No momento que a luz do projetor liga, a protagonista de MS Slavic 7, vivida por Deragh Campbell segura a carta da avó com cuidado. A câmera então se foca no manuseio do papel e nos olhos de Campbell examinando a carta enquanto a luz do projetor apontada pra câmera ilumina seu rosto. Esse é o jogo formal assumido por MS Slavic 7, filme de Sofia Bohdanowicz sobre a troca de cartas de sua avó Zofia com o poeta polonês Josef Wittlin, desde o princípio. O estudo das cartas como forma de entender origens, de um passado remoto para alguém que não encontra lastro no caos da cidade e nem na beleza do campo que naquelas cartas são descritos.
Na festa familiar, o que se intui ser o motivo da viagem da protagonista, a burocracia da família aparece nos pequenos detalhes, nos olhares desapaixonados da mulher que dentro da biblioteca soa atenta. Essa falência na estrutura da biblioteca, na curiosa cena de confronto entre o funcionário e ela, encontra reflexo direto na briga com a tia quando ela diz que “todos querem ser curadores”, à medida que a pesquisa da personagem avança. A crítica à metodologia falha versus os procedimentos de observação empírica aparece como o arco mais próximo de amadurecimento da protagonista, como se fosse preciso tomar as rédeas da memória familiar para crescer como pessoa.
Enquanto imagina os encontros, interpreta as palavras pela força do relato, a protagonista testemunha um vislumbre no presente do que seria a passagem do tempo desses amantes distantes das cartas na cena do aniversário de casamento. Aquele ideal, o suposto amor entre eles (como a própria personagem aponta), parece ali transfigurado numa possibilidade do que seria se Zofia e Josef tivessem se encontrado e ficado juntos. A historia familiar portanto funciona apenas como uma subjetividade distante e que estimula interpretações racionais e principalmente emocionais, mas como cotidiano fruto do tempo presente é um tanto frustrante com suas cerimônias distantes e distanciadas do afeto.
O exame cuidadoso do objeto, do documento que revela o passado, do processo pessoal que é refletido diretamente nas cartas, surge como antídoto disso. A atenção ao detalhe, apenas à observação, sugere passados nunca acessados para a protagonista, e esse apego ao manuseio surge como o contato mais próximo dela com o palpável.
Nesse apuro visual baseado na síntese de cores e locações, a ambientação básica do quarto de hotel comenta diretamente a solidão de Josef na cidade, sim, mas também ilustra com economia a ambiguidade da relação da protagonista com seu nome, com suas raízes. Em determinado momento, ela diz para o tradutor das cartas que “só sabe inglês”, e pede uma tradução de estrutura gramática, não de interpretação diretamente. Sua relação distante com a família, cuja briga pelo espólio parece um sinal de subjetividade cultural roubada, envolve a encenação de festa protocolar e tão insípida – e apenas nas cartas, na subjetividade, encontra algum alento no nome que carrega. É uma busca por identidade se confundindo com obsessão de investigação, tudo sutil pela narrativa de cenas calmas e de ações dilatadas, de alguém que admira o esforço de dois fantasmas em transformar tudo em linguagem.
Talvez seja por não falar o idioma natal da família que já exista a distância espacial tão clara entre a protagonista e sua famílias nos relatos cotidianos de autodescoberta sem possibilidade de conclusões em MS Slavic 7.
A tensão sexual como mediadora – ou corrente – da observação do cotidiano de dois pescadores que Nuria Ibañez recorta de forma bastante interessante: estes homens podem estar sozinhos no mundo ou criaram um antro à parte onde a vida mecanizada do trabalho serve mais como uma performance, de corpos contra sua própria natureza.
DANIEL (Marine Atlan)
É admirável todo poder que Marine Atlan dá a corpos infantis à câmera. Nunca subestimados, sempre no limiar do fim da inocência e do abrupto horror da vida adulta, Daniel seria o equivalente ao filme infantil de Brisseau. É um filme que se distancia da morte mas nunca para um tipo de celebração da vida e sim para lamentar perdas precoces.
ESPERO TUA (RE)VOLTA de Eliza Capai
Aqui um óvni intrigante sobre as manifestações de 2013 e seus desdobramentos até a posse de Jair Bolsonaro. É um filme ideal para exibição na MTV ou compartilhamento em redes sociais pela sua vitalidade, dinamismo e por todo seu didatismo jovial, embora se saiba que a grande rede o guardará como um registro histórico e não como um filme – no caso, a Globo, produtora do filme. A impressão é que o filme está deslocado, mesmo com a urgência do assunto e que levanta a questão sobre o significado de “urgência” e se ela já se transformou em “estado”.
CINZAS E BRASAS (Manon Ott)
Entre duas formas, se destacam as ações ante à palavra para exibir como o trabalho suga e rege a vida das minorias na França. Certamente um filme que apesar de referenciar a Sylvain George, é muito menos histriônico e condensado e justamente por toda essa simplicidade de realização tende a criar veracidade às imagens colocadas em consideração.
Os filmes de pesquisa/arquivo hoje chegam ao ponto de se pensa-los como um protocolo. Beuvais faz um recorte de sua vida – nunca se sabe da veracidade do que é narrado – e a partir dela utiliza imagens de filmes como um analogia de sua segurança na própria pesquisa, como se a contingencia nunca fosse possível num mundo imerso em imagens e a pensar em Farocki, é possível sempre criar novos significados. O que não é bem o que Beauvais faz aqui nessa espécie de filme de encaixes.
PAHOKEE (Patrick Bresnan e Ivete Lucas)
Ecos da metodologia de Frederick Wiseman na observação de uma instituição que reflete um microcosmo que sempre está às escuras: uma comunidade na Flórida composta majoritariamente por negros e imigrantes. Bresnan e Lucas registram usam o último ano de alunos no colégio como instrumento de reflexo social de um costume tipicamente americano: o fim de uma era e a hora da mudança para um novo estado.
SETE ANOS EM MAIO de Affonso Uchôa
Três blocos performáticos para entoar a violência do estado que partem de uma simplicidade atroz. Do jogo do plano/contra-plano ao uso do corpo em função óbvia, surpreende que Uchôa use corpos e palavras para objetivos tão frontais e consequentemente inocentes.
TEL AVIV EM CHAMAS de Sameh Zoabi
Buscar um tipo de mensagem acessível pela luz que se joga na discussão sobre a opressão implícita. O filme de Sameh Zoabi parte de um bom argumento, mas o coloca em dimensões e campos tão maleáveis que seria possível tirar diversos filmes dali. Há essa noção tanto que o filme em certo momento brinca com a possibilidade de ser um “filme infinito”, justificando pela sua matéria-prima, uma novela sobre um amor improvável entre um judeu e uma palestina.
A NOITE AMARELA (Ramon Porto Mota)
O filme de horror dO Som e a Fúria. Exemplar de credo na exequibilidade da imagem e seus efeitos conforme a mesma se dissolve – literalmente – em outras formas, principalmente em glitches. Na mesma medida, a atmosfera de horror vai de um proto-slacker nos minutos iniciais a um suspense juvenil do cinemão americano no terço final. É notável a versatilidade de Ramon Porto Mota para domar tantos fios, ainda que a objetividade do todo se resuma a estes exercícios.
A PORTUGUESA (Rita Azevedo Gomes)
Um trabalho impressionante de distanciamento que torna a culpa masculina como uma miragem para toda eternidade; filme muito coeso para transferir toda historicidade embutida em seu tema como reflexo e comentário assertivo sobre a masculinidade através de uma personagem de contornos complexos sempre justapostos ao panorama histórico.
SEGUIR FILMANDO (Saeed Al Batal, Ghiath Ayoub)
Começar o filme com análise detalhada de um plano de Resident Evil de Paul W.S Anderson e com um corte parar na guerra da Síria elimina um longo caminho de argumentações e discussões sobre guerra e espetáculo – principalmente como suas emulações deixam de ser assertivas. Ainda que o norte seja de nunca desligar a câmera – que no acaso arrematam sequências brutais que inevitavelmente se justificam dentro de uma “normalidade” difícil de digerir. Batal e Ayoub gastam tempo com olhares além dos limites da zona de guerra que tiram a ideia de que todo filme dado à câmera é experimental e sobre seu alcance.
Um fiapo narrativo que parte da desconfiança geral – dos personagens ao espaço filmado – para compor uma sobreposição de gêneros cinematográficos muito interessante, guiada principalmente por um thriller fantasma composto de corpos e luzes. Talvez o mais próximo que o cinema independente chegou de um filme de Michael Mann.
A nível quiçá muito íntimo, é com o matrimônio entre as leis da economia e os fenômenos biológicos que Claire Denis cada vez mais sutilmente parece se preocupar. Número e corpos; distribuições dos usos e circularidade “tragicossexual” dos genes. Colônias, exército, famílias, máfias, casais, imigrantes – o todo e o diferente se entrechocam em sua obra nos deslizes microscópicos entre os sujeitos. Olhar o sangue de perto, o transe da bruxa pelo transe do olho partilhado, estar próximo o suficiente do homem diante do Nada, até que seu rosto seja único e limítrofe demais para não ser todos. Tracemos, pois, uma rápida e eficaz analogia: se se diz de Solaris (Solyaris, 1971), o símbolo úmido e magnânimo de Tarkovsky, que o planeta é um espelho da alma do homem, poder-se-á dizer de High Life (idem, 2018) que a suspensão humana diante dos astros, neste último Denis, é nosso esperma. E muito como a semente, para as plantas, é infinitamente mais que um minúsculo projétil de vida – é a grafia inteligente, pré-inscrustada, de um movimento de diferenciação para o sol e para a terra, a codificação de um ser novo explicitamente feito não só da planta para ela, mas do todo-mundo que ela habita, que ela é –, não tardará para que nas câmaras monocromáticas de dormência e assassinato o espermatozoide seja também esgarçado, seja sujeito e evidência dessa borda que é para nós uma espécie de abismo.
Muito como em J. L. Borges, e certamente para além da eficácia, digamos, dos quesitos dinâmicos do ritmo, há algo na síntese das elipses da diretora que tem a capacidade de estabelecer um plano de enfrentamento moral, ético, ser-entre-ser inerente, uma espécie de lençol freático sob o efeito do qual seus personagens embatem com deuses encarnados nos elementos que melhor os conjugam entre si. A obsessão e o sangue, a invasão de propriedades e raça, a hierarquia e o sexo aqui se transmutam num lance melancólico e desesperado entre o tabu e a razão de sobrevivência. Isto – o estouro de dados pelo truque da elipse – porque lhe basta um gravador e uma mulher inquirindo um homem apreensivo, com o risco de vida amalgamado nos ombros e olhos, para que a informação trocada tenha não só o valor de um ultimato político, como também o legado de certa forma definitivo, crítico, para a Terra da qual aqueles indivíduos à deriva no espaço se destacaram. São criminosos encapsulados numa missão sem cauda, expurgados do planeta sob falso propósito, e não será preciso dizer mais nada, porque o misterioso oco do espaço sideral se torna ainda mais vazio: é um Nada. É pior que a falta de todas as coisas porque não há volta nem chegada.
A ferramenta de conserto Monte (Robert Pattinson), que nos primeiros minutos escorregara, por um quesito de ângulo, num mergulho espaço abaixo, por esse segundo fator de uma penalização ao Eterno repentinamente refaz o quadro e todos aqueles ainda a vir: não há norte ou sul para a vida à deriva, o corpo é uma estranha e ilusória interrupção no tempo, um contínuo sem nada, perde as funções de sentido, vira uma ferida do futuro; a “vida alta” (vida no alto? vida suspensa? vida flutuante, adormecida?) é um miserável culto àquela que a bruxa vem a coordenar como aposta única, aposta ao Único. Xamã do esperma, chama-lhe aquele a quem todos se referem como ‘O Monge’, o assassino refeito por uma ordem interna. Com o resto de vida devotada a tornar a nave uma ala hospitalar-higiênica de produção de esperma e inseminação, de tentativas cujo esforço de ultrapassagem só reforça a tarefa Sísifica, que o sexo maquínico de Binoche resulte num transe pagão espiralado como Robert Eggers jamais sonharia é um estimulante e um fato inconteste de que só o contato aproximativo, progressivamente seccional, intimizado, disposto ao “sujo”, pode almejar a um excedente que permaneça “para os que ficam”, para todo nosso regime de vida que visa a, que se projeta para sustentar um porvir. Ou seja: há, no filme, (nos filmes) uma preocupação da ordem do transmissível que só pode ser equiparada ao projeto de um filho. Mostrar, implorar que se veja, que alguém possa ver assim e jamais certas coisas. Magia e tabu.
