A Cidade das Tristezas. Ainda que Flores de Xangai (1998) ou A Assassina (2015) re-explodam as potências sensitivas e pictóricas em estilísticas tão assombrosas quanto, é somente aqui que ainda um outro elemento basilar – a narrativa – se afeiçoa dos movimentos fugidios e sinuosos da memória.

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Nos flashbacks, há uma redução dupla, pois que eles são menos que explicativos ou próximos de qualquer apregoação causal-justificativa: o retorno ao passado de Hou é antipedagógico e também, fator curioso, a princípio só parece reiterar aquilo que as cartas, anotações e palavras fazem emergir. Mas, vê-se logo, o princípio e a resultante mais uma vez se igualam: é só por poder ser livre por natureza, na circunscrição daquela obra, que a memória flutua livremente nesse desbotado melancólico pelos espaços e gestos mortos. E quem assim o promulgou, que a memória não servisse que a si mesma? Aqueles que esculpem ou os que se enamoram do tempo, tornam-se ondulantemente passivos em relação a ele, sua passagem se estirando em interconectividades indispensáveis? Quem, não tivesse partido das orelhas atentas ao acariciar do vento e dos olhos deslumbrados e cerrados a contemplar, chegaria a transmitir a história do mundo que está nas coisas, não mais tão-somente nas fortificações ou nos milhões em campo, mas também nas lâmpadas e fotografias, bonecas e cartas?

Porque é isto: é por isto mesmo que Hou insiste no rádio, aquele ambiente de uma coletividade imóvel a auscultar a macroestrutura que a atinge, nos planos que multiplicam as bordas e instauram subnúcleos, inserem passantes, participantes, o mundo em energia cinética e em sotaques até então imperceptíveis pelas suas nuances; a bem da verdade, Hou é Wen-ching enquanto pensamento cristalizado, nem que por um breve momento, e ching é toda a epítome do cinema do primeiro, por reverso: ao preparar-se para tirar a fotografia que veio talvez a imortalizar a cena mais impiedosa e memorável da obra, aquela que inegavelmente canaliza toda a tristeza cabível aos massacrados num instantâneo posado de casal e filho, ching detém-se diante do contracampo antes de ir sentar-se com a família, mãos à câmera, olhos “na cena”, como se ao mesmo tempo lançasse um último olhar à felicidade e antevisse que aquela captura os salvaria da morte, aliás: do esquecimento.  A dedicatória é a tarefa básica do cineasta e que vem ali a ser transmutada num momento eminentemente heroico, a junção de todas as figuras ao mesmo tempo, num só lugar, sentimento fechado temporariamente – mas só àqueles que param para contemplar e lembrar, imaginar e antever.

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O SILÊNCIO E A FÚRIA DE CHANTAL AKERMAN

Por Zoë Masan

 

“Que importa pois que o desespero ignore seu estado, se nem por isso deixa de se desesperar? Se o desespero é desvario, a ignorância ainda o torna maior: é estar ao mesmo tempo desesperado e em erro: Tal ignorância está para o desespero como está para a angústia, a angústia do nada espiritual reconhece-se precisamente pela segurança vazia do espírito. Mas, no fundo, a angústia está presente, assim como o desespero, e quando se suspende o encantamento das ilusões dos sentidos desde que a existência vacila, o desespero que espiava, surge.” — Søren Kierkegaard

Planos estáticos, ações lentas que priorizam um minimalismo narrativo, o silêncio e a hipervalorização da subjetividade são algumas das caraterísticas que mais se mostram presentes ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Esses elementos são instrumentalizados para fazer uma constante denúncia de uma degradação mental. As personagens de Akerman se destroem e voltam à vida para se destruírem novamente, em um exercício sádico pela busca da libertação mental.

Em suas produções, Chantal Akerman fazia uso de planos fixos que valorizavam o minimalismo das ações dentro do enquadramento. É também aplicada uma subjetividade latente muito peculiar, evidenciando os ideais mecanicistas e repetitivos do neoliberalismo, expondo os efeitos do patriarcado inerente a esse neoliberalismo e deixando evidente alguns efeitos mais subjetivos desse mecanismo: os transtornos mentais.

