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DAWSON CITY – TEMPO CONGELADO (Bill Morrison, 2016)

cine-op

Por Gabriel Papaléo

Como traçar um passado através da referência, do gesto e do antropológico? O filme nasceu como explosivo, os mecanismos dele como indústria se confundem com a própria história americana, e em Dawson City – Tempo Congelado o efeito corrosivo do tempo é visível desde a arquitetura da cidade filmada e fotografada até as marcas de deterioração das películas ali encontradas.

O viés experimental da superfície da imagem no cinema de Bill Morrison ganha aqui uma dedicação historiográfica bem oportuna na exploração da investigação da origem dos mais de 500 rolos de filme encontrados enterrados num local onde era uma piscina. A partir disso a montagem de Morrison exibe essa paixão pela historia e informação, disposta a investigar o máximo de elementos possível nas fotos para representar visualmente historias esquecidas que foram tornadas mitos apenas nas artes, e cujas memórias são fósseis não desejados por revelar estruturas ambíguas na construção da cidade -e do país.

Nesse sentido é interessante o uso do didatismo como uma ferramenta de curiosidade historiográfica, como se a tradição oral do relato esquecido da Busca do Ouro fosse adaptado à apresentação focada em texto de Morrison – mesmo que a música constante e a ansiedade de traçar um panorama atrapalhem pontualmente. A concentração em observar a influência antropológica e as situações que se repetem nos filmes encontrados são as matrizes do manifesto da importância de salvar a memória e o potencial antropológico e emocional de influência do cinema, um diálogo de sombras palpável na película deteriorada que exibe o diálogo de um homem com uma figura irreconhecível pela corrosão completa de sua parte no quadro. 

Perto do encerramento, o texto de Morrison faz questão de lembrar que as marcas de corrosão das películas encontradas na cidade são singulares, que guardam um aspecto especial pela exposição à água. É como se o tempo fosse contemplado pela forma que ele imprime sua influência, ode à mudança dos tempos em um filme tão focado justamente na preservação da memória – algo que poderia ser contraditório mas impede o filme de ser reacionário politicamente, para reforçar a fé na memória como motor de transformação. O filme nasceu como explosivo e permanece como tal, de fato.

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Meu nome é Daniel (Daniel Gonçalves, 2018) e Travessia (Safira Moreira, 2017)

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Por Kênia Freitas

Filme de encerramento do Olhar de Cinema de 2018, Meu nome é Daniel de Daniel Gonçalves coloca em evidência a auto-representação no processo de produção cinematográfica. O documentário em primeira pessoa parte da vivência do diretor como uma pessoa com deficiência física, propondo uma perspectiva subjetiva desta vivência não limitada à doença – mas a múltiplas camadas desta existência. E o dispositivo narrativo utilizado para isso é o do documentário de busca, a procura por um diagnóstico da origem da deficiência.

Há porém em torno dessa busca dois filmes diferentes: o das imagens do presente produzidas para o filme, mostrando o cotidiano do diretor e a sua tentativa de obter o diagnóstico com novos exames e consultas e o das imagens amadoras da infância e da família de Daniel. O contato com esse arquivo move o filme não para a sua missão de descoberta médica, mas para o passado do diretor. O interesse desse segundo filme que se constitui pela revisita e pela montagem das imagens de arquivo é o de repensar pelo cinema às relações familiares e as experiências formativas de Daniel. Os dois regimes de imagem possuem intensidades e forças narrativas variantes: de um lado a pulsão delicada da montagem do filme de arquivo, de outro o dispositivo fílmico da busca no presente.

Ao final do filme, o diretor inicia uma discussão sobre como os privilégios de raça e classe foram fundamentais em seu percurso formativo: no acesso aos tratamentos médicos, às escolas e auxílios educacionais diversos e toda uma base estrutural de suporte. Esse privilégio também se constitui justamente no ponto de força maior do filme: no excesso de imagens familiares produzidas de forma amadora ao longo de décadas – do super-8 ao VHS, passando pelos diversos suportes de captação de imagem e som dos últimos 30 anos. O processo de rememoração e exploração de vivências formativas não se dá apenas por uma memória imaterial de Daniel e da sua família, mas por um amplo acervo de imagens que conformam, confrontam, complementam a memória imaterial na feitura do filme.

E quando estas imagens não existem? Como se constituem processos de rememoração e auto-representação histórica familiar e/ou individual no cinema na ausência desta materialidade imagética? Neste aspecto Meu nome é Daniel compõe uma relação de campo/contracampo com o curta-metragem Travessia, de Safira Moreira (exibido na mostra Pequenos Olhares). Contraposição que só faz sentido se pensarmos os variados processos de construção de auto-representação fílmica a partir da ideia de interseccionalidade que atravessa as identidades múltiplas e sobrepostas em co-relações de poder também nas imagens (ou nas ausências destas).

No início do Travessia somos confrontados com a fotografia em preto e branco de uma mulher negra segurando uma criança branca e a sua legenda: “Tarcisinho e sua babá. Dias D’Ávila, 15-11-63”. A partir desta foto o filme nos questiona sobre a quase completa ausência de imagens das famílias negras em um passado próximo – e a presença negra dessubjetivada (a babá sem nome) em fotografias como a que abre o filme.

Na perspectiva negra apresentada por Travessia não há arquivo familiar afetivo material a ser revisitado. O questionamento coletivo e geracional começa por confrontar e decupar uma imagem que não basta. Diante da ausência desta materialidade histórica da imagem da família negra, o filme assume que é preciso encenar novos acervos de imagens, uma encenação propositadamente anti-naturalista. O tempo esticado da pose e o de encarar a câmera das famílias negras contrapõem o incomensurável tempo de ausências. Neste caso, não se trata de articular dois regimes de filmes: o arquivo e o filme de busca; mas de um único regime a partir do que é possível: o de invenção de um arquivo de futuras imagens.

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Homens que jogam (Playing men, Matjaž Ivanišin, 2017)

olhar de cinema

Por Kênia Freitas

    Na sequência final de Homens que jogam o diretor/personagem contempla o horizonte e cantarola a música My pony, my rifle and me. A canção toma conta da cena e segue completa pelos créditos de encerramento do filme. Sua inserção nos remete a famosa interpretação de Dean Martin e Ricky Nelson, em Rio Bravo (Howard Hawks, 1959) e reforça o lugar do cinema e das imagens nos processos de construção da masculinidade que o filme investiga. Afinal, após a sua exploração, sua crise com e a sua desconstrução da masculinidade, Homens que jogam encerra o filme fazendo referência a um dos fundadores do cinema clássico dos EUA.

Através da imagem sonora citada o cinema de Howard Hawks entra no filme trazendo a sua construção de uma postura de masculinidade ideal. Em muitas das suas obras ecoa o questionamento sobre quais as condutas e escolhas difíceis fazem parte da constituição de um homem justo, honrado, de um herói. A criação dessas imagens e narrativas de masculinidade idealizadas atravessa toda a história do cinema narrativo. O  maior ponto de inflexão de Homens que jogam neste longo debate é o de situar a constituição da experiência masculina ocidental não pela perspectiva do universal, mas pelo que essa experiência possui de singular e específico em sua constituição.

    Em uma primeira camada a investigação sobre a performance da masculinidade é feita de forma direta por uma câmera documental que observa e/ou ouve as explicações de diversos homens no ato de jogar. Há uma evidente escolha pelo inusitado na seleção dos jogos: as lutas de azeite na Turquia, o rolamento de queijo pelas ladeiras da Itália, a Morra jogada com passionalidade hipnotizante na Croácia e na Eslovênia, entre tantos outros. O filme se entrega e nos guia a esses universos de convivência lúdica exclusivamente masculinos. Universos que são ao mesmo tempo de competitividade, de relações de poder e de domínio, mas também de prazer do contato e do encontro. A forma de filmar é a do encantamento, da vibração e do gozo conjunto dos espectadores com os homens filmados em seus múltiplos jogos.

Grande parte desta performance de construção da masculinidade é demonstrada pela disputa e contato dos corpos filmados nos jogos: quem tem mais força, quem lança melhor, quem permanece no círculo de dança por mais tempo, etc. Mas trata-se também como explicam os  jogadores da Morra de “entrar na cabeça do outro”, da disputa por poder também por jogos mentais de quem emana com mais convencimento a projeção ideal de masculinidade. O lúdico e o violento tornam-se elementos inseparáveis nestes processos.

Então, valendo-se de todo artifício meta-narrativo do documentário performático contemporâneo, o filme propositadamente se quebra diante do espectador: mudando o dispositivo do seu funcionamento até aquele momento. Com um intencional e descarado cinismo o narrador anuncia ao público que o diretor está em crise e não sabe mais o que filmar. E, para que nenhum espectador tenha dúvidas, a crise é filmada da forma mais exemplar possível: o homem branco sozinho, prostrado e pensativo diante da sua cerveja. A partir dessa quebra o filme assume o cinema também como mais um jogo performativo entre os outros filmados anteriormente. O documentário vira a câmera para si, encenando a fragilidade destas construções de masculinidade impostas e as suas consequências sobre os homens. A primeira parte vibra com os jogos e embala o espectador na investigação. Começando pelo próprio filme, a segunda torna-se artifício de desconstrução do ato de jogar (e também do ato de interpretar e atuar, como sugere o sentido da palavra em inglês no título original do filme).

Assim o fazer cinema, o ato de construir ou montar imagens narrativas é pensado como parte desta performance de construção de masculinidade. A ideia de uma crise de criatividade ressitua o filme de forma crítica na discussão do imaginário de uma performance de artista homem também idealizada e limitadora: o imaginário do artista/diretor que deve ser genial, um grande homem (e não somente um realizador de imagens). O não saber como seguir o filme (que leva as não-imagens) torna-se uma tradução da impotência expressiva masculina.