Arte; reprodução e prole; ciência; aliás, ganhe o nome que melhor convir, toda aposta até então arriscada pelo homem para sobrevivência de si mesmo é uma resultante de uma ininterrupta mistura. O cinema o conhece bem, o jogo de somas e lances que fabricam um corpo imaterial, e em High Life a montagem de Denis não é menos que um desafio a isto que ultrapassa, um percurso de convencimento entre o sabido e o que já não se sabe mais. “Você está sentindo?”, “Desta vez eu sei”, “Nesta eu acredito”, diz a filha sobre a tentativa ainda em ponderação de arriscar a entrada num buraco, numa passagem do espaço. É a filha que a médica diz ser perfeita e que a trama esfíngica faz literalmente perfeita: é a restante; provavelmente, até, a última humana, uma messias torta: a urgência com que nos atravessa o diálogo no trem confirma o que o testemunho só faria supor, que algum inédito acontecimento terrestre – sim, estamos diante de um curioso sci-fi – faz daqueles exilados e do retardamento da passagem do tempo fora da Terra uma questão derradeira à vida do homem. Logo na cápsula de expatriados por desvio de conduta.
A concordância do pai é, ali naquele tempo saltado, o atender afetuoso de um pedido sonhado, expansiva fé da criança escolhida, já privada de tudo e, portanto, plena de todos os possíveis? É decisão do homem na projeção (palpite, escolha) mais razoável, pautada no racionamento de si enquanto espécie? À independência excruciante, sensual, da resposta, que é nunca se dizer porque não existe, o desejo e a subtração que lhe persiste como sombra percorrem a clausura espacial em todas as suas técnicas de procriação e adestramento, em toda a responsividade epitelial dos papéis e cruzamentos, até que haja mais um humor, mais uma suave colocação em questão do que uma imagem ensimesmada (porque assim já foi acusada Denis), e é por este humor que a inquietação que vinha tamborilando sobre a mistura de uma observadora tão erótica com um gênero tão “pensante” ganha um gosto violento de excedente e surpresa.
Nos soluços de uma habitação fadada à autofagia do laboratório de existentes, aquilo que Susan Sontag chamou de “imaginação do desastre” enquanto lógica da ficção científica, aqui, replica à nós a catástrofe ao fazê-la humana, concernente a todos, decerto, mas também entre pai e filha. O contorno de um rosto olímpico e frágil, embalsamado e nunca tão vivo em sua linha de vida de faltas, um rosto assim não se via desde que Kubrick colocou máquina e super-homem um defronte o outro, ambos trocando de lugar. O efeito do encontro entre dedos adultos com uma irrisória mão de recém-nascido, aquela imagem já pós-comercial, quem poderia fazer re-trovoar a delicada aleatoriedade que é um nascimento, uma vida, senão aquela que do cinema se fez enteada para tratar, através das peles se imantando entre si, do único tempo que honestamente nos une, o futuro, essa motricidade de linhas debaixo da vista indo a algum lugar até onde reste um. Ou nasça uma – e a natureza, apática ou esperançosa?, depende, mais uma vez, de como se vê a chaga que somos.
Há em Vidas Duplas, longe da sugestão do título nacional, a dicotomia que envolve a tradução da famosa sensação de estranhamento Freudiana, que também a coloca como uma sensação de desrealização e alienação. O estranhamento, a princípio, parte de como Olivier Assayas escapa de um fluxo de filmes incisivos para uma espécie de ironia sem reconciliação com o espectador. Vidas Duplas, numa associação primária – imagética e narrativa – é um filme dado aos eixos do cinema comercial francês, de cotidiano, traições e conflitos agridoces, ideal para que o escapismo ganhe algumas dobras para que seja considerado como um “ponto fora da curva” deste nicho. Cenas-chave para isso são as que Assayas reúne seus personagens num espaço teatral, opta por filmá-los geralmente de cima, como a visão de Deus e pouco faz além de plano e contra-plano. É o ensaio incisivo e a prática frouxa. Nestes espaços, geralmente cobertos de copos com bebidas ou pela natureza do litoral francês, costumeiramente, filmes desta estirpe oferecem entrelaçamentos com o conflito e o golpe de Assayas aí reside.
O primeiro estranhamento geral, a pensar na trajetória do autor, é como Assayas provém um filme mecânico, onde sua posição é adormecida e que a espera geral é que exista um ponto de equilibro entre a psique e o modus operandi. Pois se vemos um filme “analógico”, o conflito aqui é literalmente digital – costurado por dispositivos eletrônicos e por boa parte do filme vagantes e invisíveis. Há, obviamente para o questionamento ético destas práticas modernas, mas o que é interessante nas opções de Assayas é como o comportamento digital é diluído nestas presenças, como estes corpos são gradualmente dominados por uma obrigatoriedade comportamental imposta por estes dispositivos e como a vida tem uma nova interpretação. Esta é uma abordagem relativamente nova para o cinema, ainda acostumado a associar aparelhos eletrônicos com o futuro e Assayas o coloca no presente, como uma peça dominadora, como uma extensão da belíssima cena de perseguição construída por SMS em Personal Shopper.
Parte daí a necessidade de um conciliador que Assayas não oferecerá. Vidas Duplas é um filme-diagnóstico e pouco faz além de coloca-lo na montanha russa do cotidiano. Reside nas conversas, nas oscilações de humor, nas inseguranças e principalmente na metamorfose ética dos personagens sem que sejam necessários suportes para estas mudanças; o mudar do dia é o suficiente para que estes personagens tenham novos avatares, novas formas de pensar e agir.
O grande estranhamento, portanto, não é do que o filme tem a oferecer e sim do que se nega a compreender; é um tipo de conclusão em que o desprezo serve de um reflexo imediato, a pensar que o homem ainda está a dominar a máquina, mesmo que ele esteja num móvel longe e que estes personagens consigam ler e conversar por alguns momentos sem a interferência dos celulares. Os rastros deixados por eles são lineares, de uma ponta a outra do filme e é comum que um filme sem pontos altos e baixos de conflitos criem tanta resistência e o que Assayas faz é dar o primeiro passo.
Madame Leblanc (Tilda Swinton) explica para Susie (Dakota Johnson): “Você confunde fraqueza física com preferência artística”. Em uma premissa cínica como a de um remake de Suspiria (1977), seria fácil demais misturar essas duas coisas, ou talvez tentar fazer com que uma justificasse a outra. A verdade é que Guadagino, por mais que não se coloque como um autor-maestro, por mais que seja quase invisível enquanto indivíduo artístico, compreende que não existe Argento para os anos 10. Compreende que a Jessica Harper enfrentando um bando de holofotes avermelhados, cenários fantasiosos e cantigas infernais que surgem das profundezas do inferno em pouco mais de 90 minutos não é algo possível de ser refilmado. Se aquele cinema é grandioso e eterno por pertencer a certos modos de produção e certas limitações artesanais que explodem como recursos inventivos, resta a Guadagino, em 2018, a seguinte preferência artística: Tratar cada corte como uma fratura, repensar toda uma ideia vinda dos porões italianos setentistas como ferramentas para os próprios interesses contemporâneos. Uma decisão, no mínimo, louvável.
Tudo começa em potências descentralizadas. A companhia de dança dominada por bruxas existe muito mais como catalizadora de um jogo ambíguo de dominações do que como força central do poder tenebroso. Susie Bannon ingressa nesse espaço como uma dançarina de suspeita inocência, cercada por uma Berlim efervescentemente caótica, de trocas de olhares tensos com Madame Leblanc e de diversas tramas políticas de espionagem e terrorismo que nunca parece compreender. É nisso que Suspiria (2018) estabelece sua fantasia, são tantas forças atuantes em cenários tão próximos que todo o enigma é simplesmente sobre quem está por cima dessa busca por domínio. Forças guerrilheiras que atuam contra soberanias diabólicas estão de alguma forma interligadas a performances íntimas e ritualísticas de feiticeiras seculares, um psicólogo em sua jornada detetivesca pelo oculto parece ser cada vez mais engolida por forças do oculto muito além da psicanálise, amores antigos desaparecem tanto por uma memória que custa em tentar recordá-los quanto por fronteiras de um pós-guerra impiedoso… Suspiria é realmente um filme ocupado. Mas o processo de overdose de contextos, pistas, olhares por portas entreabertas e personagens que nunca parecem sair de tela é justamente parte da construção para a busca da resposta inicial: Quem tem o poder de dominar todos esses outros poderes?
Susie Bannon vai aprendendo a cada dança que o primeiro passo para a dominação total é a dominação de si mesma. Parece brega colocar a dança como símbolo de um processo de domínio do próprio indivíduo, e provavelmente é, mas Suspiria usa desse princípio para elevar Susie por sua jornada de sacrifício pelo combate aos sistemas dominantes. A principal lateralidade Argentiana que Guadagino retoma como força motriz de um filme sobre resistências: a emancipação. O matricídio como tomada de poder da mais forte em uma utopia matriarcal, um universo tão envolto em conflitos e embates externos que acaba por focar nos desligamentos e golpes internos dos grupos de resistência. Lá pela metade entendemos que aquele grupo de bruxas resistiu ao nazifascismo na união iônica de poder, não em um embate direto como organizações armadas, mas pela simples sobrevivência. O terrorismo matriarcal parece simplesmente ser sobre sua própria existência, esse conjunto de poder manter-se vivo já é o bastante para ser um centro de destruição do fascismo.
As trocas com a Madame Leblanc se tornam o mais essencial pois fortalecem Susie contra qualquer outro poder, inclusive esses poderes que atuam internamente (“contra qualquer ação contrarrevolucionária” se torna “morte a qualquer outra mãe”). Como o comando do grupo, da bruxa secular Helena Markos, já é ultrapassado para novas urgências dos novos tempos. Que respeitem a tradição, mas que saibam que parte dessa tradição é justamente a subversão. E essa acaba sendo a jornada central de Susie: perceber que cabe a ela poder manter aquele universo vivo, que os comandos anteriores daquele grupo de bruxas estão perdidos em ideologismos (como uma bruxa explica, um grupo polarizado entre as “Markos” e as “Blanc”). A única resistência duradoura envolve a quebra de qualquer partidarismo autocentrado, envolve a celebração de como essa força de resistência foi construída e sua manutenção através de martírios. Toda a sequência final antes do epílogo é entorno disso, de Susie percebendo sua importância e, literalmente, explodindo a contrarrevolução. Finalmente sabemos quem era o poder dominante construído de forma tão ambígua.
Suspiria parte de uma hiperestilização que tem muito mais a ver com tendências de cineastas como Nicholas Roeg do que com Argento. Mais claramente, Inferno de Sangue em Veneza, de 73 (o tempo deslocado, o terror dos becos estreitos, a ameaça caquética misteriosa) mas também o esquecidíssimo Bad Timing, de 80 (os relacionamentos destroçados pelos contextos externos, os olhares trocados por instantes, cidades filmadas de um jeito que sempre parecem querer fazer com que você se perca). As imagens são constantemente recortadas de forma que o efeito tenebroso vem muito mais das impressões deixadas por suas transições do que pela entrega individual de cada uma dessas imagens. É um processo quase de apunhalada, do terror que brutaliza a rapidez dos movimentos e se alia aos tais corpos em iminência de um perigo misterioso. Corpos em constante movimento, não só pela dança, pouco mais óbvia, mas também pelo desespero desses espaços que parecem contrair-se cada vez mais até que revelem todos os seus segredos (como a personagem da Mia Goth descobrindo aonde estava a personagem da Chloe Moretz, retraída e putrefata entre cantos de um mundo subterrâneo). Surpreendentemente é um filme que renega uma estética pomposa ou até qualquer estética, não deixa com que imagens mais visualmente expressivas durem tempo o bastante para que tornem-se apreciáveis. Afinal, está trilhando um caminho contra essas possíveis aceitações, ele busca um ideal paranoico de assimilação imagética onde o objetivo é que toda sequência se complemente do jeito mais deslocado possível.