Na obra mais aclamada de Akerman, Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce 1080 Bruxelles (1975), é narrada a rotina de Jeanne Dielman, uma mulher invisível e invisibilizada por sua própria rotina, configuração familiar e profissão. Jeanne realiza diariamente as mesmas ações e sua solidão também fica explícita em toda narrativa, no nível da estrutura e do sentido por meio de um elemento em especial: o silêncio. A relação de Jeanne com o filho, os cômodos de sua casa, e até mesmo a profissão sexual que ela exerce são envoltas pelo silêncio. Esse elemento é amplamente trabalhado ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Através do silêncio é possível amplificar subjetividades que talvez ficariam deturpadas pelo diálogo. Além disso, o silêncio é elemento que delineia tensões, que associadas à rotina quase mecânica da personagem potencializa a angústia para quem assiste. David Bordwell define esse modo estilístico dizendo que “o cinema de arte é menos preocupado com a ação do que com a reação; é um cinema de efeitos psicológicos em busca de suas causas” (Bordwell, 1979, p. 58).

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É interessante como Akerman brinca com a temporalidade por meio de planos longamente hiperrealísticos, fazendo com que a deterioração mental — que reflete na deterioração da rotina — fique cada vez mais aparente. A ruptura mental de Jeanne não é algo que acontece repentinamente, é apenas um efeito de uma série de violências silenciosas as quais a personagem é submetida ao longo do filme. Akerman trabalha detalhadamente todos os movimentos da personagem e a rotina de Jeanne passa a se deteriorar diante dos nossos olhos.

Um ponto interessante é que dentro de um cinema do tédio, até mesmo o ato de fúria se torna previsível. Akerman não pretende surpreender com o plot, mas observar reações e causar uma tensão claustrofóbica no espectador. Talvez Jeanne Dielman seja o filme de Akerman que mais evidência e instrumentaliza os maneirismos do slow cinema para criar uma narrativa disfuncional propositalmente sistemática.

Em L’homme a là Valise (1983), Chantal Akerman também faz um estudo da rotina, dessa vez, alterada por um elemento estranho, um visitante. A construção narrativa trabalha com um subjetivismo tão intenso que é possível serem feitas diversas interpretações acerca do que realmente significa a figura masculina que persegue Akerman em seu próprio apartamento.

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    É possível observar em L’homme a là Valise alguns fatos que acontecem em cena: um visitante chega com uma mala no apartamento da personagem interpretada por Akerman, e rapidamente passa a se tornar um elemento indesejado, ceifando a privacidade com sua capacidade de invasão dos espaços privados da personagem. A partir disso, é possível trabalhar com diferentes perspectivas quando se analisa o filme, uma delas é a do bloqueio criativo representado pelo elemento do visitante que se instaura e age como um bloqueador de rotina, impedindo que a personagem possa realizar suas tarefas do dia-a-dia, como por exemplo, escrever. Também é possível interpretar esse visitante como um elemento patriarcal que persegue e sufoca a personagem onde quer que ela vá. No entanto, será analisado aqui uma perspectiva ainda mais subjetiva, que une um pouco das interpretações anteriores. O visitante com a mala pode ser visto como uma alusão clara à depressão e demais transtornos psicológicos. Primeiramente, a personagem está em um estado de isolamento extremo, visto que todo o filme se passa dentro desse apartamento onde não há visitas e quase nenhum contato com o mundo externo, com exceção de uma TV velha e um telefone. Em todas as cena, o visitante quebra esse isolamento, mas não completamente. Esse visitante age como um elemento de supressão dos sentidos mais básicos e fundamentais do ser humano. A presença dele torna a personagem de Akerman incapaz de comer, tomar banho, cozinhar, trabalhar, se comunicar, e posteriormente, sair do quarto sem precisar traçar planos para não o encontrar em algum cômodo. Esse elemento se instaura como parasita psíquico que aleija e deixa a personagem gradativamente vulnerável.

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No terceiro ato, é possível perceber que a incapacidade da personagem resulta em um quarto bagunçado, com todas as roupas no chão, uma tv velha em cima da cama e um estado de inércia espiritual muito profundo. O cinema de Akerman é um cinema de gradação de efeitos e de um estudo de subjetividades quase que autobiográfico. Chantal Akerman cruza muitas vezes a linha do existencialismo e culmina em um niilismo psíquico, como efeito natural da deterioração mental na vida de seus personagens, e porque não, em sua própria vida.