E diante da impotência de performar o jogo, o filme passa a investigar o substituto possível: o prazer não de jogar, mas de assistir a outro homem jogando. Ou seja, o lugar da pulsão escópica como parte ativa na construção desse papel de masculinidade e do seu gozo. Esse assistir pode ser tanto individual: o relembrar de uma partida histórica de tênis; quanto coletivo: a recepção de uma multidão em transe (multidão majoritariamente masculina) do atleta vitorioso. Neste ponto, a primeira parte do filme é ressignificada dentro da narrativa. O espectador do documentário é implicado na observação sobre o prazer escópico que o filme de início proporcionou e agora esmiúça como parte constitutiva de uma forma de ver que corrobora na constituição de ideais de masculinidade insustentáveis.

E voltamos as sequências finais com esse diretor/personagem prostrado, impotente para seguir com o processo de investigação deste tornar-se homem coletivo e singular pelos jogos e pelas imagens dos jogos. A letra de My pony, my rifle and me fala justamente sobre um sonho de um vaqueiro solitário (acompanhado apenas por seu cavalo, seu rifle e por si) de chegar a um lugar idílico, um lugar inalcançável  e imaginário sem as obrigações sociais e de trabalho. No filme, um lugar talvez em que não seja mais necessário aos homens fazerem papel de homem nos jogos pitorescos, nas relações da vida e, especificamente, no jogo cinema.

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OLHAR DE CINEMA: Guia de Filmes – Parte #2

Por Pedro Tavares

698954288_780x439PEGGY E FRED NO INFERNO:  DESENLANCE (Peggy and Fred in Hell: Folding) de Leslie Thornton

Ainda que este filme seja uma junção de filmes produzidos entre 1984 e 2015, assusta a potência como unidade. Este é o filme coming of age de Andy Warhol, a ficção científica possível de Vertov (para Warhol, a imagem, para Vertov, o som) e um encontro com a obra de Thornton, sempre interessada nas funções básicas do cinema – interpretativas, significativas e assertivas.

698954288_780x439A NAÇÃO MORTA (Tara Moarta) de Radu Jude

Duas experiências: ver e ouvir. Ouve-se um diário de um médico, que nada mais é que a reverberação da situação de um país entre a 1ª e a 2ª guerra. A destruição da Romênia não está nas imagens, espécie de irregular mescla de fotos chocantes e tons acinzentados e sim na audição.  Este é o caso de uma divisão tão nítida que é difícil encontrar equilíbrio. O que se vê é impactante, mesmo que pareça um slide, mas o que se ouve é um depoimento em monocórdio, desinteressado, em oposição às imagens.

olhar de cinemaDRVO – A ÁRVORE (Drvo) de André Gil Mata

Ainda que Tarkovski seja lembrado por todo filme, fica mais evidente que o filme de Gil Mata entoa prólogo e epílogo para O Cavalo de Turim de Béla Tarr. Um filme que parte das mesmas angústias e do invisível para uma dicotomia sobre o indizível – falar sobre o que não é possível fora contemplar e se entregar. Um belo filme.

olhar de cinemaSACO SEM FUNDO (Meshok Bez dna) de Rustan Khamdamov

Contar um conto. O tributo à fala pelas imagens cria um embate em crescendo muito curioso entre a palavra e a imagem e nem sempre esta batalha cria momentos relevantes. Fica o deleite visual, mas pouco sobra além disso.

olhar de cinemaMÃE PRETA (Black Mother) de Khalik Allah

Uma versão transcendental de Field Niggas. Allah é menos bruto, ainda que repita o mesmo modelo, e mais interessado em questões históricas e espirituais que chegam ao mesmo ponto de partida de seu filme anterior – força e intolerância – com extrema beleza.

olhar de cinemaUM ABRAÇO NA SORORIDADE (Yours in Sisterhood) de Irene Lustzig

Filme completo como uma parabólica sobre o feminismo e o tempo – e como infelizmente nada mudou a respeito disso. Por outro lado, é curioso como o filme de Lustzig fala mais quando as palavras silenciam. O momento mais forte aqui é quando há uma placa ao fundo, após um depoimento, que diz “Por Deus, pelo país” que justifica um bloco inteiro de depoimentos sobre uma nação doentia.

olhar de cinemaFABIANA (idem) de Brunna Laboissière

Curioso como o filme após alguns minutos vira um jogo sobre adivinhar as  motivações reais de Fabiana. Em cada ato e palavra questiona-se intenções de Brunna Laboissière e como a saturação do método documental do chamado novíssimo cinema  brasileiro derruba o filme. Pouco interessa ao filme o que há em Fabiana de verdade, suspostamente uma figura exótica em um mundo masculino e sim o que ela representa – outro grande pilar saturado do cinema brasileiro contemporâneo.

ochaleeumailhaO CHALÉ É UMA ILHA BATIDA DE VENTO E CHUVA (idem) de Letícia Simões

Entre um filme de caráter observacional e um filme-carta, o que se extrai daqui é a coragem de Letícia Simões em expor as fragilidades desta congruência. Elas de certa forma potencializam a proposta de tributo a Dalcídio Jurandir, por onde os dois caminhos escoam e se justificam. Não é um filme de apenas momentos brilhantes numa simples matemática, mas os que possui são marcantes.

olhar de cinemaEULLER MILLER ENTRE DOIS MUNDOS (idem) de Fernando Severo

Como diz o título, Euller está em dois extremos e os dilemas são comuns. Eles se tornam mais ainda pela frontalidade que Fernando Severo trata do assunto. As questões tornam-se mais práticas que filosóficas e mais uma comprovação que uma motivação para o futuro – não há mais o que perguntar e sim fazer. Mais um necessário grito de urgência que um filme.

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O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva (Letícia Simões, 2018)

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Por Kênia Freitas

O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva parte da premissa de transformar o universo literário do escritor paraense Dalcídio Jurandir em uma experiência cinematográfica. Para isso o filme utiliza como elemento de construção os registros de uma viagem a trabalho que Dalcídio fez à ilha de Marajó inspecionando escolas (cartas enviadas aos familiares, relatórios de trabalho e anotações em seu diário pessoal, etc.). Não se trata de usar o material para se fazer um documentário biográfico, ou de recorrer aos livros ficcionais do escritor para adaptar diretamente as suas histórias. O que o filme ambiciona, com a sua premissa simples, é operar uma tradução intersemiótica do universo de percepção e criação do autor paraense – não apenas as suas obras, não apenas a sua vida, mas a imbricação obra e vida como elemento de expressão artística particular.

Os registros escritos deixados por Dalcídio tornam-se então ao mesmo tempo portas de entrada geográficas e subjetivas do filme ao arquipélago de Marajó e elemento de ficcionalização da diretora, e também escritora, Letícia Simões – criando de sua escrita real retrabalhada o Dalcídio personagem do filme. O Dalcídio do filme existe apenas na dimensão da narração pelas cartas lidas em voz over. Este Dalcídio também inspeciona escolas em Marajó e escreve incessantemente a sua esposa Guiomarina sobre o seu cotidiano solitário, os problemas no trabalho, os encontros felizes com desconhecidos, a sua solidão e cansaço e as saudades que sente dela, de casa e do filho, Alfredo. O campo sonoro do filme é composto pelo trabalho de som do coletivo O Grivo e, em grande parte,  pela narração em off que mescla essas experiências reais ficcionalizadas, em um roteiro que organiza as impressões diversas da viagem até esta ser interrompida por uma tragédia familiar.

A dimensão imagética do filme é guiada também por essa fabulação dos registros escritos transformados em narração e opera um deslocamento temporal dos anos 1930 para o presente. Assim, a diretora percorre as ilhas de Marajó refazendo os percursos de barco e caminhada de Dalcídio, inspecionando escolas, hospedando-se em fazendas, percorrendo os caminhos descritos pelo autor. O filme deixa pistas nesse refazer de seu ato de criação narrativa livre: em algumas cenas é o texto que conforma as imagens; em outras, as imagens moldam o texto – em geral, não podemos saber e não importa.

Pelos registros de Dalcídio as imagens do filme começam a operar um percurso de fora para dentro, do distante para o próximo, do coletivo para o singular. Assim, aos poucos, a narrativa encontra e entrevista moradores de diversas ilhas, dando ao espectador um vislumbre cada vez mais concreto e demorado das subjetividades encontradas: os adolescentes que querem e/ou precisam ir estudar em Belém, dos professores e as suas pelejas para continuarem o trabalho, do pai que sonha com os filhos formados, etc. A vida é úmida e difícil, a vida de Dalcídio longe de casa também.

O tempo no filme apresenta uma duplicidade, ele é a marcação permanente do transcorrer cotidiano dos dias pela precisa datação das cartas e também a permanência do que pouco ou nada se altera dos anos 1930 até 2018. A sobreposição proposta pelo filme dos registros escritos de Dalcídio no passado e das gravações da diretora no presente é feita geranda muito mais sentidos de complementaridade do que de estranhamento por uma passagem temporal. A paisagem do rio tão presente marca esse lugar de uma permanência imponente, mas falsa: sem grandes agitações ou avisos o tempo transcorre sem cessar; sem avisos e na trivialidade da troca de cartas, as tragédias acontecem.

