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Singularidades de uma assassina loura: Anna (Luc Besson, 2019)

Por Felipe Leal

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É simultaneamente anedótico e “conceitual”, pedra lapidada de um estilo para que o posado revele certa dimensão do espírito, que Robert Bresson tenha preferido modelos para compactuar na composição de seus elencos. Que tenha chamado seus atores de modelos e os posto numa práxis de tamanha mecanicidade disfarçada, que aquilo de autômato chega a exibir mais vida que a própria pele que acusa a carne. Mas não precisamos da máxima de Valéry – aquela diz da pele que este é o órgão mais profundo – para chegar a conhecer as fissuras e engodos inevitáveis ao corpo como um todo, pois ainda que haja atores e haja modelos separadamente, para além de suas fusões, é também sabido que a cada um serve de ferramenta valiosa certo empréstimo das técnicas físicas do outro: àquele posando para uma objetiva ou enfileirado num catwalk excessivamente assistido, é útil que saiba absorver dons de transformista, que aceite incorporações; ao sujeito em cena, mostra-se frutífero que entenda da pose, de congelamentos, das variações corporais para um enamoramento com as lentes. “A câmera ama você”, ouvimos entre os disparos que desejam que nunca fique exaurida a fotogenia de algumas relíquias da moda. Mas dentre as múltiplas singularidades que os diferenciam, aquela que melhor risca uma transversal no ofício do corpo é a sapiência do “saber-se visto”, a consciência erótica de emular, na pele, a devolução do olho que sabem que os observa. Na filmografia de Luc Besson, pois, Anna – O Perigo Tem Nome (Anna, 2019) representa esta transversal de desvio.

Besson filmou Natalie Portman, Bridget Fonda e Scarlett Johansson, evidentes “estrelas”, mas não havia ainda captado de uma modelo propriamente dita esse estojo dúplice de ferramentas de uma mulher que não apenas estourou grifes a nível Chanel e Versace, como fez de seu caminhar de dançarina com leveza de vento e postura de imperatriz a imagem de uma das modelos mais bem pagas do mundo. Que seu regente tenha duplicado o tema é apenas uma ignição sorrindo às escondidas. Anna (Sasha Luss) oscila entre a miséria mal cicatrizada da subserviência aos homens e acidentes e a coreografia inflamada de uma percepção que lhe faz o cheiro das ofensivas anteceder a própria visão das dezenas de seguranças e chefões que assassina. Nenhum objeto é im-passível, digamos, de lhe servir como arma para uma chacina, assim como nenhum homem será capaz de devolver-lhe uma liberdade que aliás nunca esteve entre as mãos. Besson arquiteta um grã-fino restaurante russo como a cenografia mais propícia a um terceiro olho cujas investidas são os círculos, a frontalidade e as costas que multiplicam o inesperado, os pontos da arena de batalha: pratos se partem em discos dentados, suportes cilíndricos de balcões de bar perfuram troncos como lanças, garfos e extintores amassam a guarda protetora como a carne que são, como se às suas mulheres extraordinárias as habilidades mais perniciosas fossem a antecipação e a adversidade. Para essas vidas a que só resta o próprio corpo-máquina, a subtração ensina.

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Mas antes mesmo que a escultura angelical retire os casacos para liberar um demônio ágil, a sagacidade do metteur-en-scène transmuta um dos recursos mais vomitados e possivelmente detestáveis “do” cinema em espirais cuja semelhança com o próprio dispositivo cinematográfico é um contínuo – e, aqui, hilário – lance numa mesa já disposta e na qual sentam, de um lado, aquilo que não se viu, e do outro, aquilo que ainda não podia ser visto. O truque simples do flashback irrompe a partir de cortes sob a lei do “previamente…”, em que a mulher é repassada entre os pontos de vista das disputas políticas, e o filme incessantemente retornará meses, às vezes anos atrás, com o aditivo da cena re-completa para duplicar uma quase-liberdade sempre adiada pelo que a assassina guarda de valioso: é bela ao ponto do magnetismo, é mortífera na medida da falha impossível, e portanto lhe restarão sempre duas opções com as quais, mais tarde, terá de romper: morrer de vez, e de certo modo estar liberta, ou oferecer seus serviços após negociações velozes – e mais uma vez ter a liberdade empurrada e falsificada em nome das pátrias e dos homens.

Ora, o que é automático que se sinta perante a técnica do retorno ao passado? X em Y textos (e bocas) dirão que ele, o recuo, é atormentado pelo didatismo, e bem sabemos que a primeira incógnita chega a quase tocar a segunda. Uma rápida mudança de temas explicitaria melhor o problema, posto que a um professor ou a um cientista, na maioria dos casos, vem a ser menos simplista do que profícuo se lhe apraz ter exercitado isto que se chama de “didática”. A questão não seria, portanto, antes a qualidade dessa instrução? Retornemos à Anna, pois se os rodopios dos flashbacks inserem detalhes, microcâmeras, contextos de miséria, observadores em apartamentos circunvizinhos, não é tanto para que os twists expliquem, confirmem ou sedimentem os eixos de passagem da uma arma nacional em forma de bailarina, mas antes para emprestar ao último deles um sabor de um aprendizado que só a partilha extensa entre personagem e espectadores pode elevar ao grau descaradamente familiar que ele carrega. Anna aprende a arte da burla, da ultrapassagem, como uma primogênita que saboreou desde cedo cada milimétrica jogada no teatro repulsivo dos barões. Seu único passe é também sua tragédia: ser uma mulher tão bela que o único ponto de infiltração nos quartos dos economistas e traficantes é também sua prostituição.

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Trata-se, aliás, de uma questão tão teatral quanto cinematográfica, sendo precisamente aqui o espelhamento escandaloso de que a obra se serve para ressuscitar e escancarar aquilo que as bordas do visível mais velam sobre os passes de mágica. Onde as câmeras de hotéis não podem captar a vigilância dos espiões, há êxitos, bem como armadilhas. Mas também: o contexto cênico no qual a continuidade se fratura, e neste último Besson isto se fará abusadamente, a negociação sobre a(s) vida(s) é uma economia dos ensinos da antecipação ardilosa. À clara exceção daqueles para os quais a exposição do aparato é útil, costuma ser interdito ao cinema que se desvelem as condições da feitura de sua “naturalidade”. Regime de transparência, como já o chamou Ismail Xavier, não fosse o caso, aqui, precisamente outro: não tão-somente uma potência do falso: junto a ela se arrasta, sorrateira, a invasão à surdina do detalhe. Um close, um objeto caído por displicência, o corte de uma faca à maneira característica da KGB, e o caracol de cuidados, trapaças e falsas promessas arrisca se dobrar mais uma vez. A subjetividade da mulher por vezes ingênua, por vezes angustiada e distante, corriqueiramente opaca, toma o corte entre cenas como um impulso para que o ofício de atriz/modelo rebata a perspectiva do corpo em direção ao mundo que o compõe conjuntamente a ele. Seu aprendizado não é uma ciência da adaptação biológica tanto quanto uma chave que singulariza a loura pelo “esporte” cerebral no qual ela é imbatível.

É através do xadrez, nesse tabuleiro de projeções sobre o lance do Outro e de si, nessa disputa enquadrada que requer uma totalização (semi)impossível do olho-acima-do-espaço, como acontece por detrás das linhas de um tableau, que Anna articula o joguete capaz de fazer de Besson quase um comediante sutilizado dentro da ação. Num café de praça, espaço típico dos rendez-vous parisienses, reduz os dois agentes especializados e, por que não dizê-lo, tolamente enamorados, à condição de fantoches sobrelotados dos próprios fios que vêm à exposição. América e Rússia dividindo um espresso e endividados com uma órfã. Das promessas e abusos, tornam-se contornos assustados na iminência do embaralho absoluto daquilo que é da ordem da missão patriótica e daquilo que os faz cachorros apaixonados por um dono impossível, como se não só o aprendiz tivesse superado o mestre, mas também o feito de bobo por sua suposta maestria acumulada. É este o seu logro: imprensar as adversidades num mesmo espaço para saltar dele como os volumes e mais volumes de uma boneca russa.

Não espanta que à beira de sua dúbia liberdade ela consiga repuxar uma penúltima boneca justamente onde parecia ter restado a mais minúscula de todas. O artefato icônico comporta sua titulação, justifica por fins e meios que o último lance grafe seu nome de uma vez por todas e no paradoxo de um arquivo deletado: ela não existe mais, precisou se apagar por um dos elementos que mais singularizam isto que dizem ser uma mulher para soçobrar ainda mais imortal que nunca. Heroína conquistada, ou os dois países de estrutura continental vêm à baixo. Saltamos ao outro lado da mesa, ou ainda tomamos a posição do lustre, da sombra abaixo dela, das árvores que a contornam. É o preço da sua negociação ser esquecida para que o mundo não entre em colapso. Megalomania tipicamente americana de tomar as proporções do planeta como a medida de distinção do herói. Gracejo russo de multiplicar a pintura e compactá-la até que a última surpresa seja quase igual a primeira. Assim diríamos, se a paixão de Anna pelo que é livre fosse tão facilmente redutível ao dúplice – e porque uma modelo sempre sabe que é assistida. Cabe-lhe tomar a posição da câmera e esbofetear o fotógrafo: eis seu último desfile sangrento antes da liberdade.

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Bacurau: desequilíbrios e assimetrias

Por Kênia Freitas

Antes

Uma das bases das discussões racializadas contemporâneas sobre os gêneros narrativos – em campos como o afrofuturismo e o horror noire (ou terror negro) – é a ideia de que gêneros como a ficção científica e o terror se fundam na projeção do medo branco da vingança dos povos e etnias historicamente escravizados, subjugados, desumanizados e colonizados. Invertendo de forma perversa a flecha da violência na produção simbólica, os filmes e livros de gênero tornam as pessoas brancas vítimas resistentes às opressões, perseguições e ocupações. Ataques vindos de um Outro imaginário/mágico/fantástico (as invasões alienígenas, os zumbis comedores de gente, os fantasmas e toda uma fauna de monstros). E também de um Outro localizado nos povos fora da codificação civilizatória branca – os bárbaros, os selvagens. O surgimento do western no cinema hollywoodiano realiza um processo semelhante de inversão histórica, colocando os povos indígenas como os selvagens/malvados dos seus primeiros filmes.

            Em Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a narrativa de gênero (entre o western, o terror e a ficção especulativa de futuro próximo) é retomada agora em consonância com uma visão histórica de mundo pós-colonial: que localiza no colonizador branco, no caso o europeu-estadunidense, a figura do invasor violento. Desse ponto de vista, o filme é pedagogicamente literal e maniqueísta. Os personagens brancos são maus. São os vilões. Os invasores. Eles perturbam o curso da existência e da narrativa sobre o pequeno vilarejo de Bacurau. Seu signo principal e a justificativa de suas ações se forjam a partir de um discurso de subjugação racializada hierarquizante – em que os moradores de Bacurau estão aquém do estatuto de humano e alguns brancos são mais brancos do que os outros.

            Ao mesmo tempo (e essa sincronicidade de perspectiva é fundamental), dentro da tradição dos gêneros narrativos cinematográficos aos quais se filia, Bacurau é um filme que subverte o lugar do medo branco como premissa. Há na composição enunciativa do filme ao mesmo tempo uma literalidade da representação histórica pós-colonial e uma subversão da perversão das localização dos gêneros do cinema normativo.

            Desequilibrio e assimetria[1]

Essas são palavras importantes para se pensar Bacurau em sua construção interna de tempo e de encenação. O desenvolvimento fílmico do vilarejo e dos seus moradores parte de uma ideia de profundidade, de uma densidade da imagem e de histórias. À Bacurau não se chega com facilidade, é preciso estar no caminhão pipa com Teresa e Erivaldo, percorrer a via acidentada com caixões, sacolejar na estrada de terra. Há a projeção de uma vida, de relações familiares e de comunidade, de arcos e trajetórias pessoais em pleno curso: como seguirá o curso da vida comunitária sem Dona Carmelita?  Por que Teresa regressou? Acácio conseguirá de fato deixar de ser Pacote? Lunga e o seu bando sobreviverão à perseguição policial? Com essas aberturas de enredo, o início do filme demora-se então não apenas em nos apresentar e contextualizar a cidadezinha, mas também em criar essa atmosfera de densidade.

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            Aos poucos essa espessura narrativa será atacada por imagens e sons de outra natureza – não mais da profundidade, mas da superfície: a caravana do prefeito Tony Jr com o seu jingle eleitoral chiclete, as imagens do drone/disco voador ou os sintetizadores roubados dos filmes de John Carpenter. Uma composição planificada que começa a se sobrepor como uma ameaça de compressão a espessura da encenação até então constituída, e que anuncia a chegada do elemento desestabilizador definitivo: o grupo de estrangeiros invasores brancos.

            Se para chegarmos à Bacurau vamos de caminhão pipa, até o acampamento dos gringos chega-se de drone. Sem sutileza, sem tempo de apresentação, sem arco, sem espessura. O grupo é acima de tudo uma imagem clichê: uma matriz pré-moldada na iconografia do cinema para reprodução, um amálgama das representações de homens e mulheres brancos, estadunidenses fascinados por armas, pelo extermínio, pela destruição de tudo o que não é espelho (e, às vezes, do espelho também).

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            Da superfície à densidade, o filme engendra uma série de formas e regimes de representação e encenação: das atuações de atores não profissionais, passando pelas relações comunais, matutas e codificadas encenadas pelo núcleo de Bacurau à corporificação da imagem videogame dos gringos. Entre esses lugares, ficam personagens como o prefeito Tony Jr e o casal de forasteiros paulista-carioca. A chegada do casal ao bunker gringo marca um dos momentos de choque entre os universos (antes do confronto final). Em um mesmo espaço estão os dois, a senhora moradora local que serve ao grupo e os gringos. Cada um desses conjuntos existe e atua em regimes de representação diversos e as comunicações mostram-se truncadas, imprecisas. O gesto da senhora para oferecer água, a tentativa do casal de justificar as suas ações e o estabelecimento da hierarquia racial pelos gringos: nada disso está dado como consenso mínimo entre os conjuntos. Há um abismo de humanidades intransponível na diferença entre “people we pay” e “local contractors”. As formas de apreender e comunicar entre essas humanidades são diversas e, como o final da sequência nos mostra, não passíveis de sintetização.

