Em uma das retrospectivas do Olhar de Cinema, os diálogos à época do exílio entre quem foi deslocado de sua pátria se desdobram nos filmes mais diversos de resistência, algo caro à reação às ditaduras latinoamericanas das décadas de 60 e 70. Como no mundo contemporâneo, globalizado, a ideia de algo próximo ao exílio é estabelecida? Um dos grandes truques do capitalismo é justamente o uso do consumo para atrair os então terceiromundistas ao chamado Primeiro Mundo, e essa imigração mais sutil e reconfigurada para uma contemporaneidade menos direta em suas opressões através de regimes políticos é uma dos temas trabalhados em Enquanto estamos aqui, filme de Clarissa Campolina e Luiz Pretti sobre a vida de ambos em trânsito fora do Brasil natal.
A chegada em Nova York, com a narração em libanês da protagonista feminina do filme, já traz toda uma estrutura à News from Home para construir o cinediário: imagens cotidianas, fragmentos de pessoas comuns à espera no metrô, nas ruas, em movimento constante. No entanto, as intenções narrativas de Campolina e Pretti são menos nos recortes diretos desse cotidiano, como nos filmes de Jem Cohen ou mesmo no filme antes citado de Chantal Akerman; o interesse maior é aproveitar a tapeçaria de imagens diárias para estruturar uma tentativa de ficção mais pesada, um filme de desencontros no qual as pessoas são à parte do quadro, no qual a encenação se mune de imagens típicas de filmes-ensaio.
Os encontros entre a libanesa Lamis e o brasileira Wilson, ela recém-chegada, ele há anos nos Estados Unidos ilegalmente, atravessam as memórias deles na cidade, e como lidar com a distância da família. É nesse fluxo narrado com a solenidade da voz de Grace Passô que percebemos o mundo contemporâneo que aproxima as migrações, a voz libanesa com a Estátua da Liberdade, as questões políticas brasileiras na mesa de bar que em quadro são meras ruas vazias.
Como o excelente A última vez que fui a Macau, que João Pedro Rodrigues fez na China a partir também de suas imagens de viagem, a ficção escorre pelas bordas do quadro, desafiando o ambiente ao redor a contar a historia dos personagens apresentados em off comentando os sentimentos deles, suas angústias e amores diante da cidade, e o que eles como estrangeiros podem comentar algo. Se no filme do português Rodrigues uma reflexão acerca da culpa colonialista estava presente diante da cidade chinesa colonizada pelo seu povo, aqui em Enquanto estamos aqui o palco novaiorquino é focado do ponto de vista dos acossados, das duas pessoas que se aproximaram num lugar que não os quer ali, apesar da capa de metrópole mundial da inclusão e dos sonhos.
Existe um balanço entre os afetos e as contradições que dá ao filme um coração no lugar, com seus personagens profundos apesar de quase nunca visíveis, porque a confiança no que o ambiente tem a dizer é suficiente para abraçar essa historia de conexões em lugares hostis, que apesar da falta de riscos consegue passar sua melancolia do trânsito irrefreável de quem largou sua cidade natal pra trás.
“Eu fumo cigarros e às vezes faço uns filmes”. Coutinho como sempre parte do seu lado depreciativo mas que acha lacunas de admiração sobre seus filmes numa conversa tipicamente Coutiniana entre reclamações e dúvidas. O filme parte da ideia que Coutinho sempre fez o mesmo filme de maneiras diversas e com arquivos muito protocolares. Está longe da descoberta sobre qualquer particularidade do saudoso mestre, mas vê-lo novamente é sempre prazeroso.
DIZ A ELA QUE ME VIU CHORAR (Maíra Buhler)
Buhler emula os filmes sobre instituições a partir de um suposto silêncio em que a presença da câmera não consegue suportar – e isto não levanta em nenhum momento qualquer questão sobre o comportamento de seus objetos de estudo. Não são corpos em performance e sim corpos disfuncionais em uma rotina de autodegradação, o que faz dessa observação um processo aterrorizante.
DOMÍNIOS (Natsuka Kusano)
Filme-processo que cria tensões em ciclos. A cada novo ciclo, uma nova informação para este processo de construção de mise en scène e de uma narrativa. No alto de seus 150 minutos o filme lentamente torna-se um palanque de saturação para o próprio processo.
A COR BRANCA (Afonso Nunes)
O filme é uma espécie de silogismo composto por distanciamentos incômodos que se justificam como dormência existencial-social num país guiado pela corrupção. Aos poucos Afonso Nunes transparece este raciocínio dialético inchado enquanto julga os limites do filme suficientes para uma crítica previsível.
ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR (Marcelo Gomes)
O filme flutua entre extremos como uma retórica do controle. Há tamanha confiança em seus personagens que Marcelo Gomes entrega seu filme a eles e isso é um gesto e tanto na mesma medida em que o filme se coloca com o passar do tempo numa encruzilhada que se basta no cotidiano de ações modestas e depoimentos elásticos. Este paradoxo caberia numa simples análise de perfeito encaixe, mas há a ciência que em toda ópera há um protagonista e é nele, o diretor, que se hospeda o verdadeiro maestro.
NONA – SE ME MOLHAM EU OS QUEIMO (Camila José Donoso)
Há entre as citações imagéticas a Brakhage um proto-thriller de encaixe de peças que tira a montagem como elemento técnico para entroniza-la como componente filosófico da construção de um estado de espirito da protagonista que reside entre a rebeldia e o pessimismo. Curiosamente ajustá-la à justificativa por um gênero cinematográfico emagrece o discurso de Camila José Donoso, que por alguns momentos toma o caminho da gratuidade e tem respostas mais imediatas.
CASA (Letícia Simões)
Um filme sobre consciência que caberia em diversos formatos – o mais pungente é um drama familiar – que Letícia Simões penetra com noções muito particulares de sua carreira como cineasta e artista, do documentário às artes plásticas. O que está em jogo é como toda frontalidade pode ecoar durante o filme e Casa é muito bem sucedido nos limites da intimidade para amplificar um sentimento geral.
A MULHER DA LUZ PRÓPRIA (Sinai Sganzerla)
Espécie de filme-antítese involuntário: elucubração em torno da obra e legado de Helena Ignez que não permite o retorno ao passado mesmo com toda chancela dos arquivos e diagnósticos feitos pela própria Ignez em voz off. Há um abismo entre o que é exibido e o que é dito, com franca frieza de Ignez a narrar sua própria vida, o que é um elemento muito curioso e incômodo.
ENTRE DUAS ÁGUAS (Isaki Lacuesta)
Amálgama de três personagens – dois em cena e um fantasma – e a total suspensão da tensão sugerida de um possível thriller. O desgaste emocional serve como um córrego muito bem estruturado por Isaki Lacuesta para transformar o filme numa espécie de internalização da moral e o contracampo como extensão de consequências do passado.
INDIANARA (Marcello Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel)
Ainda que todo formalismo genérico do filme se justifique pela urgência do tema, o que realmente há de valor aqui é a força de Indianara como protagonista e como o filme registra esta força além da justificativa de um filme dedicado a tal persona. Outro grande trunfo é como Barbosa e Beaumel fazem do externo um monstro incansável que ganha uma face no terço final do filme.
CHÃO (Camila Freitas)
Entre a possibilidade de registro da câmera observadora e a intromissão autoral de um documento didático, residir entre eles não é das melhores ideias. A possível teia política torna-se extensiva quando o filme deixa de ser um retrato das ações – sempre intrinsicamente políticas – do MST para declará-las como atos oficiais, apresentando seus inimigos e seus modus operandi e suas consequências.
