Grande Amor (Pierre Étaix, 1969)

Por Murilo Lopes

A comédia da vida pública e o drama da vida privada. Um dos maiores valores que um filme de comédia pode atingir é o de ser o retrato de um povo ou de uma época. É o de conseguir atribuir aos seus personagens não apenas profundidade e carisma, mas uma espécie de transcendência que faça com que o público se identifique ou, pelo menos, encontre paralelos com a sua realidade e cotidiano. Este primeiro filme colorido de Pierre Étaix se apresenta como um confronto de duas realidades às quais qualquer pessoa – desde o público que pôde contemplar esta obra à época de seu lançamento como o público que o assiste agora – pode reconhecer e se identificar. Uma comédia social e um drama íntimo.

Pierre (novamente interpretado pelo próprio Étaix) era um rapaz francês suburbano como outro qualquer. Envolto em seu próprio mundinho, tinha amores por três moças diferentes ao mesmo tempo. Elas não se importavam. Ele não se importava. Era um mundo livre, de sabores e nuances diversas. Até que ele conhece uma jovem de boa família chamada Florence. Em algum tempo, a relação se torna séria e Pierre ganha o posto de “futuro-genro” de um pequeno industrial. O filme tem início justamente com o casamento de Pierre e Florence. O momento no qual a juventude descompromissada acaba… e começa a vida vigiada de adulto casado. Durante quinze anos, Florence e Pierre vivem tranquilos uma vida de rotina e trabalho: agora trabalhando para o sogro, Pierre ajuda a comandar a pequena fábrica lidando com fornecedores chorões e exigências contábeis. Até surgir uma jovem e bela secretária chamada Agnès (Nicole Calfan, lindíssima). Pierre então se vê desejando novamente a vida de jovem, longe dos olhos dos sogros e, claro, longe da esposa, que agora o entedia. Porém, quando Florence anuncia que irá passar duas semanas no litoral, Pierre vê a oportunidade perfeita para se declarar a Agnès e reaver algum controle sobre sua vida.

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Muito longe de ser uma mera história de um homem na meia idade sofrendo da “idade do lobo”, Grande Amor consegue extrair risos daqueles que iniciam como uma gargalhada e terminam esmaecendo, como uma constatação de que, apesar de cômicas, as situações passadas por Pierre são humanas e agridoces, como as de qualquer um. Talvez a maior delas seja justamente o fato de que a vida de Pierre, por mais que o próprio personagem não se dê conta, é ditada muito mais pelas pessoas que vivem ao seu redor do que por ele próprio. As vizinhas fofoqueiras, a sogra que insiste em telefonar para sua filha toda noite e até o amigo bem intencionado são todos agentes de um mesmo plano: todos estão dizendo como Pierre deve agir. Todos estão movendo peças que afetam sua vida. No final das contas, para Étaix, a vida em sociedade é um jogo que se joga em conjunto. Todos influenciam em tudo e exercem essa prerrogativa o quanto podem, inconscientes dos reflexos que suas jogadas podem ter no futuro. A insatisfação de Pierre advém, em grande parte, do fato dele precisar exercer um papel para o qual ele não tinha ensaiado. As jogadas foram sendo realizadas, decisões tomadas e regras estabelecidas enquanto ele sequer tinha ideia do que estava acontecendo. Conquistar Agnès é a forma de bater o pé no chão e reclamar para si um mínimo de controle sobre o que lhe acontece.

Como recheio a esse contexto, Étaix pincela com maestria e criatividade cenas hilárias, como a do amigo de Pierre imaginando como ele faria para anunciar à Florence o fato de estar apaixonado por Agnès: a solução de Étaix para a divisão dos bens do casal é imensamente divertida, assim como as gags envolvendo um barman que, curioso pelas confusões que acontecem no café, sempre acaba por retirar a bebida de um pobre homem que ainda não a tinha terminado. A montagem de som, ainda, é sensacional ao brincar com expectativas, como uma cena acompanhada por um solo de violino que se revela estar sendo tocado, na verdade, por um personagem em outra sala, ou com pequenos exageros que ajudam a reforçar as noções que Pierre tem de seu entorno (no caso, o som de choro de criança que irrompe pelo escritório toda vez que Pierre atende a um certo fornecedor ao telefone). Porém, destacam-se, mesmo, as brilhantes cenas de Pierre e Agnès dando um passeio de cama (não pergunte, só assista) pelo campo em meio a tantas outras camas enguiçando ou colidindo pelo caminho e aquela na qual Pierre envelhece gradualmente enquanto conversa com sua jovem secretária.