Seguindo o fluxo narrativo do filme de lenta mas constante aproximação ao universo literário de Dalcídio e as vidas em Marajó, quando essa tragédia é narrada já estamos dentro, próximos e na história singular. As palavras do escritor que nos guiaram e confortaram até o momento na vida árdua mas singela dão lugar a um necessário longo silêncio. Essa é uma bela demonstração do filme do seu entendimento da potência das palavras também quando ausentes, quando impossíveis de serem ditas. Enfim, uma demonstração da confiança na realização de sua premissa de que o espectador já está completamente dentro do universo expressivo de Dalcídio Jurandir proposto pela experiência fílmica, até quando faltam palavras.

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A NOITE DOS MORTOS-VIVOS (Night of the Living Dead, George Romero, 1968)

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Por Kênia Freitas

A exibição de filmes clássicos em festivais e mostras de cinema cumpre diferentes propósitos: apresentar um filme na tela grande para um novo público, proporcionar a circulação de uma cópia rara ou restaurada, propor releituras para um filme já canônico. Revisitar A noite dos mortos-vivos em 2018 cumpre os três propósitos de forma excepcionalmente pertinente. Isso porque falar deste clássico fundante de Romero em muito aspectos significa falar de sua recepção (de público e de crítica): falar do pacto filme-espectador e da quebra deste pelo final desconcertante.

E pensar essa recepção é situá-la não em um espectador imaginário, universal e/ou neutro; mas com posicionalidade histórica, racial e social. Uma reflexão neste sentido foi feita recentemente pelo curta-metragem Pele de monstro (Barbara Maria, 2017). No filme, estudantes universitários negros a UFJF falam sobre as suas leituras do racismo em A noite dos mortos-vivos e Mortos que matam (The last man on Earth, Ubaldo Ragona e Sidney Salkow, 1964).

Ao falar sobre o filme George Romero afirmava que não pretendia fazer um filme sobre questões raciais e a escolha de Duane Jones para o protagonista da história não foi determinada por este ser negro, mas por sua adequação de atuação para o personagem. Mas com ou sem intencionalidade, o filme situa-se de forma emblemática nas discussões de representação racial no cinema por sua construção de um herói homem negro e pela aniquilação deste herói. Na construção de um terror físico (a ameaça de ataque dos mortos-vivos) e também psicológico (o herói negro preso dentro de uma casa com diversas pessoas brancas lutando para sobreviver) o filme é uma inspiração evidente de Corra! (Get out, Jordan Peele, 2017).

Pensar as possíveis e múltiplas reconfigurações das recepções do filme diz respeito a entender as transformações raciais políticas dos últimos 50 anos. Em um contexto do final dos anos 1960, o herói negro executado com um tiro na cabeça nos EUA nos remete aos diversos líderes dos movimentos dos direitos civis assassinados: Martin Luther King Jr (1968), Malcolm X (1965), Medgar Evers (1963). Em um contexto contemporâneo, ganha relevo o fato de ter sido uma execução coordenada pelas forças policiais, trazendo para dentro do debate o movimento Black Lives Matter e a sua luta contra a sistemática violência e assassinato policial de pessoas negras. Mas essa é também uma recepção que se altera não apenas pelas mutações dos contextos histórico-sociais das políticas raciais, mas também pela produção imagética-midiática que produziu e ressoou essas transformações contextuais nas últimas décadas.

Em uma primeira camada a trama do filme em sua centralidade se resume em sete pessoas que se refugiam durante uma noite em uma casa no interior da Pennsylvania tentando sobreviver a um ataque inesperado e violento de pessoas mortas-vivas canibais. A primeira dessas personagens a ser apresentada é Barbra, que após perder o irmão devorado por um morto-vivo logo no início do história permanece quase o tempo inteiro em um choque catatônico, incapaz de responder agilmente a urgência da situação. O segundo personagem a chegar à casa é Ben. Ele chega no exato momento em que Barbra, após encontrar um corpo morto, está deixando o local. Os segundos de hesitação em que Barbra desnorteada pelos acontecimentos e pelo farol do carro de Ben tenta decidir se esse homem negro é uma ameaça maior do que mortos-vivos comedores de gente compilam em poucos segundos séculos do medo paranóico branco sobre a ameaça do homem negro.

Dentro da casa com Barbra, Ben se mostra o personagem incrivelmente bem equipado para sobreviver ao apocalipse dos mortos-vivos: ele analisa o local e com habilidade (e pouca ajuda de Barbra) constrói um forte de sobrevivência com janelas e portas reforçadas, uma arma, comida separada, rádio ligado para informações e etc. Após todo o trabalho feito, os dois descobrem que existem mais pessoas refugiadas no porão da casa: o casal Harry e Hellen e a filha deles gravemente ferida Karen; e o jovem casal Tom e Judy. Todos reunidos, inicia-se uma disputa de poder entre Ben e Harry sobre quais seriam os melhores procedimentos do grupo para a sobrevivência: permanecer na casa, refugiar-se ainda mais no porão, usar a caminhonete para buscar ajuda… Entre Ben e Harry há uma desconfiança imediata e crescente. Se Ben era o herói bem preparado para sobreviver a ameaça externa dos mortos-vivos, a ameaça interna da convivência enclausurada e coletiva com um homem branco torna-se cada vez mais tensa e perigosa.

No desdobramento desta tensão, um a um os personagens morrem, e Ben permanece o único sobrevivente… até que o homem negro encontra a polícia. Aliás, mais do que forças policiais, trata-se de um agrupamento de diferentes forças da lei e voluntários (algo mais próximo de uma milícia). Anteriormente no filme, uma reportagem de televisão assistida pelos personagens mostra o funcionamento do grupo de homens brancos fortemente armado e decidido a matar todos os mortos-vivos. Há na entrevista do xerife que comanda a operação um gozo explícito na execução dos seres: as instruções saem de forma simples sobre atirar na cabeça ou colocar fogo nas criaturas. Em relação a um EUA pós-Trump, imageticamente a horda de homens brancos organizados e armados nos remetem às cenas dos protestos da extrema direita em Charlottesville, Virgínia, em 2017.

As sequências finais de A noite dos mortos-vivos segue um ponto de reconfiguração do filme. Isso acontece menos pelo desenrolar narrativo: é de se esperar que o homem negro armado tenha mais chance de sobreviver ao apocalipse zumbi do que a uma batida policial; mas mais pela forma precisa e seca pela qual Romero executa a sequência. Enquanto cautelosamente Ben se aproxima da janela com a arma vigilante, do lado de fora a força tarefa policial varre a área de forma violenta e automatizada. Ao avistarem algo que se move dentro da casa (sendo Ben o “algo”), a ordem vem imediata, direta, sem hesitação: atire na cabeça. A montagem acompanha a velocidade da bala e já estamos dentro da casa com um tiro que acerta Ben em cheio e o derruba instantaneamente. Um susto. Na primeira sessão do filme durante o 7° Olhar de Cinema, esse susto veio do público como um grito coletivo de riso nervoso. No filme de Barbara Maria vemos a recepção dos estudantes negros ao momento: bocas que se abrem e continuam abertas incredulamente, braços que se cruzam em recusa/proteção.

Com a morte de Ben o filme também se paralisa, congela-se. A aproximação do cadáver do homem negro, o seu carregamento e o seu destino final empilhado com os mortos-vivos para a incineração são vistos por fotogramas congelados como fotografias. O movimento da câmera se aproxima e se afasta enquadrando e focando a ação e o seu desenrolar: o cadáver negro inerte e carregado, os homens brancos e suas garras e tochas. Reconstitui-se uma iconografia que remete aos primeiros registros imagéticos dos linchamentos de pessoas negras e atualiza-se permanentemente ao longo destes 50 anos a cada imagem midiática de um corpo negro assassinado e descartado na pilha não-humana dos mortos-vivos.

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DIANTE DOS MEUS OLHOS (André Felix, 2017)

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Por Kênia Freitas

Até que ponto é possível reconstituir memórias (coletivas e singulares) em imagens de cinema? Entendendo esse possível não apenas pelo caráter do realizável, mas também pela dimensão de uma potência (re)criadora da memória. É nesse universo de questionamento que nos lança o longa-metragem de estreia do diretor André Felix. O documentário aborda a trajetória da banda de rock capixaba Os Mamíferos, que existiu brevemente entre o final do anos 1960 e início dos anos 1970.

    A partir de entrevistas com os ex-integrantes do conjunto, Afonso Abreu, Marco Antonio Grijó e Mario Ruy, a rememoração de Diante dos meus olhos ancora-se no tempo presente. Seguimos os fragmentos de vida dos três personagens: a ida diária ao boteco de estimação, assistir à televisão em casa, dirigir o carro pela cidade. Baseando-se no encontro no filme com o cotidiano desses três homens de cerca de 60 anos com rotinas estabelecidas, criando situações encenadas em intensidade variadas para a câmera, a narrativa do documentário propõe uma reflexão nostálgica sobre os projetos geracionais perdidos, abandonados ou apenas passados. O passado em reconstituição não se apresenta como redentor do presente ou idealização de uma juventude que não retornará, mas já em si como um passado não realizado dos sonhos que acabaram enquanto ainda transcorriam. Esse encontro no filme constrói uma cumplicidade na forma de revisitar a trajetória da banda. Se a breve história da banda proto glam rock de contracultura que acabou em desentendimento cedo demais (antes mesmo de fazer registros da própria produção) é singular, a sensação de que “o sonho acabou” é coletiva de um retrato de geração.

