A flâneur digital que revela os processos invisíveis: a contradição como pedagogia virtual nos desktop movies de Chloé Galibert-Laîné

Por Michel Gutwilen

Segundo Walter Benjamin, o flâneur é aquele que exerce a percepção distraída, ou seja, quem percebe o mundo sem tomar o tempo necessário para olhá-lo. Por sua vez, o oposto dessa atitude seria a contemplação – por sua vez, a dedicação da percepção dos sentidos no tempo. Discutido pelo autor em 1935, a aplicabilidade inicial do flâneur se referia a quem se perdia pelas ruas, passando o olho por carros, pedestres e prédios, mas sem se fixar em nenhum deles. O flâneur está sempre em movimento e reconfigurando suas percepções, conforme apreende novas imagens. Contudo, com a passagem do tempo e a transformação dos meios tecnológicos, as formas do olhar também mudaram. Nos anos 60, já se começava a dizer que o flâneur não estava mais nas ruas, mas sim nos sofás, se tornando o “zapeador de televisão”. Atualmente, fala-se no flâneur digital, aquele que navega no espaço virtual dos celulares e computadores, interagindo com suas redes de informações infinitas.

Como o flâneur é alguém que absorve naturalmente diversas imagens sob a percepção distraída, Benjamin defende que ele pode adquirir novos hábitos de maneira inconsciente. Por isso, o autor acredita que o Cinema pode ser a arte ideal para moldar novos costumes, uma vez que seus espectadores estão distraídos com o filme em si. Em resumo, essa é a ideia apresentada por “Flânerie 2.0”, curta ensaístico da pesquisadora e diretora francesa Chloé Galibert-Laîné. Ao versar sobre o flâneur digital, Chloé já adiantava um tema fundamental de sua filmografia, que perpassa pelo formato de desktop movie.

Uma peculiaridade do espaço cybernético é a sua própria contradição interna. Por um lado, nunca se teve tantas informações (imagens, vídeos, textos, dados…) à disposição do usuário. Por outro lado, esse acúmulo significa uma própria negação da percepção, já que o ritmo com que as informações chegam é sempre maior do que a velocidade que o ser humano consegue absorver. Ou seja, com a necessidade de dividir a atenção entre as diversas sobreposições que se dão no campo do olhar, olha-se tudo, mas nada se enxerga. Consciente dessa contradição do cyberespaço, Chloé realiza em seus filmes uma espécie de curto-circuito informacional: nunca há apenas uma informação em tela, mas excessivos elementos que vão interagindo simultaneamente. Abas de internet são postas lado a lado, um vídeo aparece ao lado de um texto ou de outro vídeo, uma narração surge em cima de um texto, e desse jeito continuam os diversos choques. O enquadramento do plano é totalmente saturado, impossibilitando a distinção entre o que é informação principal e secundária. Captando fragmentos do todo, o espectador de um desktop movie é engolido pelo próprio sistema, à medida que percebe informações sem conseguir se fixar em nenhuma delas – tal como um flâneur.

Se não há como a percepção humana resistir contra o ritmo imposto pela máquina, Chloé mostra saber hackear as regras do jogo e faz da limitação humana a força de seus filmes, seguindo o fluxo das ondas informacionais e mantendo o movimento. Ao assumir a característica de uma flâneur, o próprio ato de vagar pelos espaços digitais se torna mais importante do que o destino de suas investigações. Conforme Bergson e sua ideia sobre o Novo, a essência de uma coisa sempre aparece no curso de seu desenvolvimento. E assim se dão as buscas de Chloé: passeando entre diferentes abas, surfando entre links, se permitindo errar no caminho, curtindo o labirinto que é a internet, e até caindo em digressões que pouco têm a ver com sua pesquisa inicial. Talvez seja por isso que o tema conspiratório seja tão caro à sua filmografia, já que o próprio impulso investigativo é uma forma de brincar com essa ideia de se manter em movimento, seguindo pistas e se perdendo por elas, criando novas direções sem saber o destino, e cada vez mais entrando numa espiral sem fim. Como mostra Forensickness, a internet é um convite à paranoia; o usuário que nunca se deixou ser contagiado por uma pulsão conspiratória, que atire a primeira pedra.

Por mais que no cinema “narrativo” o espectador normalmente seja conduzido a criar uma identificação com a/o protagonista, o desktop movie acaba por evidenciar ainda mais diretamente essa confusão entre ambos. Ao compartilhar seu processo de pesquisa com transparência, ao invés de eclipsá-los, Chloé não se coloca numa posição de vantagem em relação a quem vê seu filme, mas faz com que se sinta em um processo de aprendizado conjunto, gerando um sentimento de recompensa e confiança mútua. São nessas variáveis que o cinema de Chloé Galibert-Laîné se mostra uma verdadeira pedagogia da imagem. 

Com uma estrutura baseada em uma relação tríplice, encontra-se sempre em seu Cinema um padrão de três camadas. Há uma imagem pré-existente, a da investigação de Chloé sobre ela e a interpretação do espectador, que é tanto sobre a imagem quanto sobre a investigação. Filiando o espectador ao seu olhar em um primeiro momento, a realizadora faz questão de gerar uma quebra posterior, botando em dúvida sua própria figura enquanto narradora confiável e ativando uma paranoia naquele que assiste. Se aparentemente isso contradiz a ideia de “pedagogia” no Cinema de Chloé, na verdade, essa sua atitude só reforça como ela busca ensinar o seu “aluno” a desconfiar daquilo que ele recebe, exigindo que se saia de um estado passivo para uma percepção ativa. 

Em Watching the Pain of Others, que analisa as imagens do filme Pain of Others (de Penny Lane), a diretora inicialmente leva o público em uma direção, se perdendo no seu flânerie, apenas para romper com ele no meio. Inserindo uma informação que reconfigura tudo que fora apresentado até aqui, ela se evidencia como manipuladora e criadora de uma narrativa. Essa enganação é o suficiente para ativar o espectador, que se sente duplamente traído (por Penny e por Chloé), passando a questionar todas as imagens que está vendo. O que importa não é descobrir qual é a opinião final da diretora sobre o tema que permanece em aberto, mas sim que as imagens e suas narrativas sejam postas em dúvida. Similar procedimento é realizado em Forensickness: tendo como base o filme Watching the Detectives, Chloé questiona a hiperanálise das imagens na era digital, que chega ao nível mínimo dos pixels e rapidamente vira uma paranoia coletiva. Ao mesmo tempo, em uma aparente contradição, o que a própria faz é hiperanalisar Watching the Detectives com Forensickness. Com muito bom humor, ela mesma reconhece ter caído no estado paranoico do filme.

Diante dos dois exemplos, chega-se a duas conclusões. Primeiro, que Chloé percebe uma ideia de viralidade no cyberepspaço, o que acontece quando ela adquire a paranoia de Forensickness e quando ela acha que está com a doença discutida em Watching the Pain of Others. Segundo, que ela cria um método para sua pedagogia, consistindo em mimetizar com autoconsciência aquilo que ela busca criticar – inclusive estando disposta a sacrificar sua credibilidade com o espectador para plantar dúvidas nele, por entender que a contradição ativa a percepção de processos antes escondidos. A cada clique que abre uma nova página, uma porta se abre para um mundo desconhecido a ser explorado, uma possibilidade de anular e reconfigurar todo o espaço anterior com suas informações. Assim, seus filmes se tornam uma investigação do que significa a própria atitude de investigar, uma autofagia metalinguística, evidenciando as características do desktop movie ao mostrar seus próprios processos. 

Nesse sentido, é possível enxergar a influência do cineasta alemão Harun Farocki para a formação de Chloé, uma vez que revelar os meandros dos processos também sempre teve um papel central em suas obras. Por exemplo, ao mostrar as etapas dos bastidores de um ensaio pornográfico (Ein Bild, 1983) e um publicitário (Stilleben, 1997), o alemão faz o espectador refletir sobre a natureza farsesca das fotos que ele costuma consumir no dia-a-dia sem consciência dos seus processos. Tal como Farocki, Chloé também joga luz em cadeias produtivas invisíveis. Em Watching The Pain of Others e outros de seus filmes, ela mostra no programa de edição, por meio de blocos coloridos, como Pain of Others divide seu tempo entre as três protagonistas. Já em Forensickness, ela imprime três quadros da película do filme e bota um debaixo do outro, descobrindo que há uma continuidade das linhas que os cruzam. Ao refazer o caminho inverso de pegar um filme-produto e voltar para as etapas fragmentadas de sua cadeia produtiva, Chloé revela estruturas de montagem antes escondidas.

Tanto em Farocki como em Chloé, há uma herança de Bertold Brecht e seu teatro político. Busca-se o engajamento do público, que deve tomar parte do processo analítico das imagens, adquirindo uma atuação despertada. Há aqui uma aproximação que também passa pela ideia exibicionista do Cinema de Atrações, termo cunhado pelo historiador Tom Gunning para falar de parte do Primeiro Cinema que rompia o mundo ficcional ao solicitar a atenção do espectador. Sendo o poder único do Cinema a capacidade de “fazer as imagens serem vistas” (Fernand Léger), Chloé e Farocki fazem do invisível algo visível, o que significa uma “experiência que consiste em examinar indefinidamente uma determinada imagem, encontrar um sentido ao que, à primeira vista, parece um caos de forma sem significação” (Paul Virilio).

Falecido em 2014, Farocki teve sua carreira marcada pela investigação do avanço tecnológico e as suas formas de representação, atravessando a história vista por fotografias tiradas de aviões de reconhecimento, imagens televisivas e amadoras, câmeras de segurança, simuladores virtuais e videogames. Logo, um caminho natural que o cineasta poderia ter seguido, caso ainda estivesse vivo, seria o da exploração do cyberespaço através do desktop movie. Sem jamais saber como seria esse futuro hipotético, hoje é possível olhar para o presente e enxergar Chloé Galibert-Laîné como um dos nomes mais promissores na continuidade ao legado farockiano, uma precursora no enfrentamento crítico dessa nova tecnologia que deve ser desbravada e colocada sob interrogatório. 