            O ataque é então o encontro final da espessura densa da representação e tramas de Bacurau e da imagem de superfície dos invasores brancos. A estratégia de guerrilha da comunidade para não ser aniquilada passa justamente por saber desaparecer, esconder-se, retrair-se para dentro de si (para dentro da espessura). A comunidade retira-se do terreno de confronto aberto, faz com que os invasores esperem – tomando conta da temporalidade da ação.

            Para fora

            “A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, que arrasou completamente os sistemas de referências da economia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada se engolfar nas cidades interditas. Fazer explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desmanchar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se vão abrir vias de passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou expulsá-la do território” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, p. 30).

            Frantz Fanon ao tratar dos territórios colonizados fala de uma configuração espacial de um mundo cindido em dois: o do colono e o do colonizado. Duas zonas geográficas de existência não compartilháveis. O processo de descolonização não passa pela ideia de integração ou síntese de mundos, mas de destruição violenta do colonizador e da sua zona. Enterrá-la profundamente no solo…

            Bacurau é um filme sobre a violência e com imagens violentas. Um posicionamento ético diante dessas imagens passa por se perguntar como a violência se estrutura, quais as suas origens,  os seus agentes e os seus pesos: na fúria do facão de Lunga? No tiro certeiro de Damiano? No assassinato de uma criança? Na eliminação de testemunhas? Na morte por interferência do jogo? Na chacina da fazenda? Na chegada dos brancos assassinos? No sequestro de Ângela pelo prefeito e sua trupe? Na retirada do mapa de um território? Na distribuição feita pelo Estado de mantimentos vencidos? Na criação de barreiras para interromper o fluxo do rio e tornar a água inacessível? Na tentativa de destruir as barreiras? Na perseguição do estado-policial do Brasil do Sul? Nas execuções em massa no Anhangabaú? Na transmissão em tempo real das execuções em massa no Anhangabaú?

bacurau-lungaTodas ações violentas. Porém, não simétricas.

  Ao final de tudo, vencido, cansado, Michael vê a comunidade de Bacurau reunida na frente da calçada da igreja que expõe as cabeças decepadas de seu grupo. Com desprezo e desaprovação, ele diz: So much violence. Há uma força que explode a diegese quando esse corpo de um homem branco, europeu, em tudo normativo, mesmo derrotado se sente capaz de enunciar um juízo de valor, que desautoriza a violência fora dos seus termos e do seu jogo.

Tanta violência.

Bacurau_micSoma

            Em sua junção de mundos, de formas de encenar, de perspectivas, de densidades rasas e profundas de imagens e sons, Bacurau resulta desequilibrado, incompleto, com tramas sobrepostas e outras interrompidas. Há um estranhamento diante de um filme que não é fragmentado, mas que também não se totaliza.

Mais do que uma suspensão ou esvaziamento da narrativa, nessa forma de se compor, o filme assume o corte abrupto diante do choque de perspectivas, de formas de invenção e fruição de mundo. Corte seco de um regime de encenação sobre o outro, da violência racializada, das desigualdades entre as partes, da fricção da invasão colonizadora com a resistência comunal. Assume-se sem síntese, sem neutralidade estabilizadora do encontro assimétrico. Os seus diretores produzem então, nesse desequilíbrio, um desdobramento ético e estético do filme que criam.

[1] Agradecemos ao texto da Carol Almeida pela invocação da ideia de assimetria no filme: https://foradequadro.com/2019/09/10/bacurau-de-kleber-mendonca-filho-e-juliano-dornelles/

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A Meretriz-Ciborgue de Daehak-ro: Os Limites da Violência Ética e a Exigência do Não Cegado

Por Diogo Serafim

 

Esse dualismo estruturou a disputa entre o materialismo e o idealismo, a qual foi resolvida por um rebento dialético que foi chamado, dependendo do gosto, de espírito ou de história. Mas, basicamente, nessa perspectiva, as máquinas não eram vistas como tendo movimento próprio, como se autoconstruindo, como sendo autônomas. Elas não podiam realizar o sonho do homem; só podiam arremedá-lo. Elas não eram o homem, um autor para si próprio, mas apenas uma caricatura daquele sonho reprodutivo masculinista. Pensar que elas podiam ser outra coisa era uma paranoia. Agora já não estamos assim tão seguros. As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes.

Donna Haraway, O Manifesto Ciborgue

 

Reside na configuração ontológica da máquina um princípio fundador que abala nossas concepções de sujeito, comando e controle. O mito do ciborgue parte de uma apostasia heterodoxa que constantemente escapa das nossas definições imediatas que decorrem da sua imagem, uma lógica de comunicação que é desestabilizada pela noção de inteligência, exigindo uma repartição radical na sua configuração subjetiva. A linguagem do ciborgue trata não de uma linguagem do comum, mas de uma herética heteroglossia, como a própria Donna Haraway indica: a cultura ciborgue é definida mais em termos de densidades dentro de fluxos, um circuito que encontra pontos de inflexão nos seus percursos, uma profusão que converge na mesma medida que diverge na sua abundância. Em primeira instância temos a afluência de intensidades para encontrarmos em uma dimensão subsidiária a esta a sua constituição de corpos e vontades. Não é a consciência que dá lugar ao que está fora desta, e sim o encontro de consciências que permite a realidade tal como ela é, uma rede difusa de forças, campos e vetores postos em associação por um materialismo fundador, sempre se interseccionando e frequentemente colidindo.

De onde surgem nossos prazeres? Seriam eles ontologia ou cultura? A primeira conclusão essencial na compreensão de uma possível cultura ciborgue decorre diretamente do imperativo da construção, nada aqui é absoluto, é tudo programado. Se a ontologia fundadora do ciborgue é em si uma ontologia construída, submetida às relações de poder que a formataram, é sempre importante frisar que essa ontologia pode ser constantemente aperfeiçoada, é inclusive da sua natureza que ela seja constatemente otimizada com a cinesia insaciável da cultura e da política, sempre sendo redesenhada, reconstruída, reconfigurada.

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É impressionante como Teenage Hooker Becomes Killing Machine in Daehak-ro (2000) é um filme sensorial, não apenas visualmente, mas também na sua trilha sonora. Se Évora, Veloso e Sakamoto entoam inicialmente uma atmosfera misteriosa e um sentimento irrebatável de isolamento urbano, logo Sun Ra e Huckle Berry Finn levam o filme para o domínio do deboche. Em seguida somos tomados por uma espécie de ascetismo perturbador com Saint-Saens, um desespero desestabilizador com Mozart e um estoicismo renitente com Fauré. Massive Attack denota uma esperança surgente e a curva final necessária para entrarmos em definitivo em uma estética mais propriamente próxima do cyberpunk, Gypsy Kings reforça uma ambiência misteriosa com um desvio para uma atmosfera de filme noir, enquanto Rutter é a tão aguardada emancipação. Primal Scream consegue finalmente concatenar toda a esquizofrenia narrativa, sensorial e formal em um tom conclusivo.

Uma jovem prostituta engravida do seu professor sadista em Daehak-ro. A lua é quem sela o pacto dessa concepção. A jovem menina, aparentemente desprovida de vontade própria e individualidade, carrega no seu utilitarismo empreendedor já uma figura de ciborgue servil, uma submissão voluntária à figura do seu mestre, quem a programou de acordo com os desejos e vontades próprias. Ela é o ciborgue reprodutor, ele é o ciborgue cuja função é controla-la de acordo com sua libido. Um é proprietário, o outro é comoditizado. Agora a mulher obediente, carregando uma criança no seu ventre que é fruto dessa relação hedionda com o pai autoritário, é violentamente assassinada.

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Após ser reformada, a versão evoluída da prostituta enfrenta o seu criador com a única resposta possível, tendo que a base estrutural dessa relação é a violência. Agora em um corpo sem coração é capaz de reparar a violência a qual foi submetida com uma resposta binária. Colide na figura da mãe do professor, aquela que encapsula o egoísmo pleno, a aniquilação da força reprodutiva do filho criador, o filho deformado, o patriarcado reduzido na imagem de um monstro, a sua subsequente humilhação e uma nova ordem de dominação que é estabelecida com esse ato de vingança. Nos limites da violência ética, reside ali algum ímpeto asceta provido de toda a repugnância que nos foi exposta anteriormente, mas que de alguma maneira ainda nos é repulsivo, independente das suas possíveis justificativas compensatórias. Só podemos ter uma reflexão ética sobre a humanidade alheia no momento em que suspendemos o nosso juízo – talvez para aniquilar a injustiça deva-se aniquilar assim também a humanidade.

É como Adorno afirma em Minima Moralia: “O humilhado e o rejeitado apercebe-se de algo, tão cruamente quanto a luz que dores intensas lançam sobre o próprio corpo. Ele se dá conta de que no mais íntimo do amor cego, que nada sabe disso nem pode saber, vive a exigência do não cegado. Fizeram-lhe injustiça; disso ele deriva a demanda do direito e no mesmo passo é obrigado a abrir mão dela, pois o que deseja só pode provir da liberdade. Nesse infortúnio o rejeitado torna-se humano”. Poderia tornar-se humano o ciborgue, mesmo que partindo do abominável para tal?

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O grande dilema é como construir uma cultura ciborgue que finalmente nos faça pensar a partir do nosso circuito, e não de seus capacitores desenergizados (ou excessivamente energizados, dependendo de como se queira estabelecer a metáfora). A solução é a violenta retirada desses capacitores ou há uma forma de também os reconstituir? Existe algo de irreversível no nosso processo civilizatório que nos impeça de pensar para além da violência, rumo a uma reparação plenamente ética? Há de existir alguma maneira de reestabelecer a humanidade a partir da humilhação do Eu, do confronto direto com a nossa pequenez deve surgir a nossa grandiosidade. Em busca de uma subjetividade sem sujeito, de uma heteronomia sem sujeição, em eterna reconstrução, sempre se aprimorando, sempre se aproximando do Uno.

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Corpo e Máquina

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MÁQUINAS DE MONITORAMENTO, VIGILÂNCIA E CAPTURA
Camila Vieira

UMA ESPÉCIE DE COMPUTADOR – NOTAS SOBRE TÉCNICA E ESTILO NO CINEMA
Bernardo Oliveira

COMO VIVE O CORPO VIRTUAL – A PRESENÇA FÍSICA EM “O SEGUNDO ROSTO”
Gabriel Papaléo

UM HOMEM É UMA CÂMERA
João Pedro Faro

GHOST IN THE SHELL E A HUMANIDADE NEGOCIADA
Isabel Wittman

A TRILOGIA JOHN WICK E O EPÍLOGO DO HOMEM-RESPOSTA
Pedro Tavares

A MERETRIZ-CIBORGUE DE DAEHAK-RO: OS LIMITES DA VIOLÊNCIA ÉTICA E A EXIGÊNCIA DO NÃO CEGADO
Diogo Serafim

A RELAÇÃO CORPO-MÁQUINA: DE METRÓPOLIS A MATRIX
Natália Alonso

TETSUO E O NIILISMO REVOLUCIONÁRIO
Chico Torres

TRAGAM-ME A CABEÇA DE CARMEN M. – ENTREVISTA COM FELIPE BRAGANÇA E CATARINA WALLENSTEIN
Pedro Tavares

DIVINO AMOR: ENQUADRAMENTOS E EXCLUSÕES DE UM FUTURO PRÓXIMO
Kênia Torres

A SINCRONICIDADE DAS SOMBRAS
Felipe Leal
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Máquinas de monitoramento, vigilância e captura

Por Camila Vieira

Uma sala com uma cadeira vazia. Um homem prepara uma câmera fotográfica no canto direito do quadro. Dois policiais trazem uma mulher, que é obrigada a se sentar na cadeira. Aos olhos vigilantes dos três sujeitos, ela retira o casaco, o chapéu e arruma o cabelo. O fotógrafo faz os últimos retoques em sua roupa e depois aciona a câmera. Ela vira o rosto em outra direção. Os policiais seguram à força seus braços e sua cabeça, para que ela fique imóvel e com o rosto em frente à câmera. Enquanto permanece imobilizada, ela faz caretas. O enquadramento fica mais próximo do rosto da mulher que continua a contorcer o rosto, até chorar em desespero. A cena aqui descrita de A Subject for the Rogue’s Gallery (1904), de A.E.Weed, é uma alusão a um acontecimento bastante comum nos departamentos de polícia do final do século XIX: o modo como os presos resistiam ser identificados pelos bancos de fotografias dos procurados pela polícia (os chamados rogue’s galleries).

Logo após sua invenção, a fotografia é imediatamente usada para fins criminológicos e para alimentar coleções de retratos de suspeitos e criminosos. Era uma prática comum incentivar a exibição pública de tais imagens. A tarefa policial passa a depender do reconhecimento dos sujeitos mediante as fotografias, mesmo que ainda sem organização e procedimentos muito claros. Como a técnica fotográfica àquela época ainda necessitava de um tempo maior de exposição, as pessoas a serem retratadas logo encontraram uma tática de resistência à captura violenta de suas imagens: contorcer as expressões faciais para impedir uma fotografia nítida do rosto.

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Se o advento do dispositivo fotográfico atrela-se ao poder de quem produz imagens e ao modo como o corpo do outro será controlado, a violência da captura perpetua-se simbolicamente em outros aparatos técnicos que marcam a modernidade. Em 1878, o fisiologista francês Étienne Jules-Marey desenvolve o fuzil cronofotográfico – um tambor forrado com uma chapa fotográfica circular, que produzia 12 frames por segundo. A técnica deste curioso invento ótico foi pensada com o intuito de capturar as fases consecutivas de um movimento, mas está radicalmente associada ao gesto de apontar e disparar.