    Essa proposta de memória coletiva se apresenta pela exploração espacial geográfica do filme: no presente, pela paisagem urbana da cidade de Vitória e, no passado, pela rememoração do Festival de Verão de Guarapari de 1971, o Guaparistock. Assim, a cidade atravessa a narrativa como o espaço unificador de uma juventude passada e do presente melancólico. Esse espaço urbano filmado concretiza um fluxo contínuo que não aguarda sonhos ou desavenças passadas para seguir sendo. Na ponta do passado, a briga da banda durante o Guaparistock torna-se o grande acontecimento rememorado pelos relatos distintos, ambíguos e complementares dos entrevistados. Sem reconstituir os eventos de uma forma linear ou didática, são as três perspectivas fabulantes dos personagens reais sobrepostas que interessam a narrativa do filme. E ao mesmo tempo, a própria história fracassada do festival de verão de Guarapari ressoa o destino final da banda.

    Em sua parte final, Diante do meus olhos alia ao seu percurso de (impossibilidade de) reconstituição de memória a um sentido de desintegração e dissolução das imagens na tela. Nesse momento, a paisagem da cidade dá lugar a um fundo verde de chroma key, a imagens do encontro com os personagens são substituídos por um arsenal de memes e imagens viralizadas na internet com interferências diversas de repetição, lentidão e aceleração da montagem. Tem-se ao mesmo tempo um processo de dissolução da imagem e de reconstrução da materialidade musical (a partir de uma sequência que mostra a fabricação de um disco de vinil). Nestas sequências, o documentário é invadido, contaminado, desestabilizado e ressignificado pelo campo experimental. A pergunta se desloca da possibilidade de se reconstituir memórias coletivas e singulares em imagem para a possibilidade e potencialidade do que em si é construir e sustentar uma imagem. Diante dos meus olhos desmonta e decodifica as suas imagens ressituando-as em um fluxo infinito de imagens manipuláveis e manipuladas do presente. Se, pelos dispositivos empregados no filme, memórias podem sim se reconstituir em imagens, o que o final do filme nos lembra é que a imagem em si e as construções fílmicas não nos asseguram de nada. Imagens como as memórias são fluxos que se estabilizam fugazmente para serem re-atualizadas na sequência.

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OLHAR DE CINEMA: Guia de Filmes (Parte 1)

Por Pedro Tavares

olhar de cinema

A CASA LOBO (La Casa Lobo) de Cristóbal Leon e Joaquín Cociña

Nos moldes de Jiri Barta, Leon e Cociña fazem uma aventura surrealista e soturna sobre o pesadelo materno. Muito mais dependente de seus vislumbres imagéticos e as possibilidades que o stop motion cria para este mundo que apoiado numa narrativa de fato, A Casa Lobo impressiona em seus primeiros minutos, o que vem depois é um ciclo de tentativas de renovação deste primeiro impacto, sem tanto sucesso.

olhar de cinema

A FLORICUTURA (La Fleurière) de Ruben Desiere

Um diálogo muito simples entre campo e extracampo como metáfora entre política e sociedade. O muro que separa ambos é o mesmo que separa o banco e um assalto. Numa floricultura presos a um plano de roubo, homens discutem a sociedade enquanto cavam o buraco para tal ação subversiva – antes mesmo de um ato de pura ilicitude em um mundo capitalista. Da imigração às guerras, estes homens, enquanto esperam se transformam no que falam.

olhar de cinema

HOMENS QUE JOGAM (Playing Men) de Matjaz Ivanisin

Coreografia da irracionalidade. Estudo do inquestionável comportamento bárbaro de homens em jogos e esportes com a distância necessária como comentário bem humorado sobre o que se exibe e principalmente a construção de uma simples questão: e se esta energia estivesse canalizada para outros fins?

olhar de cinema

SOL ALEGRIA (idem) de Tavinho Teixeira

Alegorias do subdesenvolvimento ou a grande chanchada europeia. Repleto de referências e ilustrações, Sol Alegria funciona quando é um teatro libertino sobre o Brasil e inexiste quando se aproxima de uma pureza visual ao dialogar com a função da imagem.

olhar de cinema

LA PELÍCULA INFINITA (idem) de Leandro Listorti

Eulogia do cinema argentino em uma colagem de trechos e supostas inovações visuais. Em 50 minutos de filme, Listorti se perde na repetição e o filme se resume ao experimento e não ao que deseja expor. Em muitos casos o processo é mais interessante que seu resultado, o que não é o caso aqui.

olhar de cinema

VOCÊ JÁ PENSOU EM QUEM ATIROU? (Did You Wonder Who Fired the Gun?) de Travis Wilkerson

Wilkerson e o senso de culpa e justiça americana numa confissão familiar que a todo o momento resvala no extracampo. Wilkerson é mais que um talking head invisível; ele é testemunha e diretor de um thriller policial involuntário. Um híbrido de formas e sentidos com grande força histórica.

olhar de cinema

NOSSA LOUCURA (Our Madness) de João Viana

Arquitetura e coreografia da morte – do cinema – e como a guerra impede sua ressurreição. A poesia neste caso é a salvação e o protesto em um momento crítico para a humanidade não é só para a arte e carrega uma forte dose de questionamentos sobre o racismo e a posição dos negros dentro da arte. Um filme muito pertinente para nossos tempos.

olhar de cinema

NOSSA CASA (Watashitachi no ie) de Yui Kiyohara

Espécie de conflito pessoal versus conflito-tempo num filme que nada faz além de criar um crescendo muito duvidoso sobre relações emocionais. Emula Kyioshi Kurosawa em nível rasteiro, mas a Yui Kiyohara cabe dosar a sensibilidade à narrativa.

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DJON ÁFRICA (idem) de Fillipa Reis e João Miller Guerra

O grande acerto do filme de Fillipa Reis e João Miller Guerra é o de abrir mão de todas as possibilidades que o filme encontra para um drama e se fixar num road movie de códigos simples. Neles há um mundo mais propício às interpretações livres, mas ainda suportadas pelos conflitos de seu protagonista.

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O VISTO E O NÃO VISTO (Seskala Niskala) de Kamila Andini

Um poema sobre o luto. A parte que se vai e a metade que fica – ambos com suas baladas à natureza. Um filme sobre irmandade e cumplicidade e o que está ao redor significa em tempos nebulosos.

olhar de cinema

A FEITICEIRA VIÚVA (Xiao gua fu cheng xian ji) de Cai Chengjie

O filme fantástico de Lav Diaz. Cabe à câmera de Chengjie a posição de grande comentarista das ações numa dicotomia lamento-ironia como um panorama social de um vilarejo repleto de humanos à margem. A figura da feiticeira é como o condutor moral – é à frente dela que este homens se ajoelham e buscam redenção, mas a questão que Chengjie sempre pauta silenciosamente é como a consciência se esvai rapidamente  em um ambiente inóspito.

olhar de cinema

PARA ALÉM DE NÓS (Al di lá dell’uno) de Anna Marziano

Jonas Mekas comenta o amor. Colagens imagéticas e sonoras como forma de argumentar os tempos de caos e como o sentimento deixa de ser torrente para objeto de louvor. Uma bela nota poética, ainda que sofra com os limites impostos por Marziano que em alguns momentos esquece o norte para comentar o lado sombrio do tema.

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ANSIOSA TRADUÇÃO (Nervous Translation) de Shrieen Seno

Construção de um mundo de solidão pelo olhar de uma criança na década de 80. A criação de um mundo próprio com suas obsessões e necessidades de sobrevivência é única e para filhos únicos. O filme de Shrieen Seno mais parece um espelho sobre a criatividade que faz o tempo passar e a companhia de um aparelho de rádio que um grande conflito.

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MINATOMACHI (idem) de Kazuhiro Soda

Este é o sétimo filme de observação e investigação de ilhas pesqueiras japonesas de Kazuhiro Soda, mas ironicamente o filme funciona mais quando Soda justifica a presença da câmera por sua persona. Nas conversas, algo perto do que Eduardo Coutinho fez em O Fim e o Princípio, é que o diretor tira a concretude do que filma – a rotina daqueles que vivem da pesca e comércio numa vida pacata, mas que denota o fim deste estilo de vida.

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OLHAR DE CINEMA 2018

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GUIA DE FILMES – Parte #01
Pedro Tavares

GUIA DE FILMES – Parte #02
Pedro Tavares

BAIXO CENTRO (2018) – Ewerton Belico, Samuel Marotta
Pedro Tavares

CAMOCIM (2017) – Quentin Delaroche
Pedro Tavares

O NÓ DO DIABO (2017) – Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abe, Jhesus Tribuzi
Gabriel Papaléo

DIANTE DOS MEUS OLHOS (2017) – André Felix
Kênia Freitas

HOMENS QUE JOGAM (2017) – Matjaž Ivanišin
Kênia Freitas

A NOITE DOS MORTOS-VIVOS (1968) – George A. Romero
Kênia Freitas

O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva (2018) – Letícia Simões
Kênia Freitas

Meu nome é Daniel (2018) – Daniel Gonçalves
Travessia (2017) – Safira Moreira
Kênia Freitas

Boa Sorte (Good Luck, Ben Russel, 2017)
A Floricultura (La Fleurière, Rubem Desiere, 2017)
Kênia Freitas

A FEITICEIRA VIÚVA (Xiao Gua Fu Cheng Xian Ji, Cai Chengjie, 2018)
Kênia Freitas

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O CINEMA E O MÍSTICO (Editorial)

Por Arthur Tuoto

MISTICO-DESENHO

O cinema é esotérico por natureza. Da câmara escura ao cinematógrafo, do espelhamento da realidade a sua restituição fotoquímica, existe um movimento que implica em uma crença. Mais do que um mero progresso natural, o aperfeiçoamento do cinema em um regime narrativo demanda, propriamente, uma fé. Uma ilusão que transcende a materialidade da imagem e opera como uma realidade autônoma. Uma diegese que ao mesmo tempo em que respeita regras próprias, conserva um contrato mágico com seu interlocutor. O pacto ficcional é um dogma imperativo.