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Ensaio sobre a Simpatia: Música, memória e imagem em Godard

Por Wilson Oliveira Filho


“Dante, maravilhado, soube por fim quem era e que era e abençoou suas amarguras. A tradição relata que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar, nem mesmo vislumbrar, porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens”

                                                                      (Inferno, I, 32 – Borges)

Introdução (… Minhas memórias de Godard)

Recentemente para um documentário exibido em uma grande mostra sobre Jean-Luc Godard no Rio de Janeiro a primeira experiência com a obra do cineasta Jean-Luc Godard foi-nos interrogada. Uma memória de um primeiro contato com a obra do cineasta franco-suíço. De pronto, sem titubear e já com certa dúvida – que beira sempre a memória – uma resposta: o filme de 1968 sobre os The Rolling Stones, “Sympathy for the devil” ou “One plus one”[1]. Essa aparente ambigüidade, envolvendo a certeza e a dúvida, parece tanto legitimar a relação entre cinema e arte de lembrar e esquecer quanto a ímpar importância das imagens e do imaginário godardiano para a cena do obscuro e complexo contemporâneo de homens simples como Godard, você e aquele que deu aquela resposta.

Parece surgir na teoria do cinema uma espécie de “mnemocinema” que passeia pela mente quando somos perguntados sobre um filme, em particular sobre um filme de um cineasta tão inventivo, intrigante e intenso como Godard. Ao mesmo tempo como o artista insiste em parte de sua obra, pensando o cinema como música[2], por exemplo, lembrar como primeira experiência um filme permeado por uma canção que tem em uma de suas versões o título de uma famosa faixa da banda de rock The Rolling Stones pode significar que o cinema como bradou sinestesicamente Abel Gance é mesmo música da luz.

            A relação entre cinema e memória – que vem ocupando parte de minhas pesquisas – que aqui converte-se em ensaio foi recortada por outro criativo cineasta  e ajuda, a guisa de introdução, a entender sobre essa obra de Godard a partir de uma música de uma banda de rock. Sobre a memória, observa Andrei Tarkovski que ela é “algo tão complexo que nenhuma relação de todos os seus atributos seria capaz de definir a totalidade das impressões através das quais ela nos afeta”. (1990, p. 64). Esse afeto, no caso do cinema de Godard, beira uma simpatia. Gostamos ou simpatizamos com a obra de Godard se estivermos abertos a ultrapassarmos essa totalidade de impressões em busca de uma caleidoscópio de sensações, superar essa completude de impressões ou esse mal de arquivo, que Derrida se refere por vezes à memória. Permitir que Mnemosyne, essa musa que, segundo Jean Pierre Vernant, “preside, como se sabe, à função poética” (1990, p.72), adentre nossa relação com o cinema, e, mais ainda, penetre ritmicamente, musicalmente nossos sentidos. Isso nos parece de certa forma a compreensão da proposta de cineastas como Godard. Arte como musa, museu de mundos e memórias.

Duas ou três coisas que sei sobre ele (JLG)

            Ao menos algumas informações sobre o cineasta são importantes para esse momento antes de passarmos ao filme, antes de analisarmos ou ensaiarmos com Godard não somente uma gravação de uma música, mas uma ode aos acontecimentos de maio de 68, a contracultura, a liberdade, uma leitura dos media e luta (inglória)  como motor da historia. Um breve trecho de Jacques Aumont aparece no sentido de pensar essas duas ou três coisas que são relevantes para compreender Godard:

De início, haveria a reflexão sobre a montagem, tema teórico principal do jovem Godard. Entre seus primeiros artigos, um afirma que não existe decupagem clássica, caso entendamos por isso um modo de filmar constituído e congelado de uma vez por todas, “tal ponto que equivaleria a um modo de pensamento autônomo, aplicável a qualquer tema com igual sucesso”. O que existe é a direção, isto é o estilo, a ser redefinido por cada cineasta e até por cada filme; é o conteúdo que faz a forma e não uma forma gramatical que enquadra e transmite o conteúdo. Um outro artigo precisa que a direção às vezes pode assumir a forma da montagem, porque dirigir é exercer o domínio sobre o espaço, ao passo que montar é exercer esse domínio sobre o tempo. “se dirigir é um olhar, montar é um bater do coração…” (AUMONT, 2004, p.54-55)

Uma grande miríade criada pelas imagens e sons que Godard montou ou dirigiu interage com e a partir de lembranças e esquecimentos. As camadas e bricolagens de Godard em seu flerte com o vídeo ou as montagens em jump cuts e a gagueira dos primeiros filmes, essa gagueira ou “dupla captura, nem uma reunião, nem uma justaposição, mas o nascimento de um gaguejar, o traçado de uma linha quebrada” (DELEUZE, 2004, p.20) são memórias do cinema e de um mundo gago, convulsivo em eternos embates e eternas enchentes…

Em memórias vivas, nascentes em camadas audiovisuais, em acúmulos de experiências com o som e a imagem. A memória como reino da exploração cinematográfica se torna terreno da imaginação. O cinema ao dialogar com o próprio cinema ou, como afirma o primeiro parceiro de Jean-Luc Godard, François Truffaut, ao pensar que todo filme deve exprimir uma visão de mundo e uma visão do próprio cinema nos faz pisar nesse terreno mnemônico único e das multiplicidades, individual e coletivo. Parmenídico e Heraclitiano. Cinematográfico e anticinematográfico. Ambíguo.

As referências ao próprio cinema (como artifício da memória) que passeiam na nouvelle vague de Truffaut e Godard entre outros surgem primeiramente em “Acossado” (À Bout de Souffle, 1959); referências, por exemplo, aos gêneros, aos atores, ao próprio cinema; e mais tarde em “Alphaville” (1965), no qual a memória aparece no próprio computador ou nas categorias criadas e recriadas por Godard. “No caso de Alphaville, são três categorias: “o controle ou o cinema de ação (típicas do cinema americano), a memória e o cinema da imagem afeto […] e o amor e o cinema da imagem-tempo cinema do pós-guerra” (PARENTE, 2009, p.103). Intercambiáveis essas categorias funcionam a nosso ver sempre partindo da memória. Seja em “Sympathy for the devil” objeto de nosso ensaio, arquivando a contestação e a música dos anos 60 ou mesmo em seu último filme “Film socialisme” (2010).  Godard com uma preocupação arquivística coleciona momentos do cinema  ao longo de sua longa carreira. E coleciona como Benjamin problematizou a obsessão  do colecionador: “toda paixão confina com um caos, mas a de colecionar com o das lembranças” (2000, p.228).

Sobre a sintaxe de Godard em “Sympathy for the devil” (… ou “One plus One”)

Mostrar o processo de uma música sendo gravada com toda seu liveness, sua radical e reforçada presença, esse ato se fazendo a partir de uma ideia de Mick Jagger é a forma como Godard começa a mostrar o processo de realização do seu próprio filme, do ambiente que um filme em 1968 também vivia. Na obra “Sypmapthy for the devil” esse acontecimento de uma gravação se desdobra em outros. Se uma banda de ingleses brancos faz som ou tenta fazer som do blues negro, Godard problematiza a questão do racismo colocando os Panteras Negras desfilando armas e conceitos dos criadores dos Black Panters LeRoi Jones e Eldridge Cleave em um ferro velho abandonado. Uma sintaxe sonora sedutora, sensorial, sexual. E a partir daí desdobram-se fragmentos da letra de Jagger para discutir a questão do feminismo, da indústria cultural e da contracultura nos anos 60.

Intercalando o processo de gravação – a música vai ganhando novas nuances a cada bloco que Godard cria para o filme – com planos de pichações em muros, carros, lojas que mostram a criação de palavras como Cinemarxism ou Sovietcong ( contrações e junções de termos e expressões, videoescrita ou cinepalavra), o filme é narrado revelando algumas vozes para a partir da música falar dos problemas que maio de 68 estava imerso. Essas vozes não veladas, não veludosas são a da música, a das leituras de textos escolhidos a esmo, a da luta dos líderes negros, da mulher entrevistada e a todo tempo negando a própria entrevista, do vendedor de revistas e a do próprio Godard, como um maestro. Não como um produtor, jamais como um produtor, pois os produtores do disco dos Stones “Beggars Banquet” que contém a música título do filme, são ironizados, captados em planos sem importância, de lado, entre as baias do estúdio. Um filme entre baias e barricadas, entre música e palavra. Entre, Godard sempre entre entradas.

O artista rege essas vozes dirigindo um filme sobre o processo de criação e ao mesmo tempo mostrando o seu processo de criação. O plano final talvez seja o grande exemplo que Godard usou para pensar o cinema aplicando sua conhecida frase: “Tudo o que é preciso para se fazer cinema é uma mulher e uma arma”. Nesse plano Godard entrega seu cinema para o espectador, com uma mulher supostamente atingida por uma bala sendo levitada por uma grua, toda essa concepção processual se conclui elipticamente. Talvez, o filme só faça sentido se for assistido em loop[3]  (talvez Godard seja o cineasta mais circular da história do cinema, talvez, talvez, talvez…) Nesse momento a música muda e os 90 minutos que a música Sympathy for the devil foi executada cede lugar para outra canção. Godard costumava dizer que descrever é observar mutações. E o loop é o primado do mesmo na mutação ou a diferença na repetição, o eterno retorno do diferente.

Com as mudanças na condução da música, Godard vai mostrando as mudanças no mundo, as mutações de sua concepção do próprio filme que ora nos enclausura em estúdios, quartos de hotel ora nos libera pelo verde de uma floresta ou pela água do mar. “Dada uma imagem trata- se de escolher outra imagem que induzirá um interstício entre as duas. Não é uma operação de associação, mas de diferenciação” (DELEUZE, 2005, p.217). O “entre” surge novamente. Essa diferença se dá nos contrapontos entre os processos de realização musical e cinematográfica e no processo maior a vida e sua potência. Imagens salvando a honra do real que Didi-Huberman tão bem lê em Godard no livro “Imagens apesar de tudo” estudando as imagens de George Stevens da abertura dos campos de Auschwitz que nos  chegaram.