O som do táxi é das primeiras coisas que ouvimos, um casal dentro dele, e o marido conversa com o motorista. A esposa perdeu o celular e por isso pede um desvio na rota, tira a conversa do lugar comum, e o carro dá meia volta. Essa situação se repetirá no filme, mas muito antes disso várias outras circularidades são mostradas na estrutura de Uma Noite de Inverno, um realismo fantástico contido, sobre as formas que tomam os relacionamentos amorosos com o tempo, com o contexto, com o lugar no qual eles se inserem.
Os ambientes aqui contam do isolamento desses personagens, dos silêncios, especialmente na figura da pousada na qual os personagens vagueiam. Ao longo dessa noite, visitam os lugares novamente com alguma constância, sempre com cenas pacientes, para entender que o drama daquelas pessoas pode ter ocorrido diversas vezes naqueles mesmos lugares, como se acessando a arquitetura dali, seja dos humanos ou da natureza, algumas respostas poderiam aparecer.
O uso das cores e luzes é importante na assimilação dessa dimensão quase fantástica dessa noite branca. Lembra o cineasta chinês Bi Gan no tratar da locação como um espaço dotado de memórias a ser conjuradas através do tempo, num jogo de cenas longas para reforçar o papel da natureza no quadro, a passagem das coisas comentando diretamente a encenação – mas enquanto Bi se concentra nas especificidades da região na qual filma, sua cidade natal, aqui o diretor Jang Woo-jin abraça ideais mais universais, que ao retirarem contexto do lugar conferem a ele um teor menos realista, mais alegórico, mas não menos dotado de memórias e momentos guardados.
Esse peso da neve e o que esconde é evidenciado no legado da relações com a mulher de branco e o soldado, quase uma versão mais jovem do casal protagonista. Através deles muito da juventude dos mais velhos é intuída e comentada, até em cenas mais didáticas como o diálogo das duas mulheres, perto do final. E assim se ensaia o que despertou a paixão entre aquelas duas pessoas, e a passagem do tempo que as levou à distância que vemos nesse presente. O confronto então é retratado numa cena mais pacata, com a luz vermelha em movimento por conta de um ventilador, um lembrete visual, mesmo que dos menos sutis, de que o tempo sempre está acontecendo e se modificando, e nas relações em crise é preciso pensar nele com carinho e cuidado para o dia amanhã nascer.
Pouco antes do título surgir na tela, alguém passa na frente da câmera e bota as mãos na lente com agressividade, e pede para não ser filmado. Logo depois, a cabeleireira Sabine pede a Rosine, diretora do filme, que entre com a câmera porque “filmar ai fora vai dar problema”. A câmera então entra, pra não sair mais. Em No Salão Jolie o dispositivo observacional é muito claro e é o que conduzirá o filme pelos seus 70 minutos, mas a disposição da diretora Rosine Mbakam em desafiar essa observação teoricamente passiva é estabelecida desde esse início. Os quadros escolhidos por Mbakam, diante dos apenas 8m2 do salão, são surpreendente variados na construção e organização daquele espaço, seja através dos rostos que filma, seja através dos espelhos que ali dilatam.
Nesse contexto dado, a interação entre as mulheres dali gira em torno de assuntos cotidianos ao longo das muitas e muitas horas de trabalho, que revelam pontualmente dados importantes como os detalhes do processo de imigração e a rede de auxílio mantida pelas mulheres dali para pessoas que querem também emigrar. Existe um panorama da relação entre Camarões e Bélgica tratado aqui com afinco, mas através da luta diária de Sabine e suas amigas e funcionárias, representada sutilmente, um dia-a-dia que inevitavelmente sugere lutas diversas. O contexto emocional das consequências desses entraves sociais se dá na atenção de Mbakam também para as pequenas histórias, como a da filha que perde a mãe e enfrenta a burocracia do país, questões elementares no mapear da geopolítica ali discutida.
O lidar com os brancos de Bruxelas que passam pelo salão encarando, com olhos curiosos ou inquisidores (às vezes os dois), estabelece boa parte da tensão racial que parece ficar sempre do lado de fora do salão, o microcosmo que acaba por exemplificar um bastião da sociedade segregada dos imigrantes negros da cidade. Ali os brancos agem como turistas, corroborando o preconceito com atitudes passivo-agressivas sempre à distância, com historias similares sendo apresentadas no cotidiano da porta pra fora – como a da mulher negra cheia de sacolas no metrô, encarada pelos brancos com medo irracional. São contos falados pelas mulheres do salão com naturalidade, certo deboche com os belgas até.
Os relatos passam por exemplos objetificação feminina (é um filme que relata estéticas das mais diversas, afinal), e ao falar da opressão das mulheres negras em outros países, chegam no caso das que procuram (e acham) homens brancos no Canadá, e são sexualizadas sob a promessa de ascensão social. Sabine então fala: “elas queriam achar homens brancos, elas acharam homens brancos”. A violência é a primeira impressão no confronto racial, mesmo – e talvez por causa disso – quando envolve gênero.
Contextualizando por esses tópicos até parece que No Salão Jolie trata com rigor sociológico acadêmico seus temas, mas é um filme de encenação marcada e simples, de cotidiano, de ações repetidas e bom humor, de quem sabe que o contexto será afirmado com o passar do tempo, através da voz de quem luta silenciosamente. Todo esse pano de fundo político se torna palpável de fato no medo da polícia de imigração bater ali, toda a construção da tensão final em volta da correria pontual das fugas discretas de Sabine e as outras ilegais. É nesse final que todo o lastro de combate político é visível, antes tão escondido sob a capa da civilidade europeia, e nos lembramos então que mesmo a rotina trivial comunica bastante sobre nossos tempos.
No circuito de festivais, se tornou constante o uso do cinema como via de resistência diante do momento político de total instabilidade pro audiovisual. Muito dessa resistência se dá de forma direta, sem meias palavras, geralmente pela via do documentário como forma de representar visualmente corpos não-hegemônicos. Por conta desse contexto é muito interessante ver um filme como Vaga Carne, que após ser exibido em Tiradentes agora passa em Curitiba. É um retrato diferenciado porque parte de uma ficção altamente abstrata para organizar um jogo de textura de rostos e luzes que ocultam o entorno pra criar alegorias, presenças intuídas.
A ferramenta de uma suposta voz que toma corpos por possessão é o foco do filme baseado na peça de Grace Passô, e esse conceito pouco corpóreo toma vias palpáveis à medida que a atriz passa a demonstrar os efeitos dessa voz diante do corpo, como uma tomada de consciência de identidade diante do estranho. A violência na qual a voz percebe se deparar ao demonstrar que não consegue lidar com a forma humana de ver seu corpo mantém a urgência durante toda a metragem, num crescendo de percepção das origens dessa violência para desvelar o problema social entranhado nessa dialética.
Quando o filme lida com rumos mais clássicos narrativos em estrutura, organiza seu clímax numa tentativa do expurgo pela fala não alcançado, frustração traduzida no corpo furioso de Passô, explorando a violência do sequestro discursivo através apenas do corpo reagindo à máquina ao redor – alegoria visual explorada justamente para sintetizar figuras cotidianas de opressão que a encenação do filme evita mostrar. Toda a mediação com os rostos espectadores, herança provavelmente da peça de teatro, tenta localizar esse confronto com o sistema social de opressão pela alteridade, como se intuísse que aqueles rostos são afetados diretamente pelo que as abstrações de Passô falam sobre.
É um filme de microcosmo, portanto, em suas escolhas espaciais limitadas ao palco, mas assume essa dimensão política com propriedade e raramente cai na armadilha do simbolismo óbvio. A encenação mínima de Grace Passô e Ricardo Alves Jr, focada especialmente em closes para transfigurar a peça que originou o filme em um estudo de expressões e conflitos de olhares, calcados nas nuances múltiplas do rosto de Passô, orquestra tudo para traduzir o desespero do vozerio ali sendo acostumado e depois abarrotado do corpo – e parece bastar para as articulações viscerais propostas pelo texto. Não há tempo a se perder em Vaga Carne, filme de verdades diretas e luz e sombra elementares, e seu recado ao acender das luzes é claro.