Parece até mais certeiro comparar o filme do Guadagino com Inferno (1980) do que com o Suspiria original, um outro filme que constantemente cria um terror de planos-detalhe, de enigmas de casa mal assombrada e de investigações mal resolvidas pela falta de um antagonismo claro. Em uma obra centrada em subtextos terroristas e conflitos de guerrilha, não poderia ser mais claro como Guadagino se interessa bem mais sobre essa energia caótica de horrores paralelos.
A conclusão do novo Suspiria é de um trabalho muito mais emergente do que o projeto poderia parecer. Mesmo dentre o cinismo de qualquer remake, é inegável que todo um ideal original é produzido e de que ele se permite toda a loucura e toda a gritaria de suas temáticas. É esquizofrênico, quase convulsivo, mas nunca desfocado do que realmente importa para seu próprio microcosmo de bruxarias, danças, golpes e paranoias. Reimagina todo um ideal de poderes utópicos e como fazem falta em um momento onde resistências parecem tão dóceis e tão impotentes. É contra tudo que não suje as mãos, que não se frature para atingir causas muito maiores. Sobra apenas um suspiro entre um corte e outro.
“Nós nos achamos no direito de rodar, de vez em quando não filmes de alto custo,
e sim filmes que produzem filmes“
Dziga Vertov
Seguindo o conceito de senso comum antropomórfico da básica literatura infantil que em sua função elementar carrega a moral como norte, fica a lição do autor-animal: faça você mesmo. Para compreender melhor a ideia do autor-animal, é preciso voltar algumas páginas de sua história, ou melhor, anos.
O jovem realizador britânico Alex Cox que fizera até então o curta-metragem Edge City (Sleep is for Sissies) (1980) como trabalho de conclusão de curso na Univeristy of California em Los Angeles estava prestes a “ser” um diretor, com estrutura, planejamento e ideia de projeção. Repo Man tinha um acordo com a Universal de produção e distribuição. Após o processo caótico de filmagem, vale a elipse para a insatisfação número um de Alex Cox sobre o descaso de produção e distribuição do filme, que passou cerca de 130 semanas em cartaz num pequeno cinema no oeste dos EUA e rendeu louros para a produtora/distribuidora. O mesmo descaso se repetiu no decorrer do contrato para três filmes que fora concluído com Sid & Nancy (1986) e Walker (1987).
Neste momento, o lado animal toma conta do autor. Já dotado de insatisfação o mercado – incluem-se críticos, festivais, produtores e associados -, por notar o desinteresse geral pelos filmes no Festival de Cannes à época da première de Sid & Nancy, quando o secretário de cultura francês ganhou mais aplausos que o próprio filme em sua estreia, Cox mudou sobre a indústria que se espelharia nos resultados lúdicos e espirituosos na trilogia do ridículo que veremos mais pra frente.
Com o tempo, Alex Cox tornou-se persona non grata em Hollywood, principalmente por usar a gordura da dinheirama prevista para Walker para fazer um spaghetti western chamado Straight to Hell (1987), enquanto a Universal resolvia burocracias políticas para que as filmagens de Walker prosseguissem.
Walker narra a história de William Walker, um mercenário que se autoproclamou presidente da Nicarágua em 1856 com intuito de dominar o país pela ditadura. Durante as filmagens, Alex Cox se envolveu com as questões da Frente Sandinista de Libertação nacional que pôs fim à ditadura estabelecida em 1936. Outro imbróglio foi o envolvimento de Alex Cox com questões éticas e políticas da Nicarágua durante a filmagem, no qual a produtora não concordava e pedia um ponto de vista mais condizente com o mercado americano. Não demorou para que o autor-animal fosse banido de quase todos os grandes festivais por expor os interesses maiores que os próprios organizadores destes eventos.
Imobilizado pelos grandes canais de divulgação, Alex Cox se encontrou nas produções independentes, com investidores mexicanos, japoneses, um fã holandês e, claro, fazendo o trabalho sujo: escreveu roteiros encomendados, incluindo o de Medo e Delírio em Las Vegas (1998), dirigiu séries e filmes para TV, como O Vencedor (1996), com o intuito de produzir e finalizar seus projetos. Desta longa temporada, saíram filmes notáveis como El Patrullero (1991), Death and the Compass (1992) e Three Businessman (1998). Vale citar o trabalho de apresentador e curador da série Moviedrome da BBC, onde introduziu filmes de Nicholas Ray, Sergio Leone, David Cronenberg, John Carpenter, Edgard Ulmer, entre tantos outros nas noites de domingo em TV aberta.
A trilogia do ridículo
A trilogia é indireta: seus meios são mais importantes que a própria narrativa. Tampouco se trata de uma aventura estética generalizada, mas um discurso da necessidade. A retórica da inspiração cria a fábula da consciência: não da moral, mas da noção de seus limites, de certo heroísmo que envolve a prática, de um retorno no raciocínio quase infantil do cinema em realizar sonhos. Este retorno também segue o pensamento que Joris Ivens já grifava em “Documentário: subjetividade e montagem”:
(…) Odiávamos aquilo que chamávamos de “grande indústria”. Não gostávamos de trabalhar para o grande capital; o que mais queríamos era fazer trabalhos independentes. Queríamos se capazes de fazer nossos filmes conscientemente, porque acreditávamos ser essa a mídia artística do educador. Nossos patrocinadores são muito especiais (…).
Composta pelos filmes Seachers 2.0 (2007), Repo Chick (2009) e Bill, The Galatic Hero (2014), a trilogia do ridículo parte do equilíbrio entre mente e matéria. São filmes que não desmoronam por necessidade de condições melhores e que levam a impossibilidade para o campo.
Searchers2.0 foi co-produzido por Roger Corman e foi filmado em mini-DV, pouco antes da grande proliferação dos aparelhos de telefone celular. Como o nome entrega, a grande referência de Searchers 2.0 é o faroeste, apesar de boa parte do filme se passar na estrada e ter abordagem saudosa e cômica, principalmente por criticar a Motion Pictures of American Association (MPAA), o militarismo, os processos de filmagem da grande indústria, etc. É o caso de reduzir seu escopo para a ambivalência de voz e imagem, que desemboca num confronto final típico dos faroestes que exime a necessidade de balas e se torna um belo quiz sobre filmes do gênero. Este é um dos polos de duplicidade da chamada trilogia do ridículo: tratar temas espinhosos sob a manta fantástica justificada pelos limites – financeiros, principalmente. Neste caso, o caso de amor de Alex Cox pelos faroestes torna-se um suporte ainda maior para a ideia do autorismo, uma vertente muito forte em sua carreira que vai de filmes como Straight to Hell e Tombstone Rashomon (2017) a livros como 10.000 Ways to Die (2011).
O mesmo se repete em Repo Chick (2009), que assim como Searchers 2.0, estreou no Festival de Veneza – o único dos “grandes festivais” que ainda abriga os trabalhos de Alex Cox – e foi todo filmado em chroma key. Não se trata de uma sequência de Repo Man – esta sequência saiu em forma de HQ em 2008 –, mas uma nova operação em dois níveis, talvez a mais arriscada da trilogia. Pela possibilidade da variedade de materiais e universos que o chroma key oferece, toda artificialidade de Repo Chick é explícita, como se o CGI estivesse em primeiro plano sempre na ação em um filme de gênero. As palavras de Ivens valem a memória mais uma vez como o resumo geral entre a estética e sua real função:
“Uma abordagem estética pura leva a arte a um beco sem saída. Para mim, um filme é muito mais importante quando está conectado a um movimento social, quando tem a ver com a vida. Não demorou muito até sentimentos que nós, como artistas, tínhamos que tomar partido na vida social, na vida econômica de nosso país; que toparíamos com uma parede lisa caso permanecêssemos no lado abstrato do esteticismo”.
Repo Chick se aproxima muito da função que os filmes de Joe Dante carregam até hoje, em especial Pequenos Guerreiros (1998). O lado plástico segue em paralelo às pequenas revoluções que o filme entrega em micro e macrocosmos (o segundo nível), com a diferença que Cox não tem amarras com um nicho de público. Da autorreferência – o desafio de recriar a cena da santa ceia de Straight to Hell, por exemplo – à variedade de preceitos usados pelo diretor no filme e à noção de maleabilidade ao “filme-monumento” que Repo Chick teoricamente deveria ser. A julgar, um filme de efeitos deveria esvaziar seus personagens. Neste caso, o filme nasce vazio e ronda seus personagens de efeitos, num caminho tortuoso e quase oposto à cartilha para fortificar trama e personagens.
Estes dois níveis usados em Seachers 2.0 e Repo Chick concluem a trilogia com Bill, The Galactic Hero. O filme foi produzido entre 2013 e 2014, já nos tempos de redes sociais e aplicativos que facilitaram muito a produção e filmagem. A começar pela pré-produção, que possibilitou o envolvimento dos fãs na campanha de crowdfunding. A equipe foi composta por alunos da turma de cinema da Universidade do Colorado, onde Alex Cox leciona.
Baseado na HQ homônima de Harry Harrison, o filme carrega o humor tradicional da obra original, porém, ironicamente, expõe de vez a melancolia nostálgica em seus meios – toda trilogia é intercedida ao comentário sobre o fazer e ver filmes, do supracitado faroeste aos filmes policiais e ficções científicas, numa espécie de reconstrução do imaginário adolescente masculino. Bill, The Galatic Hero é o que enfatiza estes meios da estética B, mais controlada que os outros dois filmes, mas não menos funcional à mise en scène. Por mais que sua função seja de, novamente, gritar o fazer pela necessidade, o filme não apaga seu caráter de reconstituição.
A pensar que este compêndio fílmico passa pela mini-DV e pelo chroma key e principalmente pela opção de completar a artificialidade de métodos, Bill The Galatic Hero se entregar ao impossível – os efeitos especiais são trocados pela animação, que abrem e encerram o filme – é uma manobra irônica, uma espécie de “quebra de regra” de seu próprio criador.
A trilogia do ridículo, um nome de tom não menos sarcástico que os filmes, pautam, em sua anarquia, a possibilidade de criação da ambivalência da imagem: em tom pop e bom humor, Cox dá sua contribuição ao estudo do encontro real com a imagem que passa por Huberman e Farocki.
O mesmo deserto do faroeste é palco de um sci-fi B; o chroma key de uma aventura pulp serve como pano de fundo para um novo gênero. E o envolvimento requerido é o mesmo. O norte primitivo, da fábula, da passividade e compreensão de um mundo possível graças à posição de baixa guarda em relação ao filme – o que geralmente cria diversas críticas negativas aos filmes, em especial a Repo Chick -, possibilita uma nova aventura. Ler a ambivalência na trilogia é um processo de convencimento, o sentir virá pela recognição.
A duplicidade do processo não é novidade para Alex Cox que torna a percepção elástica de unidade em sua filmografia na reimaginação, em personagens que vão e voltam, em métodos e principalmente na subversão de todos estes elementos. E é isso que faz a obra do autoproclamado “film anarchist” um processo muito agradável de se acompanhar. Faça você mesmo.