“Assim, em Godard, a interação de duas imagens engendra ou traça uma fronteira” (DELEUZE, 2005, p.18). É o próprio corte que nos guia, inconscientemente pra transpor as diferentes sintaxes que Godard cria. As fronteiras em “Sympathy for the devil” ou “One plus one são menos densas como por exemplo em “História(s) do cinema” ( onde a prática de um bricolleur, de um arquivista beirando o caos dão as cartas) e mais densas de serem transpostas do que em “Weekend à francesa”, filme em que a dica (“isso não é sangue, é vermelho”) nos conduz num road movie godardiano sobre a condição humana desgastada, desvelada e desbravada.

Em Sympathy são as junções de palavras, de texto-música-imagem que nos fornecem pistas para a proposta de Godard de um filme sobre uma banda. Também a própria contracultura e indústria da cultura servem de signo para compreender que o que está por trás do filme é a criação, o pensamento fazendo filme, o filme como o próprio pensamento. Como Deleuze observa “Godard gosta de lembrar que quando os futuros autores da nouvelle vague escreviam, não escreviam sobre o cinema, não faziam uma teoria dele – era já, a sua maneira de fazerem filmes” (2005, p.331). Num filme com diferentes níveis de texto como esse sobre os Stones, Godard continua (re)escrevendo. Essa ideia de sempre produzir, seja como editor de textos, videoartista, cineasta pode ser lida no filme em questão e em ensaio através da ideia de produzir uma música.

Tentando mostrar o invisível a partir do que se vê, a música sendo composta, recomposta e decomposta, entendemos porque o “próprio Godard diz várias vezes que é bem disto que se trata: é preciso “ver um roteiro”, ou seja “ver como se passa do visível ao invisível”” ( DUBOIS, 2004, p.160). Godard nos faz ver por entre o cenário e objetos do estúdio, o real de uma época. Frequentemente quando se referem ao filme dizem que Jean-Luc Godard ficava menos no set de filmagem (o estúdio em Londres) e mais na França ainda repercutindo e agindo nos movimentos de maio de 1968. Cineasta-crítico, crítico de ser cineasta.

Das poucas críticas que ficaram sobre o filme uma das mais curiosas está num livro sobre cinema e rock. Garry Mulholland exalta o filme, sintetizando-o, se isso pode ser concebido como possível.

Sympathy for the devil é uma película maravilhosamente filmada sobre os Rolling Stones, compondo, ensaiando e gravando as evocações mais dançantes do mal, intercaladas com sátiras surreais de Godard sobre o tema da revolução contracultural de 1960 e, ironicamente, a voz de velha guarda de Sean Lynch lendo material sobre pornografia e a guerrilha. Não é nem um documentário, nem uma obra de ficção linear, mas um discurso ambíguo, irritante e hipnótico sobra a nova política de esquerda da época. Os Stones, nesse sentido são apenas adereços, não são entrevistados e não têm falas, a não ser coisas chatas com a banda em ação. (MULHOLLAND,2011, p.107)

Nesse breve texto encontramos a questão da simpatia que esse ensaio de um ensaio tentou dar conta também brevemente. Uma simpatia pela imagem e pela memória da música, da poesia e do arquivo, no caso as referências aos textos dos fundadores dos panteras negras, a dissolução do intelectualismo ironizando como no exemplo da entrevista com Eve democracy, interpretada por Anne Wiazemsky, com os produtos das industria cultural, revistas e  quadrinhos na sequencia dentro da loja de revistas.

 O que era pra ser um rockumentary se transforma em uma questão da memória. Como afirmou Godard, “quando filmamos uma paisagem que apreciamos, lembramos; fazemos uma citação: uma casa, uma árvore, uma cidade. Tudo no cinema é uma questão de memória”.  Como a memória é uma constante dança entre lembrança e esquecimento[4], nos Stones de Godard convergem os infinitos loops de gravação e os esquecimentos que marcam as mudanças de andamento, a perplexidade de um Brian Jones que parece nunca se lembrar da música em contraponto a um ativo Keith Richards criando e solando entre as sessões,  gerando a música e esquecendo as versões passadas de uma música original simples que se transforma ao longo da criação em uma das peças mais importantes do disco e da carreira dos Stones. Conflui a invenção com o inventário que Godard já parecia antever para o seu cinema (e que só iria anos depois concretizar com seus trabalhos em vídeo) evidenciado nos blocos que parecem compor uma lista poética de temas dos anos 60 e só há lista poética, nos mostra Umberto Eco, “porque não somos capazes de enumerar alguma coisa que escapa às nossas capacidades de controle e denominação” (ECO, 2010, p.117). 

Convidado por ser o mais inventivo cineasta da época para fazer um filme sobre uma banda de rock, que poderia ter sido os Beatles, Godard faz aquilo que ainda nos causa tanta reverência: Funde linguagens, sobrepõe ritmos e figuras para mais uma vez mostrar os deveres de um autor, o compromisso ético com o espectador, sem abrir mão da estética de uma hiperestética como polemizou McLuhan (1964). O compromisso mais que verbal, mas visual com justo uma imagem, uma caricatura dos caricaturáveis Jagger, Richards, Jones, Watts e Wyman. Uma imagem justa.

Num filme sobre uma banda, Godard é um caso a parte. Ao botar a banda à parte, usá-la como adorno, Godard é adorniano ao, de certa forma, propor um filme como forma, atestando  que  “o ensaio se recusa a deduzir previamente as configurações culturais a partir de algo que  lhes é subjacente, acaba se enredando com enorme zelo nos empreendimentos culturais que promovem as celebridades, o sucesso e o prestígio de produtos adaptados ao mercado” ( ADORNO, 2003, p.16-17). Não adaptado ao mercado fonográfico, nem mesmo cinematográfico, Godard com uma simpatia radical pelo outro (ou pelas histórias dos outros) cria um filme que dentro de sua obra soa estranho como acreditar em diabos nos indagando sobre que diabos pode o homem simples acreditar.

Esse texto foi originalmente escrito para a mostra Expo(r) Godard: Viagens em utopia com curadoria de Dominique Païni e Anne Marquez Aída Marques. Uma versão mais sintética foi apresentada no teatro da Maison de France ao lado de José Carlos Monteiro. Ele comentava “Je vous Salue Marie” e eu “Sympathy for the devil” em 03 de junho de 2013.

Referências

Adorno, Theodor. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.

AUMONT, Jacques. Moderno? Campinas, SP : Papirus, 2008.

BAL, Mieke. Setting the stage: The subjective mise en scène. In: DOUGLAS, Stan; EAMON, Christopher (eds.). Art of projection. Ostfieldern: Hatje Cantz, 2009.

BORGES, Jorge Luis. O fazedor. São Paulo: Cia das letras, 2008

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004

BENJAMIN, Walter.  Obras escolhidas Vol  II. São Paulo: Brasiliense, 2000.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.

_________.  Diálogos. Portugal: Relogio d’agua, 2004.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012.

GODARD, Jean-Luc Godard Interviewed by Jean-Marc Lalanne. In: LES INROCKS: The Right of the Author? An Author Has Only Duties. Disponível em: http://cinemasparagus.blogspot.com/2010/05/jean-luc-godard-interviewed-by-jean.html, 2010. Acesso em 23 ago. 2011.

ECO, Umberto. A vertigem das listas. Rio de Janeiro: Record, 2010.

MULHOLLAND, Garry. Popcorn. Sao Paulo : Seoman, 2011

PARENTE, Andre. Os três regimes deleuzianos da imagem cinematográfica em Alphaville. In: FURTADO, Beatriz ( ORG.). Imagem contemporânea Vol.1. São Paulo: Hedra, 2009.

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990.


[1] “One plus one” é a versão do diretor para “Sympathy for the devil” rodado em 1968, após a querela com a produção do filme. Godard no lançamento da versão com a qual ele não concordava invade o cinema com um cheque para reembolsar o público e um convite para que assistissem a versão que ele batizou como “One plus one”. Os filmes completam 45 anos e esse ensaio é também de certa forma uma homenagem a eles.

[2]  Em “Para sempre Mozart”  Godard explicitamente diz ter partido de sons para concepção da obra. A ideia era fazer uma sinfonia visual. Ainda podemos refletir sobre esse tema com as observações de Deleuze sobre filmes como “Carmem”, obra na qual “as atitudes do corpo jamais param de remeter a um gestus musical” ou “Salve-se quem puder (a vida), onde a música “constituía o fio condutor virtual indo de uma atitude a outra, “que música é esta?”, antes de se manifestar por si mesma, no final do filme” (2005, p.  233-234).

[3] Em síntese a repetição de sons e imagens, ou como sintetiza Mieke Bal: “A cada momento que o giro de qualquer número termina eu digo a mim mesmo: “Mais uma vez” E é invariavelmente durante uma dessas repetições que eu fico sensibilizado, por ver repetidamente, pela teatralidade do que acontece na(s) tela(s) em relação com o que é narrado. Teatro, luz e rebites: eles podem ter uma relação intrínseca entre si?” (BAL, 2009, p.167. Tradução nossa).

[4] Nietzsche é o responsável por reintroduzir o esquecimento nos estudos de memória. Não se trata de tudo guardar, mas de ter espaço para as perdas. “Bem-aventurados os esquecidos, pois desfrutam até dos próprios erros” é uma referência a Nietzsche no belo filme sobre a memória “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”.

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Loin de Manhattan, de Jean-Claude Biett: De paisagens naïves e pinturas in loco

Por Luiz Soares Júnior

“Certamente, se falamos de máscaras, é necessário antes pensar que elas dissimulam faces”.

George Steiner, Real presences: is there anything in what we say?

“Pour saisir la verité, il fault jouer la comédie!”