Na abertura do filme, a cineasta Maíra Buhler falou sobre o desmonte atual dos centros públicos de apoio psiquiátrico no país. Ontem, dia da sessão, foi aprovada uma lei que tira a liberdade de escolha de um dependente químico à internação. O indivíduo mesmo em estado vulnerável perde sua vontade diante da máquina bruta do exercício de poder. A potência de Diz a ela que me viu chorar reverbera desde o primeiro plano, e o retrato de drogas aqui é escasso porque a urgência de um retrato habitacional que busca os contornos do confronto dos abandonados pelo Estado ao mesmo tempo é também o investir de tempo na observação das trocas entre os moradores, o cotidiano formador que humaniza.
O observacional novamente é o formato do dispositivo escolhido, de uma não-interferência que virou regra no documentário contemporâneo brasileiro, e é através da forma que Buhler mapeia o condomínio que o filme tenta se distanciar da distância que marca esses filmes. Nesse apreço pelo geográfico do local, se diz muito sobre a ideia de civilidade que Buhler tenta atribuir àquelas pessoas, dando forma ao lugar para contextualizar com mais responsabilidade os atos que verá.
A força dos personagens transborda na câmera atenciosa aos detalhes, e seus instantes de vulnerabilidades falam sobre desencontros, amores quebrados, problemas de família e a tentativa de lidar com o passado; dilemas quase sempre retratados à margem da dependência química, sem descartar o problema que ela causa mas trazendo motivos mais emocionais, num escopo maior da simples condenação das drogas. Buhler sabe que a humanização reside no cotidiano, nos problemas triviais do dia-a-dia, e não por acaso é tão raro que apareçam personagens consumindo crack.
É nos momentos da câmera como intrusa que o filme enfrenta os dilemas éticos que são comuns ao subgênero do doc observacional, não apenas no princípio de criar uma narrativa de disparidades sociais (entre equipe do filme e personagens filmados, uma diferença irreconciliável na sua base) mas também na dialética com os moradores, nas indisposições que escapam na câmera. No plano que um dos personagens grita com a mulher que ama no telefone, sua explosão emocional revela uma vulnerabilidade desconfortável, às vezes ambígua, suscitando a dúvida se ele está mesmo ciente do alcance dessa filmagem. É uma cena forte e tem seu valor na estrutura de Buhler em estabelecer humanização nos dilemas amorosos de certos personagens, mas até que ponta não expõe demais aquela pessoa. Algo similar acontece quando a câmera no tripé ocupa um grande espaço no elevador. Uma mulher, que o filme não acompanha com frequência, olha para a câmera e a equipe e reclama de ser filmada ali; “vocês não tem educação não?”, ela pergunta. E o plano continua, continua, continua. Soa uma provocação de Buhler diante do próprio dispositivo, como se fosse importante expor que houve resistência diante da filmagem, mas que ao mesmo tempo não obedece o pedido da moradora para parar de gravar naquela hora.
A forma que Buhler constroi atmosfera de um condomínio caótico esquecido no meio de São Paulo, a cidade motor que aqui é uma miragem distante vista de cima e sentida e ouvida apenas pelos trens que passam, cria de forma sucinta a distância que existe entre a cidade vista como civilizada e o condomínio visto como excluído. A cidade funciona assim como reminiscência de passados que não acessamos dos moradores, o que potencializa esse abandono social. É o retrato fílmico como dever cívico de representação, e nisso a ambiguidade da ética do relato aqui visto é colocada novamente.
A força do retrato de algo denso e ambíguo assim dá a relevância e dignidade ao filme, mesmo quando se questiona o que essas imagens de cidadãos vulneráveis e expostos às minúcias pode provocar no público homogêneo de sempre que costuma frequentar os festivais. A distância entre o Hotel São Pedro em São Paulo e a sala 3 do Itaú aqui em Curitiba permanece enorme.
No momento que a luz do projetor liga, a protagonista de MS Slavic 7, vivida por Deragh Campbell segura a carta da avó com cuidado. A câmera então se foca no manuseio do papel e nos olhos de Campbell examinando a carta enquanto a luz do projetor apontada pra câmera ilumina seu rosto. Esse é o jogo formal assumido por MS Slavic 7, filme de Sofia Bohdanowicz sobre a troca de cartas de sua avó Zofia com o poeta polonês Josef Wittlin, desde o princípio. O estudo das cartas como forma de entender origens, de um passado remoto para alguém que não encontra lastro no caos da cidade e nem na beleza do campo que naquelas cartas são descritos.
Na festa familiar, o que se intui ser o motivo da viagem da protagonista, a burocracia da família aparece nos pequenos detalhes, nos olhares desapaixonados da mulher que dentro da biblioteca soa atenta. Essa falência na estrutura da biblioteca, na curiosa cena de confronto entre o funcionário e ela, encontra reflexo direto na briga com a tia quando ela diz que “todos querem ser curadores”, à medida que a pesquisa da personagem avança. A crítica à metodologia falha versus os procedimentos de observação empírica aparece como o arco mais próximo de amadurecimento da protagonista, como se fosse preciso tomar as rédeas da memória familiar para crescer como pessoa.
Enquanto imagina os encontros, interpreta as palavras pela força do relato, a protagonista testemunha um vislumbre no presente do que seria a passagem do tempo desses amantes distantes das cartas na cena do aniversário de casamento. Aquele ideal, o suposto amor entre eles (como a própria personagem aponta), parece ali transfigurado numa possibilidade do que seria se Zofia e Josef tivessem se encontrado e ficado juntos. A historia familiar portanto funciona apenas como uma subjetividade distante e que estimula interpretações racionais e principalmente emocionais, mas como cotidiano fruto do tempo presente é um tanto frustrante com suas cerimônias distantes e distanciadas do afeto.
O exame cuidadoso do objeto, do documento que revela o passado, do processo pessoal que é refletido diretamente nas cartas, surge como antídoto disso. A atenção ao detalhe, apenas à observação, sugere passados nunca acessados para a protagonista, e esse apego ao manuseio surge como o contato mais próximo dela com o palpável.
Nesse apuro visual baseado na síntese de cores e locações, a ambientação básica do quarto de hotel comenta diretamente a solidão de Josef na cidade, sim, mas também ilustra com economia a ambiguidade da relação da protagonista com seu nome, com suas raízes. Em determinado momento, ela diz para o tradutor das cartas que “só sabe inglês”, e pede uma tradução de estrutura gramática, não de interpretação diretamente. Sua relação distante com a família, cuja briga pelo espólio parece um sinal de subjetividade cultural roubada, envolve a encenação de festa protocolar e tão insípida – e apenas nas cartas, na subjetividade, encontra algum alento no nome que carrega. É uma busca por identidade se confundindo com obsessão de investigação, tudo sutil pela narrativa de cenas calmas e de ações dilatadas, de alguém que admira o esforço de dois fantasmas em transformar tudo em linguagem.
Talvez seja por não falar o idioma natal da família que já exista a distância espacial tão clara entre a protagonista e sua famílias nos relatos cotidianos de autodescoberta sem possibilidade de conclusões em MS Slavic 7.
A tensão sexual como mediadora – ou corrente – da observação do cotidiano de dois pescadores que Nuria Ibañez recorta de forma bastante interessante: estes homens podem estar sozinhos no mundo ou criaram um antro à parte onde a vida mecanizada do trabalho serve mais como uma performance, de corpos contra sua própria natureza.
