Um homem é uma câmera

Por João Pedro Faro

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O cinema é colagem a partir do momento em que um frame junto do outro gera movimento. Disso, gera-se a montagem. Da montagem gera-se o filme. Seja de um processo analógico ou digital, o maquinário por trás dessas etapas é a possibilidade do cinema de existir. Como a história de qualquer arte é a história do artista estando cada vez mais integrado fisicamente e intelectualmente à sua arte, a máquina, inevitavelmente reconhecida, é o grande centro de criação da contemporaneidade. Dentro do cinema, a maior de todas as máquinas, a que é a invenção do próprio cinema, é a câmera filmadora. E a história dessa câmera também é a história do cinema, do fim de uma mitificação industrial para um produto caseiro e do produto caseiro para a sua banalização como acessório de máquinas multifuncionais (a reprotubilidade técnica de Walter Benjamin no cinema). É desse princípio o cineasta americano Jem Cohen inicia sua carreira de curtas-metragens no final da década de 80, em Nova York. Influenciado por trabalhos de Benjamin e pela sua própria vivência na cidade, Cohen termina em 96 um trabalho de cinco anos: Lost Book Found, uma obra-chave não apenas pelo experimentalismo, não apenas pela fusão entre a câmera e quem a opera, mas principalmente pela possibilidade da colagem.

Nova York já era o espaço de grandes autores em jornadas solitárias com a própria filmadora. Mekas já estava há anos construindo diários sobre as efervescências nova-iorquinas e Peter Hutton encerrava em 1990 sua trilogia que leva o nome da cidade. Mas antes de um diário ou um exercício atmosférico, Lost Book Found é o encontro do advento do cinema solitário com a consciência da desmistificação de seu meio. Misturando as memórias de Cohen enquanto era dono de um carrinho de vendas com suas impressões urbanas após achar um estranho livro de anotações, o filme corre em torno das pulsões assustadoras que o registro de uma cidade em movimento ininterrupto pode gerar. E tudo isso está nas leituras narradas do conteúdo no livro encontrado pelo personagem, em sua maioria uma série de códigos, listagens, endereços e ditados. Quando essas palavras aparentemente aleatórias se juntam às imagens de Cohen por Nova York, o resultado é uma paranoica tentativa de decodificação do caos de elementos que constroem a cidade.

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O grande segredo descoberto é que quanto mais se observa, menos se entende, mais se acumulam imagens por cima de imagens, barulhos por cima de barulhos e ideais desconexas por cima de outras. A profissão do protagonista, que é narrada como sendo “um trabalho invisível”, já sugere que o caminho do personagem é observar até não aguentar mais: um vendedor num carrinho que nunca anda, destinado a estacionar eternamente em uma esquina que não para de se mover. Mas nisso não está sozinho, começa a perceber os personagens e padrões que se repetem, as recorrências cotidianas dentro do caótico, narrativas inacabadas do dia a dia. Porém, a observação é diferente do registro, e é aí que a câmera surge. Não seria o bastante para um trabalho como Lost Book Found ter a câmera apenas como mediadora entre a realidade e o filme, portanto ela se torna sua própria realidade porque nunca deixa de acompanhar tanto o fluxo psíquico e poético desse alguém que acompanhamos quanto sua própria andança e visualização de todo aquele espaço (nem sempre a câmera está como o narrador, mas sempre está nos mesmos papéis diante do que filma pois é condenada a se tornar aquela realidade).

O narrador de Lost Book Found mistura-se tanto à filmadora quanto ao seu ambiente pelo tempo em que consegue observar a tudo dentro da lógica das anotações do livro que encontra. Quando você está no processo quase mecânico de seguir pistas absolutamente perdidas dentre avenidas, propagandas gigantescas, telas de televisão, muros de concreto e produtos industriais, a consequência é acabar se tornando uma fração desses códigos que parecem escondidos. Ir atrás de repostas em um universo que, não importa o quanto você filme, o quanto você registre ou escreva, não parece se alinhas de forma alguma, é um pedido para instalar esse caos dentro da sua própria cabeça. No caso de Lost Book Found, dentro da própria câmera.

Cohen registra o cinza e o colorido na mesma intensidade, ambos parecem mórbidos de sua própria forma. Desde seu primeiro curta, This is a History of New York (1987), filmado em preto e branco, a cidade já era vista como fonte de extremos conflitantes, como no plano final que coloca um sem teto e um foguete na mesma imagem (o país da liberdade vai ao espaço mas não vive no chão). Em Lost Book Found, parece que as cores mortas dos incontáveis prédios e as montanhas de produtos em vitrines são acumulações de um vazio transbordante. Para o narrador, presenças banais que tornam-se misteriosas a partir do pressuposto que escondem ideias além-da-imaginação. Sistemas, equilíbrios, leis naturais surgindo no que veio de fábricas. Uma tentativa fracassada de voltar à mistificação de produtos e velhas inovações do que já é ordinário no final do século? O capitalismo parece estar em sua grande crise existencial, em fluxos já recebidos por filmadoras portáteis. Não à toa, um dos personagens que passam pelo narrador é um sujeito que recolhe joias e moedas que caíram em bueiros.

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As conspirações e as investigações cotidianas, no esforço de tentar perceber tudo em seus entornos, parecem querer encontrar qualquer vida que seja dentre a perdição do urbano. Buscando a cidade como uma espécie de museu de peças com prazo de validade. O máximo que Cohen e a câmera encontram são rostos de nova-iorquinos que encaram a lente nos minutos finais de Lost Book Found. Não entende-se o que está por trás das anotações do livro encontrado, mas sua poesia mecanizada pode acabar esbarrando em operários da manutenção do espaço em que habita (os vendedores ambulantes, os varredores, os lixeiros) eles, ainda que sistematizados, são um restante de vida possível.

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A câmera já não acompanha mais o operador, eles são a mesma coisa, são inseparáveis, inconfundíveis. Sua presença não é mais disfarçada, ficcionalizada, ela é a máquina da ficção e é reconhecida durante todo o filme como tal. Por mais que as filmadoras de Vertov já entrassem pelo cérebro e saíssem pelo olho, elas não são mais elementos fantásticos ou revolucionários. Pelo contrário, são agentes passivos do universo que registram tanto quanto qualquer outro civil. Olham para tudo de baixo para cima, em Lost Book Found elas nunca parecem passar da linha do pescoço de ninguém. Parece que sua transfiguração em homem rebaixou toda a sua imposição mágica aos medos e confusões de quem vive abaixo de arranha-céus e viadutos. Inevitável: é abaixo de tudo isso que surgem os grandes registros, é por onde andam todos os olhos que interessam.

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