Albert Camus citado por Paul Vecchiali na epígrafe de Femmes femmes (1975)

Canyons paisagísticos foram a situação essencial (cadre, décor, eixo de câmera, e é claro pv) daquela gesta clássica por excelência do western; a panorâmica, tropo elementar do sub species, mimetiza o olhar do pioneiro sobre as extensões a percorrer e as tribos a abater, da distância do canyon-loggia-stand; aferia-se topograficamente os entes que a cavalgada armada se incumbiria de amealhar, pois foi segundo a Bild metafísica da perspectiva de Alberti que o cinema clássico conheceu o mundo: representatio. De alguma maneira, podemos pensar que o in loco de suas investidas tópicas, telúricas – fiquemos no western como paradigma respectivamente de Bild-representatio topográfica e loco-nunc telúrica, reflexão e ação coordenadas segundo uma mesma vontade de potência onívora- foi a máscara de um projeto totalitário de possessão do ser aí (da-sein) pelo pensamento, que de Aristóteles a Hegel e de Hegel a Griffith e Anthony Mann foi Una; e avancemos mais um tanto: a julgar pela relevância da panorâmica no western clássico e pela preeminência do ponto de vista ‘plongée de Deus’ a que o cowboy se identificava das alturas de seus desfiladeiros de eleição, a  stylo mortuária que vimos em ação no projeto filialmente moderno da nouvelle vague já experimentava seus tentáculos de apreensão do mundo pela representação no seio do cinema clássico: não apenas o portrait de uma experiência, mas um experimento-experienciado na tela. 

O Bonitzer de Decadrages, Daney, Biette, Deleuze e Schefer já haviam, aliás, nos alertado que a ‘janela para o mundo’ clássica projetava menos o mundo como conjunto de fenômenos e relações fenomênicas que se dão para o homem do que como um cosmo urdido, entalhado, estruturado pelos asseclas do próprio homem. E quais seriam estes? Proporção, simetria, causalidade, Arché e teleologia, por exemplo; How green was my valley (Ford), Only angels have wings (Hawks), High tension (Dwan) já nasceram infectados pelo selo da pata de Cain do Logos, dívida para com a linguagem que Biette, falando de Eyes wide shut de Kubrick(!), designava com a lapidar fórmula La distance post-morten est son nombre d’or.1 Os clássicos, porém – razão da suspeição ideológica da Cahiers maoísta para com suas obras -, nunca revelaram enquanto tal este déficit para com o significante, preferindo antes rejubilar o espectador com a jouissance da identificação supostamente mimética e secretamente metafísica da “janela com o mundo”: les mots et les choses, les mots sont les choses.

Em 1982, ao final desta história, reencontramos talvez o seu começo sem porém sair do lugar. Acalmem-se, que já me explico e retifico. O plano final de Loin de Manhattan, filme realizado pelo supracitado Jean-Claude Biette em 1982 no cadre de produção da Diagonale de Paul Vecchiali- empresa de cinema que para mim nos deu nossos mais consequentes, ponderados, ruseiros espécimes de cinema tardio- realiza o prodígio de sincretizar estas trajetórias que historiadores do cinema preguiçosos ou lenientes haviam nos acostumado a julgar opostas e mesmo irreconciliáveis: de Pais (clássicos) ou de Filhos (modernos). Sonia Saviange, que se decide a abandonar o seu ‘mundinho’ diletante, pequeno-burguês de marchands e consumidores de arte para finalmente experimentar uma paixão por um artista clássico, desses que pintam paisagens que carregam na alma e que antes preferem a companhia dos campos de miosótis que dos homens in vitro, demasiado credores do julgamento: sim, desses que pintam paisagens in loco, que ainda acreditam na identificação entre aquilo que é e aquilo que se representa, como um dia os clássicos…e Biette nos dá um plano genialmente sintético, tinto de ironia crepuscular para ilustrar este imbróglio genealógico; la Saviange abandona o ‘jardim de Versailles em miniatura’ que é o décor central de deambulações do mundinho ‘tardio’ e, enfim neo-clássica, toma um revelador atalho para reencontrar o campo de miosótis onde seu amado pinta óleos fidedignos à obra da Natura: ela desaparece detrás de um muro pintado com uma natureza-morta um tanto mais do que naïve, com sua indefectível janela (para o mundo) enleada por trepadeiras e rés de mato ralo; da linguagem não se foge, foi-nos ensinado dos rabinos de Hilel a Hölderlin, mas os artistas tardios experimentaram-experienciaram com particular acuidade este espinho na carne que, como o de São Paulo, foi obra daqueles que chegaram tarde demais, uma vez que a Infinitude da Presença ficara com a Promessa dos profetas da Israel pretérita.

Sim, uma natureza-morta…para introduzir esta blague final, onde os neo-clássicos são desmascarados da forma mais classicamente nonchalante deste mundo, Biette dá-nos uma crônica leggera, cheia de piparotes humorísticos, poses e perfis fecit de ‘ plano sequência, luz natural e locação”, cinema de ação cerrado por onipresença da fala- variamente divertida como meditativa sibilina, ‘rugosa tartamuda proletária’ (Lemoine, saído das Belas maneiras de Guiguet) ou ‘cínica-lapidar-bourgeoise’(Delahaye, Bouvet e Bouvet) como oracular-rêverie-diva (Laura Betti)-, atenta às paisagens como aos homens presentes mas infiltrados pelos jogos de linguagem (a assinatura bietteana por excelência, aliás), contracampos de desaparições e substituições mèlierianas, e discurso  ainda, como paisagens e cachorros a nos assistir assistindo…Longe de Manhattan é um filme festivamente idiossincrático, modulado pela impressionante empreinte de e documentado pela féerie elementar, cujo paradigma foi dado pelo Aroseur arrosé, de que o espetáculo mais fascinante da vida consiste em ver alguém chegar ou partir do campo, e que o novelesco mais digno de ser encapsulado em um portrait ( de conjunto) cinematográfico consiste na captação das reverberações mediúnicas destas chegadas e partidas, vagas estas que o discurso, talvez a empreinte de primordial, cristaliza exemplarmente, como raccorda ao mais-que-perfeito do imaginário e ao pretérito imperfeito da rememoração. Mas sistematizemos um itinerário tão prenhe de bifurcações, gioco exuberante onde a secreta dívida clássica para com o Logos se revela mais brincante, criticamente fascinante como fascinantemente conhecedora. 

Van Gogh dizia em uma carta ao fiel Théo que queria pintar cafés onde houvessem sido cometidos crimes; o gouache negro mercurial da paleta de Van Gogh já é suficientemente conhecido para que me perca em digressões impressivas aqui, mas o que devemos reter é que René Dimanche, o pintor de quem se fala frequente, obsessivamente em Longe de Manhattan– centro manifesto e ocluso de todas as interlocuções do filme, seu leitmotif e moto perpétuo-, se considerarmos para fitos esquemáticos o pintor dos girassóis como um expressionista, seria o anti-Van Gogh. René, por exemplo, recusa de maneira atrabiliária que críticos e la Saviange (aspirante a discípula e sedutora ocasional) interpretem seu silêncio criativo de 8 anos em termos existenciais, passionais, ‘efeito de uma desilusão amorosa que lhe ocasionou este bloqueio terrível”. Não; Dimanche não é expressionista, romântico, devedor de ‘casos’, estudos de caracteres e inspirações; ele é um artista classicista, e isto, de Wörringer a Heidegger significa uma arte que exprime mundo (paradigma clássico ühr: Giotto; paradigma neo-clássico-moderno, com quem podemos identificar Dimanche: Cézanne). Mais precisamente, de que mundo se trata? Certamente não aqueles com que aprendemos, desde meados dos 1800, a  identificar a obra: o mundo interior, Ego imanente ou transcendental, pático lírico ou patológico, “To be or not to be” ou “Je est un Autre”, de que a obra é a expletiva manifestação; trata-se antes daquele mundo ‘Logos da res’ que, de Fídias a Michelangelo, de Michelangelo a Rafael, de Rafael a Corot, de Corot a Courbet e de Courbet aos impressionistas frequentou a pintura como seu objeto privilegiado de punctum aurático: a paisagem. Mas não começamos o filme com as montanhas (sim, esta é a atual fase de Dimanche) ‘naturatas’, e sim com estes monumentos naturans (processuais, históricos) com que os homens se apoderaram da Cidade, disseminando seus possessivos índexes de presença sobre seu planalto escarpado, aliás como ontem as caravanas dos westerns pioneiros: é um terraço de onde se veem terraços, varandas, telhados pontiagudos e varais endomingados; percebem o sentido da analogia com que comecei este texto? dos canyons de desfiladeiros do western às coberturas da burguesia aisée, temos esta mesma distância de apreensão totalizante- sim, uma Bild de-, para quem os entes se dispõem em um circuito de meios para obter fins (e o Fim ürh: o segredo de Dimanche, como ontem o sangue Comanche); tardios, porém, aqui tudo deve ser trivialmente elíptico, ‘smooth mas de arestas aceradas’ pelo corte em stacatto: exatamente, esta é a maniera deste neo-clássico de ser tardio: incisões, mas no seio do marasmo hebdomadário; rupturas de tom, mas emasculadas pela digressão casual; intempestivos raccords, porém da ordem dos significantes, já que estamos diante de um filme clássico americano, além de uma sonatina francesa, afinal:  ainda somos clássicos, pois elegantes (“O classicismo é uma arte da elegância”, Jean Renoir). 

Paulette Bouvet, mãe de Christian (nosso crítico obcecado em conseguir uma entrevista com Dimanche e ator do mesmo nome) conversam, mas ela também pinta ocasionalmente, entretida em reproduzir talvez a curva em L da chaminé; e Biette, sagaz sem alarde como ruseiro sem máscara estará sempre cá, ainda lá para flagrar o maquiavelismo sinuosamente felino de Chistian em telefonar, providenciando ‘ficções’ e pessoas para chegar a Dimanche, mas igualmente bocejar em dó reticente e exercitar os dedos dos pés em um suntuoso close de metacarpos convulsos pela irresistível coceira; ainda retoma-se a mãe, e num contracampo fulgurante, que sem dúvida surgiu da revisão na Cinemateca daqueles tantos filmes em que Mèliès interpretou o Diabo, reaparecem ambos com outros traje ( cor de roupa, enquadramento, talhe de), papo outro e casualidade ‘chá das cinco’, apenas para ao cabo de minuto tudo retomar-se em Dimanche, ‘como se nada’. A chegada de Sonia Saviange à cobertura, diva ataráxica de perfil angelical- physique du rôle adequado à sua função primeira no filme de musa e isca neo-clássicas de Dimanche- será carnivoramente intensificada por uma citação do Modot em L’âge d’or: Christian devora as mãos untuosas da Melusina envelhecida. 