Para além da perspectiva extraordinária que qualquer experiência narrativa exija (afinal, é preciso acreditar), a presente edição da Multiplot! busca explorar o místico tanto como uma temática como um método. De um cinema de personagens mágicos (o herói, a feiticeira, o viajante espacial) a uma concepção narrativa metafísica onde a dialética de causa e efeito é subvertida ou mesmo abolida. De uma realidade meramente ambígua à construção de outros mundos. O sobrenatural, o fabular, o mito. Não apenas como motes reveladores de uma composição universal e ancestral, de uma ordem esclarecedora das coisas, mas disparadores de um enigma, uma desordem, uma corrupção que não busca reiterar a tradição, mas renová-la, quiçá destruí-la.

Serge Daney, sobre o modelo ilusionista clássico hollywoodiano, afirma que a psicologia era tratada como “explicação última”. O papel do cinema moderno foi, justamente, recusar esse denominador: o místico (Rossellini), o patológico (Bergman). Quebra-se uma lógica explicativa e impõe-se uma assimilação abrangente. Muitas vezes absolutamente material (o próprio neorealismo italiano), mas reveladora de uma substância hermética. Uma essência que repousa sobre nossos pés. No fim das contas é da terra, em sua bruta e elementar fisicalidade, que brotam os mistérios mais poderosos.

Não é do caráter do místico explicar. Pelo contrário, é o momento de abandonar qualquer refúgio e se entregar a uma disposição outra. Se a nossa edição passada celebrava a morte do cinema em benefício do seu constante renascimento, aqui continuamos nos situando entre estes novos regimes narrativos e imagéticos. Nunca propondo uma interpretação final, mas abrindo portas e janelas que viabilizem uma constante mutação. Universos sensíveis que jamais são um fim em si mesmo, mas que anunciam, a cada nova proposta, uma reorganização própria.

Não é também a aleatoriedade que nos interessa. Ainda que o caos – “único monstro digno de adoração” – permaneça como singular guia confiável, é na “incessante improvisação do universo” que buscamos esclarecer nossas questões. O segredo nunca está nas respostas, mas na experiência que essas obras proporcionam. O sentido permanece na jornada, na ilusão de uma transcendência, já que o caminho continua inevitavelmente aberto. Nunca chegamos a lugar algum e nem vamos chegar.

Para nos abrigar da realidade (essa sim, sobrenatural), o cinema. O místico aliena na mesma medida que revela. Não se comunica, mas se irradia. Imantados por essa paixão e por esse revolta – a fé e a descrença sempre essencial à cinefilia – continuamos atentos a qualquer movimento.

 

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O Cinema e o Místico

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O CINEMA E O MÍSTICO (Editorial)
Arthur Tuoto
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DESESPERO LOLLIPOP: Desmistificando a Imagem em Like Me
Pedro Tavares
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A INQUIETAÇÃO DO OLHAR PELO MISTÉRIO DAS PORTAS
Camila Vieira

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GREEN SNAKE: Fé e demolição
João Pedro Faro
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SPACE IS THE PLACE: Sun Ra, o  mito no cinema
Kênia Freitas
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DUELLE, NORÔIT – O místico contra o convencional
Bernardo Moraes-Chacur
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LARVA, PUPA, INSETO (E VICE-VERSA)
Felipe Leal
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ENTREVISTA: ROBERT MOCKLER
Pedro Tavares
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ABERTO PARA ESSES PÁSSAROS ÚNICOS
Jacques Doniol-Valcroze (traduzido por Felipe Leal)
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A DIMENSÃO MITOLÓGICA NO RETRATO DE PAISAGEM DO CINEMA DE PETTER HUTTON
Gabriel Papaléo
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A FEMINILIDADE NO CINEMA JAPONÊS – Do místico ao político
Julia Masan
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TRANSCENDÊNCIA MARTIRIZADA – O místico no Cinema de Jean-Claude Brisseau
Diogo Serafim
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HOMEM-ARANHA 2: Sobrenatural como manifestação do caráter humano
William Andrades

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SPACE IS THE PLACE: Sun Ra, o mito no cinema

Por Kênia Freitas

“Adeus, terráqueos. Vocês só querem falar de verdades… Não de mitos. Bem, eu sou o mito que vos fala. Digo-lhes adeus.”, com essas palavras Sun Ra decola em sua nave tripulada quase exclusivamente por pessoas negras rumo à formação de uma colônia espacial longe da Terra (da sua violência, da sua opressão) – e, para trás, fica um planeta aos pedaços. A sequência final de Space is the place (John Coney, 1974) reforça a proposta da narrativa de se apoiar em um regime mitológico, mais do que em um veridico. O filme sustenta-se assim em uma estrutura móvel, de fantasias e sugestões, em um arranjo de cenas e sequências mais relacionadas ao jogo e à colagem (ao acaso das cartas), do que da lógica fatuística.

Space is the place é uma improvável blaxploitation de ficção científica protagonizada pelo jazzista Sun Ra. Improbabilidade que vem da junção do subgênero marcado pela ação de superfície e a figura enigmática do músico. Herman Poole Blount nasceu no Alabama (EUA), em 1914, e por volta de 1950, ele adota o nome Sun Ra e uma nova biografia: vindo diretamente de Saturno e incorporando elementos da mitologia egípcia e da ficção científica cosmológica a sua persona e a criação musical (sendo “Ra” o deus egípcio do sol). O filme narra a busca de Sun Ra e sua “Arkestra” (sua banda) para fundar um novo planeta com negros dos EUA, levando-os para longe da Terra com o poder da música.

Na trama, Ra trava uma batalha de cartas com o Overseer (uma tradução possível para o arquétipo do personagem seria mais do que um Supervisor, mas a de um Feitor) na disputa pelo destino da população negra. Os dois, Sun Ra e o Overseer, desafiam-se a provarem a inocência ou a culpabilidade dos negros estadunidenses na configuração de sua situação social. Ra aposta na possibilidade de redenção e novo começo, enquanto a figura maligna do Overseer nos vícios e fraquezas inevitáveis. O desafio se dá por um jogo de cartas de tarot, chamado de O Fim do Mundo. São as cartas que irão determinar a sequência da narrativa, dos personagens e fatores envolvidos na disputa – espelhando na estrutura de esquetes do filme os improvisos e casualidades do jogo.

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Logo na primeira rodada as cartas em disputa são: “O mundo” como campo de conflito, e a carruagem e o julgamento como meios de transporte (nesse caso, respectivamente representados por um carro conversível e uma nave espacial). Nessa rodada, se dá o primeiro contato oficial de Ra e sua Arkestra com os terráqueos, contato marcado por um grande estranhamento. O uso da máquina-musical de Ra deixa desnorteado um jornalista negro e espanta os demais.

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Neste primeiro contato, Ra apresenta a música como motor de explicação e movimento para a vida e a existência cosmológica no geral: “Por que a Terra não cai? Como podemos andar sobre ela? É a música. É a música da Terra, do sol, das estrelas. Sua própria música, vibrando. Sim, você é música também, somos todos instrumentos. Todos estão tocando a sua parte…Nesta vasta orquestra do Cosmos”. Se imageticamente o mito de Ra constrói-se pelo cruzamento dos elementos egípcios e tecnológicos low-tech (mais próximo a gambiarras caseiras do que ao imaginário futurista hollywoodiano dos anos 1970), a música torna-se outra estrutura fundamental no embasamento do seu regime de crença mitológico.

O filme é entrecortado pela música não só nos números musicais filmando Ra e sua Arkestra (como era de se esperar desse tipo de projeto), mas pela trilha sonora geral. A filosofia de Ra nas frases ditas/cantadas por June Tyson antecipam ou apresentam os segmentos do filme de forma profética – como o “É depois do fim do mundo” marcando o início do filme ou o “Chamando o planeta Terra!” antes da chegada da nave de Ra. As distorções do sintetizador de Sun Ra também pontuam as cenas, construindo elementos de desnaturalização permanentes (mesmo nos momentos em que o filme mergulha com mais entrega ao estilo de narrativa de ação da blaxploitation) – desnaturalização acentuada pelo figurino e demais elementos cênicos de Ra e sua trupe.

Nesta desnaturalização, os elementos e a narrativa do filme ficam em um limite do mágico com o carnavalesco, entre o sublime e o improvisado/artesanal. A imagem de Ra como mito (no filme e fora dele) funda-se não no que ela tem de super-humano (ou não-humano) e mais no que esta imagem tem de absurdamente terrena, de relacionável atrás (e apesar) de todas as camadas de coloridas e brilhosas das vestimentas. Como mito, Ra impacta não por tentar nos convencer da fabulação que sustenta, mas por trazê-la de forma inegociável como ponto de partida. A implicação do público (nesse caso do espectador) não está na crença ou descrença em Ra ou em sua mitologia, mas em sua aceitação.

E embora a utilização da estilística da blaxploitation como gênero da narrativa tente tornar a imagem mitológica de Ra mais fantástica – Ra como super-herói, o efeito não obtém muito sucesso. O filme fica então repartido entre as aparições de Ra e as outras narrativas paralelas dos demais personagens (marcadas pelo subgênero). As cenas de Ra funcionam melhor em seus monólogos solitários e/ou direto para a câmera (reforçando a encenação desnaturalizada) e as sequências de violência, nudez e sexo (incluindo uma injustificável cena de espancamento de duas personagens femininas) pouco se relacionam com a trama principal do filme.