DANIEL (Marine Atlan)
É admirável todo poder que Marine Atlan dá a corpos infantis à câmera. Nunca subestimados, sempre no limiar do fim da inocência e do abrupto horror da vida adulta, Daniel seria o equivalente ao filme infantil de Brisseau. É um filme que se distancia da morte mas nunca para um tipo de celebração da vida e sim para lamentar perdas precoces.
ESPERO TUA (RE)VOLTA de Eliza Capai
Aqui um óvni intrigante sobre as manifestações de 2013 e seus desdobramentos até a posse de Jair Bolsonaro. É um filme ideal para exibição na MTV ou compartilhamento em redes sociais pela sua vitalidade, dinamismo e por todo seu didatismo jovial, embora se saiba que a grande rede o guardará como um registro histórico e não como um filme – no caso, a Globo, produtora do filme. A impressão é que o filme está deslocado, mesmo com a urgência do assunto e que levanta a questão sobre o significado de “urgência” e se ela já se transformou em “estado”.
CINZAS E BRASAS (Manon Ott)
Entre duas formas, se destacam as ações ante à palavra para exibir como o trabalho suga e rege a vida das minorias na França. Certamente um filme que apesar de referenciar a Sylvain George, é muito menos histriônico e condensado e justamente por toda essa simplicidade de realização tende a criar veracidade às imagens colocadas em consideração.
Os filmes de pesquisa/arquivo hoje chegam ao ponto de se pensa-los como um protocolo. Beuvais faz um recorte de sua vida – nunca se sabe da veracidade do que é narrado – e a partir dela utiliza imagens de filmes como um analogia de sua segurança na própria pesquisa, como se a contingencia nunca fosse possível num mundo imerso em imagens e a pensar em Farocki, é possível sempre criar novos significados. O que não é bem o que Beauvais faz aqui nessa espécie de filme de encaixes.
PAHOKEE (Patrick Bresnan e Ivete Lucas)
Ecos da metodologia de Frederick Wiseman na observação de uma instituição que reflete um microcosmo que sempre está às escuras: uma comunidade na Flórida composta majoritariamente por negros e imigrantes. Bresnan e Lucas registram usam o último ano de alunos no colégio como instrumento de reflexo social de um costume tipicamente americano: o fim de uma era e a hora da mudança para um novo estado.
SETE ANOS EM MAIO de Affonso Uchôa
Três blocos performáticos para entoar a violência do estado que partem de uma simplicidade atroz. Do jogo do plano/contra-plano ao uso do corpo em função óbvia, surpreende que Uchôa use corpos e palavras para objetivos tão frontais e consequentemente inocentes.
TEL AVIV EM CHAMAS de Sameh Zoabi
Buscar um tipo de mensagem acessível pela luz que se joga na discussão sobre a opressão implícita. O filme de Sameh Zoabi parte de um bom argumento, mas o coloca em dimensões e campos tão maleáveis que seria possível tirar diversos filmes dali. Há essa noção tanto que o filme em certo momento brinca com a possibilidade de ser um “filme infinito”, justificando pela sua matéria-prima, uma novela sobre um amor improvável entre um judeu e uma palestina.
A NOITE AMARELA (Ramon Porto Mota)
O filme de horror dO Som e a Fúria. Exemplar de credo na exequibilidade da imagem e seus efeitos conforme a mesma se dissolve – literalmente – em outras formas, principalmente em glitches. Na mesma medida, a atmosfera de horror vai de um proto-slacker nos minutos iniciais a um suspense juvenil do cinemão americano no terço final. É notável a versatilidade de Ramon Porto Mota para domar tantos fios, ainda que a objetividade do todo se resuma a estes exercícios.
A PORTUGUESA (Rita Azevedo Gomes)
Um trabalho impressionante de distanciamento que torna a culpa masculina como uma miragem para toda eternidade; filme muito coeso para transferir toda historicidade embutida em seu tema como reflexo e comentário assertivo sobre a masculinidade através de uma personagem de contornos complexos sempre justapostos ao panorama histórico.
SEGUIR FILMANDO (Saeed Al Batal, Ghiath Ayoub)
Começar o filme com análise detalhada de um plano de Resident Evil de Paul W.S Anderson e com um corte parar na guerra da Síria elimina um longo caminho de argumentações e discussões sobre guerra e espetáculo – principalmente como suas emulações deixam de ser assertivas. Ainda que o norte seja de nunca desligar a câmera – que no acaso arrematam sequências brutais que inevitavelmente se justificam dentro de uma “normalidade” difícil de digerir. Batal e Ayoub gastam tempo com olhares além dos limites da zona de guerra que tiram a ideia de que todo filme dado à câmera é experimental e sobre seu alcance.
Um fiapo narrativo que parte da desconfiança geral – dos personagens ao espaço filmado – para compor uma sobreposição de gêneros cinematográficos muito interessante, guiada principalmente por um thriller fantasma composto de corpos e luzes. Talvez o mais próximo que o cinema independente chegou de um filme de Michael Mann.
A nível quiçá muito íntimo, é com o matrimônio entre as leis da economia e os fenômenos biológicos que Claire Denis cada vez mais sutilmente parece se preocupar. Número e corpos; distribuições dos usos e circularidade “tragicossexual” dos genes. Colônias, exército, famílias, máfias, casais, imigrantes – o todo e o diferente se entrechocam em sua obra nos deslizes microscópicos entre os sujeitos. Olhar o sangue de perto, o transe da bruxa pelo transe do olho partilhado, estar próximo o suficiente do homem diante do Nada, até que seu rosto seja único e limítrofe demais para não ser todos. Tracemos, pois, uma rápida e eficaz analogia: se se diz de Solaris (Solyaris, 1971), o símbolo úmido e magnânimo de Tarkovsky, que o planeta é um espelho da alma do homem, poder-se-á dizer de High Life (idem, 2018) que a suspensão humana diante dos astros, neste último Denis, é nosso esperma. E muito como a semente, para as plantas, é infinitamente mais que um minúsculo projétil de vida – é a grafia inteligente, pré-inscrustada, de um movimento de diferenciação para o sol e para a terra, a codificação de um ser novo explicitamente feito não só da planta para ela, mas do todo-mundo que ela habita, que ela é –, não tardará para que nas câmaras monocromáticas de dormência e assassinato o espermatozoide seja também esgarçado, seja sujeito e evidência dessa borda que é para nós uma espécie de abismo.
Muito como em J. L. Borges, e certamente para além da eficácia, digamos, dos quesitos dinâmicos do ritmo, há algo na síntese das elipses da diretora que tem a capacidade de estabelecer um plano de enfrentamento moral, ético, ser-entre-ser inerente, uma espécie de lençol freático sob o efeito do qual seus personagens embatem com deuses encarnados nos elementos que melhor os conjugam entre si. A obsessão e o sangue, a invasão de propriedades e raça, a hierarquia e o sexo aqui se transmutam num lance melancólico e desesperado entre o tabu e a razão de sobrevivência. Isto – o estouro de dados pelo truque da elipse – porque lhe basta um gravador e uma mulher inquirindo um homem apreensivo, com o risco de vida amalgamado nos ombros e olhos, para que a informação trocada tenha não só o valor de um ultimato político, como também o legado de certa forma definitivo, crítico, para a Terra da qual aqueles indivíduos à deriva no espaço se destacaram. São criminosos encapsulados numa missão sem cauda, expurgados do planeta sob falso propósito, e não será preciso dizer mais nada, porque o misterioso oco do espaço sideral se torna ainda mais vazio: é um Nada. É pior que a falta de todas as coisas porque não há volta nem chegada.