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No contexto contemporâneo, o disparo na captura das imagens parece ceder lugar a uma forma de controle silencioso e de monitoramento dos corpos: o reconhecimento facial. Em julho de 2019, imagens de rostos envelhecidos povoaram as redes sociais em uma espécie de nova febre que viralizou em poucos dias. O uso massivo do aplicativo FaceApp reacendeu o debate em torno da privacidade na internet e do uso de dados pessoais para manutenção de um grande banco de reconhecimento facial. Com o avanço da inteligência artificial e de softwares de mapeamento de rostos em seus diversos ângulos e expressões, o reconhecimento facial é uma ferramenta tecnológica que vem sendo usada a serviço de uma hipervigilância que se normalizou. É um mercado que movimenta bilhões de dólares, sem regulamentação clara e fiscalização. Academias de ginástica, bancos, companhias aéreas e empresas de telefonia usam a ferramenta. Smartphones são desbloqueados com a imagem dos rostos de seus donos.

O reconhecimento facial vem sendo usado em larga escala nas grandes cidades como tática para identificação e reconhecimento de suspeitos de crime, terroristas, foragidos e indivíduos com mandado de prisão, que são rapidamente capturados pela polícia. Aqui no Brasil, o governo da Bahia e do Rio de Janeiro implementaram uma ostensiva prática de vigilância por câmeras com reconhecimento facial para auxiliar o trabalho de agentes de segurança pública. Tais programas são criticados pelas imprecisões dos algoritmos com falhas de identificação que levaram a prisões de pessoas inocentes. Nos próximos três anos, o metrô de São Paulo será equipado com um número maior de câmeras com tal tecnologia. Em outros países, manifestantes já estão usando estratégias de contra vigilância. Em Hong Kong, protestos recentes envolveram bloqueios da visão das câmeras por meio de lanternas laser e destruição de torres de reconhecimento facial.

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Em Imagens da Prisão (2000), Harun Farocki já anunciava como a economia das políticas de vigilância está presente em instituições que operam por táticas de controle: as prisões, os asilos, os internatos, as fábricas, os supermercados. O filme é um grande apanhado de imagens restritas ao espaço institucional (os circuitos internos das câmeras de vigilância e os aparatos digitais de monitoramento) e articuladas com trechos de filmes da história do cinema. Farocki reflete sobre dois tipos de enquadramento na produção das imagens de vigilância: a fila ordenada e o retrato do indivíduo ou do grupo. “Nos rostos, busca-se algo para o qual não há uma definição. Isto é o que a câmera atrai”, diz o narrador. Se o próprio rosto transgride o gesto de captura, novas ferramentas intensificarão as formas de fiscalização dos corpos. No mesmo filme, aparecem os aparelhos biométricos para controle de acesso, como a identificação pela íris. O mapeamento dos clientes no supermercado torna os corpos dos consumidores meros pontos que circulam na tela do computador, com códigos que registram a lista de compras.

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A quem interessa a produção em massa de tais dispositivos de controle e vigilância? Quem gira a grande máquina do capital? Empresas de desenvolvimento de softwares de reconhecimento facial cada vez mais sofisticados lucram a serviço da segurança pública. Além de produzir imagens sem autorização e consentimento de quem está sendo filmado, as falhas nos dispositivos apontam para uma base de dados discriminatória. Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Stanford e o Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), três grandes sistemas de reconhecimento facial no mundo – IBM Watson, Microsoft Cognitive Services e o Face++ – apresentaram diferenças gritantes de erros de identificação de acordo com o gênero e a raça. Com homens brancos, as falhas não chegam a ultrapassar 0,8%. Com mulheres negras, o índice de erro alcança 34%. São instrumentos criados para cercear a liberdade de quem já é historicamente apartado dela e se configuram como uma ameaça permanente aos direitos civis.

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Uma espécie de computador – Notas sobre técnica e estilo no Cinema

Por Bernardo Oliveira

Gance La Roue

1.

Em reportagem para a Folha de São Paulo, em 27 de agosto de 1995, o jornalista Alcino Leite Neto perguntou a Julio Bressane e Rogério Sganzerla: — Por que fazer Cinema? E, afinal, o que é o Cinema? Entre as diversas respostas disparadas respectivamente pelo “enfant terrible” e pelo “enfant gâté“, Sganzerla declara que um filme como “O Parque dos Dinossauros”, de Steven Spielberg, apesar de muito bem filmado, não demonstra qualquer preocupação com a “mise en scène”, isto é, com a forma do filme: “o que falta hoje em dia é a ausência de ornamentação, a essencialização da forma que se vê, por exemplo, em Robert Bresson […] o importante é que os filmes tenham uma forma. O filme é uma espécie de computador. Nós não temos ainda esse registro do pensamento humano que poderia ser comparado à definição do Abel Gance. Quer dizer: a música da luz, mas que poderia ser a música da luz e do som— e da fúria”.

2.

Há décadas, essa formulação me intriga: “O filme é uma espécie de computador”. Nada nas frases que envolvem essa sentença nos auxilia a tratá-la como um enigma passível de tradução — pois, a rigor, o que faz o enigma é sua perene insolubilidade a reivindicar respostas variadas, conforme as tendências e desvios de época. 

3.

Duas ideias em particular parecem saltar no entorno da sentença-enigma, sem lançar luzes ou explicá-la propriamente: a primeira afirma que, em algumas obras específicas, a mise en scène e a “essencialização da forma” corresponderiam a um mesmo movimento interno ao filme — e, para sublinhar essa característica, Sganzerla evoca Robert Bresson, deslocando o problema não para o campo do “Cinema” — o teatro filmado, litero-centrado, mais focado na manutenção do drama do que na sensorialidade da experiência —, mas para o Cinematógrafo, com as suas características e potenciais próprios, capaz de organizar a matéria sensorial de maneira irredutível aos primados da linguagem literária ou teatral. Trabalhar a forma dos filmes, em seus registros constitutivos, para fugir às representações mediadoras das outras artes e buscar a especificidade do Cinematógrafo — Bresson observa que “o Cinematógrafo é uma escrita com imagens em movimentos e sons”, cuja força “se dirige a dois sentidos de maneira regulável”. Ausência de ornamentação, quer dizer ausência de artifícios pré-concebidos; ou, nas palavras de Eduardo Coutinho, “refresco visual”, a utilização automática do clichê.

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4.

A segunda ideia se relaciona com uma noção célebre, enunciada pelo cineasta francês Abel Gance, segundo a qual o cinema corresponderia à “música da luz”. Essa ideia pode ser interpretada tanto do ponto de vista de sua realidade técnica — pois, afinal de contas, a luz incide sobre o acetato que, além de assimilá-la, em sua composição físico-química, ainda a mantém “organizada”, tornando-a passível de ser reproduzida —, como em seus aspectos sensoriais e cognitivos, pois o que o Cinema faz não é exatamente reproduzir ou mesmo representar o real, mas sintetizar blocos sensoriais capazes de embaralhar cadeias causais que, habitualmente, forneciam as coordenadas para a construção das artes tradicionais e até mesmo do Conhecimento, transformando-as em um outro tipo de registro — “um registro do pensamento humano” que, segundo Sganzerla, “ainda não temos”.

5.

Retenho aqui ambos os raciocínios para concluir, ainda que provisoriamente, que, para Sganzerla, o Cinema exprime um “registro do pensamento humano” irredutível às Artes, às “Linguagens”, até mesmo ao Conhecimento  — tal como o compreendemos na Modernidade. Em oposição à noção de Verdade, tradicionalmente instalada no real, o Cinema propõe uma experiência construtivista essencialmente criativa, articulando som e imagem em uma sequência de situações, captações e composições. Dialética não há, pois não há negatividade: tudo no Cinema encaminha o pensamento para uma experiência positiva com as sensações, tanto do ponto de vista daquele que compõe as forças, como também daquele que assimila seus clichês, deslocamentos e modulações. O Cinema, portanto, como um registro do pensamento, pode ser aprofundado por contínuas práticas de experimentação tecno-sensorial cujo resultado depende do estilo de cada “Autor” — e aqui vale ressaltar que entendo a autoria como uma categoria complexa que não atende somente a uma subjetividade encerrada sobre si mesma, mas à complexidade das interações que encaminham um processo de filmagem e captação.

6.

Para o mecanólogo francês Gilbert Simondon, os objetos técnicos possuem dois aspectos centrais: a) uma função consolidada pelo uso corrente, prescrito em manuais; e b) outra, chamada “margem de indeterminação”, que opera como uma força premente de inovação: “O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que, poderíamos dizer, eleva o grau de tecnicidade, corresponde não a um aumento do automatismo; mas, ao contrário, ao fato de o funcionamento de uma máquina guardar certa margem de indeterminação. É essa margem que permite à máquina ser sensível a uma informação exterior. É por essa sensibilidade das máquinas à informação que um conjunto técnico pode se realizar, muito mais do que por um aumento do automatismo. Uma máquina puramente automática, completamente fechada sobre si mesma, num funcionamento pré-determinado, não poderia oferecer mais do que resultados sumários. A máquina dotada de alta tecnicidade é aberta; e o conjunto das máquinas abertas supõe o Homem como ‘organizador permanente’, como intérprete vivo das máquinas umas com relação às outras”.

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7.

Um computador é uma máquina que, como qualquer objeto técnico, possui funções consolidadas e potenciais de renovação. Esse potencial aumenta e diminui conforme o usuário também aumenta ou diminui o grau de interação como o objeto em sua totalidade — no caso, não apenas a operacionalidade entre os softwares, como também a possibilidade de compreender o hardware e manipulá-lo. Sendo assim, as máquinas operariam sempre no limite entre a sua função consolidada e aquelas ainda desconhecidas, recalcadas pelo hábito. A própria história da técnica se dá como uma sucessão de tensionamentos entre a lógica escravocrata do uso consolidado e as sucessivas insurgências que a interação humana pode vir a provocar. “Novos seres técnicos” aparecem quando novos usos transformam os antigos. Em ambos os casos, tanto no “filme-cinema” como no “filme-computador”, trata-se de ampliar a margem de indeterminação para que se amplie, igualmente, o espaço de invenção.

8.

Na mesma entrevista, Bressane afirma que “o Cinema é um organismo intelectual demasiadamente sensível”, pois é capaz de assimilar, incorporar ou, até mesmo, recusar as informações e interações externas, permitindo que elas ingressem no seu sistema e reinventem as dinâmicas internas, reconfigurando usos e potenciais. Como os demais objetos técnicos, um computador é um ser sensível à informação externa. Que pode ampliar seus usos consolidados através da inclusão de novos procedimentos e informações. Em suma: é a margem de indeterminação, o elemento desconhecido, que mantém o ser técnico “vivo”. Ou seja, rico em potenciais renovadores. É a margem de indeterminação que confere ao objeto técnico uma “situação” de diferença, pois provisória e em estado de gestação e movimento. Transpondo esse raciocínio para o Cinema, percebemos que a relação transformadora entre a informação e o filme obedece às relações internas, não exatamente regras, mas a uma axiomática mínima que se opera entre duas coordenadas: o ver e o ouvir.

9.

Em uma de suas “Extemporâneas”, Nietzsche afirma que “Cultura é, antes de tudo, Unidade de Estilo em todas as expressões da vida de um povo”. Tomada como “Unidade de Estilo” — seja de um grupamento humano , seja de um indivíduo — a Cultura encarna as tensões entre subjetividade e coletividade, operando, portanto, em uma “margem de indeterminação” que jamais fixa o sentido absoluto da extensão de sua expressão, senão que a estende até as fronteiras da afirmação ou da dissolução. Em todo caso, o Estilo se confunde com a própria noção de Cultura, na medida em que são atravessadas pela estranha ideia de “Grandeza”. Portanto, para que haja Estilo (Cultura), é necessário que haja Grandeza. Em “Reflexões sobre a História Universal”, no capítulo chamado “Indivíduo e Coletividade (Grandeza Histórica)”, de 1870, o historiador suíço Jacob Burckhardt afirma que “Grandeza é a soma global da personalidade de um indivíduo que nos parece grande, que continua a exercer sua influência mágica sobre nós, através dos séculos e dos povos, muito além das fronteiras da simples tradição (…). Um grande homem é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto, porque determinadas grandes ações só poderiam ser possíveis por ele, no interior do seu tempo e ambiente, sendo inconcebíveis sem ele. Ele está, fundamentalmente, ligado ao grande fluxo central das causas e efeitos. Há um provérbio que diz  que “Nenhum homem é indispensável’. Mas, justamente os poucos que o são, são grandes”.

10.

E isso é de tal forma que as características da Grandeza também acabam por se confundir com as características do Estilo, construindo uma correlação que se exprime nos seguintes termos : uma Cultura — seja expressa por um indivíduo ou coletividade — encarna tanto mais a Grandeza quanto mais consegue distinguir-se pelo Estilo, isto é, pelos traços de inovação, influência; em suma, por suas ações irredutíveis a quaisquer outros registros da atividade humana, que possuem o estranho poder de evocar tanto o tempo presente (“o interior de seu tempo”), como ultrapassá-lo. Por se manifestar como Grandeza, a ação do Estilo — ou melhor, o Estilo como uma atividade — perdura e sustenta sucessivas renovações do campo expressivo, absorvendo e repelindo simultaneamente as tendências de época. 

11.

Ao que parece, Sganzerla não se referia ao “filme” enquanto suporte (película), mas ao Cinema como um sistema complexo e suas obras. Cada uma trazendo sua própria sistematização interna, geralmente fechada dentro de protocolos da Arte e da Técnica Cinematográficas. Um computador é uma máquina. E, talvez, a frase de Sganzerla queira simplesmente indicar que o Cinema é o produto estético, em si mesmo original, que emerge da originalidade da associação entre dois objetos técnicos: o cinematógrafo e a ilha de montagem. Por ser capaz de sintetizar imagens, sons e sensações, através desses dois dispositivos, o Cinema possibilitaria uma experiência estética mais completa do que, por exemplo, a Música ou a Literatura. Um computador que produz blocos sensoriais, ora ajustados às representações correntes (“clichês”), ora banhado por uma formalização extremamente variável, que se altera conforme o estilo da mise en scène e as estratégias de filmagem e captação.