Belíssimo em seus esforços e conduzido de maneira sempre segura e sempre objetiva, Grande Amor é uma obra de sensações mistas. Um olhar por vezes brincalhão, por outras preocupado sobre uma época e uma sociedade em transformação. Étaix é o palhaço triste e comovido que lança esse olhar e identifica tanto pelo que se sentir melancólico… mas, ainda assim, tanto mais pelo que rir e por perceber que esses nossos dramas, no final das contas, andam de mãos bem dadas com o cômico.

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Ruptura (Pierre Étaix, 1961)

Por Murilo Lopes

Um jovem parisiense caminha pelas ruas, driblando os demais pedestres e com a cabeça nas nuvens. Faz uma pequena parada em seu caminho e recebe uma carta de sua amada. Ansioso por lê-la, esquece até mesmo de continuar driblando os transeuntes e acaba partindo ao meio a baguete de um deles. Acidente de descuido, coisa sem importância em meio a um dia tão maravilhoso. Chega em casa, senta-se à escrivaninha e abre a carta perfumada… apenas para ler, incrédulo, que sua namorada está terminando com ele. Junto com páginas da carta, um retrato seu rasgado ao meio. O pobre rapaz, até mesmo, se dá ao esforço de juntar os pedaços como para conferir se é a sua imagem mesmo que está ali impressa. O dia maravilhoso se desmancha, a felicidade desmotivada vai por água abaixo e ele decide escrever uma réplica imediata à megera que partiu seu coração.

Rupture, primeiro curta-metragem de Pierre Étaix (em colaboração com Jean-Claude Carrière), é, além de um exercício de estilo competente, um revival do cinema mudo e da comédia baseada em humor físico, com pequenas – porém acertadíssimas – doses de um humor negro elegante e impiedoso. Ao longo dos onze minutos de duração, vemos o pobre personagem de Pierre descobrir que nada é tão ruim que não possa piorar. E que, quando as coisas estão rumando neste caminho… bem, o universo parece conspirar com mais força do que se fosse no caminho oposto. E o universo deste curta conspira freneticamente, a começar por seus sinais de que “um bom dia” pode ser um lobo na pele de cordeiro. A cena do porta-retrato que é derrubado por um beijo soprado pelo protagonista já figura em minha galeria de momentos mais maquiavélicos do cinema. O universo encerrado por aquele apartamento sabe exatamente o que espera pelo rapaz e tem preparada toda sorte de pequenos e grandes azares que podem acontecer em um dia como outro qualquer.

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Apesar da maior parte da projeção se concentrar em um espaço bastante pequeno, a câmera e a montagem e o talento de Étaix para suas gags funcionam em um conjunto impecável, a despeito de todas as possíveis limitações que os diretores tenham encontrado na época. Dessa maneira, eles atingem momentos realmente marcantes, como o melancólico close em um personagem emocionalmente devastado ou o movimentar debochado de um tinteiro sobre uma escrivaninha inclinada – em um jogo de cortes simples e eficaz. Longe de estarem em busca de uma mera emulação de Buster Keaton ou Charles Chaplin, Étaix e Carrière se propõem a usar uma estética bastante consolidada para dar um novo passo na comédia dentro de uma França efervescente de novas ideias e formatos para o cinema.

O ressurgimento das obras de Étaix é, certamente, algo a ser comemorado, não apenas pela possibilidade de, finalmente, podermos conferir a obra do diretor como um todo, mas pela chance de vermos estes primeiros passos que, embora pequenos, são tão marcantes e importantes para a consolidação das bases de todo um movimento.

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Detona Ralph (Rich Moore, 2012)

Por Murilo Lopes

Um dos fenômenos mais divertidos da era pós-banda larga (absolutamente em minha opinião, claro) tem sido a “legalização social” dos video-games. Explico: durante a década de 90 era muito legal jogar, claro, mas ainda era uma atividade um tanto quanto destinada aos pré-adolescentes sem grandes aptidões físicas para o futebol ou algum outro esporte qualquer. Se você jogava Super Mario World no final de semana com seus primos, tudo bem. Agora, se você passava o contraturno da escola apenas na frente do Super Nintendo… bem, alguma coisa não estava muito certa. Enfim… o ponto é que essa geração de “nerds” cresceu e, de alguma forma, se organizou na internet e descobriu que eram muito mais numerosos do que parecia inicialmente. A partir daí, cria-se o cenário no qual o mundo da diversão eletrônica se torna um negócio altamente rentável e em constante expansão E evolução. As pessoas abraçaram o video-game e hoje já dá para sair às ruas usando uma camiseta do Donkey Kong e falar, com lágrimas nos olhos, sobre a imensa nostalgia de tempos em que as coisas eram mais simples.