A ferramenta de conserto Monte (Robert Pattinson), que nos primeiros minutos escorregara, por um quesito de ângulo, num mergulho espaço abaixo, por esse segundo fator de uma penalização ao Eterno repentinamente refaz o quadro e todos aqueles ainda a vir: não há norte ou sul para a vida à deriva, o corpo é uma estranha e ilusória interrupção no tempo, um contínuo sem nada, perde as funções de sentido, vira uma ferida do futuro; a “vida alta” (vida no alto? vida suspensa? vida flutuante, adormecida?) é um miserável culto àquela que a bruxa vem a coordenar como aposta única, aposta ao Único. Xamã do esperma, chama-lhe aquele a quem todos se referem como ‘O Monge’, o assassino refeito por uma ordem interna. Com o resto de vida devotada a tornar a nave uma ala hospitalar-higiênica de produção de esperma e inseminação, de tentativas cujo esforço de ultrapassagem só reforça a tarefa Sísifica, que o sexo maquínico de Binoche resulte num transe pagão espiralado como Robert Eggers jamais sonharia é um estimulante e um fato inconteste de que só o contato aproximativo, progressivamente seccional, intimizado, disposto ao “sujo”, pode almejar a um excedente que permaneça “para os que ficam”, para todo nosso regime de vida que visa a, que se projeta para sustentar um porvir. Ou seja: há, no filme, (nos filmes) uma preocupação da ordem do transmissível que só pode ser equiparada ao projeto de um filho. Mostrar, implorar que se veja, que alguém possa ver assim e jamais certas coisas. Magia e tabu.
Arte; reprodução e prole; ciência; aliás, ganhe o nome que melhor convir, toda aposta até então arriscada pelo homem para sobrevivência de si mesmo é uma resultante de uma ininterrupta mistura. O cinema o conhece bem, o jogo de somas e lances que fabricam um corpo imaterial, e em High Life a montagem de Denis não é menos que um desafio a isto que ultrapassa, um percurso de convencimento entre o sabido e o que já não se sabe mais. “Você está sentindo?”, “Desta vez eu sei”, “Nesta eu acredito”, diz a filha sobre a tentativa ainda em ponderação de arriscar a entrada num buraco, numa passagem do espaço. É a filha que a médica diz ser perfeita e que a trama esfíngica faz literalmente perfeita: é a restante; provavelmente, até, a última humana, uma messias torta: a urgência com que nos atravessa o diálogo no trem confirma o que o testemunho só faria supor, que algum inédito acontecimento terrestre – sim, estamos diante de um curioso sci-fi – faz daqueles exilados e do retardamento da passagem do tempo fora da Terra uma questão derradeira à vida do homem. Logo na cápsula de expatriados por desvio de conduta.
A concordância do pai é, ali naquele tempo saltado, o atender afetuoso de um pedido sonhado, expansiva fé da criança escolhida, já privada de tudo e, portanto, plena de todos os possíveis? É decisão do homem na projeção (palpite, escolha) mais razoável, pautada no racionamento de si enquanto espécie? À independência excruciante, sensual, da resposta, que é nunca se dizer porque não existe, o desejo e a subtração que lhe persiste como sombra percorrem a clausura espacial em todas as suas técnicas de procriação e adestramento, em toda a responsividade epitelial dos papéis e cruzamentos, até que haja mais um humor, mais uma suave colocação em questão do que uma imagem ensimesmada (porque assim já foi acusada Denis), e é por este humor que a inquietação que vinha tamborilando sobre a mistura de uma observadora tão erótica com um gênero tão “pensante” ganha um gosto violento de excedente e surpresa.
Nos soluços de uma habitação fadada à autofagia do laboratório de existentes, aquilo que Susan Sontag chamou de “imaginação do desastre” enquanto lógica da ficção científica, aqui, replica à nós a catástrofe ao fazê-la humana, concernente a todos, decerto, mas também entre pai e filha. O contorno de um rosto olímpico e frágil, embalsamado e nunca tão vivo em sua linha de vida de faltas, um rosto assim não se via desde que Kubrick colocou máquina e super-homem um defronte o outro, ambos trocando de lugar. O efeito do encontro entre dedos adultos com uma irrisória mão de recém-nascido, aquela imagem já pós-comercial, quem poderia fazer re-trovoar a delicada aleatoriedade que é um nascimento, uma vida, senão aquela que do cinema se fez enteada para tratar, através das peles se imantando entre si, do único tempo que honestamente nos une, o futuro, essa motricidade de linhas debaixo da vista indo a algum lugar até onde reste um. Ou nasça uma – e a natureza, apática ou esperançosa?, depende, mais uma vez, de como se vê a chaga que somos.
Há em Vidas Duplas, longe da sugestão do título nacional, a dicotomia que envolve a tradução da famosa sensação de estranhamento Freudiana, que também a coloca como uma sensação de desrealização e alienação. O estranhamento, a princípio, parte de como Olivier Assayas escapa de um fluxo de filmes incisivos para uma espécie de ironia sem reconciliação com o espectador. Vidas Duplas, numa associação primária – imagética e narrativa – é um filme dado aos eixos do cinema comercial francês, de cotidiano, traições e conflitos agridoces, ideal para que o escapismo ganhe algumas dobras para que seja considerado como um “ponto fora da curva” deste nicho. Cenas-chave para isso são as que Assayas reúne seus personagens num espaço teatral, opta por filmá-los geralmente de cima, como a visão de Deus e pouco faz além de plano e contra-plano. É o ensaio incisivo e a prática frouxa. Nestes espaços, geralmente cobertos de copos com bebidas ou pela natureza do litoral francês, costumeiramente, filmes desta estirpe oferecem entrelaçamentos com o conflito e o golpe de Assayas aí reside.
O primeiro estranhamento geral, a pensar na trajetória do autor, é como Assayas provém um filme mecânico, onde sua posição é adormecida e que a espera geral é que exista um ponto de equilibro entre a psique e o modus operandi. Pois se vemos um filme “analógico”, o conflito aqui é literalmente digital – costurado por dispositivos eletrônicos e por boa parte do filme vagantes e invisíveis. Há, obviamente para o questionamento ético destas práticas modernas, mas o que é interessante nas opções de Assayas é como o comportamento digital é diluído nestas presenças, como estes corpos são gradualmente dominados por uma obrigatoriedade comportamental imposta por estes dispositivos e como a vida tem uma nova interpretação. Esta é uma abordagem relativamente nova para o cinema, ainda acostumado a associar aparelhos eletrônicos com o futuro e Assayas o coloca no presente, como uma peça dominadora, como uma extensão da belíssima cena de perseguição construída por SMS em Personal Shopper.
Parte daí a necessidade de um conciliador que Assayas não oferecerá. Vidas Duplas é um filme-diagnóstico e pouco faz além de coloca-lo na montanha russa do cotidiano. Reside nas conversas, nas oscilações de humor, nas inseguranças e principalmente na metamorfose ética dos personagens sem que sejam necessários suportes para estas mudanças; o mudar do dia é o suficiente para que estes personagens tenham novos avatares, novas formas de pensar e agir.
O grande estranhamento, portanto, não é do que o filme tem a oferecer e sim do que se nega a compreender; é um tipo de conclusão em que o desprezo serve de um reflexo imediato, a pensar que o homem ainda está a dominar a máquina, mesmo que ele esteja num móvel longe e que estes personagens consigam ler e conversar por alguns momentos sem a interferência dos celulares. Os rastros deixados por eles são lineares, de uma ponta a outra do filme e é comum que um filme sem pontos altos e baixos de conflitos criem tanta resistência e o que Assayas faz é dar o primeiro passo.