12.

Nesse sentido, o filme seria um computador na medida em que opera como um dispositivo técnico apto a captar e organizar dados de ordem física (a luz), técnica (a captação, a projeção) e estética (os blocos sensoriais, o raccord). Como registro da percepção, registro cognitivo e criativo, o Cinema é capaz de organizar essas informações tal como em um banco de dados. Capaz, inclusive, de permitir que certas perspectivas e sensações sejam criadas através do entrecruzamento e a convergência desses dados. Nesse ponto, os dados que o Cinema opera indicam a força imanente das possibilidades abertas pelo Estilo, o que não ocorre sem que o “Autor” e sua equipe interajam de forma distinta com os objetos técnicos e as operações estéticas. Se o Cinema permanece no imaginário como uma arte ambígua — a “arte sem futuro”, prestes a morrer, mas que permanece instalada, há mais de um século, em nossos hábitos —, essa ambiguidade se deve às suas engrenagens maquínicas e seus potenciais de renovação.

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Como vive o corpo virtual – a presença física em O Segundo Rosto.

Por Gabriel Papaléo

 

“Long live the new flesh.”

Max Renn, vivido por James Woods em Videodrome (1983, dir. David Cronenberg).

 

Onde exatamente experimentamos algo “real”? Qual o paradigma que lhe é concedido para explorar essa realidade? Para John Frankenheimer, a virtualidade faz parte (se não é o motor) da experiência real, e em O Segundo Rosto o diretor coloca o protagonista Arthur Hamilton para questionar a natureza visual do real, o que significa sua liberdade, ou como concilia desejos distintos, pulsões discrepantes, tempos e gerações opostos nas aspirações de destruição um do outro.

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Os créditos iniciais concebidos por Saul Bass concentram desde já a disposição ao rigor que Frankenheimer prega sobretudo de texturas e superfícies falhas do psicológico e do material mostrando a fragilidade da imagem que temos (e construímos) do nosso corpo, das projeções dos ambientes ao redor nos quais intuímos uma vida. O subúrbio em teoria é um lugar de porto seguro para o protagonista Arthur, onde mora com sua esposa, mas esse iconográfico carregado da cultura americana – especialmente na projeção estética que carrega para si nos filmes – é sufocado pela estilização da câmera do fotógrafo James Wong Howe. Aquele é um lugar de confronto velado, não conforto, e a estação de metrô que abre o filme é mapeada na tradição do suspense de paranoia; a câmera colada ao rosto de Arthur, seu suor, o homem que o persegue com uma maleta, os chapéus e sobretudos que andam sem identidade pelo lugar – tudo é informação e paranoia, porque existe algo escondido nessa falsa harmonia social mecânica.

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Tratar desse corpo disperso pela imagem é das soluções mais elegantes de Frankenheimer e Wong Howe na dramaturgia cheia de camadas de O Segundo Rosto; ao evitar que o filme se torne apenas um tratado psicológico, estudo de personagem focado em texto e informação, a câmera do filme cola seu corpo no corpo do protagonista e distorce a realidade ao redor para deixar dúvidas sobre ela. As cenas de drama aqui são registradas em lentes abertas que distorcem o rosto de John Randolph antes de sua transformação em Rock Hudson, ou teleobjetivas que ressaltam o quanto o banco no qual Arthur trabalha é apenas um borrão em sua atenção. A encenação pesada, minimalista, reforça esse dispositivo quase lúdico de fotografia, como se desafiasse aquele ambientes corriqueiros a se tornarem misteriosos, seja o subúrbio vazio, seja o escritório comum de empresa da corporação do filme que vira algo soturno nos mínimos detalhes. Para Frankenheimer, a pulsão da mudança passa também pela mente, mas se origina sobretudo em um movimento corporal – se é que aqui exista alguma diferença entre eles. A chantagem feita com Arthur é feita num momento de descontrole corporal, de quase possessão, e inconscientemente talvez seja ali que ele perceba que a casa onde sua mente mora é um catalisador da mudança, dos desejos, do qual não controla inteiramente – e isso precisa mudar.

A vida anterior à transformação, ligada aos bancos, ao sonho da casa de veraneio, ao barco de cobiça, ao sonho americano afinal, tem uma estrutura definida e desapaixonada que se revela o principal motivo para a insatisfação de Arthur. O pulo do gato do diabo corporativo que o tenta com promessas é uma tradução capciosa de inconsciente. cravando que o desejo de Arthur é a mudança, e eles enquanto empresa oferecem esse serviço. A promessa é da falta de responsabilidades. “Você vai estar na sua própria dimensão”, diz um dos muitos empregados que acompanham o protagonista pelas transformações.

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E que dimensão é essa, propriamente? A vida nova de Arthur, agora Antiochus (ou Tony, pra facilitar), ligada às artes, hedonista e de contato maior com a natureza vasta, com o coletivo. A arquitetura modernista da casa nova, construída como provocação à casa do subúrbio, o clima ameno e praiano da California, as roupas mais personalizadas, a jaqueta de couro branca que entra no lugar do terno e gravata impessoais. A reunião quase religiosa hippie para fazer vinho, exemplo da sexualidade e da liberdade de expressão que Arthur procurava em sua vida anterior. O mar como fuga do subúrbio, um horizonte de possibilidades utópicas (sei que O Segundo Rosto não é um filme brasileiro, mas esse texto é, então portanto nossas utopias aqui estão também). A leveza do vento no primeiro encontro na praia com Nora, aquele lugar vazio diante do mar, habitado apenas por aquelas duas almas, como numa cena egressa de A Noite ou A Aventura. A forma que esse contexto todo contrasta violentamente com os chapéus noir da estação de metrô e o subúrbio serve de imersão insuspeita na violência do arco de Arthur/Tony, que posteriormente é revelado na primeira aparição “pública” de Tony, na primeira vez que o protagonista está diante de pessoas, do coletivo.

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E é por conta desse medo público que Tony se torna indisposto com sua nova identidade. O medo de viver em coletivo permanece a lamúria da jornada do heroi individualista americano, e aqui isso é questionado. O roteiro de Lewis John Carlino parte do conto moral muito simples e direto (homem em crise de meia-idade despreza seu cotidiano e é oferecida a ele a chance de mudar), cheio de armadilhas moralistas especialmente num contexto americanizado, e no entanto abraça ambiguidades em ambos os lados da moeda porque sabe que o motivo pelos quais os estudos exatos e os estudos humanos andam tão separados, tão díspares em utilidade, é por conta de um calculado corporativismo capitalista.

Essa disputa geracional do Arthur diretamente de um cotidiano anos 50 para Tony, cujos signos conversam mais com seu presente de anos 60, busca no isolamento um lastro do que a sociedade americana construiu pra si – e o como essa situação é insustentável, porque leva ao eterno desejo insaciável, à eterna insatisfação que é o motor capitalista do conformismo estrutural. O que Tony experimenta dolorosamente é que a promessa de mudança sem uma reeducação do olhar apenas se molda em experiência corporativa efêmera e finita; é como se O Segundo Rosto falasse que é impossível conciliar o pensamento americano individual com os novos exemplos de sociedade mais coletivista que pelo mundo surgem. Tony espera ter liberdade de pensamento e falta de comprometimentos prévios, mas quando percebe que o preço que pagou para isso é um constante estado de vigilância e paranoia, volta ao porto seguro que lhe foi imposto.

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O cotidiano se torna imaterial quando planejado, quando cercado por questões pré-estabelecidas, e é isso que impede a apreciação do presente que Tony buscava. Em determinado momento, Nora fala com Tony que “as boas coisas sempre acontecem com a chuva”, e parece que o único encantamento que nos é disposto sem a contaminação da utilidade é o que vem da natureza, e que vem do acaso.

Quando volta à sua casa original, com novo rosto, Tony recebe a notícia de que as aquarelas de Arthur foram destruídas. É como se a única expressão artística do seu antigo eu perdesse o valor no presente utilitarista, algo que nem mesmo sua família se importou em guardar. O que se mantém, no entanto, é um troféu esportista, medidor de qualidade.

O arrependimento portanto parece culminação de toda a encenação da paranoia de ter sua vida dividida em estágios, em salas organizadas, que Frankenheimer e Wong Howe promovem. O retorno à empresa para mudar novamente de identidade vira calvário do mecanismo kafkiano da corporação capitalista, vidas a serem regurgitadas em prol do mercado, um doloroso flashback involuntário de Tony voltando à sala na qual entrou por acidente quando ainda era ainda Arthur, mas agora com motivo definido: uma eterna espera. Seu corpo é dispensável sob os olhos poderosos, e como tal pode ser reaproveitado se isso for lucro. A sua liberdade, no entanto, permanece um sonho intocado por quem silenciosamente já ditava seu cotidiano desde o princípio.

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As imagens distorcidas que abrem e fecham o filme, sinais de uma vida prestes a ruir sempre que os desejos são maiores que a necessidade de se conformar com o ambiente no qual fomos designados. O contrato com o diabo cuja máquina funciona sem percalços porque sabe que o indivíduo sempre terá a pulsão da mudança e do trânsito quando a harmonia com o ambiente não está acontecendo. O exílio de Antiochus é numa casa de luxo, sozinho diante do mar, mas como alguém que só encontra felicidade no coletivo delirante comungando, estar solitário diante daquela realidade forjada é o maior sinal de que o real é virtual, e como tal simulacro não existe além do plano artificial, imaterial, e portanto extracorpóreo.

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A relação corpo-máquina: de Metropolis a Matrix

Por Natália Alonso

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Metrópolis (Fritz Lang, 1927)

Em 1927, Fritz Lang presenteou o cinema com a então obra retrô-futurista pioneira do cinema. Metropolis é, até hoje, uma das primeiras referências quando se pensa em Steampunk1. Começava, de forma categórica, e nada tímida, – muito embora ainda solitária –, a relação corpo-máquina no cinema.

Metropolis é um grande centro que utiliza um sistema organizacional trabalhista influenciado pelo capitalismo, um evidente cenário pós-Revolução Industrial. O funcionamento da metrópole engloba altos níveis tecnológicos e estilo artístico. O filme é ambientado no ano de 2026 e mostra a cidade futurista ideal (cenários deslumbrantes, avanços tecnológicos inimagináveis para a época), onde aviões circulam entre edifícios gigantes, no auge da urbanização, uma verdadeira obra-prima do engenho humano. Mas a sua ambientação excêntrica e detalhista não é a única coisa que a trama intenta mostrar: a crítica social ao maniqueísmo e à oligarquia – que está enraizada na sociedade capitalista até hoje – são pontos fortes a serem analisados. O contexto sócio-político também é relatado com destreza e com toque surrealista, característica muito marcante em diversas obras retrô-futuristas.

            A relação corpo-máquina, enfim, se fortaleceu nos anos 80, em películas como Blade Runner (1982), Videodrome (1983) O Exterminador do Futuro (1984) e Robocop (1987), que também influenciaram a criação de jogos com cenário Steampunk e exploração da onda tecnológica em situações surreais ou absurdas. Na contemporaneidade, observam-se games extremamente acurados, com gráficos e cenários que evocam os filmes dos quais sofreram grande influxo. Um exemplo é Fallout. O jogo, inclusive, em especial na sua versão de número 4, faz referência ao filme que consagrou Schwarzenegger de diversas formas, a começar pela caracterização dos personagens (jogadores).

            Na maioria dos filmes, a tecnologia surge como uma importante aliada ao homem, mas acaba por causar catástrofes, com a dominação pelas máquinas e a inversão de papéis: a máquina controla o homem e não mais o oposto (destaque para O Exterminador do Futuro 3 – A Rebelião das Máquinas, de 2003). A ideia de que a máquina poderia atingir inteligência suficiente e autonomia para fazer escolhas sem precisar do homem sempre transpassou os filmes de ficção científica. Pior ainda: a máquina seria capaz de alcançar uma inteligência sobre-humana, tomando conta da humanidade. O corpo humano, antes visto como instrumento de inteligência e de criação, dentro da gama sci-fi, apresenta vertentes, nas quais alcança sua capacidade máxima, tem força e poderes que não seriam passíveis na existência humana comum. Os androides, que até o século XX eram tratados como realidade em um futuro quase sempre ambientado no século XXI, são protótipos criados a partir do corpo humano (O Homem Bicentenário (1999), A.I. – Inteligência Artificial (2001), Ex-Machina (2014)). No entanto, o homem, na ânsia de aperfeiçoar seu próprio eu, cria alter egos com atributos dos quais ele não poderia desfrutar fora de um enredo de ficção científica. A inteligência artificial, derivada da humana, em diversas tramas, fornece às máquinas, ainda, a capacidade de ter sentimentos humanos, como empatia e amor.

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Matrix (Wachowski Sisters, 1999)

Mas, é em Matrix (1999), que a relação corpo-máquina atinge seu ápice nas telas. A história do hacker Neo (inesquecível, interpretado por Keanu Reeves) que é o “escolhido” na luta contra a dominação dos humanos pelas máquinas, não só tem todos os elementos clássicos sci-fi, como uma síntese conspiratória. Na Matrix, a raça humana foi dominada por inteligências artificiais. Neo descobre que esteve “dormindo” o tempo todo, conectado a um programa de computador, sem poder desfrutar sequer da própria força, sendo utilizado apenas como fonte de energia. Assim como o sempre atual Metropolis, há crítica sócio-política em relação a regimes ditatoriais e totalitários embutida no enredo, que se relaciona com problemáticas contemporâneas. Essa distopia pode ser vista em diversos filmes do gênero.