Mas permanecemos ‘smooth and soft’, pois nada deve abalar o pace fluido de Biette senão as turvas pinceladas da stylo do próprio Biette, sempre compensadas no próximo contracampo por uma retomada do pace regular, basso continuo de calmaria descontraída. Este será o movimento serpenteante de todo o filme: imprevisto e concertante, necessário e ondulante, retamente fatal, de curvilínea embocadura; um metrônomo corrigido pela graça ática tão francesa! Biette nunca nos deixará deduzir ou depreender um sentido estável para o filme porque haverá sempre no itinerário de Longe de Manhattan fiapos e estilhaços de gestos, conversações pegas no último minuto, trama canora de pássaros e espessura de fá imprevisto de mulher para impedir a cristalização do filme em uma Summa orgânica, e sobretudo fechada: como os melhores espécimes do cinema tardio de  que tenho notícia (Corps à coeur, Une sale histoire de sardines, Das nuvens à resistência, Les cinéphiles, trilogia folle de Rivette e Out 1, Love streams, a obra de Monteiro e o Godard de Passion e depois), Longe de Manhattan antes  flutua e reverbera que fixa e ordena: estratos de ( histórias do cinema, tropos, inflexões de atuação), jamais inteiramente integrados, jamais exatamente estabilizados pela soberania autocrática do auteur (aliás, um auteur.…?) Lembram-se do texto panegírico a Rohmer (mas também a Straub, Griffith, Pagnol), A borboleta de Griffith? “Os maiores momentos dos filmes de Rohmer são menos aqueles onde ele desenvolve sua acuidade psicológica única (…) do que aqueles em que capta, para além da linguagem falada, nos rostos mudos, nos olhares, no espaço, na natureza, o movimento quase invisível do mundo”.

Sim, o ‘movimento invisível do mundo’ é este contexto generoso de presença que farfalha, irisa e ondula os movimentos dos homens e das palavras em Longe de Manhattan: cachorros que nos contemplam partir, efeitos sem causa evidente e palavras sem nexo flagrante, ao vento outonal de uma festa que finou-se antes do apogeu, além deste ultra-close gourmandise do pé de Bouvet são, por exemplo, alguns dos espécimes que nos acompanham pelo itinerário do film in progress; mas esta onipresença do mundo também comparece tematicamente, por exemplo quando daquela misteriosa cena em que Saviange, pé avanti no caminho da clareira e do Dimanche entusiasmado por ‘flagrá-la’ in loco e pé atrás com a enervante possibilidade de que “tenha alguém nos seguindo”, reconcilia-se enfim com seu próprio passo ao ouvir a resposta do pintor: “Sim, o mundo está cheio de presenças; vento, luz”…mas será que ouvi bem? Rebobino o vídeo e rejubilo-me a confirmar que René também se interessa por pássaros: sim, um filme cheio de andorinhas e scherzi de Schubert. 

Quando Biette, no texto sobre Rohmer, evoca-nos o ‘movimento invisível do mundo’, não lhes parece também um elogio enviesado a, respectivamente, Helena Blavatsky e Jacques Tourneur? Exato: de médiuns. O melhor de Biette é, como no melhor de Tourneur e de Rohmer, questão de mediunidade; mas para fazer justiça à ‘letra’ do filme, pensemos mais apropriadamente segundo a metáfora musical que é devida ao musicista Biette, e elejamos como o metrônomo de tudo a figura do interstício cromático, se auscultarmos com atenção o diapasão de sua montagem impressionista, feito de prolongamentos quietistas e intrusões vertiginosas, como o belicoso vento noturno numa maré feita para a placidez da manhã; se Biette, em um judicioso texto sobre o Bassin de John Wayne de João César Monteiro, falava com enfático de Revelação num certo Teatro do plano 3, o découpage de Longe de Manhattan invoca-nos antes a musicalidade, entrecortada e oscilante, da sequência, pois os planos do filme aspiram menos à autonomia antinômica do coup que à sua integração devaneante num espiral de minutos; reparem bem ( como ouçam): Longe de Manhattan é uma tempestuosa sinfonia de Bruckner – chiados de cigarras, volutas de Haydn, sombras e passos e frases soltas – , finamente retrabalhada para caber em uma sonatina de Busoni; aliás, precisamente lembram-se de ouvir Bach rearranjado por Busoni? Sim, tantos temas e variações de catedrais sempiternas, agora ‘reenquadrados’ em um terceto camerístico para salões de chá burguês: Biette, o miniaturista (arte tardia novamente: Paradjanov relendo os vitrais-Summa medievos segundo escrínios infinitamente pequenos ‘palma da mão e lente de celular’, em A cor da romã). 

Esta não será a única duplicidade- no caso, cromática- do filme; ao longo de Longe de Manhattan (antes  dizia-se, e bem: arcabouço) há a sua difração em uma dupla embocadura serial: antes de tudo, a linha causal ‘melodramática, mise en scène e cadre’ do Complot ( aqui, para abordar Dimanche e saber a razão de seu silêncio); mas esta será sempre percutida e tamisada pela linha ‘casual intempestiva ‘plano sequência e locação’ – sim, repito-me, como no Parto de Mozart -, do fá imprevisto de mulher, do ‘chá das cinco’ e do passeio das sete; lembremo-nos, para este propósito ilustrativo, da extraordinária cena em que Bouvet  finalmente desce de sua cobertura ‘de Alberti’ e tenta convencer Saviange a seduzir o pintor para, a qualquer custo, descobrir  a razão de sua inatividade de oito anos. Reparem neste plano (captura acima) arguto, ardiloso em que o mascaramento da personagem de Saviange, que nos furta o rosto neste eixo ligeiramente enviesado, abre o filme  a uma insuspeita vertigem hermenêutica; thrillers de suspense, investigação sigilosa, sugerido terror se deixam inervar por este rosto que se nega; é pelo minimalismo genial de Biette (leitor da litote clássica, em situação agora completamente dessaturada de aura, casual-jornalística) que o espectador, co-partícipe suis, penetra no filme; mas em um mesmo movimento – e isto vocês não podem ver, mas perturba-nos e enleva-nos em off no filme -, o som direto nos presentifica uma tarde semi-chuvosa nos arredores de Paris depois do chá das cinco tomado em porcelanas de Sèvres! são bandos de andorinhas à espreita desses personagens exilados de thriller, e o plano recende ainda a fio elétrico desencapado de ruas ensopadas da chuva recente; na calçada, ressoam os passos de um homem de rosto turvo (gim barato? dívidas a resgatar?) e expedito beat de lord decaído, que conversara com Sonia minuto antes, distanciando-se para pegar o próximo trem; e não ‘podem ver’ que na vizinhança de ambos uma schubertiana invicta encontra um haydniano apóstata (dedica-se a Pergolesi, quando bêbado) para falar de Mozart? 

Eu gostaria francamente de ler o que Proust, fenomenólogo  eminente, teria a nos dizer sobre este plano extraordinário, infra e supra percutido por vastidão de impressões fugidias mas não menos incrustadas em nossa perceptivo reminiscente; sabemos que o fora de campo, segundo uma função herdada por exemplo da metonímia literária, pode presentificar-se por efração fantasmagórica no plano, da dimensão ominosa-cognitiva da câmera que se aproxima dos ombros da vítima no filme de terror (para” avisar ao espectador” do perigo iminente) à chã-desconstrutivista de um movimento abrupto de câmera onde se revela malgré lui a presença da câmera e artefatos de filmagem; mas o que Biette consegue ‘sem conseguir aqui’ (é esta precisamente a sua tática encoberta: fascinantemente crítica como vice-versa) é realmente extraordinário: a vida geral e a particular da Cidade, corpo movente e fremente de sinais; a presença dos ares molhados de chuva e dos passos crepitantes de pressa, como os stacatti sussurrados da schubertiana invicta.

Perdoem-me deter-me um tanto nesta sequência, mas o sonso de tudo merece uma inspeção com detida lupa; Bouvet fala para Saviange (toca-lhe o rosto com este expedito-descontraído que é o gesto mascarado por excelência do primeiro Biette, mas aqui intumescido com o mau-humor sestroso tão típico de Bouvet) que ela “deve tirar esta mancha negra do olho; ele não deve gostar daquilo, porque é o tipo de coisa que deve indispor o homem”; para leitores ‘do espírito’, devemos poder ler que Dimanche, pintor classicista, não deve suportar traço, franja, rusga de expressionismo na cara de sua iminente discípula: deve ficar claro para nós que o expressionismo é lido aqui como índex de máscara, e logo Dimanche reconheceria sob o angelical ataráxico de Saviange a máscara de uma demoníaca Musidora, que o queria devorar! é assim em Longe de  Manhattan; grandes, decisivas questões do ser e do pensamento roçam a epiderme do mundo, mas esta deve permanecer intacta para que o fascínio ainda seja possível: não se pode aprofundar nada (elogio clássico da superfície, naturalmente) porque é o Mistério do que é que merece ser preservado; tudo aparece-nos de relance, ‘casual-descontraído’ e como se nada; não lhes parece ser este um método ideal para reconciliar a Jouissance clássica e o melancólico para-si moderno? Tudo saber, mas como se nada, brincando ainda? Para mim, sim.