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Em Space is the place os contornos raciais negros aparecem de forma inequívoca na mitologia de Sun Ra – ao longo da trajetória de Sun Ra esse posicionamento é mais ambíguo e oscilante. Se todo o filme é construído em cima da trama de disputa pela salvação da população negra dos EUA, é o encontro de Ra com os jovens negros no centro de recreação que explicita não apenas Sun Ra como uma figura redentora, mas como homem negro em si mitológico. Sob os olhares de espanto, Ra se afirma:

Eu não sou real, assim como vocês. Vocês não existem nessa sociedade. Se existissem, não estariam buscando direitos iguais. Se fossem reais, teriam algum status entre as nações do mundo. Então somos todos mitos. Não me apresento como uma realidade, e sim como um mito. Porque é isso que os negros são. Mitos. Eu vim de um sonho, sonhado por negros há muito tempo… Sou um presente de seus antepassados.

Ao conjugar ao mesmo tempo uma mitologia cosmológica e ancestral negra, Sun Ra é apontado como um dos pilares do afrofuturismo (movimento que engloba as narrativas de ficção especulativa a partir da experiência negra) – ainda que tenha falecido antes dessa denominação existir. Space is the place marca um momento chave desta mitologia sunraniana que se transforma ao longo das décadas. No filme, a individualização de Ra como o mito em si é fortemente atravessada por uma mitologia coletiva e redentora negra. Os jovens negros, e a população negra no geral, são tão mitológicos quanto Sun Ra.

Nesta cena o que a presença de Ra parece mover de mais potente é disjunção de tempo e espaços. Um efeito semelhante ocorre em diversas outras cenas, como:  enquanto ainda apenas pianista em Chicago em 1943, Sunny Ray leva o cabaret às chamas com a sua performance visceral; na chegada com sua nave espacial na Califórnia dos anos 1970, que leva um jornalista ao hospital e assusta os demais com a sua máquina de música; na agência de empregos que não oferece salários ou nenhum dinheiro e afasta com o mesmo estranhamento um cientista, um bêbado e uma hippie.

Sun Ra coloca-se assim perante a encenação do filme também como o mito que professa ser, como o “destino alternativo” encarnado. O tempo para ele está “oficialmente acabado” e a sua espacialidade é a extraterrestre. Como nos lembra June Tyson na abertura do filme: “É depois do fim do mundo, você ainda não sabe?”.

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A DIMENSÃO MITOLÓGICA NO RETRATO DE PAISAGEM DO CINEMA DE PETER HUTTON

Por Gabriel Papaléo

“Um homem que nasce cai num sonho como um homem que cai ao mar.”

 Joseph Conrad

Em certo momento de Three Landscapes, após o primeiro segmento de paisagens, o segundo ato começa com a peregrinação de alguns trabalhadores. Eles ascendem as tubulações em cordas pouco confiáveis, a uma altura impressionante, para realizar seu trabalho provavelmente de limpeza de um letreiro. Esse segmento de dez minutos tem apenas seis planos, variações da observação à distância dos homens que ali sobem, e cuja mudança imagética é evidenciada através da distância mas principalmente da presença de um elemento da natureza no quadro. Em dois quadros, são as árvores em movimento pelo vento; nos outros quatro, as nuvens que passam sem ganhar a atenção dos escaladores. Que o filme de Hutton parta de um registro retratista de uma dimensão fantasmagórica e francamente ameaçadora do ambiente – natural ou fabricado – é fundamental no tratar dessa dimensão política da ideia do trabalho, com seus três atos sobre diferentes formas de exploração ambiental e humana do labor. As nuvens dão profundidade à altura das tubulações, a fumaça das fábricas como evidência simbólica e palpável de uma violência na imagem, o deserto queima seus habitantes através do vapor registrado pelo ângulo de Hutton.

Three Landscapes
Esses elementos de movimento presentes na natureza são recursos importantes na filmografia de Hutton porque é através deles que se configura essa dimensão mística de intuição imagética dos ambientes filmados como lugares dotados de segredos, misterios do extracampo. A natureza e suas construções, terrenas ou humanas, guardam algo do olhos de quem as encara – e é dessa negociação entre espectador e mundo que Hutton constroi filmes de extrema e basilar fé no desconhecido, uma questão quase espiritual de observação.

Em New York Portrait pt. 1, a investigação parte da cidade mais imortalizada no cinema americano para alcançar o que há de abstratos nas formas de vielas e luzes dali. Os quadros privilegiam a incidência da luz nas paredes através dos mais diferentes filtros “naturais” – as janelas, as nuvens, a neve – para construir um olhar de curiosidade quase solene diante daquela cidade. O caráter retratista dessa primeira parte é reforçado pelos fade outs característicos de Hutton que sinalizam que cada quadro que assim termina funciona como sequência dentro de si mesmo, e a falta de pessoas nessa primeira parte traz uma câmera que intui a cidade como uma das paisagens naturais que o diretor privilegia, uma procura por prédios como sombras, do movimento da água refletindo uma luz desconhecida, carros solitários a vagar, barcos na mar que parecem céu. Quando Hutton filma alguém, a potência do retrato traz uma dimensão de solidão diante da cidade mesmo com toda a beleza dos pequenos atos fugidios naturais que ali testemunhamos, e ter alguém ali brevemente para dar rosto àquele olhar traz a ambiguidade da vida em Nova York – ou em qualquer metrópole. Não por acaso Hutton não usa o fade out após filmar a mulher, cortando diretamente para os papeis ao vento, mostrando que a sequência se completa com o contra-plano de um morador, de alguém tão na janela para a cidade quanto a câmera. O tempo é um quadro à espera, e nas paisagens naturais de Hutton isso se expande.

Peter Hutton - New York Portrait

Em Study for a River, Hutton vai para o franco retrato dos lugares bucólicos, em diários de uma vivência de movimentos e esperas. Os lugares que são filmados com a concisão de uma confiança em que um quadro apenas será suficiente para ilustrar e imaginar o que contém de historia aquele espaço. Organizado como uma pequena sinfonia de espaço (chama-se estudo de um rio, afinal) para passar essa atmosfera de isolamento e contemplação num movimento que parece contínuo, natural, quase etéreo. É novamente um retrato de um ambiente que parece impossível sem deixar de ser palpável todo o tempo. Os navios vem e vão, e podemos deles observar as montanhas como estrangeiros curiosos, nunca acessando esses lugares fisicamente com a câmera, os respeitando pelo mero fato de sermos visitantes cuidadosos da onde vagamos.

Nessa exploração essencialmente mística, observadora paciente, a paisagem não necessariamente aparenta ser física, de assimilação frontal; por vezes aparece como figurativa abstrata, e é isso que ocorre em Skagadjördur, sob o efeito do tempo e da luz, e a escala entre o que fazemos e o que já estava no mundo. Intercala entre recortes absolutamente pictóricos da Islândia como formas e texturas – e por vezes cores – para outros de contextualização espacial mais evidente, nos planos abertos de montanhas e na relação delas com a luz do sol. Observar apenas a luz cair diante do mar, da terra, ou mesmo de uma casa diminuta diante do poder irrefreável do ciclo do dia com seus ventos e nuvens. Hutton filma seus retratos de natureza como se sempre fosse o início dos tempos, e não é por acaso que os filmes se renovam a cada visita, como planetas novos a descobrir.

Desvelar o natural sob dinâmica tão particular, na fé dos astros e luzes como potência de rejuvenescimento, é parte da dinâmica de intuição de Hutton no trato religioso do ambiente, e através da descoberta do sol isso surge em In Titan’s Goblet. O espaço refém da fumaça, como se atrás dela estivessem ruínas, uma breve visitação do fim do mundo na expectativa de encontrar vida. E ela surge, primeiro através da energia exposta por trás das nuvens, depois como vigilante silencioso da Terra que descobrimos. O jogo formal de Hutton é bem direto aqui, usando da vocação da narrativa de retratos para construir esse clímax do titã sol observando a câmera e a terra arrasada na qual ela se encontra, e não tem a variação de imagens e fenômenos para criar novas camadas nessa visitação espacial, mas é um pequeno olhar pacífico e cuidadoso sobre esse mundo metafísico que busca na natureza um sentido. A pintura de Thomas Cole coloca o cálice do Titã do título entranhada na paisagem, uma estrutura gigante em meio ao vale e o mar cuja fumaça não impede completamente nossa contemplação do que há dentro dele. No filme de Hutton, somos convidados a entrar nesse cálice, e ali encontrar uma civilização que já passou, e busca reiniciar através das estrelas.

Existe o artifício nesse confronto entre luz e sombra, e ao filmar a tragédia natural de Boston Fire, Hutton encontra o que há de gravidade destruidora na luz, através do consumo das chamas em um lugar. Nada é sagrado como encarar um lugar e ser contaminado por ele, e quando Hutton fotografa a destruição de um ambiente é com um misto de pesar e encantamento anestesiante que acompanhamos a imagem projetada. Os fades trazem solenidade para aquela morte que testemunhamos, ao mesmo tempo que a fumaça confere algo extraordinário aquele cotidiano, cuja ação ritualística dos bombeiros surge como pintura abstrata de contraluzes. Somos consumidos pela imagem como os homens pela fumaça do final, porque diante do vento e do poder de experiência que o movimento naturalista dá somos apenas olhares a engolir pela imensidão encantada. É uma visão mais sombria que o normal em seus retratos de espaço, e não é pra menos que seja dado o objeto de destruição no qual o filme se baseia.

Contemplar o natural diante do construído, da obra do homem, para atentar ao que vimos e intuimos no trânsito, surge como manifesto em Time and Tide, talvez o mais frontal em discurso dos filmes do cineasta, um canal de trato mitológico na abordagem do que há de fantasioso no movimento.