Apesar de os filmes do gênero serem reconhecidos pela saturação de efeitos especiais, também prezam pela teia bem construída, geralmente fomentando críticas construtivas e gerando reflexões mais profundas em relação à submissão da sociedade à tecnologia e a dominação pelas máquinas (na maioria das vezes em analogia à própria sociedade real). Ao longo do tempo, contudo, os efeitos foram aperfeiçoados, enquanto que a mensagem a ser passada estagnou: afinal, sempre esteve um passo à frente. Metropolis era atual em 1927 e é atual hoje.

Glossário

Steampunk: O Steampunk é um subgênero da Ficção Científica passado em uma realidade alternativa, cuja proposta estética remete ao Século XIX, como se a Era Vitoriana, por exemplo, tivesse sido de tal forma bem-sucedida que seus costumes, tecnologia e cultura tivessem perdurado por muito mais do que de fato perduraram.

 

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Tetsuo e o Niilismo Revolucionário

Por Chico Torres

TETSUO (ABERTURA)

Desde a segunda metade do século XIX e, sobretudo, início do século XX, a tecnicização da vida nas grandes cidades passou por um processo de aceleração nunca antes imaginado. Desenvolvimento do capitalismo, crescimento populacional, distribuição de mercadorias em massa, tráfego urbano, meios de transporte e comunicação, tudo isso entra em conjunção com a inserção da tecnologia na vida cotidiana. Um contexto que, desde o seu surgimento, gerou uma perspectiva dúbia em relação àquele novo mundo: a cidade apresentava, ao mesmo tempo, o sonho e pesadelo humanos.

Ao mesmo tempo que os indivíduos usufruíam do conforto e da praticidade ocasionados pela inserção da técnica no cotidiano, surgiam constantemente novas demandas psíquicas e físicas que se impunham e precisavam ser absorvidas. A máquina em toda a sua força e velocidade não só gerava medo, mas uma série de novos estímulos. Diante disso é que a modernidade fora compreendida por pensadores como Simmel, Krakauer e Benjamin em um sentido neurológico: tal condição, ao desenvolver hiperestímulos, proporcionou um novo tipo de experiência subjetiva. A vida, pela primeira vez, estava marcada por choques físicos e perceptivos sem precedentes.

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“Cidade de Nova York. Ela vale a pena?” Life, 1909.

É partindo dessa perspectiva histórica que quero pensar em Tetsuo: o homem de ferro (1989), de Shinya Tsukamoto, filme cultuado por sua subversão e ligação com a denominada cultura cyberpunk. Para além da sedução fácil de pensar a obra em seus adjetivos mais evidentes, reduzindo-a a uma caricatura, quero propor uma análise que aproxima Tetsuo desse olhar ambíguo que recai sobre o papel da técnica na vida moderna. No filme, a presença constante do pessimismo e do conflito através da relação descontrolada entre corpo e máquina, pode ser compreendida também como uma reação ao ideal de progresso, emergindo como crítica à modernidade através da maximização simbólica dos barbarismos a partir de tal relação.

Tetsuo retrata uma máquina guiada pelo seguinte propósito: habitar o corpo humano e o mundo como um parasita. Uma invasão que não se explica, que não possuí uma lógica interna (como, por exemplo, em Blade Runner e Matrix, filmes onde a máquina possui um plano “lúcido” e que depende da vida humana para se concretizar), mas que apenas perturba a integridade física e mental das personagens. Constantemente a obra afirma, por um simbolismo que sempre tem como ferramenta um tipo de fisicalidade extrema, que a humanidade não soube se utilizar da técnica, voltando a um estado de barbárie e incompreensão irremediáveis.

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O que se vê é uma série de imagens, ainda que agarradas a fios narrativos muito frágeis, que expressam sempre situações-limite, integrando prazer sensual e dor física sob o imperativo do vírus-máquina. Como meio de maximização dessas situações, e uma possível aproximação com questões psicanalíticas, diversas interações sexuais se desenvolvem, todas elas sob o estigma da perversão. Objetos fálicos surgem dos corpos e se personificam, afirmando, violentamente, o poder fálico e patriarcal, sendo causa e consequência daquele mundo apocalíptico.

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As técnicas audiovisuais utilizadas por Tsukamoto também buscam explorar gráfica e sonoramente uma perspectiva acelerada e desordenada que rementem a esse mundo absorvido pelo processo industrial. A montagem descontínua; a câmera na mão (uma personagem à parte que explora a falta de objetividade inerente ao filme) e as alterações nos recursos fotográficos; muitas imagens em stop motion, picotadas e aceleradas; a trilha sonora que reproduz sons maquinais, todos esses elementos revelam o desejo de construir um filme que se  mantêm à distância das formas contemplativas, com o nítido objetivo de desorientar pelo excesso e de ser um documento experimental que, sob a máscara de pesadelo distópico, se revela como uma pungente crítica à tradição, ao humanismo e ao progresso.

Nesse sentido, podemos alinhar Tetsuo ao dadaísmo e principalmente ao surrealismo, vanguardas que, na ótica de Walter Benjamin, possuíam forças revolucionárias justamente por se fundamentarem na pobreza experiencial do mundo moderno, que pelo próprio esfacelamento dos valores tradicionais da obra de arte se torna   um novo motivo artístico. Quando Benjamin escreveu o seu ensaio sobre o surrealismo, afirmou que era preciso organizar o pessimismo, sintoma característico do século XX. O filósofo alemão, interessado no poder revolucionário das vanguardas europeias, viu nesses movimentos, sobretudo no surrealismo e no dadaísmo, manifestações que explodiam os valores burgueses expressos, em arte, pela contemplação e manutenção de um humanismo que paralisavam as forças revolucionárias surgidas através do desencantamento do mundo. Ainda segundo Benjamin, a técnica surge, diante dessa   perspectiva, como elemento político fundamental do exercício artístico, sendo a política, agora, um aspecto que deve ser absorvido pela arte. Diante dessa nova perspectiva, exige-se, portanto, uma tomada de posição. É nesse sentido que Benjamin dirá que é preciso não estetizar a política (como fez o nazismo), mas politizar a arte.

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As vanguardas teriam a capacidade de se utilizar do inconsciente e do sonho (surrealismo), dos elementos industriais deslocados de sua funcionalidade, surgidos em recortes aleatórios (dadaísmo) e da ruína prematura das cidades modernas para, dialeticamente, propor uma “iluminação profana” que recairia sobre a relação ambígua advinda da modernidade, ou seja, a técnica como libertação e escravização. É assim que Benjamin, pensando na atitude surrealista, irá pensam em um “niilismo revolucionário”, postura pessimista e de consciência crítica da perda irremediável da experiência coletiva, mas que vê na própria pobreza experiencial possibilidades estético-políticas apenas possíveis nesse contexto desolador.

Penso que Tetsuo se alinha a todas essas imagens benjaminianas; que muito antes de ser apenas um filme experimental, horror cyberpunk, ou algo feito para proporcionar o mero escândalo, é uma obra consciente das limitações da tradição e, ao mesmo tempo, do poder político do fragmento, do sonho e da ruína, do surrealismo e do dadaísmo. Em Tetsuo, a ruína surge através da exploração dos espaços vazios, do maquinário abandonado e destruído (muito raramente uma máquina surge em seu estado natural de funcionamento), o que demonstra as intenções de Tsukamoto em exibir essa máquina como elemento atmosférico e, portanto, surrealista. A ruína do mundo revela o fracasso histórico do ideal de progresso, surgindo, em sentido redentor, como reelaboração estética daquilo que só pode surgir como alegoria da tragédia humana. A única possibilidade de redenção, portanto, é a exploração surrealista desses objetos degradados, buscando não uma restauração daquilo que está irremediavelmente perdido, mas um novo caminho em toda a sua radicalidade imagética. Sim, o pessimismo de Tetsuo é, antes de tudo, um posicionamento político.

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Um homem é uma câmera

Por João Pedro Faro

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O cinema é colagem a partir do momento em que um frame junto do outro gera movimento. Disso, gera-se a montagem. Da montagem gera-se o filme. Seja de um processo analógico ou digital, o maquinário por trás dessas etapas é a possibilidade do cinema de existir. Como a história de qualquer arte é a história do artista estando cada vez mais integrado fisicamente e intelectualmente à sua arte, a máquina, inevitavelmente reconhecida, é o grande centro de criação da contemporaneidade. Dentro do cinema, a maior de todas as máquinas, a que é a invenção do próprio cinema, é a câmera filmadora. E a história dessa câmera também é a história do cinema, do fim de uma mitificação industrial para um produto caseiro e do produto caseiro para a sua banalização como acessório de máquinas multifuncionais (a reprotubilidade técnica de Walter Benjamin no cinema). É desse princípio o cineasta americano Jem Cohen inicia sua carreira de curtas-metragens no final da década de 80, em Nova York. Influenciado por trabalhos de Benjamin e pela sua própria vivência na cidade, Cohen termina em 96 um trabalho de cinco anos: Lost Book Found, uma obra-chave não apenas pelo experimentalismo, não apenas pela fusão entre a câmera e quem a opera, mas principalmente pela possibilidade da colagem.

Nova York já era o espaço de grandes autores em jornadas solitárias com a própria filmadora. Mekas já estava há anos construindo diários sobre as efervescências nova-iorquinas e Peter Hutton encerrava em 1990 sua trilogia que leva o nome da cidade. Mas antes de um diário ou um exercício atmosférico, Lost Book Found é o encontro do advento do cinema solitário com a consciência da desmistificação de seu meio. Misturando as memórias de Cohen enquanto era dono de um carrinho de vendas com suas impressões urbanas após achar um estranho livro de anotações, o filme corre em torno das pulsões assustadoras que o registro de uma cidade em movimento ininterrupto pode gerar. E tudo isso está nas leituras narradas do conteúdo no livro encontrado pelo personagem, em sua maioria uma série de códigos, listagens, endereços e ditados. Quando essas palavras aparentemente aleatórias se juntam às imagens de Cohen por Nova York, o resultado é uma paranoica tentativa de decodificação do caos de elementos que constroem a cidade.

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O grande segredo descoberto é que quanto mais se observa, menos se entende, mais se acumulam imagens por cima de imagens, barulhos por cima de barulhos e ideais desconexas por cima de outras. A profissão do protagonista, que é narrada como sendo “um trabalho invisível”, já sugere que o caminho do personagem é observar até não aguentar mais: um vendedor num carrinho que nunca anda, destinado a estacionar eternamente em uma esquina que não para de se mover. Mas nisso não está sozinho, começa a perceber os personagens e padrões que se repetem, as recorrências cotidianas dentro do caótico, narrativas inacabadas do dia a dia. Porém, a observação é diferente do registro, e é aí que a câmera surge. Não seria o bastante para um trabalho como Lost Book Found ter a câmera apenas como mediadora entre a realidade e o filme, portanto ela se torna sua própria realidade porque nunca deixa de acompanhar tanto o fluxo psíquico e poético desse alguém que acompanhamos quanto sua própria andança e visualização de todo aquele espaço (nem sempre a câmera está como o narrador, mas sempre está nos mesmos papéis diante do que filma pois é condenada a se tornar aquela realidade).

O narrador de Lost Book Found mistura-se tanto à filmadora quanto ao seu ambiente pelo tempo em que consegue observar a tudo dentro da lógica das anotações do livro que encontra. Quando você está no processo quase mecânico de seguir pistas absolutamente perdidas dentre avenidas, propagandas gigantescas, telas de televisão, muros de concreto e produtos industriais, a consequência é acabar se tornando uma fração desses códigos que parecem escondidos. Ir atrás de repostas em um universo que, não importa o quanto você filme, o quanto você registre ou escreva, não parece se alinhas de forma alguma, é um pedido para instalar esse caos dentro da sua própria cabeça. No caso de Lost Book Found, dentro da própria câmera.

Cohen registra o cinza e o colorido na mesma intensidade, ambos parecem mórbidos de sua própria forma. Desde seu primeiro curta, This is a History of New York (1987), filmado em preto e branco, a cidade já era vista como fonte de extremos conflitantes, como no plano final que coloca um sem teto e um foguete na mesma imagem (o país da liberdade vai ao espaço mas não vive no chão). Em Lost Book Found, parece que as cores mortas dos incontáveis prédios e as montanhas de produtos em vitrines são acumulações de um vazio transbordante. Para o narrador, presenças banais que tornam-se misteriosas a partir do pressuposto que escondem ideias além-da-imaginação. Sistemas, equilíbrios, leis naturais surgindo no que veio de fábricas. Uma tentativa fracassada de voltar à mistificação de produtos e velhas inovações do que já é ordinário no final do século? O capitalismo parece estar em sua grande crise existencial, em fluxos já recebidos por filmadoras portáteis. Não à toa, um dos personagens que passam pelo narrador é um sujeito que recolhe joias e moedas que caíram em bueiros.

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As conspirações e as investigações cotidianas, no esforço de tentar perceber tudo em seus entornos, parecem querer encontrar qualquer vida que seja dentre a perdição do urbano. Buscando a cidade como uma espécie de museu de peças com prazo de validade. O máximo que Cohen e a câmera encontram são rostos de nova-iorquinos que encaram a lente nos minutos finais de Lost Book Found. Não entende-se o que está por trás das anotações do livro encontrado, mas sua poesia mecanizada pode acabar esbarrando em operários da manutenção do espaço em que habita (os vendedores ambulantes, os varredores, os lixeiros) eles, ainda que sistematizados, são um restante de vida possível.

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A câmera já não acompanha mais o operador, eles são a mesma coisa, são inseparáveis, inconfundíveis. Sua presença não é mais disfarçada, ficcionalizada, ela é a máquina da ficção e é reconhecida durante todo o filme como tal. Por mais que as filmadoras de Vertov já entrassem pelo cérebro e saíssem pelo olho, elas não são mais elementos fantásticos ou revolucionários. Pelo contrário, são agentes passivos do universo que registram tanto quanto qualquer outro civil. Olham para tudo de baixo para cima, em Lost Book Found elas nunca parecem passar da linha do pescoço de ninguém. Parece que sua transfiguração em homem rebaixou toda a sua imposição mágica aos medos e confusões de quem vive abaixo de arranha-céus e viadutos. Inevitável: é abaixo de tudo isso que surgem os grandes registros, é por onde andam todos os olhos que interessam.