Eu falei de Mistério? Perto do final – vocês se lembram, antes da festa funebremente irônica onde se celebra um livro escrito sobre Dimanche -, Biette nos oferece um monólogo revelador, pois se dá num plano médio onde dialogam com Sonia Saviange, perdida em si mesma, as folhas e o vento ao fundo;  ela não está mais maquiada, travestida (Musidora?), ‘encenada’, , ou pelo menos esta máscara não lhe cola mais na pele, pois abandonou o thriller  “Segredo de René Dimanche” e acedeu à vita contemplativa (aliás, praticada fervorosamente por alguns artistas a que admiramos), vita esta a que se dedicou com empenho grande parte do cinema moderno; como dizem aqueles pastores protestantes, que se fazem de mais ingênuos do que são para um público realmente ingênuo, Sonia agora é uma Outra, pois a palavra (o gesto do pintor) a revelou para si mesma. E em que consiste esta Revelação? Numa ascese mística. Ela narra para Bouvet (que a escuta, num contracampo de close violentíssimo, onde nada se vê senão o nariz atrabiliário do investigador) que enquanto Dimanche desenhava sentiu-se num “deserto, num deserto de nuvens, onde se perdeu; (…)”; e que deste deserto de nuvens, onde nada via senão a  si mesma, ela talvez tenha visto o que Dimanche via; e que neste mesmo deserto de nuvens onde tudo, menos este mundo, se via, Sonia viu o seu mundo passado: o seu marido coronel, com quem tinha sido tão bonito viver, antes que se tornasse atroz viver; lembrou-se de seu filho morto, de seu filho que era tudo para ela…sim, neste deserto de nuvens, onde também vivia (e via; sobretudo via) René Dimanche, ela também pôde ver. Bouvet abruptamente a interrompe, encimado por aquele close violador, onde a função policialesca do conceito sobre aquilo que é (como? o que? O Segredo de Dimanche!) se figura literalmente: “Você deve esquecer tudo isto; tudo é passado; o seu presente é outro; haverá outros amores; haverá outras histórias”. Mas para a experiência de Presença que Sonia como Dimanche tiveram não existe Presença senão Una; a Eterna? Conhecemos o final desta história; Sonia deixa para trás o circuitinho ‘diletante-esclarecido’ dos marchands, dos jornalistas bisbilhoteiros e dos conceitos inefáveis, que se despedem de nós naquela festinha desolada em que se cruzam (sem nada significar), extravios de passos trôpegos e réplicas sem replicante; acompanhada por esta panorâmica ‘de parada’ com que Biette (assistente de Pasolini, herdeiro de Tourneur e de Rossellini) nos delineia o percurso de uma conversão, Sonia Saviange abandona o in extremis mundano da supra-significação pelo in extremis naturans da epifania; sabemos, como lembrado no início deste texto, da ruse da natureza-morta pintada, e que portanto a crença íntegra, como o raccord diretivo-causal, não são mais totalmente possíveis; o mundo e seus entes, porém, permanecem aí como no Princípio, e o cinema, arte da Revelação, estará também para atestar a empreinte cabal desta presença.

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Tempo, de M. Night Shyamalan: O tempo do Fim

Por Luiz Soares Júnior

Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até o tempo do Fim. Muitos andarão errantes, e a iniquidade aumentará.

Daniel, 12: 4 

Todos os estágios do conhecimento devem ser buscados no seio da Natureza.

Leon Battista Alberti, Della pittura 

O resort climatizado, o hotel cosmopolita são vetores de jouissance gregária através dos quais o nosso tempo prolonga e sistematiza a mais-valia luxuosa dos tempos privados de férias em uma espécie de kairos global e multicultural, experimento in vitro vorazmente aterrador em seu simulacro de acolhimento tépido da diferença, porque a tudo integra mais eficientemente ao mesmo: sob o cartão-postal asséptico da praia de Tempo, sub jaz um laboratório-panóptico que enfeixa o filme como o experimento do experimento, como aquilo que deve ser desconstruído em seu arremate como simulacro mabusiano diabólico (sim, de uma origem que nos solicita novamente no fim, como em toda genealogia digna de seu destino), cujo objeto ontológico é a experiência humana, de que somos mais e mais deficitários em tempos virtuais. Este é apenas o clímax, em matéria de narrativa, de cenário e de estrutura, de um processo subterrâneo de erosão, agora mais evidente em obras como Tempo, do sujeito e da experiência significativa de que este é tributário, em suma, de elisão da possibilidade, candente mesmo em tempos de uma arte de tecnologia extrema como o cinema, de contar a própria história: é esta impossibilidade o objeto do filme de Shyalaman.

A experiência aqui é para um outro tecnológico, central e registro computacional behavorista, talvez o arqui-dispositivo por detrás de tudo. Tempo é um título sintético e sincrético, pois com os personagens decaímos antes do apogeu, e portanto não possuímos mais o tempo de uma experiência teleológica progressiva, de uma experiência propriamente dita: a caducidade de uma obra muito nova, já que encimada por uma cúpula modernista (o olho en abîme do cineasta M. Night é para você, e isto apesar de jamais abandonarmos o plateau do filme, apesar da fissura diegética que só nos entreabre outra dobra da mesma narrativa refratada),e  ao mesmo tempo muito velho, porque atravessado de coordenadas modernas, a tardia e nascitura anáclase do cinema de Shyamalan. 

Para modus operandi de sua compreensão mais estrutural, Tempo coteja trabalhando dois partis pris pós-modernos (o simulacro, o dispositivo, ou a praia vigiada e o laboratório) sem jamais abandonar as coordenadas do cinema moderno, cinema para o qual aliás o tempo, tematizado exclusivamente enquanto tal por Tempo,  foi o rincão, o privilegiado projeto de descrição (um cinema mais descritivo de estados de coisas e de almas que narrativo, como nos mostraram as caminhadas videntes dos personagens do Rossellini da guerra pelos escombros da cidade desolada, embora finalmente virgem de valores para uma primeira vez). Com uma complicação suplementar, essencial à face de Janus complementar e reciprocamente implicante do filme: a experiência do “cinema moderno” agora é, mesmo que de maneira endo-diegética, aberta às escaramuças do simulacro, do poder vivissecante do significante, da ronda vertiginosa da interpretação do espectador, na medida em que o filme solicita a memória,a  percepção e a inteligência nossas (como igualmente a dos personagens e  isto em uma mesma rota unívoca) para saber recordar e integrar à diegese in memoriam uma “garrafa lançada ao mar” que será essencial na compreensão de tudo, em sua decifração espectatorial; em que sentido escrevo endógena-diegética? No sentido de que Tempo jamais abandona a abóbada do próprio filme, interditando a exterioridade radical, tão comum em obras mais assumidamente pós-modernas, do trabalho crítico integrado à configuração da própria obra, como parte constitutiva de sua matéria imaterial;  porque jamais saímos de dentro de Tempo para intentar uma supra-análise crítica de seus conteúdos, mesmo e sobretudo quando a infração suprema ao codex clássico se encena expressamente para nós,quando da revelação do simulacro pelo próprio diretor, agora personagem: há ainda um terceiro e decisivo ato de arremate para que o contrato da crença clássica, apesar da fresta entreaberta pela presença da câmera e do olhar de M. Night para o espectador, possa ser reconstituído no laboratório com que o jogo do encoberto e do desvelado se encerra, deux ex-machina que ao princípio reencontra a origem diegeticamente, na mensagem cifrada e agora salvífica da criança para a qual tudo converge e solicita enfim reconciliação; aliás, é para este esconde-esconde típico de obras que permanecem na Origem que o filme encontra um norte decisivo: um filme sobre o cronos entrópico do fim reencontra o Kairos sintrópico da origem e na metade de Tempo já vamos sapiencialmente aprender a morrer, como o casal protagonista nos ensina à beira da fogueira e ao lado dos filhos, decalque do leito de morte com candelabro na mão e chiaroscuro no fundo dos Greuze e Fragonard da história da arte para um cenário de cinema moderno; no máximo, o que é exigido ao espectador e à estrutura do próprio Tempo é decifrar a mensagem abscôndita da infância, e não o engendramento de estripulias intelectuais com que se deleitaria por exemplo um Peter Greenaway ou Lars Von Trier.

Se Tempo pode ser considerado uma obra modernista como estou fazendo aqui é apenas na medida em que M. Night  é antes de tudo o intérprete de um destino-herança (Schicksal) do cinema moderno, mas só o é legitimamente na medida em que seu cinema também se mostra atento aos usos e leituras da contemporaneidade, em que se justapõem e implicam esta herança e seu herdeiro futuro, agora presente; Tempo tão cedo não vai correr o risco de ser um espécime caduca ou anacrônica de leitor de seu tempo, ultrapassado por este, porque sabe equilibrar a justa balança de ser o lugar de um apelo do passado que se engendra no presente de sua substância atual, e por esta razão solicita o cinema in extremis do nosso tempo apenas na medida em que sabe  sopesar a ideal medida de ser o locus de acolhimento do passado, um tipo oposto em matéria de paradigma à experiência intempestiva do aprendiz de feiticeiro de Goethe, que desencadeia e leva à emergência da superfície  fórmulas de abracadabra e forças mágicas que ele não sabe controlar. Esta, aliás, talvez seja a falaz virtude de que Tempo possa vir a ser objeto, para um espectador do futuro do imperfeito (alguém para quem o passado conta como impressão de fantasma sobre o futuro): seu excessivo refinamento de autocontrole estrutural pode vir a perdê-lo, porque são aqueles cineastas que menos recuam e eclipsam (menos semeiam elipses, para o fora de campo do espectador preencher ou enervar), que mais manietam o filme em nome de um projeto artístico que o suplanta em direção à totalidade da obra ou a fatalidade da herança, que podem sofrer a ação de um processo de envelhecimento, um tanto ironicamente aqui porque à imagem e semelhança do aceleramento ontológico perverso sobre o qual Tempo se debruça; esta é apenas uma hipótese de trabalho, a que farão jus ou não os pósteros do filme de Shyamalan.