Quando soube do lançamento da animação Detona Ralph, de Rich Moore, o que eu esperava era, mais ou menos, isso que escrevi no primeiro parágrafo. Um “filme de video-game”, cheio de referências a clássicos e falas espertinhas que levariam hordas de marmanjos às salas de cinema para ficar apontando para a tela e encontrando menções a seus personagens preferidos. Um negócio meio parecido com filme de Pokémon, onde parece que o papel da pimpolhada é proferir, em voz alta, o nome de cada um dos monstrinhos a cada aparição deles na tela. No final das contas, eu não estava errado. Em suas quase duas horas, Detona Ralph desfila toneladas de referências aos mais variados games e estilos. Algumas inspiradíssimas, outras sutis, outras escancaradas. Neste sentido, o filme serve, sim, como fonte para o espectador colecionar as tais referências e mostrar que “manja tudo de video-game”. Mas ainda bem que o filme não é só isso.

A trama gira em torno de Ralph, o vilão de um antigo jogo de fliperama. Cansado de ser o “cara mau” e acabar derrotado pelo protagonista do jogo (Conserta-Felix), Ralph decide dar uma guinada em sua vida e ser um herói, pelo menos uma vez. A busca de Ralph o leva, então, a migrar para outros jogos, até acabar caindo em um game de corrida que acontece em um mundo feito de doces. Neste jogo, ele conhece Vanellope, uma garotinha que é um bug do game de corrida. Os dois párias, então, se aliam para tentar vencer a grande corrida classificatória que definirá o grid de largada da próxima prova. Detona Ralph é um filme dinâmico e esse é um dos pontos em que mais o admiro, enquanto filme de animação: contando com um grande número de personagens, o roteiro mostra grande habilidade em lidar com mais de um “núcleo de ação”. Ao invés de se focar somente na aventura de Ralph, o filme ganha dimensão ao aproveitar a pluralidade de personagens e ilustrar o mundo do fliperama e sua diversidade. Desta forma, além de Ralph e Vanellope, ainda acompanhamos Felix, o antagonista de Ralph, se aliando com a soldado Calhoun a fim de encontrar Ralph e evitar que ele “vire turbo” (um termo que o filme mantém inexplicado de forma acertada até o momento em que ele se faz realmente necessário), e, ainda, pequenas histórias paralelas, como a do Rei Doce e de outros personagens menores.

Com anos de experiência como diretor de séries animadas, Rich Moore desenha o universo de Detona Ralph de maneira a não ser, meramente, uma homenagem ao mundo dos games, mas sim um filme que acontece dentro deste mundo e que tem, sim, potencial para agradar públicos diferentes.

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Vulcão (Rúnar Rúnarsson, 2011)

Por Murilo Lopes

A grande questão, ao meu entender, nos filmes que têm como temática o envelhecimento e a passagem do tempo, é a solidez que o projeto conseguirá demonstrar durante suas poucas centenas de minutos. Sem querer relativizar demais as coisas, atrevo-me a dizer que filmar sobre o coming-of-age de uma criança ou um adolescente é uma situação. Agora, tentar abordar o mesmo tema dentro do universo da “terceira idade” é outra completamente diferente. Era mais ou menos nisso que eu pensava quando fui assistir a Vulcão, primeiro longa metragem do islandês Rúnar Rúnarsson, um diretor de 35 anos com cara de menino.

Em pouco mais de 90 minutos, Rúnarsson conta a história de Hannes, um senhor na casa dos 70 anos que acaba de se aposentar e começa a ter de encarar um pouco mais de perto algumas situações com as quais não está inteiramente confortável, como o fato de não mais ser um “macho provedor”, ter filhos que o veem como um homem frio e ranzinza, ver sua amável esposa sofrer um derrame que a transforma em um vegetal e, ainda, ter seu única verdadeira válvula de escape, no caso, um pequeno barco de pesca, inutilizada.