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A sincronicidade das sombras

Por Felipe Leal

“A pressão real tem outros resultados: estabelece a concorrência entre os organismos desiguais, e se não podemos dizer como as espécies entraram na dança, podemos dizer o que é a dança”

Georges Bataille, em A Parte Maldita

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A perplexidade suscitada sobre a pergunta “o que é uma máquina?” liga-se de imediato ao porquê da existência do aparato, uma vez que sua configuração, pré-ordenada, se liga por um grosso liame à sua utilidade; ou ainda: “a que fins ele serve?”, o que é o mesmo e está imediatamente conectado à curiosidade, mais resumida ou mais sedenta, sobre o funcional daquilo, como todas as partes vêm a participar do ato integrado, de forma que tanto a cascata de dúvidas, fechaduras e espantos quanto àquela que ultrapassa a superfície do maquínico, adentra seus pormenores e finda, reemergindo, num unívoco sujeito-máquina, ambos os percursos de síntese do pensamento e do dispositivo, pode-se dizer, são circulares e infinitos em suas técnicas, cujo resultado é a sobrevivência da circulação ela mesma. Das milhares de cintilâncias espraiadas pela história como constelações de ideias e dispositivos funcionando indistintos como máquinas, pois, quem (atenção: quem) melhor que o aparato do Partido Nazista para personificar num só homem raça, nação, marcha, estatuto simbólico, filosofia, lei econômica geral, cordão familiar, governo quase total das noções de alteridade, presente, passado e futuro? Quem melhor que a propagandista do Partido, aliás, para fazer de tudo isso um corpo fílmico que é também um corpo maquínico perfeito? – perfeito para seus fins, como numa erótica do convencimento que antedita todo o enlace.

Repensemos Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1935) como se o nome-rêmora com que nasce – por encomenda, nada menos –, “filme de propaganda”, antecedesse o caráter de “documento histórico” que marca os letreiros de início. Repensemo-lo em sua curiosa dualidade de adjetivo e de advérbio, assim como as máquinas são apreciadas e avaliadas também pela qualidade de suas tecnologias, refletidas estas nas alterações das formas e intensidades propostas. Estar na ponta tecnológica, desejar ali estar como os nazistas implicaram num dispendioso horror de energia higiênica excedente, requer maestria, supressão, compressão de todas as formas possíveis. Que seus efeitos sejam desejosamente encaixados ao nível de indicialidade mínimo necessário à primeira visão histórica superficial, isto é um resultado naturalmente almejado pela pompa entroncada dos bustos de seu mito e comitê: ser propagandístico porque a completude de sua máquina de gerência e domínio coletivo depende da impressão do Führer, dos corpos cimentados aos de sangue; tudo serve a ele e se solidifica por ele, como a invisível potência das fontes (springs: primaveras, jorros). E, no entanto, o adverbial ricocheteia através dos cantos, anunciado na mais invisível pressurização do manifestado onipresente, porque ser erigido às maneiras do propagandístico é assumir um enlameado de cinema, do que o cinema potencializa na situação-limite em que é necessário mostrar, tornar presente, algo do tudo, tudo de um algo, e recobri-lo com uma sinestesia de desejável, ardente.

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A língua em formato de anel, adiante num estado tautológico, no busto emocionado, artificial e exageradamente hesitante, à beira de uma convulsão apaixonada, de Rudolf Hess, custa a afirmar fingindo o custo afetivo que é a própria afirmação: “Hitler é a Alemanha e a Alemanha é Hitler”. Que coisa é simultaneamente uma e outra? Entre muitos os exemplos, e quase sempre por apenas um momento, vê-se tal situação dúplice naquilo entre quem ama e quem lhe realiza a ação. O que a publicidade realiza não é tão-somente que um sujeito seja um outro que detém certo artefato ou qualidade, mas que o fetiche persista, que eu persista ‘faltando’. Se a engenhosidade do Partido foi a de ter multiplicado a incondicionalidade do amor ao Estado-Paternal, seu artifício sub-reptício, ardiloso, foi, como o de muitos pais, o de também ditar, como que por uma insígnia inquebrantável, também o que é o amor: explicitamente, as formas possíveis e circunscritas de amar. Fazer propaganda propagandisticamente é o arriscado excedente de deixar a máquina nua, antes exibir a organicidade rígida de suas operações do que esconder o pistilo. Triunfo é a potência desavergonhada da planta enquanto máquina da reprodução de si mesma. Exibir a serialidade da energia dessa potência recortando, com aresta de quadro, as fileiras de trabalhadores tão dispersos quanto conjuntos numa marcha, fazendo-as se mostrar na infinidade não do que realmente são (uma raça autodenominada e louca), mas daquilo em que o partido acredita e em que devem acreditar por espelhamento: uma ordem diluída de um número que parece ser mais do que é, com origem sem ponto de início e futuro como vetor puro de progresso. Vemo-los, a todos os soldados, como o continuum sacrificial, o custo vivo de uma Ideia que, para atingir sua efetivação, deve atentar sobre o desvio de seus meios.

 Seria demasiado histérico, quiçá de uma polissemia empurrada, visualizar algo de fálico na suspensão rija do braço na saudação nazista? Ora, que o peso da inclinação decididamente fique a cargo do dispositivo (textual, chamado argumentação), há algo sobre a constância assinalada do gesto que não podemos ignorar, por vir à tona também pelas políticas que um quadro encerra; interessemo-nos pelo filmado, aqui, e ainda que puramente. Pelos estalos geométricos de Riefenstahl, o Ave! é ora a linha basilar que encabeça o percurso restante ao céu, dividindo homem e o elemento imaterial de sua conquista, ora uma seta que liga o corpo, da maneira que pode, ao imaterial guia, projetando o corpo até Ele; ora a massificação esmagada de espectadores para os quais o rosto pouco importa, ora o preciso e afiado lançamento de uma continência “universalmente” reconhecida como desaguando, pelo ar comum, nele: ele, a válvula; ele, a fonte da convergência da vida inteira.

Não há um segundo no filme disposto a exibir algo da organicidade da vida cotidiana, marginal à dedicação ao Partido, dessas milhares de vidas que seus gerentes enumeram em discurso com fácil disposição, nem mesmo a sucessão de cenários que fabrica o despertar de Nuremberg como uma cidade plácida de muros, bandeirolas e córregos: o elemento humano, pela brevidade de um pinball geográfico-ilustrativo, está ausente e não há um ruído qualquer de presença particular, logo quando o resto do documento filmado é entregue aos olhares difusos, discursos em cusparada, silhuetas conglomeradas e público incitado a permanecer restrito à sua localização nessa monumental arquitetura de um desfile ininterrupto. Até a cidade recende, arquitetonicamente, ao Partido. Está asséptica para ele.

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Nos meados dos anos 30, pensemos no peso, na pouca discrição de um aparato cinematográfico, no articulado arranjo quase inumano dos blocos de figuras dispostas a servir, em numeral e forma apolínea, o Führer, e aos rostos capturados por um close fugaz de Riefenstahl, sobretudo aqueles das crianças, a equivalência será a de um pedido para um cano de escape ou para um botão, uma vez trocados de máquina-mãe, que sorriam diante do intricado jogo de uma totalidade nova a quem devem servir. Nenhum tamborilar homogêneo cúmplice de um maquinário de poder, não importa quão cristalinas sejam as ficções de suas paredes e daquilo que lhes é estranho, “de fora”, pode resistir, absoluto, ao sorriso desviante e fugitivo dos garotinhos, que não deviam estar felizes, mas parecendo felizes, ou mesmo dos soldados de cabeças irresistivelmente para-lá-e-para-cá-, descentrando a sobriedade de uma linha, atentas e autoconscientes ao caráter demonstrativo do próprio desfile, logo quando a total concentração do corpo devia obedecer como uma régua que o olhar de Hitler mede, confere. Não. Não uma máquina: esta não pode conter furos. E, no entanto, quanto mais lustrosa e obediente, mais sua pressão escapa à regra, mais suas partes, inconcebivelmente feitas para desconhecer em totalidade o que ali se passa – esta é a dança, não perguntem mais nada –, rebaterão com um desconhecimento de papel que só aos olhos menos atentos parecerá a humildade que a encomenda e que os princípios demonstrativos exigem. Como são minúsculos, esses que não são seu Guia. Como são simplórios, das terras pré-unificadas de onde vem e pelo desconcerto que seus corpos emanam aqui defronte seu predecessor e enviado.

O que é comum a todos eles, a estes rostos e corpos de uma vez só? Pela perspectiva imperial de um mastro de bandeira flutuando e presidindo os arcos que compõem seu centro, como numa mesa de convidados cuja colocação serve de artéria à festa, pela inclinação dançada das faces e miradas, postas em dança também por aliciamento e por sopro da formação de quadro – tudo olha acima e ao redor de si mesmo e visando o torpor aquilino da voz de seus generais, voz que é única e viaja em círculos, monólogo eterno do totalitarismo. Hitler fala para a Alemanha, mas a Alemanha nunca lhe responde. Uma fábrica “sonhada” reconhecível por seus chiados e pela ordem de colocação de seus elementos. Entre a corporeidade e o maquínico, a história preservou assustadoras tentativas de união. São as brechas desses casamentos que legam as perguntas ocas, ainda que hoje saibamos dos furos e das infiltrações: como pôde, como pôde um povo inteiro e por tanto tempo, digamos, obedecer a um pai? Seus ecos relembram numa atualização que mobiliza algo do ciborgue, pois não confiamos que fossem inteiramente humanos, nem tampouco manejáveis o suficiente para serem peças puras. Logo quando a fórmula fabril residia precisamente lá: são da estirpe de seu pai, e não só Hitler é excessivamente humano: a dedicação de seus filhos à pureza fabricada da Terra-Mãe é o que lhes faz, enquanto peças engenhadas para servir estritamente a seus fins, acrescer à humanidade, talvez de uma vez por todas, um possível maquínico.

Devemos ao engenhoso aparato nazista um alargamento que é produto da mesma duplicidade adjetivo-adverbial, uma vez que “ser humano” passa a ser uma espécie (de categoria) maior quando um fragmento inteiro de história pede licença para devir-máquina. Há alcance e codificação prescritos aos gestos afetivos, encurtamento de mobilidade aos acúmulos e interesses voltados ao futuro (de si), agora todos centrados na Pátria “de lá”; a caracterização constitutiva, familiar, recebe uma cisão de um inquietante e insistente destacamento, ficando a figura do jovem sempre à parte nas menções populares (“uma família e, a seu lado, sua parcela de juventude”, leríamos); a participação nos ensinos e alternâncias morais perpassam as gerações de modo a alinhar qualquer espécie de lei àquelas vindas de mais acima, e as sensações físicas de uma trajetória histórica individual se agarram às propulsões e narrativas da ascensão e vitória do Partido, de seu início minoritário ao inevitável império racial futuro, com a mesma fidelidade que uma planta engenhada deve vir a se materializar em sua complexa montagem. Para acreditar em seu impossível, que o volume de sua pretensão teria a circularidade germinativa de uma gônada e de um útero, Hitler, a metonímia Hitler, precisou esculpir uma ideia maternal-maquinal a partir de uma outra, de Estado. Para veicular os signos de tal gravidez e de uma terra prometida, o triunfo de uma vontade, seguindo no que uma vontade ainda não pôde efetivar no presente, no que ela ainda é, aliás, só mirada, necessita que estejam mais que visíveis as capacidades e leis ordenadoras de sua obtenção.

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Máquinas, se ainda não o sabemos de todo, são tanto uma alquimia da retórica quanto uma da produtividade. Hitler é a Alemanha: confiamos na máquina cujo autor assume suas responsabilidades e porvires. A Alemanha é Hitler: para que a máquina me convença, isto é, me convença a dobrar e me fazer passado diante da aceitação daquilo que me foi feito novo, devo atestar que ela realiza sua função com cada vez menores danos e operando com maior peso sobre si. Mas foi um fardo concentrar para si a Alemanha?, perguntaríamos ao Führer, nós que não temos voz, nós que marchamos, recuamos e acenamos? Máquinas não perguntam; corpos, sim, especialmente quando dançam. Então o que pergunta a distorção imagética encrespada quando, tomadas de certa diagonal, fileiras e colunas de pernas em largas botas pretas desvelam um borrão informe demais para durar? Talvez façam querer saber qual o custo da potência de uma vontade, a nós que já vimos as ruínas futuras? Talvez seu intuito seja mesmo o de uma erótica, e aquele martelar, ainda que serial e simplificado, enfeitice o tempo presente com a majestade de um pavão a mostrar, por disputa amorosa, o dispositivo de corpo mais atraente que aqueles outros, recuados para fora não do que é, mas do que deve parecer ser. Jorge Luís Borges já nos narrou de dois artesãos numa contenda perante o rei, ficando vencedor aquele que, em resposta à magnífica pintura do reino feita por encomenda misturada a duelo, retira de debaixo de um pano um espelho, superfície por excelência do simulacro, e mostra a pintura do reino adiciona de uma cintilância daquilo que é outro.