Se as narrativas dos contos de fadas expressam mitologias extraídas de uma tradição oral em que se canoniza a moral de uma época, de que modo é possível transfigurar tal legado por meio de um cinema que se inventa no presente? Ao usar como matéria-prima os contos de Charles Perrault para a realização dos longas-metragens Barba Azul (Barbe Bleu, 2009) e A Bela Adormecida (La Belle Endormie, 2010), Catherine Breillat não tem a pretensão de se manter fiel ao imaginário das fábulas originais. A busca da cineasta pelas fábulas orbita em torno da compreensão do que delas é possível extrair a favor de seu olhar cinematográfico para a descoberta da sexualidade da mulher e para a transformação de suas personagens pelo desejo – duas obsessões marcantes da própria filmografia da Breillat.
Tanto em Barba Azul quanto em A Bela Adormecida, a fábula é convocada menos pelo seu poder de crença, mas como artifício que escancara a perda da inocência. É interessante até mesmo pensar o gesto seco e direto de encenação da Breillat como contraponto ao gesto transbordante e ornamental de encenação que Jacques Demy propõe em Pele de Asno. Se Demy se entrega por completo à mística fabulosa de Perrault pelo que há de excessivo e encantatório, Breillat parece tomar a fábula pelo viés do desencanto. Seria a consciência bastante brutal de que, se o mundo já não é mais capaz de extasiar, a fábula precisa então ser desvelada como artifício narrativo.
É por isso que Barba Azul propõe de saída uma metanarrativa: duas pequenas irmãs se deleitam no porão da casa com a leitura do conto de Perrault, mas é a menor que escapa da literaridade das palavras e propõe pequenas subversões à leitura. A história do conto parte do destino de duas irmãs, que estão de luto pela morte do pai e padecem na miséria. A mais velha, Catherine, se casa com o personagem do título, um homem rico, que mora em um castelo luxuoso e que é conhecido na região como alguém cruel com mulheres – ele se casa com meninas sem dote e, depois de um ano, elas desaparecem. No filme de Breillat, Barba Azul é um gigante glutão e taciturno, que parece confiar na nova esposa ao deixar as chaves com ela, antes de suas partidas misteriosas. Ele avisa ser um monstro à Catherine, que retruca: “Tenho mais medo da maldade invisível”.
Mesmo com o corpo pequeno e frágil, Catherine não teme a presença imponente de Barba Azul. Muitas cenas enfatizam a escala de tamanho entre os corpos dos dois personagens. Ela exige um quarto pequeno só para ela. A coragem da menina é vista como orgulho pelo Barba Azul: “É preciso tomar cuidado para que o orgulho não se torne vaidade”. Barba Azul confia a ela uma chave de um quarto secreto, que ela jamais poderá abrir. Mas é a curiosidade que vai colocar em risco a vida de Catherine, tal como o mito de Eva. Ao abrir o quarto, ela encontra corpos de mulheres mortas e o chão empoçado de sangue. Da mesma forma que o conto, a menina consegue escapar da morte. Ou seja, a vontade de ver e a astúcia da personagem não são motivos para punição. Quem irá morrer não será a personagem do conto, mas aquela que escuta a história ser narrada pela irmã mais jovem, que é a mais astuciosa, curiosa e ativa na leitura. A leitora passiva e inocente será relegada a cair e morrer.
Breillat coloca em prática seu desejo como leitora ativa, insubordinada, subversiva por excelência com A Bela Adormecida, que não se restringe apenas ao conto de Perrault, mas pavimenta uma mistura narrativa de diversas mitologias, desde a referência à princesa russa Anastásia até a fábula A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen. Enquanto a bela adormecida do conto tradicional é condenada a dormir por 100 anos por uma bruxa malvada, o filme de Breillat leva a heroína a adormecer dos 6 aos 16 anos. Tal peripécia permite a personagem a desdobrar sua infância como uma viagem por diferentes mundos fantásticos e escapar da realidade, percebida com desgosto pela própria personagem – uma tomboy que detesta o “mundo das pequenas garotas”.
Relógios de tamanhos diferentes e verbetes do dicionário atraem a menina, que burla a temporalidade de sua experiência com saltos para múltiplas paisagens fabulosas. Uma gruta vigiada por um gigante com furúnculos, um pequeno vilarejo em que conhece Peter – o menino encantado pela rainha da neve –, um percurso de trem que a conduz a um reino de príncipes albinos anões, uma carroça saqueada por ciganos. Em cada uma das jornadas por espaços e tempos diversos, a menina descobre mais sobre seus próprios desejos em uma espécie de versão fabular do coming of age.
No momento que adentra mais na narrativa de A Rainha da Neve, o maravilhamento cede lugar à percepção cruel da vida, que só vale a pena ser experimentada com a lucidez do desencanto. “O que você chama de felicidade me impede de viver”, afirma Peter, que irá desaparecer e se tornará o fantasma amoroso da protagonista. Ao sucumbir à morte no mundo fantasioso, a menina acorda em seu castelo de outrora, mas no corpo de uma adolescente. Ela experimenta o prazer sexual com um jovem invasor de seu castelo e com uma jovem cigana que a salvou da morte.
Mas é necessário que a princesa fuja dos grilhões do castelo, onde o tempo pareceu se estagnar – personagens do passado agora são figuras estáticas. Ela pede para seu amante a oportunidade de conhecer a vida lá fora. O salto para o mundano fora do luxo do castelo é o contexto urbano da França no século XXI. O corte é seco, brusco, sem qualquer fusão. A menina está grávida e provavelmente o pai a abandonará. Não há suavidade na queda para o contemporâneo. A busca da menina pelo garoto ideal termina na ausência de qualquer desfecho romântico para a adolescente. É uma dor tão evidente quanto a frágil superfície rasgada da meia-calça da jovem em plano de detalhe e escolhida como última imagem do filme.
Superfícies que se rasgam. Percepções inocentes que se rompem. Corpos que sofrem. Narrativas que perdem o encanto. Leituras que se tornam subversivas. O que esperar da conclusão da trilogia, que promete finalizar com uma versão de A Bela e a Fera? Para uma leitora insubordinada como Breillat, a fábula torna-se um lugar fértil para a desconstrução da moral tradicional do faz de conta. O melhor de tudo é que a ruptura não exige o abandono do jogo da ficção.
Todas as histórias antigas, como disse uma das nossas belas mentes, são apenas fábulas convencionadas; e para os modernos, um caos que não pode ser desvendado.
Voltaire, Jeannot et Colin
Na historiografia tradicional, o surgimento do capitalismo é representado como um progresso natural, a vitória do pragmatismo econômico sobre o feudalismo e as trevas. Nessas narrativas, a miséria e a pilha de mortos acumuladas durante a transição costumam ser retratadas como incidentes lamentáveis, mas periféricos, da grande marcha evolutiva. Essa versão oficial é contestada em Calibã e a Bruxa, de Sílvia Federici, que identifica a violência e a expropriação como elementos indispensáveis para o estabelecimento da nova ordem. A conquista da América e o tráfico negreiro foram, afinal, os grandes financiadores da revolução industrial, que exigiu por sua vez uma força de trabalho empobrecida e disciplinada pela repressão às revoltas camponesas, pela perseguição aos hereges, por um novo sistema de criminalização e pelo cerceamento à liberdade feminina. Sangue e sofrimento permearam cada etapa do processo.
Mas na obra, Federici não se limita em perfilar uma longa sequência de injustiças, dedicando igual atenção ao extenso histórico de revoltas que marcou o fim da era feudal. Para a autora,
O capitalismo foi uma resposta dos senhores feudais, dos mercadores patrícios, dos bispos e dos papas a um conflito social centenário que chegou a fazer tremer seu poder e que realmente produziu “uma grande sacudida mundial”. O capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal — possibilidades que, se tivessem sido realizadas, teriam evitado a imensa destruição de vidas e de espaço natural que marcou o avanço das relações capitalistas no mundo.[1]
A transição pacífica rumo ao capitalismo é, portanto, uma fábula convencionada, omitindo a intensidade e potencial subversivo dessa grande sacudida. Essa mesma omissão foi perpetuada pelo cinema, um dos grandes vetores do nosso imaginário histórico. Há, certamente, filmes sobre a luta contra a tirania ambientados no mesmo período abrangido por Federici. Essas histórias costumam assumir, contudo, tons vagos e moderados, esquivando-se de aproximações desconfortáveis entre os carrascos de então e seus herdeiros contemporâneos. Basta lembrar que o protagonista preferencial desse tipo de enredo é o nobre renegado que enfrenta os usurpadores da autoridade legítima: nessas tramas, o problema da ordem constituída é sempre seu desvirtuamento, nunca sua fundamentação. Enquanto consumimos revisões periódicas do mito de Robin Hood, histórias como a Rebelião de Kett (encabeçada por um servo) ou a insurgência de “37 mulheres, lideradas por uma tal Capitã Dorothy”[2] (ambas contra os cercamentos na Inglaterra), seguem na obscuridade, a exemplo de dezenas de outros casos elencados ao longo de Calibã e a Bruxa.
Para além dessa lacuna, também poderíamos questionar a aptidão de um roteiro clássico (centrado em heróis e heroínas individualizados) para representar esse histórico de insurgências coletivas. Essa questão já havia sido levantada por cineastas do bloco soviético, que tentaram retratar a multidão como protagonista da História (como por exemplo, Miklós Jancsó em Salmo Vermelho, de 1972). Mas, salvo exceções, a massa indiferenciada costuma ocupar uma posição bastante diversa na caracterização cinematográfica, onde a contraposição entre personagens principais e uma multidão ameaçadora é uma constante desde, pelo menos, O Nascimento de uma Nação. E, assim como no filme de Griffith, essa distinção orienta-se frequentemente por coordenadas raciais: os nativos da América, África e Ásia como obstáculos para a “missão civilizatória” dos europeus e seus descendentes, reproduzindo nas telas uma retórica mobilizada a cada novo projeto de expansão territorial-econômica. O clichê presta-se igualmente a criminosos, terroristas, exércitos inimigos ou qualquer outro grupo apresentado de forma homogênea e sub-humana.
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À primeira vista, os zumbis pareceriam a continuidade dessa longa tradição, a massa desumanizada por excelência. Mas na obra de George A. Romero, o grande arquiteto do gênero, os mortos-vivos nunca receberam tratamento simplista. Pelo contrário, os filmes compreendidos entre A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e Terra dos Mortos (2005) são algumas das explorações mais interessantes já produzidas pelo cinema sobre o conflito entre alteridade e identificação e sobre o potencial colapso de uma ordem ainda mais assassina do que os canibais que a destroem.
O fim da civilização já era um espectro recorrente no terror e ficção científica quando o primeiro filme da série foi lançado em 68, mas o desenlace mais comum para esse tipo de enredo ainda era a superação da ameaça, preferencialmente por meios científicos – a vitória do racionalismo contra a face sombria da Natureza. Noite também parece terminar com a reafirmação do status quo, mas o reestabelecimento da ordem passa inequivocamente pela ignorância e truculência: caipiras armados exterminam os zumbis que encontram pelo caminho e, no processo, executam o herói negro, identificando-o como um dos monstros – desenlace já prenunciado pelo início da trama, quando o grupo (branco) de sobreviventes hesitava entre considerar Ben um aliado ou um risco.
A “vitória” revela-se apenas temporária em O Despertar dos Mortos (78), no qual acompanhamos o agravamento do caos precipitado pelos zumbis, mas consumado pela brutalidade dos vivos. Seguindo o padrão histórico, a resposta das autoridades ao clima de instabilidade é direcionar seu aparato de violência aos guetos: a trama começa com a invasão de policiais a um bairro de negros e hispânicos, produzindo mais uma pilha de cadáveres na declarada intenção de reestabelecer a paz. E ao final do filme, a fortaleza estabelecida pelos personagens não é rompida pela horda de mortos-vivos, mas por um grupo de saqueadores humanos. Na imaginação de Romero, a lógica – política e cinematográfica – do “nós contra eles”, é habilmente subvertida.