Madame Leblanc (Tilda Swinton) explica para Susie (Dakota Johnson): “Você confunde fraqueza física com preferência artística”. Em uma premissa cínica como a de um remake de Suspiria (1977), seria fácil demais misturar essas duas coisas, ou talvez tentar fazer com que uma justificasse a outra. A verdade é que Guadagino, por mais que não se coloque como um autor-maestro, por mais que seja quase invisível enquanto indivíduo artístico, compreende que não existe Argento para os anos 10. Compreende que a Jessica Harper enfrentando um bando de holofotes avermelhados, cenários fantasiosos e cantigas infernais que surgem das profundezas do inferno em pouco mais de 90 minutos não é algo possível de ser refilmado. Se aquele cinema é grandioso e eterno por pertencer a certos modos de produção e certas limitações artesanais que explodem como recursos inventivos, resta a Guadagino, em 2018, a seguinte preferência artística: Tratar cada corte como uma fratura, repensar toda uma ideia vinda dos porões italianos setentistas como ferramentas para os próprios interesses contemporâneos. Uma decisão, no mínimo, louvável.
Tudo começa em potências descentralizadas. A companhia de dança dominada por bruxas existe muito mais como catalizadora de um jogo ambíguo de dominações do que como força central do poder tenebroso. Susie Bannon ingressa nesse espaço como uma dançarina de suspeita inocência, cercada por uma Berlim efervescentemente caótica, de trocas de olhares tensos com Madame Leblanc e de diversas tramas políticas de espionagem e terrorismo que nunca parece compreender. É nisso que Suspiria (2018) estabelece sua fantasia, são tantas forças atuantes em cenários tão próximos que todo o enigma é simplesmente sobre quem está por cima dessa busca por domínio. Forças guerrilheiras que atuam contra soberanias diabólicas estão de alguma forma interligadas a performances íntimas e ritualísticas de feiticeiras seculares, um psicólogo em sua jornada detetivesca pelo oculto parece ser cada vez mais engolida por forças do oculto muito além da psicanálise, amores antigos desaparecem tanto por uma memória que custa em tentar recordá-los quanto por fronteiras de um pós-guerra impiedoso… Suspiria é realmente um filme ocupado. Mas o processo de overdose de contextos, pistas, olhares por portas entreabertas e personagens que nunca parecem sair de tela é justamente parte da construção para a busca da resposta inicial: Quem tem o poder de dominar todos esses outros poderes?
Susie Bannon vai aprendendo a cada dança que o primeiro passo para a dominação total é a dominação de si mesma. Parece brega colocar a dança como símbolo de um processo de domínio do próprio indivíduo, e provavelmente é, mas Suspiria usa desse princípio para elevar Susie por sua jornada de sacrifício pelo combate aos sistemas dominantes. A principal lateralidade Argentiana que Guadagino retoma como força motriz de um filme sobre resistências: a emancipação. O matricídio como tomada de poder da mais forte em uma utopia matriarcal, um universo tão envolto em conflitos e embates externos que acaba por focar nos desligamentos e golpes internos dos grupos de resistência. Lá pela metade entendemos que aquele grupo de bruxas resistiu ao nazifascismo na união iônica de poder, não em um embate direto como organizações armadas, mas pela simples sobrevivência. O terrorismo matriarcal parece simplesmente ser sobre sua própria existência, esse conjunto de poder manter-se vivo já é o bastante para ser um centro de destruição do fascismo.
As trocas com a Madame Leblanc se tornam o mais essencial pois fortalecem Susie contra qualquer outro poder, inclusive esses poderes que atuam internamente (“contra qualquer ação contrarrevolucionária” se torna “morte a qualquer outra mãe”). Como o comando do grupo, da bruxa secular Helena Markos, já é ultrapassado para novas urgências dos novos tempos. Que respeitem a tradição, mas que saibam que parte dessa tradição é justamente a subversão. E essa acaba sendo a jornada central de Susie: perceber que cabe a ela poder manter aquele universo vivo, que os comandos anteriores daquele grupo de bruxas estão perdidos em ideologismos (como uma bruxa explica, um grupo polarizado entre as “Markos” e as “Blanc”). A única resistência duradoura envolve a quebra de qualquer partidarismo autocentrado, envolve a celebração de como essa força de resistência foi construída e sua manutenção através de martírios. Toda a sequência final antes do epílogo é entorno disso, de Susie percebendo sua importância e, literalmente, explodindo a contrarrevolução. Finalmente sabemos quem era o poder dominante construído de forma tão ambígua.
Suspiria parte de uma hiperestilização que tem muito mais a ver com tendências de cineastas como Nicholas Roeg do que com Argento. Mais claramente, Inferno de Sangue em Veneza, de 73 (o tempo deslocado, o terror dos becos estreitos, a ameaça caquética misteriosa) mas também o esquecidíssimo Bad Timing, de 80 (os relacionamentos destroçados pelos contextos externos, os olhares trocados por instantes, cidades filmadas de um jeito que sempre parecem querer fazer com que você se perca). As imagens são constantemente recortadas de forma que o efeito tenebroso vem muito mais das impressões deixadas por suas transições do que pela entrega individual de cada uma dessas imagens. É um processo quase de apunhalada, do terror que brutaliza a rapidez dos movimentos e se alia aos tais corpos em iminência de um perigo misterioso. Corpos em constante movimento, não só pela dança, pouco mais óbvia, mas também pelo desespero desses espaços que parecem contrair-se cada vez mais até que revelem todos os seus segredos (como a personagem da Mia Goth descobrindo aonde estava a personagem da Chloe Moretz, retraída e putrefata entre cantos de um mundo subterrâneo). Surpreendentemente é um filme que renega uma estética pomposa ou até qualquer estética, não deixa com que imagens mais visualmente expressivas durem tempo o bastante para que tornem-se apreciáveis. Afinal, está trilhando um caminho contra essas possíveis aceitações, ele busca um ideal paranoico de assimilação imagética onde o objetivo é que toda sequência se complemente do jeito mais deslocado possível.
Parece até mais certeiro comparar o filme do Guadagino com Inferno (1980) do que com o Suspiria original, um outro filme que constantemente cria um terror de planos-detalhe, de enigmas de casa mal assombrada e de investigações mal resolvidas pela falta de um antagonismo claro. Em uma obra centrada em subtextos terroristas e conflitos de guerrilha, não poderia ser mais claro como Guadagino se interessa bem mais sobre essa energia caótica de horrores paralelos.
A conclusão do novo Suspiria é de um trabalho muito mais emergente do que o projeto poderia parecer. Mesmo dentre o cinismo de qualquer remake, é inegável que todo um ideal original é produzido e de que ele se permite toda a loucura e toda a gritaria de suas temáticas. É esquizofrênico, quase convulsivo, mas nunca desfocado do que realmente importa para seu próprio microcosmo de bruxarias, danças, golpes e paranoias. Reimagina todo um ideal de poderes utópicos e como fazem falta em um momento onde resistências parecem tão dóceis e tão impotentes. É contra tudo que não suje as mãos, que não se frature para atingir causas muito maiores. Sobra apenas um suspiro entre um corte e outro.
“Nós nos achamos no direito de rodar, de vez em quando não filmes de alto custo,
e sim filmes que produzem filmes“
Dziga Vertov
Seguindo o conceito de senso comum antropomórfico da básica literatura infantil que em sua função elementar carrega a moral como norte, fica a lição do autor-animal: faça você mesmo. Para compreender melhor a ideia do autor-animal, é preciso voltar algumas páginas de sua história, ou melhor, anos.
O jovem realizador britânico Alex Cox que fizera até então o curta-metragem Edge City (Sleep is for Sissies) (1980) como trabalho de conclusão de curso na Univeristy of California em Los Angeles estava prestes a “ser” um diretor, com estrutura, planejamento e ideia de projeção. Repo Man tinha um acordo com a Universal de produção e distribuição. Após o processo caótico de filmagem, vale a elipse para a insatisfação número um de Alex Cox sobre o descaso de produção e distribuição do filme, que passou cerca de 130 semanas em cartaz num pequeno cinema no oeste dos EUA e rendeu louros para a produtora/distribuidora. O mesmo descaso se repetiu no decorrer do contrato para três filmes que fora concluído com Sid & Nancy (1986) e Walker (1987).