Ao observar, interferimos no mundo. Do princípio do gelo que é quebrado por onde passamos até a janela circular que recorta a nossa visão, limitada justamente por estarmos em trânsito constante, as sequências giram em torno das formas sutis nas quais a paisagem é modificada pela nossa presença. Se o fugidio é uma das fundações da montagem de Hutton, aqui ele contribui também para conceber essa visita fantasmagórica onde o místico se caracteriza pela câmera não estacionar em quase lugar nenhum por onde passa. Tudo é um quadro a perdermos, e as dúvidas se enfileiram: a correnteza do rio levando para contextos diferenciados, de alteridade nos trens à vista ao longe, da geografia ameaçadora pela grandeza que não retemos por muito tempo, das pontes e cidades na noite porque não tivemos tempo de acessar aquele ambiente quando iluminado, do comentário político das transformações que as fábricas proporcionam fisica e simbolicamente como num filme de James Benning. Time and Tide é um raro filme de Hutton onde a atmosfera é construída através do que vimos e perdemos, tocando apenas pontualmente no caráter retratista do presente de acompanhar um ambiente estático em transformação – e o relato pessoal do diretor em primeira pessoa sobre um histórico de registro em movimento que passa pelos 18 quadros por segundo do 8mm em preto e branco até o 16mm colorido que encerra a jornada.

Peter Hutton - Study of a River

O corpo da memória através da paisagem como registros de uma natureza em transformação torna-se base de observação ao longo da progressão de sua carreira, mas Hutton fora cuidadoso ao ser literal pontualmente em filmes como Landscape (for Manon) e Florence, nos quais a natureza se manifesta prestes a acordar sob nossos olhos. É de uma calma, observadora paciente como quem está para descobrir um mundo. A capacidade de olhar transformando lugares que parecem inóspitos, parecem alienígenas, mas nunca perdem uma dimensão presente bem possível. As fusões para o preto que marcam cada uma das paisagens como se elas se contivessem entre si, luzes que incidem e nada mais. O tempo passa, a criança sonha com o mundo, uma imagem particular em sua filmografia ao dar literalmente um rosto juvenil à curiosidade, como em Florence, filme atípico de Hutton sobre memórias de infância. Uma casa recortada por reminiscências difusas como a luz que atravessa os lugares, que se modifica e morre diante dos nossos olhos, lacunas abstratas de organização de espaços por conta da falta de contexto. Encerra-se o dia, as memórias acabam, naquilo que parece ser um lembrete visual de vagos acontecimentos numa vida a esquecer.

Peter Hutton - Landscape

E o que é viver no mundo sob ideias de contaminação natural da beleza desafiadora da fantasia, encantamento constante, senão uma oportunidade política de retratar o preço das nossas interferências? Logo no princípio de At Sea, um quadro mostra as vigas de um porto em profundidade. Lentamente elas se rearranjam, enganando a profundidade de campo do olhar, transe particular daquele ambiente de trabalho de repetições ilusórias. O ar alienígena desse quadro, o mistério do movimento coordenado que se confunde diante da distância focal da câmera, as profundidades que se embaralham em busca do mágico. É quando vamos ao mar que a materialidade se dissolve. Na terra firme, as pessoas lidam com o peso da escala, da diferença entre seu tamanho e dos navios ou edificações que precisam do trabalho desses homens, sob a câmera de Hutton um trabalho que parece impossível por uma questão de proporção. Os fósseis de concreto que se acumulam na praia, o prédio destruído mas ainda habitado pelos que ali fazem manutenção, uma tarefa material. Hutton filma os contêineres sob um ponto de vista apenas ao zarpar com o navio para observar as diferentes incidências das luzes ao longo do dia, o reflexo vermelho, amarelo e escuro como variações de tempo intangível interferindo na dimensão concreta do que é forjado pelo humano.

Quando está no mar a abstração aparece, destitui a materialidade dos objetos, e o olhar da câmera privilegia o pôr do sol, a água revolta, a paisagem à distância cujo caráter pictórico inexiste diante das concretudes do porto, da praia, dos lugares habitados por humanos. O mundo está liberado para imaginar e sonhar quando o trânsito aparece na vida de quem olha, e quando estamos aportados a tarefa de cuidar do que é concreto e existe parece grandiosa demais para dar conta. Tudo no porto é quase estático, com dinâmica lenta e pouco progressiva, e essa visão particular do tempo causa uma suspensão de imagem que potencializa os momentos de movimento; quando o navio é inaugurado, a explosão do balão e a revelação do título surgem como pequenos milagres, como clímaxes, porque a noção de movimento foi ressignificada. Não há elogio maior às imagens do que tornar palpável a dimensão da importância delas em movimento.

No terceiro ato, o cemitério dos navios, a destruição total de um feito gigante do homem que termina sua vida sendo despejado na praia de quem não é privilegiado economicamente. Situar esse final em uma comunidade à beira-mar em Bangladesh traz a dimensão social do impacto dos grandes símbolos do capitalismo como Hutton veio a fazer mais tarde em Three Landscapes. Um dos navios gigantes é despedaçado pela população, numa tarefa visivelmente mais hercúlea do que a dos portos – enquanto aqueles eram estruturados por máquinas e organizados como miniaturas padronizadas por Hutton, o vazio da praia em Bangladesh é diminuto comparado ao porto, e os trabalhadores dali dispõe de ferramentas evidentemente mais primitivas. No capitalismo globalizado a diferença de condições de trabalho é sobretudo uma ideia de escalas, de proporções, e se o trânsito é abstrato e fugidio a terra firme é feroz nas suas cobranças materiais. Não existe o fascínio pelo movimento ali, a tarefa parece árdua demais.

O fascínio que existe é pela imagem e pelo contato humano (e quando Hutton filma pessoas esses dois tendem a ser indissociáveis), e a interação daquelas pessoas com a câmera ao pausar sua atividade de eras revela que a suspensão do sonho do mar pode ser obtida mesmo que por um breve instante, uma sensação de pertencimento e compartilhar de possibilidades – o que certamente não resolve a questão. Os leviatãs aportam bem e enferrujam mal, e o cômodo é aos países privilegiados criar seus monstros para despejá-los nos subdesenvolvidos que trabalham para sobreviver com seus mitos não-requisitados. Os operários de Three Landscapes labutam no sal e observam os camelos como miragens impalpáveis, e os ribeirinhas de At Sea levantam suas cordas para puxar algo que parece fossilizado há séculos ali. Dimensões impossíveis do movimento que trazem uma magia própria, tão fascinante quanto implacável – para Peter Hutton o estético e o social estão entranhados na imagem, e é possível traduzir por breves minutos a ambiguidade da beleza misteriosa e sem respostas do que está por aí nas paisagens.

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ABERTO PARA ESSES PÁSSAROS ÚNICOS

Por Jacques Doniol-Valcroze

Traduzido por Felipe Leal

Espelho aberto para esses pássaros únicos

Que se agitam à cada gotícula de água

Paul Eluard, Marine (Le Livre Ouvert).

Cahiers du Cinéma, novembro de 1962

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Após sua primeira contribuição ao cinema – o roteiro de Tortura do Desejo para Sjöberg, em 1944 – e até este Através de um Espelho, rodado em 1961, o filho de pastor luterano não cessou de lançar a mesma questão: “Deus, você está aí?”. Às vezes com ansiedade, noutras com ceticismo, por vezes com desrespeito, a provocação foi, dentro dele, a máscara mais límpida de uma grande inquietude de ordem metafísica. Para colocar esta questão, Bergman escolheu um médium e dele se serviu para bater no portão do Saber. Citemos ao acaso: os amores juvenis, o inferno conjugal, a maternidade, a velhice, a doença, a morte, etc. À questão colocada, não há jamais resposta. Os personagens felizes se inclinam voluntariamente ao paganismo, os infelizes, com ainda maior facilidade, levantam a vista ao céu, mas diante de sua própria infelicidade e da violência cruel do universo, eles dizem: “Por quê? Por que Tu permitiste isto?”. Bergman é, ao mesmo tempo, um espírito religioso e um libertino (na acepção do século XVII). Ao escolher, em Através de um Espelho, a loucura enquanto médium, ele não varia nem sua busca, nem a resposta. A heroína crê que vai chegar a ver o Senhor – e é uma enorme aranha que chega até ela. Vemos em Bergman um passo adiante (horripilante) no pessimismo e no desespero? Nada nos autorizaria a essa interpretação. Esse inseto kafkiano é talvez a morte ou a loucura. Karin está apenas a meio caminho de sua travessia ao espelho. A Divindade, de acordo com Bergman, não se deixa apanhar por caminhos assim fáceis. O verdadeiro mistério do céu é sua opacidade. Mesmo estilhaçado, o espelho só descobre um buraco negro, e aquilo que ali resta reflete, ainda, a tormenta dos homens.

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Sim, eu sei, Bergman não é mais parte da moda nos Champs-Elysées. Feliz o homem, somos tentados a dizer, que não será mais julgado dentro do grande artifício das paixões, mas dentro da calmaria de sua reflexão. Ele não é um gênio natural do cinema como Murnau ou Welles, Einsenstein ou Mizoguchi, mas, queiramos ou não, apreciemo-lo ou não, sua obra grafa esse pós-guerra cinematográfico com um selo pessoal e insistente. Sua abundância não é uma facilidade, ela trai, ao contrário, um labor paciente que, de filme em filme, tenta cercar o mesmo problema. Ele pertence a esta categoria de realizadores que refazem sempre a mesma obra com maior ou menor felicidade de expressão. Mas, de ponta a ponta, as grandes passagens de alguns de seus vinte e três filmes formariam um conjunto genial. Que nos lembremos: o despertar de Marie (Maj-Britt Nilsson) na cabana de Um Verão de Amor (1951), a sequência dos “artilheiros” em Noites de Circo (1953), Anna Egerman (Ulla Jacobsson) e sua boa jovem (Harriet Andersson) nas rendas de Sorrisos de Uma Noite de Verão (1955), a procissão da peste d’O Sétimo Selo (1957), Victor Sjöström recaído como uma criança nos arbustos de Morangos Silvestres (1957), o momento em que Ingrid Thulin desvela os cabelos em O Rosto (1958) e, ao longo do filme, a insondável melancolia do ilusionista Vogler (Max von Sydow); a descoberta do cadáver da jovem Karin por seus pais, n’A Fonte da Fonzela (1960).