Nesse segundo episódio se manifesta uma fascinação pelo apocalipse, o êxtase do abandono do trabalho e do passeio pelo shopping center em um mundo em que o dinheiro perdeu o valor, evidenciando o caráter arbitrário e contingente de uma organização social que tendemos a considerar natural e imutável. Esse esvaziamento de sentido é levado adiante em Dia dos Mortos (1985), em que militares e cientistas tentam aplicar as soluções tradicionais – violência e instrumentalização – a uma situação além de qualquer controle. No segundo grupo, o Dr. Logan defende a conversão dos mortos em força de trabalho, um adestramento que exige recompensas (“eles precisam ser recompensados, Capitão. Caso contrário, como irão fazer o que queremos?”) – que no caso, só pode significar alimento. O exército, contudo, enoja-se com a perspectiva de ter que sacrificar (literalmente) a própria carne. Na falta de consenso, os zumbis invadem a base e despedaçam quem encontram pelo caminho, na sequência mais brutal da série. No desfecho do filme, Bub, a principal cobaia do Dr. Logan reafirma sua dignidade, enquanto o Capitão Rhodes, líder truculento e antipático, é destroçado sem despertar qualquer simpatia.
Romero retornou a esse universo duas décadas depois em Terra dos Mortos (2005). Desta vez, somos apresentados a um condomínio de luxo cujo conforto é sustentado por servos iludidos pela promessa de ascensão social e pelo saque dos subúrbios habitados pelos mortos. Depois de uma dessas incursões violentas, um grupo de zumbis decide organizar-se e retaliar a predação, concretizando a possibilidade de um ponto-de-vista zumbi já sugerido no filme anterior. O deslocamento narrativo acompanha a tomada de consciência por parte dos “monstros”: facilmente ludibriados nas primeiras cenas, solidários e alertas na conclusão da saga.
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Mas qual é, afinal, a conexão entre Calibã e a Bruxa e a tetralogia dos Mortos? Há, certamente, pontos de contato entre as obras: tanto a historiadora quanto o cineasta descrevem cenários de calamidade e anarquia acompanhados de repressões violentas. Ambos articulam, cada um ao seu modo, indignação contra injustiças sociais inseparáveis de desigualdades econômicas. Cada um é, à sua maneira, otimista, ou pelo menos afirmativo: Federici resgata insurreições que alcançaram vitórias importantes, ainda que parciais ou provisórias. Romero imagina uma realidade em que os detentores do poder são vencidos, apesar de toda sua violência, ou justamente por causa dessa violência. Os exercícios de memória e imaginação envolvem, como sempre, posturas políticas.
Todo esse preâmbulo me prepara para admitir que, afinal, não há conexão direta entre Calibã e Bruxa e a tetralogia dos Mortos. Nada sugere que Romero estivesse pensando em alegorias históricas quando conseguia esporadicamente os recursos para retornar a esse universo. Seria, além disso, simplista reduzir uma obra tão rica a uma leitura unívoca. Ainda assim, lendo Federici, deparei-me com situações e imagens que me remeteram a esses quatro filmes.
Como lembra a autora, “a transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para os trabalhadores na Europa”[3]. A privatização de terras coletivas desestabilizou a produção de alimentos, cuja distribuição também passou a ser condicionada por um novo fluxo comercial. A pressão combinada dessas e outras mudanças reduziu parte expressiva da população à indigência. Legiões de desnutridos assombravam as estradas e batiam desesperados nos portões das cidades.
(…) as principais armas que os pobres tinham à sua disposição na luta pela sobrevivência eram seus próprios corpos famintos, como nos tempos em que as hordas de vagabundos e mendigos cercavam os mais abastados, meio mortos de fome e doentes, empunhando suas armas, mostrando-lhes suas feridas e forçando-os a viver num constante estado de medo frente à possibilidade de contaminação e à revolta.[4]
A indignação e repulsa não se dirigiu, entretanto, às causas da crise, redirecionando-se contra os mais atingidos, conforme atesta o comentário de um médico lombardo em 1630:
O ódio e o terror engendrados por uma multidão enlouquecida de gente meio morta, que assedia as pessoas nas ruas, nas praças, nas igrejas, nas portas das casas, que torna a vida intolerável, além do fedor imundo que emana deles e do espetáculo constante dos moribundos […] só pode acreditar nisso quem já o tenha experimentado.[5]
Em situações extremas, ameaças de canibalismo compuseram o panorama das revoltas, “já que os trabalhadores rebeldes às vezes demonstravam seu desprezo por aqueles que vendiam seu sangue, ameaçando comê-los”[6]. Em Nápoles em 1585, “durante um protesto contra os altos preços do pão, os rebeldes mutilaram o corpo do magistrado responsável pelo aumento e colocaram à venda pedaços da sua carne”[7]. O espectro da antropofagia fez parte da demonização dos revoltosos. No mesmo período, o arquétipo do canibal foi indispensável para caracterizar a suposta selvageria dos habitantes das novas colônias. As vítimas sofreram assim uma dupla violência: de um lado, a desestruturação total de seu modo de vida e de outro, a imposição do estigma de monstros. Esses dois movimentos se retroalimentaram: a imagem de sub-humanidade justificava novas espoliações, que engendraram por sua vez mais miséria.
“A grande multidão dos homens”, escreveu Henry Power, um seguidor inglês de Descartes, “se parece mais com o autômato de Descartes, já que carece de qualquer poder de raciocinar e [seus membros] apenas podem ser chamados homens enquanto metáfora” (…) Os da “melhor classe” concordavam que o proletariado era de uma raça diferente. A seus olhos, desconfiados pelo medo, o proletariado parecia uma “grande besta”, um “monstro de muitas cabeças”, selvagem, vociferante, dado a qualquer excesso (…).[8]
Na concepção que se difundiu, o ser humano é uma combinação – separável – entre razão e animalidade. Às mulheres, aos camponeses, aos africanos e indígenas escravizados, cabia apenas a segunda parte: corpos sem intelecto. E na mesma linha do Dr. Logan em Dia dos Mortos, o pensamento europeu converteu esses corpos em objeto de estudo, visando a sua utilização para fins produtivos. Vivissecções eram realizadas publicamente em “teatros anatômicos”, preferencialmente em condenados. Mas enquanto a ciência buscava explicar o corpo como uma máquina,
Entre a população se difundiu uma concepção mágica do corpo, segundo a qual este continuava vivo depois da morte e esta o enriquecia com novos poderes. Acreditava-se que os mortos tinham o poder de “regressar” e levar a cabo sua última vingança contra os vivos. Acreditava-se também que um cadáver tinha virtudes curativas.[9]
Essa crença relaciona-se com a popularização do canibalismo medicinal na Europa dos séculos XVI a XVIII, “envolvendo carne humana, sangue, coração, crânio, medula óssea e outras partes do corpo,não (…) limitado a grupos marginais: era também praticado nos círculos mais respeitáveis”[10]. Ironicamente, imagens de banquetes antropofágicos foram peças-chave da propaganda que qualificou os ameríndios como criaturas bestiais.
Calibã e a Bruxa abrange muito mais que os episódios e temas periféricos que reuni nesses últimos parágrafos. Espero, no entanto, que esses poucos exemplos indiquem como diferentes discursos foram – e continuam sendo – mobilizados para justificar desequilíbrios, exclusões e fomentar o medo. O cinema acaba sendo mais um componente dessa engrenagem, por inércia ou deliberação. Parte da originalidade de Romero (e de Federici) é justamente a desestabilização desse tipo de narrativa. A cada iteração, o diretor nunca perdeu de vista os piores monstros, sejam os fictícios ou suas contrapartes no mundo real: das milícias que executam o herói negro no primeiro filme aos magnatas manipuladores da última parte, que se beneficiam do ciclo de morte sem jamais sujarem as mãos.
O cinema brasileiro é, historicamente, um cinema de chavões, sendo dos mais recorrentes os tais “filmes sobre o povo”. Eles percorrem desde as chanchadas até a pós-retomada, o que também torna histórico que ser “sobre o povo” quase nunca significa ser verdadeiramente popular. Não apenas o popular no sentido de cinemão de shopping, de sala lotada e de ator global, mas na representação fiel desse tal povo como uma existência humana concretizada, complexa, rica. Felizmente, esse popular pode existir graças à certos raros e ocasionais brilhantismos. Exemplo: Jards Macalé, na abertura de O amuleto de Ogum (1974), cercado de três malandros armados e confiando em sua própria odisseia oral para poder sobreviver. Junto com ele, um Nelson Pereira dos Santos cansado dos cinemanovismos, revendo seu próprio significado enquanto cineasta e buscando novas identificações com o popular, deixando seu papel de autor o menos intrusivo possível para elevar em tela o que dificilmente havia sido elevado anteriormente e, nesse processo, criando um dos mais essenciais trabalhos da filmografia nacional. No processo de experimentação em tomar certa rigidez como princípio, Amuleto encontra a liberdade possibilitadora que Nelson Pereira desejava.
Todo o projeto de O Amuleto de Ogum converge para que seu ponto de partida em conseguir lidar com a cultura do candomblé e com as crenças de raiz popular seja atingido. A lenda cantada do jovem nordestino Gabriel (Ney Santanna) protegido por um amuleto que o torna o criminoso perfeito, de corpo fechado, inatingível, consegue tomar e compreender cinematograficamente complexidades sociais e religiosas justamente por se ater a um universo muito próprio e reduzido. A escolha de Nelson Pereira de fazer um filme de gênero assumido, um gângster clássico todo completo em sua estrutura, permite uma abertura por caminhos antes inimagináveis tanto no cinema de gênero quanto no cinema nacional: os arquétipos do tipo servem muito bem às novas contextualizações umbandísticas e as sobras formais do Cinema Novo se ajustam às particularidades narrativas da obra. Através dessas misturas, vai surgindo uma personalidade fílmica que de fato renova toda a forma de enquadrar religiões de matriz africana no cinema brasileiro. Entre o que havia sido tomado como “realismo”, os exageros inevitáveis do filme de crime e as transições etéreas coloridas do tropicalismo, Amuleto de Ogum consegue firmar a natureza mística da religião como uma verdade irrefutável da obra. Gera uma potência em toda manifestação presente desse místico, pois ele existe no mesmo plano da realidade, desde a consagração do amuleto até a cena em que a gangue descobre o poder que Gabriel carrega, tudo é enquadrado de forma tão direta que o que antes seria fantasia torna-se pura realização terrena.
Quando é dada a essa cultura marginalizada o poder de sua realidade no cinema, as complexidades do contexto aliadas à objetividade do gênero tomam caminhos muito maiores. Anos antes de Glauber ser acusado de “deixar de ser marxista pra virar cristão” em A Idade da Terra (1980), Nelson em Amuleto já torna o poder da religiosidade como braço da inversão de hierarquias e terrorismo de classes. O verdadeiro temor do chefão branco Severiano (Jofre Soares) é perceber-se num universo onde a crença do povo que domina tem poderes muito maiores do que ele poderia ter. Após a fortíssima cena em que recebe um orixá e ajoelha-se diante de um pai de santo, percebendo sua inferioridade perante o alcance espiritual de um negro, Severiano logo em seguida renega tudo que passou e coloca todo o caso com Gabriel, o Amuleto e tudo mais como absurdismo. Nelson pode estar tratando de uma especificidade por conta do gênero que trabalha, mas não poderia ser mais claro em mostrar como a validação concretizada de uma religião nascida pelas formas de opressão colonial ainda abalariam e desmantelariam qualquer relação de poder ainda estabelecida. São os orixás contra a autoridade.
Quando essa crença é apropriada para os fins do comando vigente, como no arco de Severiano buscando um pai de santo trambiqueiro para conduzir a situação, ela ocupa um estado falso, mesquinho, muito distante dos ápices espirituais vividos por Gabriel (especialmente em suas cenas no terreiro pouco antes do embate final). E a todo momento que Gabriel é tentado aos terrores desse sistema de opressão, a própria religião invalida as suas verdades (sua amante, ex-mulher de Severiano, comparando-o ao ex-marido justamente antes das coisas começarem a dar errado para o protagonista).
