Lola Montès (Max Ophüls, 1955)

Por Thiago Macêdo Correia

Em um dos atos de rememoração praticados ao longo de Lola Montès, a lembrança de um momento passado entre Lola e o compositor alemão Franz Liszt, com quem vivia um caso, é ativada a partir da finalização de uma partitura musical, feita por Liszt. Lola está deitada, protegida por uma tela vermelha, supostamente adormecida e com uma expressão sereníssima. Liszt segue até ela para mostrar a música que ele acabara de compor, a “Valsa do Adeus”. Simultânea a seu movimento, é executada a canção. Quando percebe que Lola não o responde, Liszt rasga a partitura em alguns pedaços, ao que o som da música é interrompido. Assim que Lola começa a falar com ele e depois se despede, levanta de seu leito e vai até o chão recolher os papéis com a partitura. A cada momento que pega um pedaço de papel, uma camada da melodia volta a tomar conta do filme, em um movimento crescente de harmonia, tanto pela própria música, quanto pela ligação entre imagem e som. Essa sequência descrita, assim como outras tantas isoladas, poderia por si só dar conta da magnitude do filme de Max Ophüls. Porém, a união dos elementos de virtuosismo praticada pelo cineasta faz de Lola Montès não somente sua obra máxima, mas um dos maiores exemplos de excelência artística, em qualquer arte imaginável.

Do mesmo modo que O Nascimento de Uma Nação, O Encouraçado Potemkin e Cidadão Kane são constantemente citados em listas de melhores filmes de todos os tempos, muito por conta do caráter vanguardista de suas construções narrativas, criando ou reinventando artifícios cinematográficos que revolucionaram o modo de fazer cinema, Lola Montès merece o mesmo reconhecimento. Não foi neste filme que Max Ophüls estabeleceu seu trabalho típico de movimentação de câmera, mas foi nele que tal movimentação atingiu o status de inovadora. Lola Montès é decupado de tal modo que todo o cenário, perfeitamente construído e trabalhado por uma arte de grande refinamento, seja explorado inteiramente. Em vários momentos, o filme de Ophüls é exibido não somente de modo frontal, com a câmera captando a ação à sua frente, mas seguindo esta ação em toda sua complexidade, em um balé de posicionamento e acontecimentos que vão se sucedendo de modo inquieto, assim como a personalidade de sua protagonista — assim como a personalidade do próprio Ophüls. Um plano fixo em Lola Montès não daria conta da própria necessidade do cineasta em viver dentro daquele mundo, através dos percursos de seus personagens e de sua câmera fabulosa a segui-los.

Por conta disso, nascem em Lola Montès planos cinematográficos antológicos, como o movimento de 360º empregado pela câmera no centro do picadeiro, mostrando Lola inteiramente e ocultando o mundo a seu redor. Há também a frequente observação vertical da ação, partindo de um ponto inferior e evoluindo a ação até o máximo possível do movimento ascendente. De baixo para cima, a câmera de Ophüls descobre um novo modo de ver o mundo e contar uma história. São embasbacantes os planos coreografados no circo, principalmente aquele em que a trajetória de Lola rumo ao topo da cadeia aristocrática social é narrada pelo mestre do circo, enquanto a própria Lola sobe cada vez mais em direção ao ponto mais alto da estrutura circense. Quanto mais alto Lola chega, mais perigosa poderá ser sua queda e Ophüls capta tudo sem permitir o corte, sem conceder o close. Lola Montès é um filme encenado em planos abertos, longos e fluídos, pois, mais ainda que no existencialismo de Lola, a importância narrativa está nas modificações que ela provoca no mundo que a abriga.

Captado em Cinemascope, formato exigido pelos produtores e acatado a contragosto por Ophüls, Lola Montès se vale de uma invenção do próprio cineasta, junto de seu fotógrafo Christian Matras, para utilizar o máximo possível das impossibilidades de se filmar de modo tão ampliado. Dentro de uma mesma cena, pode acontecer o “fechamento” do enquadramento do Cinemascope, quando já não é possível captar o todo e se faz necessário perceber uma ação mínima. Para isso, Ophüls e Matras usavam duas partes iguais de veludo preto, diminuindo o espaço enquadrado até um formato próximo do clássico 4:3, semelhante a um quadrado (que até 1953 era a única opção possível no cinema). De repente, em um mesmo plano, é possível perceber o esplendor do Cinemascope (apesar da relutância do cineasta, certas sequências são impossíveis hoje de conceber sendo tão belas caso não fossem tão extraordinariamente captadas no formato) e ter um tom mais “intimista” de uma observação mais restrita, mais próxima dos personagens. Constatar este acontecimento e não ficar completamente arrepiado é o mesmo que não compreender a genialidade da estrutura narrativa de Lola Montès.

Porém, foi exatamente isso que ocorreu à época de seu lançamento. O filme escandalizou o público e foi completamente mal compreendido pela crítica, até o ponto em que os produtores decidiram recolher a cópia e dar um novo corte, linear, fato que deixou Max Ophüls irremediavelmente abalado (e, segundo consta, foi um dos motivos de sua morte prematura, menos de dois anos depois do lançamento de Lola Montès nos cinemas). Hoje em dia é possível entender os motivos para o escândalo social, já que o filme retrata a trajetória de uma mulher vista pela sociedade de sua época como uma espécie de cortesã, mas que de fato nada mais era que um espírito livre, alguém capaz de tomar as rédeas de seu caminho e fazer de si o que bem pretender. Lola era excessivamente evoluída para sua época, estava muito à frente de seu tempo e percebia perfeitamente a disparidade entre sua postura e o que era considerado correto para o restante da sociedade. Sua vida é revisitada no filme em um exercício metalinguístico completamente particular: ao mesmo tempo em que os acontecimentos que pontuaram sua biografia são encenados no circo, com a própria Lola servindo como “animal” a ser observado pelo público disposto a pagar para vê-la, Lola os relembra em sua mente e o filme intercala os pontos da memória com aqueles que estão sendo desenvolvidos no picadeiro. Entre a abstração realista da memória e a realidade pitoresca do fato presenciado, Ophüls esgota as possibilidades de inventividade, seja da já muito reverenciada câmera, seja do discurso ambíguo, irônico e triste do destino de Lola.

A mulher que se tornara célebre por viver livre passa a ser vendida como uma atração circense, uma anormalidade para os padrões da época em que viveu (e também para a França dos anos 50, que recebeu o filme com intolerância), tendo sido construída e destruída pela própria mídia, da qual foi vítima e algoz. Pela impossibilidade de acatar uma vida livre da atenção alheia, a ponto de deixar de existir aos olhos do mundo, Lola se anula e passa a ser personagem de si mesma, se humilha e também é humilhada em troca de atenção e luz, único modo conhecido por ela de existir para o externo: sob a forma de imagem. Max Ophüls abrange todo o leque da complexidade da personagem, da tragédia de sua existência, da riqueza de sua vida, em uma obra estupenda, que não pode nunca ser descrita sem que o máximo do superlativo seja utilizado. Para os dias de hoje, quando alguns dos grandes artistas incompreendidos têm finalmente o reconhecimento tardio a respeito de suas obras, Lola Montès merece ser acolhido pelo público como um dos exemplos mais retumbantes em como contar uma história, enquadrar, mover uma câmera, articular um discurso, inventar uma linguagem, enfim, como fazer cinema.

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