Há também em Através de um Espelho alguns momentos fortes que provam que a maestria de Bergman permanece intacta. A maneira com que a heroína – a estonteante Harriet Andersson – “entra” em seus primeiros momentos de transe por um chibatar de voz, fascinada por esta parede atrás da qual ela crê poder encontrar sua libertação, e o modo com que sai disto, bruscamente, sem transição, é um destes momentos. Ainda mais magistral me parece a cena na canoa, onde se afrontam o marido e o pai da heroína (von Sydow e Gunnar Björnstrand). O marido faz julgamento do pai com termos dos mais vivos e escandalosos; o pai “desconta” com humildade e, então, repentinamente, nas palavras de confissão de sua própria fraqueza, nasce, pouco a pouco, sem que sequer percebamos de onde veio, o julgamento do marido pelo pai num linguajar igualmente vivo, igualmente escandaloso. O conjunto sem um risco de voz, sobre o calmo escudo de um lago extenso esmagado de luz; e os dois homens se encontram silenciosos, reenviados de volta por uma dialética própria, um pouco mais ricos, sem dúvida, diante de suas confissões – mas mais desesperados, também.

Bergman não é Bergman por conta de sua “temática” única ou dos estampidos fulgurantes que jorram de seus diálogos. Ele é ele mesmo também pela mise en scène, pelo lirismo, aqui, contido, de suas imagens. O universo fechado de Através de um Espelho é a princípio a escolha de um ângulo, de uma iluminação, de um movimento hábil – quase imperceptível – da câmera. Este universo sobre o qual pesa um céu sempre baixo, mas que não deserta jamais o céu branco do verão sueco, é, pela economia de uma técnica perfeitamente assimilada que ele guarda, continuamente, essa luz de aquário inseparável do equilíbrio da heroína entre a razão e a loucura. E esses são os solitários prestígios da mise en scéne que permitem a esse incesto tumultuoso e alucinante se inscrever na costura da obra, sem jamais fazer um espetáculo de bravura gratuita ou partindo de um desejo de chocar.

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É, ademais, o único filme de Bergman, junto da Fonte da Donzela, que me parece isento dessas inconstâncias que mancham (no detalhe) essas obras mais belas (o delírio neo-surrealista do sonho em Morangos Silvestres, a estética démodée de certas passagens do Sétimo Selo, o grande chifre aqui ou acolá, o vaudevillesco de fora, etc.). Fechado sobre si mesmo como um cravo bem temperado, redondo como o círculo infernal que o descreve, Através de um Espelho rompe sua casca grossa num único lugar: o tempo de uma pequena representação teatral cujo argumento pergunta se vale bem a pena, mesmo por amor, seguir uma morte na Morte. O convite, entretanto, veste-se com adereços requintados, com tentações gananciosas. Nosso cavaleiro de rosto entristecido foge com uma pirueta. A morte, a vida, o amor, a loucura… o canto profundo de Bergman cruza estes moinhos. E não nos cansamos dessas ofensivas.

“Você ama morangos silvestres?, eu sei onde podemos encontrá-los”, diz a Marie a Henrik, que vai morrer, em Um Verão de Amor. Para essas colheitas bergmanianas, serei sempre cliente.

 

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Entrevista: Robert Mockler

1A Behind the Scenes

Por Pedro Tavares

Como cineasta independente em tempos de mudanças extremamente rápidas, Like Me é o projeto de uma vida, mas um projeto volátil, possível de adaptação conforme essas mudanças e interpretações de mundo através de dispositivos eletrônicos. A melhor solução está no filme: usar os dispositivos como grande suporte narrativo. Conversei com o diretor Robert Mockler sobre o processo e sua relação com câmeras, celulares, YouTube e afins que colocaram Like Me como concorrente ao prêmio do júri no South by Southwest em 2017.

  • Começo com uma questão pessoal: Há muito tempo não via um filme de gênero que lide de forma tão frontal com a imagem e sua função e me impactou bastante – me remetou a uma aproximação dos valores de Videodrome. Como foi a composição deste mundo lisérgico de Like Me?

Isso é ótimo de ouvir. Videodrome foi uma grande influência. O filme levou um bom tempo para se desenvolver. Houve diferentes versões do roteiro ao longo dos anos, mas sempre houve a ideia do surreal e do imaginário, no qual é muito ligada à perspectiva da protagonista. Eu quis explorar a solidão de quem estava prestes a explodir com uma crise existencial e que se rebelara contra um mundo absurdo e sem equilíbrio. O imaginário é informativo a partir de seu estado emocional volátil e do mundo construído em sua cabeça.

  • Há proto-interlúdios muito interessantes no filme, alguns flertam com a vídeo-arte, outros com a função do vídeo e um deles é um irônico tutorial do YouTube. Como se deu o equilíbrio entre elas e a narrativa durante a montagem do filme?

Muito do balanço do filme veio durante o processo de escrita. Mas, claro, nunca se sabe como essas coisas ficarão até começar a colar uma peça na outra. Foi mesmo uma questão de tentativa e erro e sentindo o fluxo das coisas pela experimentação até Jessalyn Abbott, meu parceiro na edição, e eu, sentirmos a energia certa para transmitir as ideias que nos interessava.

As montagens surreais são como mergulhos profundos no cérebro de Kiya. A intenção era transmitir um tipo de existência fragmentada e abrir uma janela para um fluxo de emoções. Às vezes, as emoções colidem de forma dissonante e desagradável. A realidade de Kiya persiste em ser capturada, editada, curada ou suspensa com certo estilo. Simultaneamente, ela está em guerra com sua própria biologia. Seu senso de identidade é confuso e obscuro e sua percepção do mundo é aumentada pela adrenalina, raiva, alienação, vazio, etc. Coisas que lutei toda a minha vida do meu próprio jeito e continuo a lutar.

Há também o senso de sufoco pela informação – o sentido de sempre consumir alguma coisa. Esse consumo é revigorante e doente ao mesmo tempo. Essas ideias e sentimentos foram pretendidos nessas sequências.

2A Behind The Scenes

  • Falando sobre imagens, no filme há diálogo direto com seus dispositivos, texturas, etc. Do celular à câmera HD e ao VHS – uma espécie de desencanto e articulação sobre a geração atual. Como foi lidar com esta dicotomia profundidade vs. superficialidade para tirar dela a coesão narrativa?

Foi complicado. Nós estávamos cientes que poderia ser mero exercício de estilo. Exploramos um mundo e uma cultura que à primeira vista pode ser composto por superfícies que levariam à conclusão de simples estímulos. De qualquer modo, nós tentamos explorar mais que vísceras. Mas, claro, quem quiser pode assistir e experimentar apenas as camadas.

  • Como complemento ideal, Like Me tem aspectos visuais muito fortes. Fala-se muito das referências de Dario Argento, principalmente nas sequências passadas em hotéis. A presença de Fessenden remete a um histórico de filmes de terror, sem contar à citada referência a Videodrome. Pode nos contar mais sobre suas bases para chegar até Like Me?

Eu amo Suspiria e foi uma influência no início. As Pequenas Margaridas de Věra Chytilová foi uma forte influência. Eu e Jessalyn assistimos diversas vezes durante a pós-produção. O uso de cores e a edição de Věra Chytilová foram especialmente inspiradoras. Ela criou uma linguagem afetuosa e intoxicante única que influenciaram muito as montagens surreais que nos referíamos antes. Sempre fui fascinado com o surreal. Amo filmes que constroem seu próprio mundo. Interessa-me quando o mundo emana a cabeça do protagonista. Tim Burton, Jodorowsky e Jean Cocteau são importantes para mim nesse sentido.

Enter the Void do Gaspar Noé teve um grande impacto em mim. Parecido com o impacto de 2001: Uma Odisséia no Espaço. O filme de Noé me fez repensar as possibilidades do cinema.

  • Recentemente o filme foi lançado em vídeo on demand enquanto ainda estava em selecionadas salas de cinema dos EUA. Já que Like Me é um filme sobre o consumo incessante de imagens, você vê o consumo de filmes através de aparelhos celulares? Acha que o homevideo hoje é a melhor saída para suprir a deficiência de distribuição de filmes independentes?

Não sei, realmente. O que posso dizer é que não gosto da ideia de filmes vistos em celulares. Me parece impossível imergir em um filme desta maneira. Eu gosto muito de assistir esse clip do David Lynch sobre o assunto: https://youtu.be/wKiIroiCvZ0

Home theaters estão cada vez mais sofisticados, então parece uma opção. Claro que os resultados podem variar. Eu gosto que a tecnologia oferece ferramentas para cineastas independentes alcançarem o público, mas eu gostaria que filmes “menores” encontrassem mais salas de cinema.

Acredito que nada pode alcançar a experiência de assistir a um filme no cinema. É o mais próximo que podemos de dividir sonhos com estranhos. É mágico.

3 A behind the scenesLeia mais: Desespero Lollipop: Desmistificando a imagem em Like Me

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