Amuleto só alcança essa qualidade quase totalizadora justamente porque nunca se atém a nada que não seja seu próprio universo. Até por ser um filme onde Nelson Pereira reavalia seu próprio cinema, é uma obra que constantemente está atrás de limitações e de reduções para poder se engrandecer. Já no título fica marcado: mesmo sendo espacialmente interessado pela Baixada Fluminense, é batizado por um objeto, não por toda uma cidade como em Rio, 40 Graus (1955), um filme que faz o caminho oposto, pois toma proporções enormes para acabar tratando do mínimo. Mais um ponto preenchido de seus interesses iniciais, é uma certeza que Nelson conseguiu a libertação desejada de querer totalizar-se já no começo. Indo mais além para renegar esses costumes de um cinema velho, Amuleto dá fim à estética da fome. Não à toa, uma de suas passagens mais emblemáticas é um banquete suburbano filmado todo no improviso.
Sem querer cercar qualquer sofrência, Amuleto trata o marginalizado através de uma lente celebratória, que não priva nenhuma exposição das camadas repressoras, mas que está muito mais interessada na resistência através da celebração da força de toda essa cultura. Poucas obras concentraram em si tanta vontade pelo que é realmente novo, pelo que jamais pode ser visto da forma que é mostrado aqui (tendo completa noção dos motivos dessas novidades serem tão temidas). Desde a trilha do Macalé que torna o canto popular em relato genuíno até o plano final de Gabriel que revive das águas pela presença de suas raízes migratórias, Amuleto de Ogum é a lenda que também é documentário, é o produto final de uma luta pela própria existência da tradição de toda uma gente. É simplesmente sobre o que existe e sobre o que resiste. Ou seja, sobre o povo. E não dá para fazer nada sobre o povo que não acredite no que cantam por aí.
Se ha llenado de luces Mi corazón de seda, De campanas perdidas, De lirios y de abejas, Y yo me iré muy lejos, Más allá de esas sierras, Más allá de los mares Cerca de las estrellas, Para pedirle a Cristo Señor que me devuelva Mi alma antigua de niño, Madura de leyendas, Con el gorro de plumas Y el sable de madera.¹
Federico García Lorca, Balada de la Placeta
Não há filme mais belo na história do cinema que a adaptação de Maurice Tourneur do teatro de Maeterlinck. Avez-vous ici l’herbe qui chante ou l’oiseau qui est bleu?² Eu não tenho conhecimento da grama que canta, mas creio que seja suficiente que encontremos o pássaro azul para a minha filha doente. Sabendo ser perigoso crer e não crer, o filme de Tourneur exige de nós um retorno, mesmo que inconsciente, para uma condição primordial da experiência, essencialmente um salto de fé, olhar no rosto misterioso dos abismos e perceber ali a natureza mítica de tudo que é.
Como é da natureza de todas as fabulações que iniciam com uma súplica de “quem dera assim fosse!”, a fábula termina por se tratar de um veículo que trabalha mais em uma instância delirante de onirismo velado que propriamente em um plano associativo da realidade. Assim, o filme de Tourneur é um filme infantil no sentido lato do termo, mais filme dos sonhos que filme de realidades sociais, mais experiência visual que palestra motivacional, mais deleite espiritual que laboração mental. É a materialização da nossa constituição fundamental, nosso ímpeto basilar rumo à felicidade, nossas inquietações mais inocentes, nossos sinos roucos e nossos pássaros aleijados que não permitimos sair à luz do dia ou sequer florescer internamente quando afastados de nossos solilóquios noturnos.
O filme de Tourneur apresenta claramente um apuramento visual que funciona em duas instâncias. Primeiramente em um nível puramente estético, composições que trabalham a priori em uma lógica vertical, mas que possui tantos picos nessa organização que aparenta ser homogeneamente horizontalizada no seu virtuosismo, forte uso de silhuetas, sombras e véus, adornos e artifícios excessivos, tudo que há de mais impactante e grandioso visualmente, mas que encontra nos seus mais simples e singelos gestos toda a sua potência. Em segundo plano, o filme possui um cuidadoso uso de frases perfeitamente incrustadas na matéria poética do filme, não só pelo seu lirismo espontâneo, mas também pela forma como elas parecem brotar com uma simplicidade e uma claridade poucas vezes encontrada no cinema. É um filme de uma tonalidade fabular essencialmente anti-esopiana, longe de chegar em uma conclusão moral reveladora, Tourneur trabalha com uma abordagem dialeticamente anterior que aparenta tentar florescer por si própria, uma certa resignação retórica que parece encontrar na sua passividade, no seu onirismo anunciado, toda a beleza da vida.
Há no filme um anacronismo dialético que faz da natureza epistemológica humana não uma instância que necessariamente acumula em uma lógica construtiva, mas uma que se confunde, que se perde nesse sistema; pretensa epistemologia que alcança o estado final no empírico imediato, o fim da dialética platônica está na sua gênese, a essência de todas as coisas materiais é de faculdade inata. A alma dos elementos é de natureza conflitante, e esse mundo heraclitiano é retrato desse conflito constante, desse embate perene entre todas as entidades impulsivas por essência.
Encontramos o pássaro azul. Est-ce qu’il est assez bleu?³ Não sei dizer, mas o compartilho com quem precisa mais que eu – talvez aí repouse a felicidade, no compartilhamento da experiência, passando o nosso pássaro azul para o vizinho doente. Enquanto indagamos se é aquilo mesmo o que buscamos, a nossa conquista material foge do nosso alcance, seja por desleixo, por soberba, ou até mesmo pela erosão dos anos. O filme termina com uma perda mas também com um último grito de esperança – mas será que isso basta? Pasolini em uma de suas entrevistas certa vez desabafou: “e o que eu quero com a esperança? De que ela me serve?”. Ela pode servir como força motriz das nossas vidas e desejos, mas também como desilusão e condescendência inerte. Não se pode viver apenas de sonhos.
Ainda que Sócrates e Fedro suplicassem aos deuses por auxílio na busca pela beleza interior e ainda que eles fossem capazes de harmonizar o exterior com essa beleza espiritual, nós ainda precisamos de pães e bolos para nos mantermos em pé. Imaginá-los às vezes não basta – enquanto os anos passam e vou envelhecendo, meu corpo decadente me recorda inclemente o fardo daquele meu espelho, aquele espelho que continua sendo o mesmo ponto de inflexão lacaniano entre a minha consciência e o Outro. E mesmo que a reminiscência me ludibrie com os resquícios do que um dia foi sentido, imbuído da satisfação delirante dos sonhos daquilo que não o foi, meu corpo ainda anseia por aquele átimo fugaz, lacônico e sintético na sua transcendência, no qual a fabulação se reconcilia com o físico. Nossa memória é porosa para o esquecimento, inerte na sua dinâmica. Nosso corpo é desmoronamento, dinâmico na sua inércia. Se há o senso de realidade, e ninguém duvida da sua justificada existência, o que me resta é o de possibilidade, e a ardência pungente que acompanha cada instância de contentamento, cada quimera claudique que me provoca um sorriso segmentário, cada pássaro azul que me faz cantar e me lembra de quando dançamos sob a luz daquelas estrelas com as quais sonhávamos. Estamos sempre no aguardo mudo para nascer de novo.
By a departing light
We see acuter, quite,
Than by a wick that stays.
There’s something in the flight
That clarifies the sight
And decks the rays.4
Emily Dickinson, By a Departing Light
Meu coração de seda
Está cheio de luzes,
Com sinos perdidos,
Com lírios e abelhas.
Irei bem longe,
Mais longe que aquelas colinas,
Mais longe que os mares,
Para perto das estrelas,
Para pedir ao Cristo nosso Senhor
Que me devolva a alma que tinha
Antigamente, quando era criança,
Amadurecida com lendas,
Com um boné emplumado
E uma espada de madeira.
Você tem aqui a grama que canta ou o pássaro da cor azul?
Seria ele suficientemente azul?
À uma luz evanescente
Vemos mais agudamente
Que à da candeia que fica.
Algo há na fuga silente
Que aclara a vista da gente
E aos raios afia.
A relação entre cinema e fábula envolve de saída um impasse bastante recorrente e pertinente dentro de uma certa tradição teórica historiográfica. Nos anos 1920, o jovem Jean Epstein vaticinava em seu texto Bonjour Cinéma: “O cinema é verdade. Uma história é uma mentira”. Era como se a arte de narrar histórias estivesse restrita a um legado literário aristotélico (de orquestrações ordenadas de ações) e precisasse ser colocada em um lugar distinto, longe da desordem da vida que o cinema parecia buscar a partir da técnica com a câmera. “A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para um fim concreto, apenas situações abertas em todas as direções”, escreve Rancière na tentativa de compreender o gesto de Epstein. A arte cinematográfica deveria estar neste lugar de excelência da inversão da racionalidade da trama.
Mas Rancière acaba por reconhecer que a visão de Epstein é de um tempo distinto do nosso na contemporaneidade. É uma visão do cinema carregada de uma nostalgia por insistir na separação entre a presença íntima das coisas do mundo e o universo da fábula. Também é uma visão condescendente por compreender o cinema como arte a partir de um dispositivo técnico que poderia colocar em prática uma utopia estética, política e científica daquele contexto histórico. A partir da reflexão sobre tais limitações do texto de Epstein, Rancière procura afirmar a fábula como elemento constitutivo do cinema como experiência.
Nem a fábula se restringe à mera contação de tramas ordenadas, tampouco o cinema se restringe aos efeitos de real que podem aproximá-lo de uma certa autenticidade da vida. Para esta nova edição da Multiplot!, pouco interessa a velha distinção entre verdade e mentira, que parecia ser tão cara a Epstein. O que nos interessa como críticos na contemporaneidade é escapar das dicotomias que figuram cordas lançadas pelas teorias e que, muitas vezes, são capazes de sufocar elas mesmas. O gesto a ser feito é mergulhar nos procedimentos estéticos que determinados realizadores lançam mão a favor de dramaturgias em vizinhança com as potencialidades da fábula, aqui defendida em suas diferentes nuances e matizes do sonhar e do imaginar que já estão presentes desde o início do cinema. De que maneira o cinema ainda é capaz de apostar na crença da fabulação?
Pensamos aqui as vontades de alguns realizadores contemporâneos em construir narrativas com zonas de contato mais próximas de fábulas tradicionais, como os contos de Charles Perrault, ressignificados pela postura da leitura ativa de Catherine Breillat, em Barba Azul e A Bela Adormecida. Ou mesmo a peça infantil de Maeterlinck que se transfigura em uma artesania imagética pelo olhar de Maurice Tourneur em O Pássaro Azul.
Alguns cineastas buscam se ancorar na radicalidade da fábula para enfrentar mais diretamente os modos de produção da indústria cinematográfica hollywoodiana, como é o caso da trilogia do ridículo de Alex Cox, ou fazer uma crítica contundente ao status quo capitalista, por meio dos filmes de zumbi de George Romero.
Diretores representativos de movimentos cinematográficos abraçam curvas singulares em suas cinematografias, em grande parte devido à sedução pela fábula. Nelson Pereira dos Santos enfrenta as limitações realistas do paradigma cinemanovista com a ressignificação fabular da força mítica dos terreiros de candomblé e de umbanda em O Amuleto de Ogum. Roberto Rosselini também subverte os meandros neo-realistas com as fábulas indianas que compõem India: Matri Bhumi.
Valerie e sua semana de deslumbramentos, de Jaromil Jires, se alimenta de personagens fantásticos em que o despertar da sexualidade é uma debochada crítica às instituições patriarcais, enquanto L’Apollonide, de Bertrand Bonello, mergulha no nó fabular de cortesãs de uma casa de prostituição do século XIX que procuram burlar a melancolia que encarna seus lugares no jogo da história.
Outros cineastas são convocados ao longo desta edição da Multiplot!, em textos que não pretendem traçar uma linha temporal historiografia de produção entre os filmes. A virada se dá na aposta das intensidades. O intervalo de um texto a outro pretende friccionar olhares diversos, compondo uma grande tessitura de gestos fílmicos tocados pela poética da fabulação. O jogo está posto.