Um ente outro mais eu que eu mesmo: a mecânica de linguagem do grande pai-patrão é autoexplicativa em sua erótica de ciborgue, pois que subsiste algo em comum entre a permissão do corpo em transitar pelas máquinas e o evento germinativo que lhe deve ser infinito, aqui: a marcha de um partido que vem por detrás – que precede, aliás sempre além do campo de visão possível –, que segue ”através de nós” e que se estica adiante para um Éden esférico, puro. Como um braço estendido, vetorizado para o centro que lhe devolve a certeza de sua funcionalidade recém-descoberta. Como sua arquitetura singular, a rocha sobre rocha cuja periferização, esmiuçada pela propaganda duas vezes nua, diz que, àquela mesa, o pai fala numa altura acima de cada bloco e para os blocos eles mesmos. Ideia desvairada, a de que toda a histeria quase infantilóide daqueles discursos berrados se direcione à arquitetura mais do que ao numeral a quem diz servir? Paga-se o preço do desejo de potência, por vezes, engolindo o excedente de energia de que não se necessitava em primeiro lugar. Entre corpo e máquina, a aparição das veias marca a fome. A máquina fará ruídos estranhos, caóticos ainda que repetitivos. E entendê-la é falar, ainda que por um momento, a língua de sua “maquinicidade”. Muito além das inteligências artificiais, Riefenstahl legou, independentemente de seu patronado, uma imagem do que restaria, do que poderia vir a ser se seu sonho propagandeado tomasse concretude: a exatidão louca, impossível, de nosso momento derradeiro, em que o último homem em pé, circundado pela poeira do que destruiu, findará percebendo que esteve o tempo inteiro falando com rochas. Sua máquina terá falhado, e duplamente, porque há uma intricada maquinação por detrás, atravessando, entre as pedras e seus corpos, falando uma linguagem de “erodição” muito mais antiga que nós.

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Ghost in the Shell e a humanidade negociada

Por Isabel Wittmann

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção.[…] Com o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra (HARAWAY, 2009 p.36-39).

 

O mangá Ghost in the Shell, um marco para o cyberpunk, que já havia sido adaptado em anime com O Fantasma do Futuro, de 1995, foi adaptado para uma versão com atores, A Vigilante do Amanhã, de 2017, protagonizada por Scarlett Johansson. É difícil não analisar ambas as obras em paralelo, já que fazem leituras diferentes de uma mesma fonte comum. Ficção científica com pitadas de ação, a narrativa do filme mais recente trata de um futuro distópico em que a Major (Johansson) possui um corpo cibernético, chamado de concha (shell), especialmente construído para receber seu cérebro após um acidente em que quase morreu. O cérebro, aqui, representa a individualidade do ser humano, sendo entendido como uma espécie de equivalência à alma (ghost). Major é a primeira de seu tipo: uma soldada perfeita para o combate ao crime, com um corpo artificial, mas entendido como humano. Ela encarna o mais próximo que um ciborgue pode chegar de um androide, ou seja um humano híbrido de um humanoide artificial.

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Os aspectos visuais dos filmes se destacam. O anime, especificamente, empresta referências de Blade Runner (1982), tratando-o como um antecessor espiritual e projetando referências a um futuro que é, sim, androide, mas mais que é isso é ciborguizado e conectado em rede. É fácil perceber como a estética foi absorvida pelas irmãs Wachowski, resultando, através da combinação de outros elementos, em Matrix (1999). O filme com atores segue as referências a Blade Runner, mas abstém-se de replicar o que já havia sido digerido por Matrix. Temos uma cidade cosmopolita preenchida com arranha-céus e adornada de neons e hologramas publicitários.

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Ambos os filmes tratam de discutir questões sobre corpo, humanidade e individualidade. Outro ponto forte das adaptações são as discussões pertinentes que suscitam, mas a encarnação de 2017 perde em profundidade ao personalizar as motivações envolvidas na trajetória dos personagens e se afastar não só das maiores reflexões (expostas em diálogos elaborados no anime) sobre os temas citados, como alterando em parte o sentido destas. Entretanto são trabalhados pontos importantes, ainda que de maneira superficial e apressada. A dúvida que norteia o roteiro é, afinal, o que nos define como humanos? O que diferencia um corpo artificial lido como humano e outro que não o é ? Major é confrontada com a casca de uma gueixa-robô agonizante e seu olhar reflete esse questionamento: se aquele mecanismo é tão artificial quanto o seu, porque os outros a tratam como humana? A resposta supostamente reside em sua alma ou seu cérebro, intacto, mas o próprio filme deixa claro que o corpo pode ser curado quantas vezes for necessário, enquanto o cérebro definha, pode ser hackeado e ter memórias manipuladas. Se aquilo que lhe garante a humanidade é justamente o que não pode ser confiado, como ter certeza de seu status de humanidade?  Conforme Donna Haraway, esses limites se apagam:

A cultura high-tech contesta – de forma intrigante – esses dualismos. Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina. Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com práticas de codificação. Na medida em que nos conhecemos tanto no discurso formal (por exemplo, na biologia) quanto na prática cotidiana (por exemplo, na economia doméstica do circuito integrado), descobrimo-nos como sendo ciborgues, híbridos, mosaicos, quimeras. Os organismos biológicos tornaram-se sistemas bióticos – dispositivos de comunicação como qualquer outro. Não existe, em nosso conhecimento formal, nenhuma separação fundamental, ontológica, entre máquina e organismo, entre técnico e orgânico (HARAWAY, 2009, p.95).

Mas essa persiste como uma dúvida que atormenta Major, especialmente depois de incentivada a indagar-se a respeito da exclusividade de sua categoria. A versão de 2017 é claramente privada dos monólogos sobre o contexto social do conceito de humanidade focando na individualidade: Major se pergunta “quem sou eu”, não o que ela é, fugindo da noção de coletividade que envolve os indivíduos construídos. Mas de toda forma o que a leva a refletir sobre si é a totalidade artificial de sua corporalidade, uma vez que o aprimoramento cibernético dos corpos é entendido como algo corriqueiro.

Seu parceiro de campo, Batou (interpretado por Pilou Asbæk) perde os olhos em uma explosão e recebe em troca um complexo sistema de lentes muito mais eficiente do que as naturais. A prática da ciborguização leva a uma hierarquização dos corpos apresentados: mesmo que os implantes e próteses sejam melhorias, há um personagem que afirma ter orgulho de ser cem porcento humano. Mais que isso, a hierarquização perpassa a noção de humanidade com que as imagens humanoides são dispostas para o espectador. Não há dúvidas de que os gigantes corpos holográficos projetados nas publicidades não correspondem ao que se entende como humano. Acima deles, em termos de aproximação com o humano, temos os corpos físicos dos robôs, categorizados como seres sem valor, criados para servir. Em seguida viriam os corpos de seres humanos, que se estabelecem em níveis variados de poder e, por fim, os próprios ciborgues, fisicamente melhores que estes, embora com a humanidade possivelmente questionada.

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E nesse momento é importante mencionar a discussão acerca do whitewashing, ou seja, do apagamento das pessoas que não são brancas no filme de 2017. Os principais robôs que aparecem em cena têm a forma de gueixas, em uma problemática representação fetichizada e esterotipicamente submissa de raça, etnia e gênero, relativizada pela percepção de sua não-humanidade, que nesse contexto permitiria sua exploração. A única mulher negra retratada, sem nome, é uma prostituta contratada pela Major, que busca uma forma de tentar se conectar com sua humanidade. No trailer ela beija a mulher, mas a cena foi removida na montagem final. Ainda assim permanece o contexto erotizado, como se a Major buscasse um espelho de si e tentasse encontrar em outro corpo a humanidade que tenta sentir em seu. Além disso, se o ser humano é marcado também pela posse do próprio corpo (já que os corpos ciborgues, robôs e holográficos pertencem a corporações), como se encaixa essa personagem anônima na escala de humanidade? Em ambos os casos robôs e humana não-brancas são apresentadas como instrumento de uma sexualização que não lhes pertence. Isso é agravado no segundo caso pelo uso desse corpo com marcação de raça e etnia específica por uma mulher entendida como humana (embora ciborgue) e branca (contextualizada como ausente da mesma marcação de raça).

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Como o mangá e anime, o filme manteve o cenário e as influências estéticas e culturais da Ásia, mas o protagonismo é de pessoas brancas. Como uma androide com o corpo completamente construído, Major poderia representar qualquer etnia, mas é apresentada como ocidental. O problema, no final das contas, não é o papel ser delegado para Scarlett Johansson especificamente, já que a ficção científica abre margem para essa possibilidade, mas todo o conjunto de representações, contextos e subtextos presentes na obra, que resultam em uma clara percepção de whitewashing. Os entendimentos a respeito de humanidade acabam sendo apresentados de maneira intrinsecamente relacionada a raça e etnia, complexificando involuntariamente a questão principal do filme com a possibilidade de uma leitura racista.

Scarlett Johansson plays The Major in Ghost in the Shell from Paramount Pictures and DreamWorks Pictures in theaters March 31, 2017.

Vestida, ou seja, coberta do que nos é artificial, Major se apresenta, em contraste, como humana. Despida, livre da construção que é o vestuário, com o que parece um corpo nu, mas na verdade coberto por um collant composto de placas que lhe permite camuflagem térmica, ela se aproxima de outras formas humanoides não-humanas. Se por vezes humanizamos as coisas, em outras coisificamos ou objetificamos pessoas. A noção de pessoa e de coisa e as imagens que elas produzem (sejam as que estão sendo captadas nas filmagens, sejam as que são o resultado final da película) são indissociáveis.

 Torna-se assim possível imaginar uma corporalidade que nada tem a ver com as cisões entre interior e exterior, mas sim com estado alternativo de experiência produzido por acoplamentos entre complexidades. Compatibilidade e não-compatibilidade, portanto, seria o desafio em questão; a constituição de um corpo conectivo como modo de afetação entre configurações de mundo distintas e suas distintas produções de sentido (CESARINO, 2017, p.12).

Dessa maneira, A Vigilante do Amanhã não extirpa de todo as questões apresentadas no anime O Fantasma do Futuro, questionando as categorias de humano e não-humano, cujos limites são borrados pela ciborguização, e a relação destas com a corporalidade de seus personagens.

Referências:

CESARINO, Pedro. Conflitos Entre Pressupostos na Antropologia da Arte: Relações entre pessoas, coisas e imagens. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 32 n. 93, fev. 2017.
HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue- Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna; HARI, Kunzru; TOMAZ, Tadeu (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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Tragam-me a Cabeça de Carmen M. – Entrevista com Felipe Bragança e Catarina Wallenstein

Por Pedro Tavares
Traga-me a Cabeça de Carmen M. é uma espécie de intenso filme-reflexo dirigido por Felipe Bragança e Catarina Wallenstein que em tempo hábil registra o Brasil em nova decadência pela relação passado-presente como um corpo, representado com potência pela própria Catarina Wallenstein. O filme passou por Rotterdam, Tiradentes, Indie Lisboa e entre outros relevantes festivais e conversamos com os diretores sobre questões mais pulsantes após a exibição.

Felipe, este é, de longe, o seu filme mais frontal no que diz respeito ao corpo e a cidade, apesar de ser uma matéria presente em todos os seus trabalhos. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre este regime de urgência que o filme explora neste diálogo da personagem com a cidade.

Felipe: Acho que meu impulso de cinema passa muito pela relação dos afetos de personagens com as camadas de tempos históricos acumulados nos territórios geográficos e simbólicos em que vivem. Desde o A Alegria (2010), passando pelo roteiro do Praia do Futuro (2014) e pelo Não Devore Meu Coração (2017). Especialmente cidades, pela sua escala humana e tátil. Aqui, por se tratar da ideia de um olhar sobre um território geográfico e simbólico mais amplo, o Brasil, em processo de destruição e ruína, em desaparecimento, o corpo da personagem surge de forma ainda mais determinante como ponto de sobrevivência possível, como musculatura agindo nesse vazio abismal em que o Brasil estava ameaçando mergulhar enquanto fazíamos o filme. Daí talvez a sua sensação de que o filme é mais determinado nessa relação muscular com a protagonista.

Ainda que seja praticamente impossível fugir desta pauta caótica em que vivemos, é possível dizer que este tipo de abordagem pode se repetir em um próximo filme?

Felipe: Meu próximo longa, em lenta finalização para chegar aos festivais em 2020, se chama Um Animal Amarelo e é também sobre a relação entre os afetos acumulados em um corpo imaginado e as camadas históricas que o atravessam e afetam.

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Através da figura lunar de Carmen Miranda há todo o laço alegórico do filme, que me parece uma saída muito interessante para não-achatamento do tempo pelo diálogo com o passado e também para a construção do conflito, que é um filme que não vê a luz do sol. Por que esta escolha?

Catarina e Felipe: Carmen é mesmo uma lua. Que bela imagem a que você propõe. Carmen moveu a gravidade do panorama cultural brasileiro na década de 30 ao propor de forma intuitiva e genial a antropofagia como gesto do corpo cultural brasileiro. Carmen era esse jogo de máscaras, de invenção em cima de si, de mostrar e esconder, de ir além dos limites de seu pequeno corpo de menina portuguesa de classe média baixa e moradora da Lapa. Carmen, no filme, é assim, não um objeto, mas a nossa máquina do tempo. Talvez uma máquina dos tempos. Não para voltar ao passado, nem prever o futuro, mas pela capacidade que ela tinha e tem de ser uma acumuladora de camadas culturais e históricas que construíram uma utopia de identidade brasileira, que hoje se perde, se perdeu, se liquifez em suas contradições. A Carmen que nos interessa é a devoradora de limites, demolidora de “não podes”, a mulher incrível que nas décadas 20 e 30 desafiou o lugar guetificado que a música negra brasileira tinha, e se propôs a cantar samba na rádio, a gravar samba, a propor um Brasil em que o caos, a cacofonia e a invenção por acumulação seriam o norte. Carmen Miranda foi uma das grandes inventoras do Brasil. Em sua performance de corpo, voz, rosto, foi uma das primeiras performers a construir uma persona pública assumidamente travestida, performática e foi isso que a levou a ser contratada pela Broadway e por Hollywood já na segunda fase de sua carreira, anos 40, quando já era uma figura genial e central no Brasil. Sem o acontecimento Carmen a gente não ouviria samba como ouve hoje em dia. Sem Carmen, não haveria tropicalismo nem Caetano. Sem Carmen, não haveria David Bowie.

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Talvez seja um assunto batido quanto à produção do filme, mas ainda julgo importante já que ele é inerente ao filme em si: o filme foi produzido após o incêndio no Museu Nacional, em época de Copa do Mundo e em pré-campanha para as eleições de 2018. Como equilibrar tudo isso em um filme com rigor artístico tão pulsante?