Neste momento, o lado animal toma conta do autor. Já dotado de insatisfação o mercado – incluem-se críticos, festivais, produtores e associados -, por notar o desinteresse geral pelos filmes no Festival de Cannes à época da première de Sid & Nancy, quando o secretário de cultura francês ganhou mais aplausos que o próprio filme em sua estreia, Cox mudou sobre a indústria que se espelharia nos resultados lúdicos e espirituosos na trilogia do ridículo que veremos mais pra frente.
Com o tempo, Alex Cox tornou-se persona non grata em Hollywood, principalmente por usar a gordura da dinheirama prevista para Walker para fazer um spaghetti western chamado Straight to Hell (1987), enquanto a Universal resolvia burocracias políticas para que as filmagens de Walker prosseguissem.
Walker narra a história de William Walker, um mercenário que se autoproclamou presidente da Nicarágua em 1856 com intuito de dominar o país pela ditadura. Durante as filmagens, Alex Cox se envolveu com as questões da Frente Sandinista de Libertação nacional que pôs fim à ditadura estabelecida em 1936. Outro imbróglio foi o envolvimento de Alex Cox com questões éticas e políticas da Nicarágua durante a filmagem, no qual a produtora não concordava e pedia um ponto de vista mais condizente com o mercado americano. Não demorou para que o autor-animal fosse banido de quase todos os grandes festivais por expor os interesses maiores que os próprios organizadores destes eventos.
Imobilizado pelos grandes canais de divulgação, Alex Cox se encontrou nas produções independentes, com investidores mexicanos, japoneses, um fã holandês e, claro, fazendo o trabalho sujo: escreveu roteiros encomendados, incluindo o de Medo e Delírio em Las Vegas (1998), dirigiu séries e filmes para TV, como O Vencedor (1996), com o intuito de produzir e finalizar seus projetos. Desta longa temporada, saíram filmes notáveis como El Patrullero (1991), Death and the Compass (1992) e Three Businessman (1998). Vale citar o trabalho de apresentador e curador da série Moviedrome da BBC, onde introduziu filmes de Nicholas Ray, Sergio Leone, David Cronenberg, John Carpenter, Edgard Ulmer, entre tantos outros nas noites de domingo em TV aberta.
A trilogia do ridículo
A trilogia é indireta: seus meios são mais importantes que a própria narrativa. Tampouco se trata de uma aventura estética generalizada, mas um discurso da necessidade. A retórica da inspiração cria a fábula da consciência: não da moral, mas da noção de seus limites, de certo heroísmo que envolve a prática, de um retorno no raciocínio quase infantil do cinema em realizar sonhos. Este retorno também segue o pensamento que Joris Ivens já grifava em “Documentário: subjetividade e montagem”:
(…) Odiávamos aquilo que chamávamos de “grande indústria”. Não gostávamos de trabalhar para o grande capital; o que mais queríamos era fazer trabalhos independentes. Queríamos se capazes de fazer nossos filmes conscientemente, porque acreditávamos ser essa a mídia artística do educador. Nossos patrocinadores são muito especiais (…).
Composta pelos filmes Seachers 2.0 (2007), Repo Chick (2009) e Bill, The Galatic Hero (2014), a trilogia do ridículo parte do equilíbrio entre mente e matéria. São filmes que não desmoronam por necessidade de condições melhores e que levam a impossibilidade para o campo.
Searchers2.0 foi co-produzido por Roger Corman e foi filmado em mini-DV, pouco antes da grande proliferação dos aparelhos de telefone celular. Como o nome entrega, a grande referência de Searchers 2.0 é o faroeste, apesar de boa parte do filme se passar na estrada e ter abordagem saudosa e cômica, principalmente por criticar a Motion Pictures of American Association (MPAA), o militarismo, os processos de filmagem da grande indústria, etc. É o caso de reduzir seu escopo para a ambivalência de voz e imagem, que desemboca num confronto final típico dos faroestes que exime a necessidade de balas e se torna um belo quiz sobre filmes do gênero. Este é um dos polos de duplicidade da chamada trilogia do ridículo: tratar temas espinhosos sob a manta fantástica justificada pelos limites – financeiros, principalmente. Neste caso, o caso de amor de Alex Cox pelos faroestes torna-se um suporte ainda maior para a ideia do autorismo, uma vertente muito forte em sua carreira que vai de filmes como Straight to Hell e Tombstone Rashomon (2017) a livros como 10.000 Ways to Die (2011).
O duelo final com perguntas sobre faroeste em Seachers 2.0
O mesmo se repete em Repo Chick (2009), que assim como Searchers 2.0, estreou no Festival de Veneza – o único dos “grandes festivais” que ainda abriga os trabalhos de Alex Cox – e foi todo filmado em chroma key. Não se trata de uma sequência de Repo Man – esta sequência saiu em forma de HQ em 2008 –, mas uma nova operação em dois níveis, talvez a mais arriscada da trilogia. Pela possibilidade da variedade de materiais e universos que o chroma key oferece, toda artificialidade de Repo Chick é explícita, como se o CGI estivesse em primeiro plano sempre na ação em um filme de gênero. As palavras de Ivens valem a memória mais uma vez como o resumo geral entre a estética e sua real função:
“Uma abordagem estética pura leva a arte a um beco sem saída. Para mim, um filme é muito mais importante quando está conectado a um movimento social, quando tem a ver com a vida. Não demorou muito até sentimentos que nós, como artistas, tínhamos que tomar partido na vida social, na vida econômica de nosso país; que toparíamos com uma parede lisa caso permanecêssemos no lado abstrato do esteticismo”.
Repo Chick se aproxima muito da função que os filmes de Joe Dante carregam até hoje, em especial Pequenos Guerreiros (1998). O lado plástico segue em paralelo às pequenas revoluções que o filme entrega em micro e macrocosmos (o segundo nível), com a diferença que Cox não tem amarras com um nicho de público. Da autorreferência – o desafio de recriar a cena da santa ceia de Straight to Hell, por exemplo – à variedade de preceitos usados pelo diretor no filme e à noção de maleabilidade ao “filme-monumento” que Repo Chick teoricamente deveria ser. A julgar, um filme de efeitos deveria esvaziar seus personagens. Neste caso, o filme nasce vazio e ronda seus personagens de efeitos, num caminho tortuoso e quase oposto à cartilha para fortificar trama e personagens.
Das filmagens de Repo Chick: o chroma key abre janelas para um novo mundo.
Personagens que arrebatam a artificialidade em Repo Chick.
Estes dois níveis usados em Seachers 2.0 e Repo Chick concluem a trilogia com Bill, The Galactic Hero. O filme foi produzido entre 2013 e 2014, já nos tempos de redes sociais e aplicativos que facilitaram muito a produção e filmagem. A começar pela pré-produção, que possibilitou o envolvimento dos fãs na campanha de crowdfunding. A equipe foi composta por alunos da turma de cinema da Universidade do Colorado, onde Alex Cox leciona.
Baseado na HQ homônima de Harry Harrison, o filme carrega o humor tradicional da obra original, porém, ironicamente, expõe de vez a melancolia nostálgica em seus meios – toda trilogia é intercedida ao comentário sobre o fazer e ver filmes, do supracitado faroeste aos filmes policiais e ficções científicas, numa espécie de reconstrução do imaginário adolescente masculino. Bill, The Galatic Hero é o que enfatiza estes meios da estética B, mais controlada que os outros dois filmes, mas não menos funcional à mise en scène. Por mais que sua função seja de, novamente, gritar o fazer pela necessidade, o filme não apaga seu caráter de reconstituição.