No livro Afro-Fabulations The Queer Drama of Black Life, Tavia Nyong’o questiona se “uma poética da afro-fabulação poderia suplementar, ou mesmo suplantar, a política da representação?”. Tais estratégias de afro-fabulação para Nyong’o seriam formas de tirar o pesa que as artes negra e queer carregam a partir das lógicas identitárias e representacionais, apontando, no lugar, para formas expressivas mais fugitivas e performáticas. Essa estratégia expressiva passa também pela proposta de fabulação crítica da historiadora Saidiya Hartman.
Partindo de um processo leitura crítica dos arquivos históricos do Atlântico Negro, Hartman diante da incontornável e insuportável violência destes arquivos, assume a impossibilidade da representação (que apenas poderia reproduzir e/ou atualizar o processo violento). A historiadora manifesta assim, como alternativa, a necessidade da encenação na pesquisa e interpretação dos arquivos. O que Hartman incorpora ao processo de veridicção histórica é o elemento imaginativo, o subjuntivo do passado, o “e se” – não em um sentido falsificante (ou seja, oposto ao verdadeiro), mas fabulatório (que não pode e não quer ser verificado).
Mais do que uma resposta, a pergunta de Nyong’o e a abordagem historiográfica de Hartman nos abrem outras relações críticas possíveis com a produção negra contemporânea. E será a partir delas que nos aproximaremos de três trabalhos de artistas negras contemporâneas. Os curtas discutidos neste texto possuem modos de produção e realização bastante diversos entre si, mas cada um à sua maneira, parte de uma relação direta do fazer cinematográfico com os campos da performance e das artes visuais. E os três curtas também afastam-se de estratégias representacionais mais comuns da experiência negra no cinema.
Elekô (Mulheres de Pedra, 2015): corpos especulativos
Na primeira cena do filme coletivo Elekô, cinco mulheres negras movem-se em conjunto e lentamente. Duas luzes de uma construção parecem guiar os gestos das mulheres e ao fundo ouve-se o barulho do mar, metais que tilintam e um canto em lamento. A aproximação da câmera nos revela as lágrimas que escorrem. Esse corpo corpo-conjunto, embora situado nas ruínas das obras em andamento do centro do Rio de Janeiro, é transportado por sons, as vestimentas das mulheres e os seus movimentos para o meio do oceano. Assim, em poucas sequências estamos entre o Rio de Janeiro contemporâneo dos grande eventos (e consequente processos de higienização e remoção das populações pobres e pretas) e a travessia de escravizados no Atlântico Negro. Se concretamente o cenário do Rio contemporâneo se impõe na imagem, a performance desse corpo-conjunto negro fabula um outro tempo e espaço no presente a partir da fusão entre memória e história. O porto que recebia os escravizados no passado projeta-se sobre a região portuária do presente.
Em outro momento, duas mulheres negras de torso nu fazem uma performance com um punhado de terra. As mãos com terra erguem-se em direção ao céu, enquanto alguns grãos escorregam. A terra é espalhada nos braços e barrigas, criando uma nova camada de marrom nos corpos. Nesta sequência, se os tambores parecem compor harmoniosamente um ritual sagrado, a leitura da declaração oficial da abolição da escravatura no Brasil coloca novamente em operação uma politemporalidade. Uma temporalidade múltipla que não anula os seus elementos (passado colonial escravocrata e presente da expressão artística negra), mas os sobrepõem.
Seguindo a lógica dessas duas sequências mais delineadas discursivamente, as outras performances musicais, sonoras e corporais que se somam no filme compõem uma sobreposição de narrativas femininas negras que se articulam no presente, mas apontam para experiências coletivas de passado e de futuro. Os menos de sete minutos da obra manipulam uma experiência sensorial de intensidades e fragmentos de vivências negras femininas múltiplas.
Se um jogo de coletividade se anuncia na performatividade do corpo-conjunto, os closes e a montagem em paralelo de narrativas múltiplas dispersam ou complicam essa promessa. Assim, no filme, enquanto uma mulher escreve subindo a ladeira, outra anda pelas ruas enchendo sacos de plástico do fôlego de desconhecidas. As duas podem co-habitar a mesma obra, mas seguem existindo em temporalidades próprias, específicas. O filme não parte de um princípio de performances com início, meio e fim, mas por um atravessamento destes momentos. Assim, as narrativas negras que fabulam o/no filme atuam menos no sentido de fechar a obra, mas de abri-la para entradas e experiências espectatorial diversas.
O filme encerra-se em uma roda musical e de dança de celebração das mulheres negras. Dança que se faz a partir de um canto tradicional alegre que pede licença para cantar. A construção dessa celebração nos remete ao que Tavia Nyong’o chamou de criação de um corpo especulativo feito das contra-narrativas que desarranjam as linhas temporais históricas. Os corpos negros especulados na escravização (comprados, vendidos, estuprados, abortados, torturados…) tornaram-se corpos especulativos. Se uma grande maioria das expressividades negras diaspóricas pós-escravização fez-se a partir da necessidade de reconstrução histórica e do realismo, a especulação como expressividade negra coloca-se como uma contraposição constante.
Em Elekô, é possível se estar no Rio de Janeiro e na travessia do Atlântico, na abolição e no presente histórico, em uma roda de gira de ontem e de amanhã. As mulheres negras historicamente especuladas, especulam no cinema os seus corpos (e as relações e sentidos que estes podem e desejam criar). Nesse processo fabular, o filme não apaga os processos históricos ao que remete, mas soma-os a sua criação performativa.
Experimentando o Vermelho em Dilúvio II (Michelle Mattiuzzi, 2016): politemporalidade negra
Em Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism, Grada Kilomba discute a máscara do silenciamento. O instrumento colonial de tortura era utilizado para tapar a boca dos escravizados, impedindo-os de comer e, sobretudo, Kilomba defende, impedindo-os de falar. A análise da máscara leva Kilomba ao levantamento de conjecturas no passado “O que poderia o sujeito Negro dizer se ela ou ele não tivesse sua boca selada? E o que o sujeito branco teria que ouvir?” (KILOMBA, 2016 – tradução de Jessica Oliveira de Jesus). O que o falar e ouvir movimentam são relações de poder. E também, como Kilomba esmiúça, o que se operava com o uso da máscara como forma de controle e tortura era o processo psicanalítico de recusa e repressão dos sujeitos brancos. Diante da sua agência violenta no processo colonizador e escravização, os sujeitos brancos não poderiam correr o risco de ouvir.
Em Experimentando o Vermelho em Dilúvio II, Michelle Mattiuzzi nos convoca em seu filme-performance a nos questionar as reminiscência subjetivas e literais da máscara no presente. Na performance do curta, utilizando uma versão da máscara de silenciamento (amarrada por fitas vermelhas e pregadas por alfinetes grandes que perfuram o rosto) e um vestido branco, a artista caminha pelas ruas do centro do Rio de Janeiro em direção à estátua de Zumbi dos Palmares. Visualmente a extrema brancura do vestido e o tom vivo do vermelho ganham intensidade em contato com o tom de pele escuro de Michelle Mattiuzzi. A composição elaborada impecavelmente contrasta com o caos habitual das ruas e dos passantes. Os olhares dos transeuntes fitam a máscara, a artista, suas vestimentas e muitas vezes a câmera que a acompanha a uma curta distância.
Concluindo a caminhada, a artista pára diante do monumento, alinhando-se à mesma direção de olhar de Zumbi para a avenida. Sem pressa, ela desfaz os nós da fita vermelha e começa a retirar os alfinetes que furam a sua pele. Mais uma vez o vermelho, agora do sangue escorrendo sobre o rosto de Mattiuzzi aparece como elemento de destaque. Sob a máscara, descobrimos ainda mais uma camada de dor: alfinetes que prendem diretamente os extremos da boca da artista.
Neste momento do filme, o desfazer performativo mescla-se com o seu preparar. Sequencialmente, os alfinetes estão sendo retirados e vemos o sangue; colocados e vemos às lágrimas e, novamente, retirados. As temporalidades históricas também mesclam-se: ao fundo o busto de Zumbi dos Palmares, em primeiro plano os punhos cerrados de Mattiuzzi. A ação (performance e filme) opera a ideia de politemporalidade negra. Aqui não apenas sobrepondo o passado no presente, mas complexificando a duração fabular da performance. A linearidade não interessa: colocar e retirar os alfinetes são atos não consequentes, mas cíclicos. A politemporalidade, como um entendimento do tempo mais denso e expandido, assim se contrapõe com uma ideia do tempo universal, neutro e transparente (Nyong’o, 2018).
Neste sentido, é importante pensarmos o vermelho do título. O vermelho aparece não apenas nas fitas que seguram a máscara e caem sobre a cabeça de Mattiuzzi, mas também na transição entre os blocos (no lugar de um fade out preto tradicional). O vermelho assim torna visível a montagem do filme, em um movimento semelhante ao que Ana Pi desenvolverá depois com o azul em NOIRBLUE – Deslocamentos de uma dança (2018). Mais do que apenas uma mudança cromática do preto para o vermelho (ou o azul), o efeito desnaturaliza convenções de (in)visibilidade na linguagem cinematográfica. Em Experimentando o Vermelho em Dilúvio II a cor vermelha como elemento de transição assume um lugar de base, fundamento, da materialidade da obra e do seu processo. E o sangue da artista (o último tom de vermelho a ser mostrado no filme) desloca essa materialidade da obra audiovisual para os corpos negros. Assim, o que a afro-fabulação performativa de Michelle Mattiuzzi coloca em evidência é o sangue como elemento fundante das experiências negras no passado e no presente,
Pontes sobre abismos (Aline Motta, 2017): Reformulando o arquivo familiar
Atos de reformulação (redress), argumenta Hartman, baseiam-se em afetos de dor e fome, em necessidade e desejo. A história crítica (ou o que ela mais tarde chama de “fabulação crítica”) é definida (…) como “atos memoriais a serviço da reformulação”. A reformulação, eu reivindico, é uma teoria e prática psicanalítica e sociogênica negra para lidar com os fantasmas incorporados da cripta. (Nyong’o, 2018)
Em sua origem, Ponte sobre abismos foi uma instalação em multicanais e uma exposição fotográfica. Mas a obra de Aline Motta também foi montada como um filme de telatripartida – e é a essa realização da obra que nos ateremos a seguir.
A sequência final do curta-metragem concentra-se em uma narrativa sobre a origem do leopardo, na mitologia de África. O conto diz que em tempos remotos o leopardo (mostrado como uma animação, um bicho branco sobre um fundo preto) fez amizade com o fogo. Passado um tempo da amizade, a mulher leopardo manifesta o seu desejo de também quer conhecer o fogo e pede que ele convide o amigo para ir a sua casa. O fogo faz a visita. Ao ver sua casa em chamas, a mulher leopardo pergunta: “Este é o seu amigo?”. E foi assim que os leopardos ganharam as suas manchas, o conto conclui.
Este conto que localiza a origem de uma característica marcante do leopardo (as manchas) em uma experiência afetiva traumática e fundante. A origem do leopardo encerra (sem concluir) o percurso do filme (que passa pelas áreas rurais do Rio de Janeiro, Portugal e Serra Leoa) em busca das origens e arquivos familiares da artista. A busca é motivada pela revelação feita por sua avó de nunca haver conhecido o próprio pai. O bisavô da artista era o filho adolescente e branco dos patrões da sua bisavó negra. Na concepção de Nyong’o de afro-fabulação há uma aposta performativa e expressiva de se “viver com a ambivalência” (com a morte, o trauma, as feridas que constituem a experiência negra contemporânea pós-escravização e colonização). Essa ambivalência nos parece se mostrar na obra pelo resgate e reapagamento da figura ausente/presente do bisavô e pela reformulação e afirmação das figuras da avó e bisavó.