Em um de seus textos, Jean-Claude Biette, a propósito de um panegírico a um dos últimos filmes clássicos fecundos em termos de enunciação- e talvez não por acaso se trate de uma obra de fantasia, como em Shyalaman de fantástico, “nosso último Logos”: o díptico indiano de Fritz Lang, falava desta língua universal, mas oca que se substituira à linguagem comunicativa do cinema clássico, língua esta que não fala muita coisa de autêntico senão do esvaziamento do sujeito/auteur em nome de um vernáculo informatizado, com a consequente vitória do algoritmo sobre o emblema da experiência, o significante/plano de cinema, que o cinema havia paciente e sistematicamente urdido desde os anos 30: “(…) a língua do cinema internacional é uma espécie de compromisso estético entre a modernidade dos hollywoodianos e a dos europeus das recentes gerações. Uma língua que toma emprestado ao mesmo tempo à eficiência do telefilme americano, ao pragmatismo preguiçoso do audiovisual europeu (de que Rossellini foi o infeliz predecessor) e às novas línguas restritas e referenciais do comércio (pubs) e do espetáculo (clips), para se constituir em pretenso instrumento de comunicação universal , enquanto que não passa de uma retórica oportunista, prestes a capitalizar não importa qual nova técnica”. E esta língua sem horizonte nem espessura realmente comunicativos, sem objeto ou conteúdo senão o seu próprio balbucio asséptico avaro de sentido – e, portanto, sem compromisso com a verdade outrora habitante de um “plano de cinema”, com todas as suas mediações contidas/conjugadas -, língua esta de que o clip constitui a forma de representação mais pertinente, possui hoje seus objetos aclimatados, e ei-los objetivamente encarnados nos dois cenários complementares/superpostos de Tempo, o simulacro e o dispositivo: a praia e o laboratório, representações respectivamente do paraíso (reencontrado porque perdido: a impossibilidade de contar esta história, rápida demais para ser capturada pela palavra humana) e do inferno para-si do laboratório a partir do qual, no rewind da experiência reconquistada do vídeo, tudo se reconstrui; no primeiro caso , a praia é um corpo que nasceu decrépito, pois oculta en abîme uma dobra tecnológica e distóptica pensante, que só ao final será completamente desarmada: seguindo à la lettre a reflexão de Biette, Madonna ou um rapper famoso poderiam ter lançado neste hotel seu novo clip, aqui todo o bric à brac da indústria cultural bem assentaria seu palco e bastidores, como assenta diegeticamente no filme, mesmo que no arrière-plan a ser desvelado num final grandiloquente no qual o Tempo como dispositivo se revela e se desarma,  se engendra e se encena todo experimento inumano, pós-humano em nome da humanidade sofredora, cooptação pelo julgamento moral da dualidade de que o filme de M. Night é debitário: aqui, a mise en scène eugenista do nazismo e a inefabilidade da bella figura clássica deságuam com propósitos humanitaristas perversos, mas tudo é prestidigitação para manter intocável a estrutura à parte do filme de experiência/experimento clássico, neste caso é claro com uma essência de fantástico que melhor encobre para tudo suturando  ao cabo advir à cena: o des-cobrimento espetacular do dispositivo final pouco serve para legitimar os encobrimentos e retoques de que os travellings indexados inseridos por Shyamalan com propósito de desmascaramento subliminar (a princípio, a câmera com a stylo dos travellings apenas aponta ou sublinha, deixando em geral entrever de forma sub-reptícia que no próximo contracampo vai advir algo de monstruoso ou aberrante, enquanto que no découpage tudo corre escorreito e lábil, pelo menos até que a ameaça onimosa no fora de quadro se revele claramente) estabelecem.

Tempo precisa deste mecanismo de refração, em que o filme de experiência/experimento moderno, com um cenário e personagens articulados como se partes do mesmo corpo exangue, na verdade encobre um dispositivo pós-moderno que em nada deixa a dever aos seus espécimes mais turbulentos ou histéricos, só que agora à la Shyamalan: uma superfície íntegra apenas em aparência, pois se estimulada pelo bisturi do olho do espectador em seus pontos vitais vai descobrir uma ferida profunda e candente, que estrutura o filme e consequentemente a recepção; Esta é a estrutura-mater indispensável a filmes como Tempo e A visita, este é o destino do cinema que Shyamalan trabalha e legitima, fornecendo uma resposta fecunda, mas sempre provisória (a dimensão experimental de seu cinema, que subjaz à arquitetura neo-clássica) à questão endereçada pelo passado: o filme de gênero é um simulacro que encobre o verdadeiro simulacro, manipulação virtual do panóptico áudio-visual televisivo como aqui ou a telinha do celular em A visita. Não por acaso M. Night escolheu para sua alegoria transparente de febre do inferno, alegoria distópica de ficção científica filmada enquanto tal (as condições da representação, que assolam à cena do filme no final: o laboratório, a câmera de registro e o aparelho de edição, o staff da filmagem e o clin d’oeil não extra, mas  infra-diegético do diretor para a câmera) sobre o fim dos tempos ou o tempo do fim – término da experiência como re-conhecida pelo ocidente até então, pela lógica “aceleração de partículas” do travelling lateral extemporâneo ou travelling avanti de insert-, estes decores terminais de uma civilização que já não sabe morrer senão aclimatada pelo labirinto vítreo e customizado de suas galeras de prisioneiros da caverna cuja sombra foi usurpada por uma tela plana, uniforme e portátil de celular que nada reflete senão o seu próprio e outro vacuum: qual a relação precisamente entre a entropia ontológica- o éden virado ao avesso descrito pelo filme, em que a velhice praticamente coincide com o acme da juventude, em que tudo se torna contemporâneo e hodierno, anulando-se a experiência teleologicamente orientada do princípio, meio e fim – e a assepsia pós-moderna de um décor e uma língua que já não precisam falar pela mesma cartilha do humano para serem identificados como pós-modernos? Sim, M. Night nos oferece um filme sobre  a pós-modernidade sem abandonar nenhuma coordenada da narrativa, figura e fundo clássicos, com a exceção dos sublinhados acima descritos (os travellings ilusórios de um Méliés que integrou o ethos da transparência dos 40 às suas estripulias de proscênio…).

Tempo é um filme sobre o pós-moderno, o pós-humano (admitindo-se a modernidade filosófica como aquele movimento cujo princípio coincide com o grund do sujeito da fenestra aperta de Alberti e do espelho de Brunelleleschi, que subsume a todo ente sob seu olho onisciente) sob o ponto de vista de uma margem ainda clássica onde o homem não coopta e domina tudo das alturas de sua manipulação representacional, e sim ainda é um ente criado ( ens creatum, segundo Leibniz e Lumière) ou personagem diegético da ficção endógena do filme: os devires acelerados mas perceptíveis enquanto tais apenas se cotejados com o movimento realista de um corpo humano que se desloca pelo espaço do plano de cinema, o fondu au noir onde se susta a cronologia diegética da jouissance e se gesta uterinamente um tempo da danação, o plano frontal mas atento aos deslocamentos paralelos que acompanha os movimentos e os coordena entre si e contra o fundo do décor: M. Night filma Tempo a um  só tempo, uma experiência e sua antítese – pós-humana, pós-sujeito e portanto pós-moderna de dentro da praia diegética, de coordenadas clássicas e subjetivistas do grande décor absorvente de fascinação dos tristes trópicos entrópicos.

Não precisamos ser talmudistas ou filósofos da diferença francesa para pensar, segundo o Louis Marin de A palavra comida (La parole mangée), semiólogo e crítico de arte terrorista inspirado pela gramática de Port Royale, que talvez não haja melhor palavra senão o oxímoro para exprimir o paradoxo onde a verdade, dádiva infinita, se experimenta outra e se revela integralmente numa partícula finita: começamos com o sol negro de Rimbaud,e por que não terminar com o Inferno tropical do panóptico rigidamente manipulado, ‘audiovisual’ com que se encerra Tempo? Por que não imaginar termos e coordenadas a partir dos quais o apocalipse, o fim dos tempos, nos apareça sob a face consetudinária das férias de verão- um tempo a mais, esvaziado ou pleno, segundo o ponto de vista mediatório do trabalho ou da fruição integral-, e a máscara onimosa de sua demanda de morte coincida com uma oferta surpreendente de jouissance oferecida pela instituição predatória capitalista por excelência, ao lado do banco? Um experimento, certo, legitimado a posteriori  pelo fito salvífico de abreviar o sofrimento humano, mesmo que o quid da experiência, cuja essência especular é o tempo, seja o mais precioso dom a ser aqui cooptado e desperdiçado; sob a égide do Divino, pelo menos enquanto este existiu (fase serena, acidentada aqui e ali apenas ao custo de reecontrar-se una ao final , mas sobretudo teleologicamente orientada da estética clássica, inspirada pela crença onto-teológica numa entidade superior que asseguraria, ao cabo e portanto ao princípio, sentido a tudo), os homens foram submetidos a experimentos semelhantes, mas estes concidiam com a urdidura do próprio filmes e jamais virariam a  câmera de volta para nós: aqui, é Justamente M. Night quem se incumbe de representar este papel de revelador en abîme, sem que no entanto o filme enquanto tal, repartido de parte em parte com uma estrutura endógenamente auto-centrada, sofra jamais o estilhaçamento tumultuoso de tantas obras mal polidas e desorientadas da pós-modernidade: este diamante cindido e cerzido em dois pelo para-si do panóptico “diegético” do arremate de Tempo se parece, em sua polidez e cerzi-dura (excetuada a resolução final, que precisamente o cinde em dois) com outro espécime neo-clássico de sua carreira, o The Happening (Fim dos tempos), que não por acaso tinha como objeto um devir igualmente crepuscular, lá talvez mais espetacular, mais propriamente apocalíptico, talvez porque não objeto de um experimento científico controlado sob condições de temperatura e pressão. Mas isso é objeto especulativo para outro texto.

De te fabula narratur (A Fábula fala de ti): este conto do avarento monstruoso de Horácio nos repugna pelo que há de Mesmo na alteridade do monstro  (eu, tu e o monstro: questão de grau, sempre) em cada um de nós, como pensavam igualmente o Freud das pequenas diferenças e o Sibony de Sobre o anti-semitismo; todas as fábulas falam incansavelmente de nós – e talvez as alegóricas sejam as mais adequadas para as crianças, porque lhes oferece um organograma opticamente expressionista à grandeur de vue  sobre os labirintos da vida, como Tempo o é para o espectador mainstream -, mas como são obras clássicas, feitas de filtros e filigranas, já que o classicismo foi uma arte da absoluta discreção, o fazem grunhindo com a máscara do Minotauro ou reluzindo pedra lazúli com o escudo com que Teseu venceu a Medusa; De Esopo a La Fontaine, de La Fontaine a Lewis Carrol e de Lewis Carrol a Jodorowski a fábula foi este conto necessário para instilar um julgamento moral em seres ainda inocentes mas que precisavam ser precavidos dos horrores do mundo, já que até então tinham unicamente à sua disposição as ofertas epifânicas daquiilo que é, como as crianças que escalam o canyon e se banham no mar sem saber que já não cabem nos braços da mãe; as fábulas nos injetavam anticorpos, porque segundo o mecanismo vitorioso da vacina precisamos cultivar um que de atroz da alteridade em nossa própria derme, para que nosso encontro com a mesma não nos seja fatal; não é isto o que Old faz, não nos instila anticorpos contra um uso falaz e histérico da pós-modernidade, espécimes de que nos vemos circundados como em uma arquibancada de neo-bárbaros sem noção da herança a que nós, contemporâneos, temos antes de tudo de prestas contas e préstimos? 