Rúnarsson consegue se sair surpreendentemente bem ao lidar com questões tão sensíveis justamente por tratá-las com sensibilidade. Ao evitar transformar Hannes em um personagem em busca de algum tipo de “redenção”, ele consegue aproximar o sujeito do espectador e criar um retrato bastante humano de alguém cuja idade Rúnarsson não tem e pela qual, ao menos pelo aspecto de experiência pessoal, ele não tem como apontar caminhos fáceis. O grande trunfo de Rúnarsson não é apenas mostrar que Hannes podia ser aquele seu avô que reclama do almoço e passa o domingo resmungando no sofá. Hannes pode ser você, amanhã. Eu posso ser Hannes amanhã.

Na ótica de Vulcão, as pessoas estão fazendo o que podem e sendo aquilo que elas são. Não existem grandes lições a serem aprendidas e nem grandes redenções a serem alcançadas. Existe a dúvida, existe o sacrifício e existe o imenso vazio que é o futuro, uma grande incógnita que, talvez, se torne cada vez mais sólida e misteriosa com o chegar da velhice e sob os filtros da experiência. Essa contemplação e esse respeito que Rúnarsson possui por seu personagem são a dinâmica principal de um primeiro longa-metragem bem sucedido e de um primeiro passo bem dado por um diretor que, embora jovem e iniciante, já demonstra sinais de uma visão que pode alçá-lo a um patamar respeitável dentro do cinema europeu.

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The Dark Glow of the Mountains (Werner Herzog, 1985)

Por Murilo Lopes

Em março de 2010, escrevi para o antigo blog Multiplot! um texto sobre este mesmo documentário de Werner Herzog, The Dark Glow of the Mountains, e revisá-lo tanto tempo depois foi um exercício interessante. Lembro de tê-lo assistido por conta de dois pequenos furores pessoais: o montanhismo (esporte sobre o qual li intensamente nos últimos anos, fascinado pelas conquistas dos lunáticos que vão para o meio do nada subir montanhas perigosíssimas) e os documentários de Herzog. Sobre estes, digo que me conquistaram a tal ponto que, até hoje, fico imensamente mais ansioso por um documentário do que por algum filme “de ficção” de Herzog. O velho alemão tem algo a mais do que, simplesmente, “mão” para fazer documentários.

O envolvimento de Herzog com seus objetos de estudo escapa ao simples interesse, exibindo seu próprio fascínio de maneira contundente e reveladora. De repente, o espectador que se sentou para assistir a um documentário sobre montanhismo está assistindo, também, a um diretor de cinema que, aos poucos, desnuda suas obsessões, dúvidas, certezas e defeitos em uma espécie de busca pessoal, como se fazer um documentário fosse não mais que uma maneira de expor seus pensamentos e, quem sabe, provar alguns argumentos. A cada documentário de Herzog visto, a figura do cineasta, do artista e, principalmente, do ser humano fica mais e mais nítida. Quando Herzog vai à Antártida visitar um centro de pesquisa ou a uma reserva ambiental no Canadá conhecer o local onde um ambientalista passou seus últimos treze verões protegendo ursos pardos, ele está muito mais do que documentando: está atrás de algo que o intriga e o motiva.

Sendo assim, é interessante repensar este The Dark Glow of the Mountains. Embora não seja um dos primeiros documentários de Herzog (é o décimo dirigido por ele), ainda assim é um demonstrativo um pouco mais antigo desse auto-desvelamento que ele fornece quando vai com uma câmera para um local inóspito filmar algo que o instiga. Neste caso, Herzog acompanha Reinhold Messner (o maior montanhista de todos os tempos) até o acampamento-base dos picos Gasherbrum, aos quais Messner e Kammerlander tentarão atacar. Em meio a detalhes técnicos sobre as montanhas, as altitudes e os riscos de se aventurar em ambientes totalmente selvagens e incompatíveis à sobrevivência humana, Herzog parece procurar entender o que, de fato, leva os dois montanhistas a uma empreitada tão extrema. Esta última questão é direcionada de maneira mais particular justamente a Messner, que havia perdido o irmão na montanha Nanga Parbat (Paquistão) e que, portanto, tinha motivos de sobra para desenvolver completa aversão às montanhas.