Assim, se na breve narrativa familiar e nos arquivos existentes (como a certidão de nascimento assinada pelo tio materno da criança na ausência de um pai) subentende-se o assédio, estupro, abuso e abandono daquela jovem mulher negra e da sua filha, o processo da obra empenham-se na reformulação de suas imagens e dos seus arquivos. Por fotos plotadas em tecidos, papéis e estruturas diversas, as duas mulheres negras, Doralice e sua mãe Mariana Francisca, circulam em águas de continentes diversos (América, Europa e África). As suas imagens e de seus documentos ampliados reivindicam a sua existência. A fluidez das fotos e documentos tremulando na água e no ar, dão novamente uma ideia de movimento vivo ao arquivo e à memória familiar.
Enzo, o bisavô “desconhecido” também é retomado por uma foto ampliada e pela recuperação de suas aparições nas colunas sociais e de esporte dos jornais da época. Como a narração em voz over anuncia, a descoberta dos rastros dele existentes no jornal marcam o nascimento de uma nova família. Como as manchas do leopardo, ausência (de relação concreta) e presença (pela herança genética) são marcas constitutivas inapagáveis. Mas ao contrário das figuras femininas, o bisavô reencontrado sobretudo nos arquivos de jornais tem o seu registro riscado pela edição do filme. A sua reformulação no arquivo familiar não é pela permanência de uma imagem perdida ou pouco vista, mas pelo apagamento deliberado do arquivo oficial.
Assim, no curta, a busca da bisneta em arquivos históricos por traços de sua presença não se move para um reencontro ou uma resolução (compensação ou reparação). Os seus vestígios são mostrados para serem logo em seguida apagados, riscados. Há portanto no processo performativo da obra mais a ideia de reformulação, do que de compensação ou reparação. Nyong´o definirá esse processo de reformulação como o de “uma articulação da perda” sempre imensurável. Assim, encontrar os resquícios de Enzo no jornal não reestabelece ou cria laços afetivos, mas cria uma agência possível na arte fabular da bisneta sobre ele. Um processo também de fabulação crítica do arquivo familiar que redimensiona (para maior ou menor) a importância dos sujeitos históricos, invertendo a dominância do homem branco para as mulheres negras.
India: Matri Bhumi (1959), inédita no Brasil até ser apresentada na mostra 6x Rossellini: Uma Homenagem à Cineteca de Bologna (no Festival do Rio de 2014), é uma obra única na filmografia de Roberto Rossellini. Exaltada por Godard, que comparou seu formato documental enriquecido com segmentos ficcionais que abordam mitos e costumes do país retratado a obras-primas do gênero como Tabu (Tabu: a story of the south seas, 1931), de Murnau, Que viva México! (¡Que Viva Mexico! — Da zdravstvuyet Meksika!, 1979), de Eisenstein, e É tudo verdade (It’s all true, 1993), de Orson Welles, é ainda pouco vista e discutida.
Depois de ter realizado filmes — Alemanha, ano zero (Germania anno zero, 1948), Stromboli (Stromboli, terra di Dio, 1950) e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) — nos quais seus protagonistas se deslocam para países (Alemanha e Itália) que haviam sido devastados pela Segunda Guerra, deparando-se com o fantasma da violência, a força da natureza e sua própria humanidade, Rossellini decide empreender uma jornada própria para um país rico em narrativas, bastante distintas das europeias. O roteiro de India: Matri Bhumi, que contempla a faceta poética da Índia, sem deixar de lado as preocupações éticas e sociais que sempre assolaram a obra neorrealista de Rossellini, foi escrito por ele, junto à escritora Sonali Senroy Das Gupta (que se tornará sua esposa) e ao diplomata iraniano Fereydoun Hoveyda. Formado na Sorbonne, o cinéfilo Hoveyda escreveu para a Cahiers du Cinema, entre 1955 e 1965. Era um apreciador do cinema do calcutaense Satyajit Ray e, na sua lista de melhores filmes elaborada para a mítica revista, destacou O tigre da Índia (Der tiger von Eschnapur, 1959), de Fritz Lang, como o melhor filme desse mesmo ano em que India: Matri Bhumi concorreu ao prêmio máximo no Festival Internacional de Cinema de Moscou.
Fritz Lang e Rossellini foram dois dentre vários cineastas europeus que lançaram seus olhares para a Índia no período posterior à sua independência em relação à Inglaterra (a qual se deu em 1947, como decorrência da segunda grande guerra). O tigre da Índia, de Lang, teve uma sequência: O sepulcro indiano (Das indische grabmal), lançada no mesmo ano. Ambos foram baseados em um livro de sua ex-esposa, Thea von Harbou, e narram o encontro e o espanto de um europeu com o exotismo da Índia, em uma história repleta de romance e aventuras. Lang fez várias viagens para a Índia, mas a realização dos filmes se deu na Alemanha. O pioneiro dentre esses cineastas, contudo, foi Jean Renoir, por quem Rossellini nutria grande admiração. O rio (The river, 1950), adaptado da obra da escritora Rumer Godden, é uma obra ficcional, que aborda temas humanistas igualmente caros a Rossellini e contém traços documentais, principalmente no retrato feito por Renoir das festas e cultos religiosos. Fiel a seus preceitos realistas, filmou em Bengala, às margens do Ganges. Pasolini, em 1961, empreendeu uma viagem à Índia na boa companhia de Alberto Moravia e Elsa Morante que resultou no livro O cheiro da Índia, não propriamente documental, e no filme sobre um filme: Appunti per un film sull’India (1968), no qual discute mitologia, costumes e realidade social. Louis Malle filmou um extenso documentário para a TV, L’Inde fantôme (1969), onde se destaca o segmento Calcutta, focado nas crises políticas e sociais pelas quais o país passava. Marguerite Duras, na França, realizou India Song (1975), obra-prima experimental que retrata a decadência de europeus abastados que compunham a Índia branca colonial nos anos 30. Conflitos morais dos europeus na época colonial também foram abordados por David Lean em Passagem para a Índia (A passage to India, 1984), baseado no livro homônimo de E. M. Forster. Peter Brook e Jean-Claude Carrière fizeram numerosas viagens à Índia na preparação da peça Mahabharata, posteriormente adaptada para a série de televisão The Mahabharata (1989-1990).
O Mahabharata e o Ramayana, que alimentam o imaginário ocidental, são os principais poemas épicos da Índia antiga. Junto aos Vedas, transmitem ensinamentos morais e são a base da mitologia hindu. Foram, inicialmente, transmitidos oralmente. Ainda hoje estão onipresentes entre os indianos, que desenvolveram ao longo de sua história apreço pela arte de contar. A música e o teatro indianos também muitas vezes se aproximam do mito e do sagrado, assim como o cinema, que já impressionava o ocidente desde que Raj Kapoor apresentou O vagabundo (Awaara, 1951), no Festival de Cannes de 1953, e Satyajit Ray, A canção da estrada (Pather Panchali, 1955) — primeiro filme da Trilogia de Apu — , no mesmo festival, em 1956. O cinema de Kapoor estabelece o estilo de Bollywood: é romântico, tem temática social e utiliza canto e dança como elementos narrativos. Já o cinema de Ray é de cunho realista. Seus temas são também sociais e sua abordagem é bastante humanista.
Em India: Matri Bhumi, Rossellini filma em cenários naturais e se vale da fábula e da poesia para oferecer uma contemplação sobre a Índia. Nos créditos iniciais, vemos imagens de deuses esculpidas na pedra: Shiva, com suas três faces, como um deus que pode assumir todas as formas; e Ganesha, um deus híbrido: tem corpo de homem e cabeça de elefante. Sons de instrumentos musicais indianos ajudam a dar significado às imagens mitológicas.
A seguir, cenas de Mumbai (antiga Bombaim): o porto à beira do mar arábico e a multidão. Um narrador bem humorado e generoso nos fala do cosmopolitismo da cidade, uma das principais portas de entrada para a Índia. Dentre os que caminham por suas ruas, em meio a vacas e variados meios de transporte, há pessoas de várias religiões, de grupos étnicos distintos, descendentes de todas as castas. O narrador as vê como um grupo pacificado e tolerante, em constante deslocamento rumo ao trabalho, ao descanso e ao divertimento. Rossellini não procura (ou explora) a miséria e a doença. Cartazes de filmes de Bollywood são vistos em toda parte.
Mudam o ritmo da música e a paisagem. O narrador parte em busca da Índia profunda e tradicional. Sua fala, antes frenética, se torna pausada. Passamos a ouvir os sons da natureza. Planos longos acompanham o movimento dos animais e de um rio. Imergimos em uma jornada visual e sonora, como se a mudança do espaço nos levasse a uma viagem no tempo: um caminho ficcional, poético, fabular pelo qual Rossellini nos faz enveredar. Vemos paisagens do sul da Índia: templos, rios, lagos e florestas. Nessa localização, naquele momento, os elefantes eram utilizados como força de trabalho. A relação entre os condutores de elefantes e os animais é mostrada. Suas jornadas de trabalho comparadas. Então, acontece a transmutação do narrador: ele passa a ser um dos condutores de elefante. Passamos indiscutivelmente do documentário para uma fábula, que fala de trabalho, amor, costumes de família, casamento, gestação e nascimento. Isso porque ambos se enamoram simultaneamente, o elefante e o gentil condutor. Uma jovem cantora participante de um grupo de titereiros encanta o nosso narrador. Ele precisará de pausas na sua rotina extenuante de trabalho para viver esse amor. O elefante, também.
Fim da primeira fábula, serão quatro. Volta o nosso primeiro narrador, admirando imagens do Himalaia, onde nasce o Ganges: rio que purifica, que significa a vida. Ele fala do karma, do peso dos nossos atos, discutido no Mahabharata. Passamos para imagens de uma construção de uma barragem em um rio paralelo ao Ganges. A narração passa a ser assumida pela voz de um dos trabalhadores, um migrante que precisou sair de Bengala Ocidental depois da partilha que deu origem ao Paquistão. Ele é um entusiasta da modernização e do progresso. Finda a obra, ele precisa partir para encontrar outro emprego, o que aborrece sua esposa que quer continuar vivendo na mesma terra onde teve seu filho. Ele sente orgulho por ter construído a represa. Acha que é uma construção muito mais grandiosa que um pequeno templo que terá que desaparecer. Toma banho no lago artificial da represa ao invés de purificar sua alma em um rio sagrado. Corpos de trabalhadores mortos são cremados às margens desse mesmo lago. É uma fábula que fala da interferência do homem na natureza e do desafio ao mito e às tradições.
A terceira fábula aborda a velhice. Em um povoado junto a uma antiga fortaleza muçulmana, o narrador, que agora é um senhor de 80 anos, se vê incapaz para o trabalho. Vivendo junto à família, próximo a uma floresta onde se escuta o canto de amor dos tigres, ele sente necessidade de uma vida contemplativa. A harmonia da paisagem e o cotidiano da família são abalados pela chegada de um grupo explorador de minérios. Com a mudança do ecossistema, um dos tigres ataca um homem, algo que nosso narrador nunca tinha visto em toda a sua longa vida. Ele fica ao lado do tigre, pois sempre viveu integrado à natureza.
Em uma região muito quente, um homem e sua macaca amestrada se dirigem a uma festa religiosa. Ele, que poderia ser o narrador desta quarta fábula, morre de calor. A macaquinha consegue se soltar do corpo morto de seu dono e vai só à feira, carregando um pedaço de sua corrente. O condutor principal da história, o narrador viajante, seguirá nos relatando os infortúnios do animal. Na feira, ela fará seus truques e recolherá moedas que não sabe para que servem. Ficará só. Ao tentar interagir com macacos selvagens, será repelida. Eles sentem o cheiro do homem nela. Sua única saída será encontrar um novo dono. Não escapará da domesticação e das correntes.
Rossellini documenta, em India: Matri Bhumi, a realidade contemporânea da Índia: suas questões sociais e morais, a modernização, a interferência do homem na natureza. Os fragmentos de vida relatados nas fábulas mostram o quanto havia de passado naquele presente. Os animais mais emblemáticos da Índia – as vacas, os elefantes, os tigres, os macacos – foram usados como partícipes da narrativa. Uma outra forma de relato, menos poética, não nos causaria o mesmo efeito.