    A angústia existencial é um denominador comum nas principais obras de Akerman. Há um apreço pela utilização do silêncio e de planos estáticos para emergir uma não-dramaticidade que só leva ao expurgo psicológico. A diretora trabalha com “a estaticidade do olhar estendido da câmera configura um espaço e tempo em que a tensão lentamente, inevitavelmente, se constrói, chegando a um ponto de crise psicológica” (FLANAGAN, 2012, p. 82).

    Akerman se utiliza dos maneirismos do slow cinema para exercer uma fenomenologia existencial sob as estéticas do gênero. O elemento de angústia no cinema de Akerman pode ser entendido como ponto de desenvolvimento da própria mise-en-scène, onde são compostos, em sua maioria, cenários de dramatização sóbrios, com elementos de cena que sinalizam uma falsa organização que precede o caos. Essa angústia se dá a partir de pontos aparentemente distintos, mas que fazem uma interseção em comum: a angústia sexual, a angústia da morte e a angústia existencial. Falando primeiramente da angústia existencial, é possível observar como essa se dá frente ao sentimento de completo vazio e esse sentimento aflora frente a divagações e conflitos que os próprios personagens sofrem diante da tela. Desilusões amorosas, incomunicabilidade, depressão, ódio e exaustão mental. Nesses personagens, é possível ver a evolução desse sentimento de nada, Heidegger classifica isso como “a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser)” (HEIDEGGER, 1996, p. 59). O nada como aspecto naturalmente humano percorre em toda a estrutura fílmica como algo praticamente determinista, um sentimento inevitável diante desses conflitos e da própria existência.

Akerman consegue conciliar elementos como angústia e vazio no drama Je, Tu, Il, Elle (1979), onde diante de um rompimento com sua namorada, uma mulher entra em uma espiral depressiva. A angústia sexual presente se manifesta a partir da repetição compulsiva da personagem que come açúcar de um saco de papel, sua tentativa de escape através da escrita e eventualmente através de outras relações sexuais. Parece que, em todo o momento, há uma preocupação muito grande em esconder a dor real da personagem e todas suas potencialidades, pois a angústia que acontece internamente é muito mais devastadora do que se mostra aparentemente.

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A angústia leva a personagem a encontrar um caminhoneiro, e com ele, ela tem uma relação sexual. Nas cenas com o caminhoneiro, há um empenho aparente da personagem em tentar estabelecer um contato mais profundo com o caminhoneiro, demonstrando que, diante do rompimento, existe a necessidade urgente de continuar o contato sentimental e sexual com alguém. As cenas são escuras, com enquadramentos que quase tiram a personagem de Akerman do plano. É como se fosse um momento vergonhoso de busca por uma válvula de escape. Isso fica claro quando o reencontro com a namorada acontece e, novamente, o elemento da expurgação aparece em uma das mais belas cenas de sexo do cinema. É um alívio em meio à angústia latente que existe na maior parte do filme. E da mesma forma que o reencontro é purificador, o abandono toma a mesma proporção de devastação total e isolamento.

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O curta Saute Ma Ville (1968) sintetiza muito bem como a decomposição da mente se dá no cinema de Akerman. Em seus pouco mais de 12 minutos, o curta mostra uma rotina à beira do caos através de uma observação intensa da personagem que, ao voltar para casa, arquiteta o próprio suicídio. A observação intensa da personagem para si mesma, seja através do espelho ou sentada no chão da cozinha, engraxando os sapatos, mostra um misto de auto crueldade e piedade muito grandes. De forma implícita, ela se questiona se deve mesmo levar seu plano adiante, ao mesmo tempo em que percebe que continuar com a própria vida não vale a pena. Akerman nos mostra uma mulher-bomba, dentro de tantas outras mulheres-bombas presentes em seus filmes. Quando a mente falha, todo o sistema falha e a libertação desse sistema deve acontecer da forma mais efetiva e definitiva possível.

O cinema de Chantal Akerman é marcado por uma repetição dos padrões que denunciam o fim da mente. A psique tem sede de obliteração e esta se dá através da morte e do sexo. A morte de si mesmo ou do elemento que a aprisiona. O silêncio é o som mais poderoso de fúria.

NOTAS:

  1. BORDWELL, David. To the Distant Observer. Berkeley; Los Angeles: California UP, 1979. Print.
  2. FLANAGAN, Matthew Slow Cinema: Temporality and Style in Contemporary Art and Experimental Film. 2012
  3. HEIDEGGER, M. Que é Metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996

 

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