Felipe e Catarina: Resolvemos fazer o filme num impulso apaixonado de reagir ao mal-estar cultural e político instalado no Brasil ao longo de 2018. Filmamos em Julho, durante a Copa, já antevendo a tragédia política que viria, e ao longo da montagem, que se deu até final de Outubro, fomos acumulando e absorvendo elementos que nos cortavam o cotidiano. A destruição do Museu Nacional foi assim, nos tomou de assalto e foi trazida para o corpo dramático do filme. Então a solução para sua questão era apenas não deixar afetar pelo que estava em torno de nós e ir acumulando no corpo do filme.

O filme viajou por diversos países recentemente e talvez estas chagas do povo brasileiro não sejam tão evidentes para o público estrangeiro, ainda que exista o pensamento do sucesso do brasileiro em outros países e a desgraça do estrangeiro no Brasil, uma terra de eternas promessas. O que reverberou para estes públicos?

Felipe: O mundo inteiro está olhando preocupado para o Brasil e o filme tem tocado fundo nos olhares estrangeiros. Talvez o emaranhado simbólico seja mais denso para eles adentrarem, mas o sentimento de que o Brasil como território simbólico, como linguagem, parece estar se automutilando, é evidente para todos e alvo de espanto e tristeza. O Brasil é uma riqueza planetária. A antropofagia brasileira é um oxigênio de humanidades. Não é apenas uma questão local se o Planeta Terra perde o Brasil, como está perdendo.

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Uma questão mais técnica e de logística: o filme tem 60 minutos e produção independente. Felipe ja passou por modelos diversos de produção e distribuição nos últimos anos. Para “Carmen”, fora as exibições em festivais, como você pensa em chegar até o público?

Catarina e Felipe: Vamos fazer algumas sessões especiais com a nossa presença e estamos pensando em uma pequenina distribuição em algumas capitais no começo de 2020. Mas o que mais queremos agora é fazer sessões com conversas, trocas, pensamentos. Esse filme foi pensado diferente de outros, escrito e produzido em 6 meses, tinha mesmo o intuito de ser emergencial, pequeno, artesanal e humano. Então o que mais nos está interessando agora é a conversa, a escuta. Recuperar o exercício da escuta e da reflexão nesses tempos de reações apressadas, surdas e definitivas sobre tudo. Por isso talvez o filme seja um musical: a primeira coisa que se faz para recuperar ou aprender uma língua, uma linguagem, não é falar. É escutar. É sentir seus sons. Os fascistas puristas em Brasília hoje podem tentar destruir o Brasil da mistura e da bagunça e da incongruência que eles tanto odeiam, mas os sons ficam. E acreditamos que vão ecoar por muito tempo. Como a Carmen.

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Divino Amor: enquadramentos e exclusões de um futuro próximo

Por Kênia Freitas

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Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019) se constrói como uma narrativa de ficção especulativa de futuro próximo. Não há afastamento temporal o bastante para falarmos em distopias ou utopias, e o que se configura é um pequeno deslocamento do presente. Este é grande o suficiente para imaginarmos o declínio do carnaval como a festa mais popular do Brasil (perdendo o posto para uma rave cristã) e o avanço no biocontrole estatal em prol de uma reprodutividade acelerada (dentro da ordem familiar patriarcal), mas pouco significativo em outros aspectos tecnológicos ou ambientais. O 2027 de Divino Amor projeta sobre o Brasil de 2019 intensificações religiosas e políticas que já atravessam o país no momento atual. Se em geral a ficção especulativa aborda essencialmente questões do seu presente, nas ficções de futuro próximo esse vínculo com o agora se torna mais evidente e impactante para o leitor/espectador.

            Nesse sentido, uma das estratégias mais instigantes do filme é a escolha do seu ponto de vista, do seu universo de interesses. Há uma aposta de enquadramento de visão do mundo pelas vivências da protagonista Joana: uma mulher crente em Deus e na burocracia estatal. Casada, frequentadora devota dos encontros do Divino Amor, em contato frequente com o seu pastor (no atendimento via drive-thru), ansiosa por engravidar, funcionária dedicada de um cartório. Joana acredita no projeto de família patriarcal, no direito do Estado de controlar e guiar a vida das pessoas a partir desse projeto cristão-familiar. Joana age nas duas frentes (Estado-Igreja) com a mesma devoção: no cartório, usa a burocracia para dificultar divórcios na tentativa de reconciliação entre os casais; e em seu grupo da igreja, atrai os casais em crise para as práticas religiosas-amorosas-sexuais. A partir do lema “quem ama não trai, quem ama divide”, o grupo pratica um swing abençoado de Deus. Cabe notar como o amor e o sexo, que são pontos fundamentais da experiência religiosa de Joana, são concebidos e vividos a partir de acepções limitadas e orientadas em um sentido produtivista, capitalista, patriarcal. O amor de Joana manifesta-se para Deus, para o seu marido e para o grupo do Divino Amor, mas não estende-se aos filhotes de cachorro, à vizinhança, a uma noção de comunidade, ou às crianças bastardas do orfanato. O sexo do Divino Amor é estritamente reprodutivo, condicionando a temporalidade ao gozo masculino.

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A estratégia de focalização em Joana e na suas vivência cria um jogo instigante na narrativa porque o filme acerta no tom. O adensamento no mundo da personagem não pretende criar um choque cômico ou de repulsa. Ao singularizar um agente do aparato de opressão Estado-Igreja, Mascaro desloca a pergunta de Jean Louis-Comolli “como filmar o inimigo?”, que marca o cinema político contemporâneo. Na construção do filme, Joana não é o inimigo, ainda que haja na manutenção de um aparato de controle religioso e estatal. Porém, Joana acredita no que faz e age com fé. Há na forma de filmar de Mascaro um jogo de aproximação e afastamento da narrativa com essa personagem, com a sua visão de mundo e a sua fé (jogo que se desestabiliza nas sequências finais – junto com a vida e a fé da personagem). Assim, frequentemente, a personagem é enquadrada com alguma distância – de um cômodo para outro, com paredes entre a ação e a câmera. Uma distância que situa Joana nesse futuro próximo com ambientes de cores estranhas (azuis, rosados). Um distanciamento que lembra constantemente de que para além de Joana há uma estrutura maior de mundo, relações, poderes. Uma estrutura que marcaria esse lugar do antagonista oculto, o inimigo, para muito além da personagem.

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            No entanto, esse filtro pela experiência de Joana cria impasses no jogo do filme. Se a focalização funciona para complexificar as vivências da personagem, ela limita o enquadramento da narrativa como um todo. Afinal essa visão de mundo e de futuro próximo é a do filme, a de Joana ou de ambos? Se tudo o que o filme nos mostra é que Joana vive em um mundo sem aparentes conflitos raciais, sociais, de classe e de gênero, isso quer dizer que o futuro próximo do filme é pós-racial, pós-gênero, pós-classe? Ou essa é apenas a experiência singularizada e limitada das vivências e da visão política de Joana? Ao eliminar o conflito da personagem contra uma sociedade opressora e torná-la agente das opressões, como o filme pode dar conta daquilo que Joana não vê? Uma resposta possível é a de que o filme não se interessa pelo que Joana não vê/sente/vivencia. O que resolve a questão da perspectiva fílmica e estrutural, mas o deixa em crise como uma narrativa de futuro próximo feita a partir do Brasil de 2019. Há uma fricção criada pela limitação do enquadramento e o seu desejo especulativo sobre questões políticas, sociais e religiosas nacionais.

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Ao revelar o seu narrador, identificando a voz off metalizada e infantil que conta a história como o filho de Joana, o filme entrega-se à crença e visão do mundo da personagem e se inscreve no regime mitológico cristão do messias salvador. A criança nascida sem um pai identificado (seus genes não são compatíveis nem com o marido, nem com os homens com quem Joana fez sexo no Divino Amor) é vista por Joana como a prova de um milagre divino (um presente de Deus abençoando a sua fé acima da infertilidade do marido). Uma criança não registrada, que encerra o filme nos dizendo que: “quem nasce sem nome, cresce sem medo”.

Ao não se interessar pelo que a personagem não vê, Divino Amor filia-se a um regime de crença no mundo e construção do futuro que só pode se fazer a partir da exclusão. Afinal, se as crianças bastardas do orfanato visitado por Joana (cena que funciona quase como um chiste visual para ela colher a lágrima de um bebê abandonado) também não tem nome e registro, porque apenas o filho de Joana (o escolhido) crescerá sem medo? Na visão de futuro próximo em Divino Amor não parece haver lugar para essas crianças para além de uma piada e um contraponto visual. O enquadramento reforça a visão do mundo dos escolhidos, dos vistos e dos mostrados – que podem até quem sabe rebelar-se e crescer sem medo. O enquadramento reforça o não interesse pelos mostrados mas não vistos. Diante destas imagens de futuro próximo, ficam as questões: quem sumiu junto com o carnaval no universo do Divino Amor? Nesse novo (antigo) projeto de Brasil, essas pessoas foram sumidas para onde? O fora de quadro é imenso demais. E segue crescendo, sem nome, sem narrativa e com medo.

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A trilogia John Wick e o epílogo do homem-resposta

Por Pedro Tavares

Porque acabou a arte de contar histórias? Eis uma pergunta que muitas vezes faço a mim próprio quando me deixo ficar à mesa com os outros convivas, a passar o serão, depois de termos comido. Creio, porém, ter encontrado a resposta certa tarde em que fiquei de pé na coberta do “Bellver” junto à casa do leme, percorrendo com o binóculo o quadro incomparável que Barcelona oferecia, vista de cima do navio.

Walter Benjamin em “O Lenço”

 

Passa-se o serão, come-se à mesa. Olha-se ao redor. Movimentos mecânicos, atitudes entorpecidas como a psique humana. À saturação da análise do homem como um poço de emoções e o cinema como um diagnóstico de reflexos e narrativas, resta um epílogo. Hoje no panteão dos filmes de ação desta década, a – até o presente momento – trilogia de John Wick traça paralelos sobre o fim do homem a fim de refletir os mecanismos em prol de uma resposta imediata.

Um homem de duas demonstrações de vida ante sua palidez emocional: no primeiro filme, a relação com o cachorro – uma demonstração de vida reclusa pós-trauma e na rotina de repetições – e no terceiro filme, quando Wick enfim baixa a guarda para pedir ajuda, quando já se transformara num código sempre monitorado pela máfia. O crível e não-crível, concomitantes em extrema intensidade na trilogia transparecem pela formalidade como Chad Stahelski (em parceria com David Leitch no primeiro filme) faz de John Wick um homem em metamorfose: seus movimentos ligeiros, a falta de empatia e a crueldade como forma de sobrevivência exibem um mundo de lata no qual há outra opção senão adaptar-se.

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Por outro lado, examina-se o epílogo de um homem, da sua humanidade que se esvai em suas costas. Wick está em diversos lugares-chave para este tipo de suposição, pela relação dos humanos-espaço como as boates e festas ou uma megalópole como Nova Iorque no terceiro capítulo. Vive-se e morre sem que os outros percebam – há não ser que você carregue um código de monitoramento. Na ideia de Stahelski como um dublê profissional e que sua concentração para sequências de ação é maior, o que sobressai liricamente no esteticismo da coreografia de corpos a cair, é como incrustrada à violência está o fim destes homens. Usam os corpos com o objetivo de uma máquina.

Quando Aristóteles afirma que os personagens trágicos nos refletem de maneira mais convincente (Faber and Faber, p. 212) por provocar temor e pena, Shakespeare recusa a divisão do homem-personagem; a questão é contemporânea visto que não há um fim para os que agem de maneira programada. Wick obedece ao acaso em prol da vida ou segue um caminho pré-estabelecido para que seu corpo-mecanismo esteja sempre em ação? Em comum, está o cerne das imagens de Stahelski: o mundo entregue a interesses maiores regidos por capangas-robôs. Wick é um sistema avançado na função de aniquilar inimigos, sem esconder a angústia e emoções condensadas, guardadas para si – como se extrapolar os limites de seu programa fosse o bastante para corrompê-lo. Assim, Wick deixaria seu posto de referência para voltar a ser um homem.

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Wick em NYC.

Voltemos à relação de Stahelski aos panos de fundo de sua trilogia. É notório que o diálogo com elas é o de reflexos e de constante diluição. Não surpreenderia caso Wick aportasse em um algum momento em uma sala feita de chroma-key. O que temos até então são os salões espelhados que servem para referenciar Orson Welles e colocar Wick e sua angústia em cheque enquanto os inimigos estão por trás de seu reflexo.

Deleuze diz, a respeito do cinema, que “somente quando o movimento se torna automático que a essência artística da imagem se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações no córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral” (1990, p.189). Traçar o paralelo do automatismo e a percepção do mundo de Wick com seus movimentos a partir destas vibrações – estímulos – que se confundem com disciplina ou com um cavalo com antolhos; o que se tira desta duplicidade cruel é que a beleza do mundo cyberpunk de Stahelski desemboca no pessimismo do que é contemporâneo.

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A casa dos espelhos

Wick, portanto, deixa de ser uma coluna ou puramente um alicerce narrativo em favor da narrativa que levará homens a deitar das mais variadas formas de violência; Wick é a breve metáfora do choque sequencial, da reação imediata e inconsciente. Recebe-se a tarefa-estímulo e ela será executada como um irrefletido ato em um ambiente que passou a barreira do leviano e flutua conscientemente na distopia.

A arte de contar histórias hoje se encontra entre o lamento e a constatação com o prazer acoplado à adaptação: Wick, um homem-resposta é o arquétipo do mundo preso ao gatilho, prestes a ser puxado. A trilogia de John Wick é, portanto, uma história ou a reconstituição voyeurística da queda da máquina como um revés imposto por seu pendurado fio composto por humanidade?

Conclusão nos capítulos a seguir.

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