Enfim, o que permanece de minha primeira leitura sobre este documentário é que é realmente fascinante perceber que Herzog deixa, propositadamente, uma brecha em seus questionamentos: se as atitudes de seus objetos de estudo são tão extremas e tão obsessivas, por quê Herzog os segue? Este se mostra um verdadeiro caminho para o contra-ataque que seus entrevistados jamais chegam a usar, talvez por não terem percebido ou talvez por, simplesmente, não se importarem nem um pouco com tal brecha. Mas a impressão que fica é justamente que o diretor queria ser bombardeado com questões sobre sua suposta contradição. Porém, embora estes questionamentos não sejam expostos na tela, a analogia entre o aventureiro e o artista está feita. E, acima de tudo, a persona de Herzog ganha mais um capítulo, mais uma dimensão. Herzog é um cineasta-documentaria-ser humano que não cansa de se descobrir.

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Nosferatu: O Vampiro da Noite (Werner Herzog, 1979)

Por Murilo Lopes

“Os rios prosseguem sem nós”

Vigésimo filme de Werner Herzog, Nosferatu : O Vampiro da Noite é uma adaptação livre da famosa obra de Bram Stoker, Drácula, romance do final do século XIX que conta a história de Jonathan Harker, um jovem que vai à Transilvânia fechar um contrato de venda de uma casa para um homem chamado Conde Drácula. Lá descobre que seu excêntrico anfitrião mora em um antigo castelo onde eventos estranhos acontecem e, pouco a pouco, percebe que é hóspede de um ser realmente maléfico. Entretanto, o ponto da adaptação de Herzog vai um tanto além da grande maioria dos filmes que tomaram a obra de Bram Stoker como base. Aqui, muito além da história de vampiro, Herzog costura, como já é costumeiro em seus filmes, algumas percepções próprias sobre a sociedade, a natureza e o desconhecido.

Tanto as coisas funcionam assim que Herzog não perde muito tempo com apresentações e construções de enredo ou personagens. O diretor pressupõe que o público está familiarizado com o personagem e o que vai acontecer durante a trama. Sendo assim, o filme se torna um belíssimo espaço aberto para o diretor exercitar seu estilo e filmar planos lindos usando apenas luz ambiente. Alguns momentos, como o primeiro encontro de Drácula com Lucy Harker, a chegada de um navio ao porto da cidade ou a macabra festa popular em praça pública, são de uma beleza estética ímpar e evocam a preocupação da geração de cineastas alemães a qual pertence Herzog para com o desenvolvimento de uma identidade cinematográfica nacional.

Cabe observar, ainda, a maneira como Herzog encara os eventos que o enredo desenvolve: muito mais que um vampiro, Drácula é um acontecimento que pode, ou não, ser apenas uma forma dos jovens Jonathan e Lucy encarar um evento muito maior, que foi a chegada da Peste Negra. O argumento de Herzog é que nem a fé, nem a ciência e nem coisa alguma neste mundo são capazes de abarcar todo o entendimento sobre certos fenômenos de ordem natural. Aos olhos do cético Dr. Van Helsing (aqui “diminuído” do costumeiro caçador de vampiros a um simples médico), Lucy está sendo ridícula ao permitir que seus preconceitos e superstições se sobressaiam perante a luz da ciência e da razão. Aos olhos de Lucy, é exatamente o contrário: Van Helsing e todos à sua volta são ridículos por não enxergarem o óbvio ululante, que é influência maléfica de Drácula sobre os eventos que ocorrem na cidade. Aos olhos de Herzog, por fim, os personagens estão apenas buscando explicações para aquilo que não se explica.

Em seu primeiro encontro pessoal com o Conde Drácula, Lucy Harker tem seu momento de lucidez inquestionável ao dizer que estão todos nas mãos de Drácula e que os rios continuam correndo sem eles, pois a morte é a única coisa certa. Neste momento, ela desvela a identidade de Drácula na visão de Werner Herzog: um fenômeno que, consciente ou não, acontece porque acontece, à completa revelia do que pensam os seres impactados por ele.

Com um Klaus Kinski devastador no papel de Conde Drácula, Nosferatu: O Vampiro da Noite é uma visão diferenciada e esteticamente valiosa para um gênero de filmes que, mesmo em 1979, já era saturado. Além disso, é uma fantástica demonstração do que a estética do Novo Cinema Alemão era capaz de proporcionar. Enfim, mais um filme de Herzog que, além de figurar nas rotineiras listas de “filmes obrigatórios”, nos revela um pouco mais daquilo que seu criador pensa, sente e é.

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