A pensar que este compêndio fílmico passa pela mini-DV e pelo chroma key e principalmente pela opção de completar a artificialidade de métodos, Bill The Galatic Hero se entregar ao impossível – os efeitos especiais são trocados pela animação, que abrem e encerram o filme – é uma manobra irônica, uma espécie de “quebra de regra” de seu próprio criador.
A trilogia do ridículo, um nome de tom não menos sarcástico que os filmes, pautam, em sua anarquia, a possibilidade de criação da ambivalência da imagem: em tom pop e bom humor, Cox dá sua contribuição ao estudo do encontro real com a imagem que passa por Huberman e Farocki.
O mesmo deserto do faroeste é palco de um sci-fi B; o chroma key de uma aventura pulp serve como pano de fundo para um novo gênero. E o envolvimento requerido é o mesmo. O norte primitivo, da fábula, da passividade e compreensão de um mundo possível graças à posição de baixa guarda em relação ao filme – o que geralmente cria diversas críticas negativas aos filmes, em especial a Repo Chick -, possibilita uma nova aventura. Ler a ambivalência na trilogia é um processo de convencimento, o sentir virá pela recognição.
Astronautas no deserto – ou em novo planeta – em Bill, The Galactic Hero
A duplicidade do processo não é novidade para Alex Cox que torna a percepção elástica de unidade em sua filmografia na reimaginação, em personagens que vão e voltam, em métodos e principalmente na subversão de todos estes elementos. E é isso que faz a obra do autoproclamado “film anarchist” um processo muito agradável de se acompanhar. Faça você mesmo.
Se as narrativas dos contos de fadas expressam mitologias extraídas de uma tradição oral em que se canoniza a moral de uma época, de que modo é possível transfigurar tal legado por meio de um cinema que se inventa no presente? Ao usar como matéria-prima os contos de Charles Perrault para a realização dos longas-metragens Barba Azul (Barbe Bleu, 2009) e A Bela Adormecida (La Belle Endormie, 2010), Catherine Breillat não tem a pretensão de se manter fiel ao imaginário das fábulas originais. A busca da cineasta pelas fábulas orbita em torno da compreensão do que delas é possível extrair a favor de seu olhar cinematográfico para a descoberta da sexualidade da mulher e para a transformação de suas personagens pelo desejo – duas obsessões marcantes da própria filmografia da Breillat.
Tanto em Barba Azul quanto em A Bela Adormecida, a fábula é convocada menos pelo seu poder de crença, mas como artifício que escancara a perda da inocência. É interessante até mesmo pensar o gesto seco e direto de encenação da Breillat como contraponto ao gesto transbordante e ornamental de encenação que Jacques Demy propõe em Pele de Asno. Se Demy se entrega por completo à mística fabulosa de Perrault pelo que há de excessivo e encantatório, Breillat parece tomar a fábula pelo viés do desencanto. Seria a consciência bastante brutal de que, se o mundo já não é mais capaz de extasiar, a fábula precisa então ser desvelada como artifício narrativo.
É por isso que Barba Azul propõe de saída uma metanarrativa: duas pequenas irmãs se deleitam no porão da casa com a leitura do conto de Perrault, mas é a menor que escapa da literaridade das palavras e propõe pequenas subversões à leitura. A história do conto parte do destino de duas irmãs, que estão de luto pela morte do pai e padecem na miséria. A mais velha, Catherine, se casa com o personagem do título, um homem rico, que mora em um castelo luxuoso e que é conhecido na região como alguém cruel com mulheres – ele se casa com meninas sem dote e, depois de um ano, elas desaparecem. No filme de Breillat, Barba Azul é um gigante glutão e taciturno, que parece confiar na nova esposa ao deixar as chaves com ela, antes de suas partidas misteriosas. Ele avisa ser um monstro à Catherine, que retruca: “Tenho mais medo da maldade invisível”.
Mesmo com o corpo pequeno e frágil, Catherine não teme a presença imponente de Barba Azul. Muitas cenas enfatizam a escala de tamanho entre os corpos dos dois personagens. Ela exige um quarto pequeno só para ela. A coragem da menina é vista como orgulho pelo Barba Azul: “É preciso tomar cuidado para que o orgulho não se torne vaidade”. Barba Azul confia a ela uma chave de um quarto secreto, que ela jamais poderá abrir. Mas é a curiosidade que vai colocar em risco a vida de Catherine, tal como o mito de Eva. Ao abrir o quarto, ela encontra corpos de mulheres mortas e o chão empoçado de sangue. Da mesma forma que o conto, a menina consegue escapar da morte. Ou seja, a vontade de ver e a astúcia da personagem não são motivos para punição. Quem irá morrer não será a personagem do conto, mas aquela que escuta a história ser narrada pela irmã mais jovem, que é a mais astuciosa, curiosa e ativa na leitura. A leitora passiva e inocente será relegada a cair e morrer.
Breillat coloca em prática seu desejo como leitora ativa, insubordinada, subversiva por excelência com A Bela Adormecida, que não se restringe apenas ao conto de Perrault, mas pavimenta uma mistura narrativa de diversas mitologias, desde a referência à princesa russa Anastásia até a fábula A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen. Enquanto a bela adormecida do conto tradicional é condenada a dormir por 100 anos por uma bruxa malvada, o filme de Breillat leva a heroína a adormecer dos 6 aos 16 anos. Tal peripécia permite a personagem a desdobrar sua infância como uma viagem por diferentes mundos fantásticos e escapar da realidade, percebida com desgosto pela própria personagem – uma tomboy que detesta o “mundo das pequenas garotas”.
Relógios de tamanhos diferentes e verbetes do dicionário atraem a menina, que burla a temporalidade de sua experiência com saltos para múltiplas paisagens fabulosas. Uma gruta vigiada por um gigante com furúnculos, um pequeno vilarejo em que conhece Peter – o menino encantado pela rainha da neve –, um percurso de trem que a conduz a um reino de príncipes albinos anões, uma carroça saqueada por ciganos. Em cada uma das jornadas por espaços e tempos diversos, a menina descobre mais sobre seus próprios desejos em uma espécie de versão fabular do coming of age.
No momento que adentra mais na narrativa de A Rainha da Neve, o maravilhamento cede lugar à percepção cruel da vida, que só vale a pena ser experimentada com a lucidez do desencanto. “O que você chama de felicidade me impede de viver”, afirma Peter, que irá desaparecer e se tornará o fantasma amoroso da protagonista. Ao sucumbir à morte no mundo fantasioso, a menina acorda em seu castelo de outrora, mas no corpo de uma adolescente. Ela experimenta o prazer sexual com um jovem invasor de seu castelo e com uma jovem cigana que a salvou da morte.
Mas é necessário que a princesa fuja dos grilhões do castelo, onde o tempo pareceu se estagnar – personagens do passado agora são figuras estáticas. Ela pede para seu amante a oportunidade de conhecer a vida lá fora. O salto para o mundano fora do luxo do castelo é o contexto urbano da França no século XXI. O corte é seco, brusco, sem qualquer fusão. A menina está grávida e provavelmente o pai a abandonará. Não há suavidade na queda para o contemporâneo. A busca da menina pelo garoto ideal termina na ausência de qualquer desfecho romântico para a adolescente. É uma dor tão evidente quanto a frágil superfície rasgada da meia-calça da jovem em plano de detalhe e escolhida como última imagem do filme.
Superfícies que se rasgam. Percepções inocentes que se rompem. Corpos que sofrem. Narrativas que perdem o encanto. Leituras que se tornam subversivas. O que esperar da conclusão da trilogia, que promete finalizar com uma versão de A Bela e a Fera? Para uma leitora insubordinada como Breillat, a fábula torna-se um lugar fértil para a desconstrução da moral tradicional do faz de conta. O melhor de tudo é que a ruptura não exige o abandono do jogo da ficção.