Não um panegírico a priorístico do passado, pois isto equivaleria a uma obra passadista, masturbatória-idealista e anacronista, mas um reconhecimento de que sem este não haverá futuro, de que tudo percorre a mesma e outra linha de destinação de que o homem é o agente testemunhal e o promotor de criação; assim, Tempo não foge desta lógica paranoica que desconfia do homem no comando da representação daquilo que é, porque esta é a lógica de nosso tempo, na política, costumes ou artes: a fábula é um panegírico ‘desconfiado’ do encantamento do mundo que no fim de uma era ( em tempos, como se diz, de modernidade líquida) vem solicitar também nossa atenção e nosso dedo em riste para os perigos de uma cooptação do encantamento do que é pela tecno-ciência, tentáculo vastamente urdido com o propósito de estancar as fontes apofânticas do que nos aparece, de dar à sua fruição uma destinação algorítmica, à experiência um telos semiótico, encobrir o ser com a teia e tela dos conceitos e dos registros, dos teoremas e das sistemas; o éden paradisíaco do avesso onde a experiência sofre um golpe fatal em Tempo poderia ser um simulacro de Lars Von Trier ou desaguar num dispositivo de Peter Greenaway, mas o cinema de M. Night contém ainda e sobretudo a fascinação  dos solilóquios, o eudaimonismo dos gestos últimos em família, o combate sempiterno entre o antagonista racista e seu inevitável destino, os tormentos da vida em grupo e a comunidade que só pode ser empreendida a partir destes tormentos (sapiência dos deslocamentos e intumescência dinâmica dos planos de conjunto) , a condensação do crepúsculo e a rarefação da aurora, formas ontológicas de resistir num plano de cinema ao reino fantasmático das imagens pós-modernas da melhor maneira para se fazer isso: perversamente, se servindo do simulacro e do dispositivo da modernidade líquida para triunfar sobre seu sepulcro; para mim, a vitória do plano de cinema sobre o algoritmo do clip ainda é uma batalha a ser ganha, e Tempo é certamente um belo espécime para pensar esta contenda salvífica para toda uma História do cinema que ainda está aí à porta para nos desafiar. 

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Sessão Bruta (2021) de As Talavistas e ela.ltda

Por Natália Reis

Se eu pudesse nomear dois padrinhos para o momento da concepção de Sessão Bruta, eles seriam Marlon Riggs e Hélio Oiticica. De um lado, a investigação poética de trajetórias, corpos, gêneros e sexualidades à margem da margem. De outro, a noção de vida e arte como vetores indistinguíveis entre si e a experimentação cinematográfica como forma de se manter no limiar do cinema,  no quase-cinema. Se Oiticica falava da necessidade de assumir uma condição “subterrânea” para trilhar a produção artística no Brasil, o coletivo mineiro LGBTQIA+ “As Talavistas” vai reinventar o conceito pela via da “clandestinidade”, parte constituinte das identidades radicalizadas de suas integrantes e força motriz que faz com que o próprio processo de produção do filme se afaste de qualquer normatização.

Sessão Bruta vai abrir com uma cena totalmente adorável: no aconchego de um quarto cor de rosa, um grupo de amigas conversa através de uma caixa de som potente com a assistente virtual do Google. Em alguns momentos as perguntas (sobre drogas, terrorismo, etc.) feitas à inteligência artificial vão gerar respostas incoerentes, equívocos, falhas engraçadas; em outros, a voz feminina robotizada simplesmente prefere se calar e é desafiada pela sua interlocutora a se retratar. A situação toda é guiada por um humor provocativo, do tipo que faz você querer conhecer melhor essas personagens igualmente adoráveis. E é exatamente isso que vai acontecer nos próximos 80 minutos de filme. 

Através de depoimentos, performances, discussões acirradas sobre gênero, classe e raça e momentos escrachados de diversão, o longa vai se estruturar como uma espécie de apresentação do coletivo, explorando ainda histórias individuais e as possibilidades de cor, texturas e ruídos oferecidas pela manipulação de imagens de arquivo captadas por uma câmera Mini-DV e distribuídas pelo intervalo de cerca de quatro anos de registro.  Ao partir de uma ideia de obra em transição ou “um filme por fazer”, a montagem tenta empreender uma fragmentação intuitiva que nem sempre consegue se ater à proposta experimental que a articulação do material bruto pode oferecer, caindo por vezes em cenas puramente didáticas e arrastadas que acabam prejudicando o dinamismo e a força das demais. Ainda assim, o filme é um interessante exercício de reflexão sobre o próprio processo da experimentação coletiva como fortalecimento das redes e existências clandestinas. Muita coisa, coisas maravilhosas e poderosas, estão acontecendo sem que tomemos nota, e Sessão Bruta é um convite para abrirmos os olhos a elas.

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Grade (Lucas Andrade, 2022)

Por João Lucas Pedrosa

“O gosto camp atual apaga ou contradiz frontalmente a natureza. E a relação camp com o passado é sentimental ao extremo”. É certo que o “atual” camp discorrido por Sontag era o dos anos 1960, oriundo de outra realidade. Acaba sendo sempre tortuoso discorrer sobre o tema por conta de consistir numa forma específica de sentir (ao invés de estetizar) objetos e pessoas, e por haver confusões, quando não uma convergência direta, entre ele e um maneirismo estético. Mas acredito que muitos pontos levantados pela autora sobre essa forma de sensibilidade – encontram-se com a recente obra de Lucas Andrade exibida na Mostra Aurora da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes. 

“Grade” acompanha vários internos da APAC, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, em São João del Rei. É um tipo diferente de centro penitenciário, em que os prisioneiros organizam os recintos e as atividades, lavam sua louça e sua roupa, administram a própria segurança. Basicamente, são os próprios policiais. É um cotidiano rígido, com hora obrigatória de oração e trabalho. Existe hierarquia entre os condenados, e alguns que estão há mais tempo e ocupam posições mais elevadas de chefia. A escolha por estar lá é facultativa: assine um papel e volte para a prisão, se assim preferir. Interessantemente, há quem prefira; lá é mais hostil, mas tem-se outras escolhas (como a de não rezar o tempo todo). Há espaços de debate e solução de atritos pessoais (picuinhas individuais) e coletivos (brigas pelo tempo de televisão), mas os conflitos nunca chegam ao físico pelo recorte de Andrade. Se surgem por fala, são solucionadas com um terno e sorridente abraço entre os dois brigados. A APAC é, necessariamente, um espaço inteiramente masculino, dado que é prisão; mas é, interessantemente, apresentada por Andrade como um espaço onde parece predominar uma sensibilidade mais feminina, onde as pulsões de violência, e até mesmo de sexualidade, quase nunca citada em filme (mas chegaremos à forma que é citada), são sublimadas não só por atividades laborais, mas também artísticas: tricô, canto, pintura. O fim que justifica os meios é uma decisão pessoal pela mudança de vida, de comportamento. Isso envolve, naturalmente, a mudança de postura para com o mundo.

Onde entra, nisso, o camp? O longa começa numa sorte de cinema observacional, de câmera parada, com enquadramentos de profundidade. Tudo indica que o filme seguirá um convencional realismo psicológico e se fará de mosca na parede (como em algumas outras sequências procurará operar). Então, em determinado momento, um dos prisioneiros aparece voando sobre um tapete mágico, sobre uma paisagem claramente de chroma key, acenando e mostrando o dedo do meio para o mundo abaixo (pode haver um joguete com a prisão convencional, que eles costumam chamar de “lá embaixo”; mas pode também ser literalmente “o mundo todo”). A partir daí, inúmeras outras esquetes escritas e interpretadas pelos internos aparecerão de quando em vez, às vezes só inseridos em surreais – como no fundo do mar, ou dançando com outros colegas de prisão no campo -, mas, muitas vezes, performando um outro papel – um dentista carniceiro, uma irmã cafajeste, um padre adúltero, um marinheiro prestes a cair de um navio em mar revolto. Todas sempre humorísticas e, muitas vezes, cenicamente afetadas. É o que Sontag chamaria de “Ser-Como-Interpretar-Um-Papel”: no caso, papel e cenas que eles mesmos escolhem interpretar e, por meio deles, apresentar seu senso de humor, sua corporalidade performática em descontração. É um furo mais que bem-vindo (já iniciado em empreitadas mais antigas como A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa,ou A Cidade É Uma Só, de Adirley Queirós) num estilo que procura restringir indivíduos da camada popular ao “realismo”, acorrentá-los ao concreto da condição do entorno, despido de contradições, sonhos, fantasias, afetações.

Mas as esquetes também começam a contaminar as cenas de suposto “cinema direto”, quando alguns momentos cotidianescos apresentam ostensivas quebras de eixo, takes estilizados, conectam-se com as esquetes (o homem que faz o marinheiro tem na esquete um amigo embriagado sem condição de se segurar em meio à tormenta; após um corte para ele despertando, o que faz a cena parecer um sonho, sai procurando o amigo pelos dormitórios). Mesmo algumas sequências dramáticas começam a soar um pouco encenadas. Desconfiamos do realismo, do que é encenado e do que é captado enquanto acontecimento. Como não sabemos exatamente o que é escrito ou não pelos homens filmados, há beleza e tristeza em imaginar que a sequência de um deles desabafando com um padre no pátio da APAC  sobre a rejeição da família seja de sua própria escolha.

Eis que a forma de “Grade” se alimenta desse conflito em que a consciência da encenação infecta os momentos em que ela não é exibicionista, em que supostamente “se vê aquilo como é”. Ela liberta os prisioneiros por meio dos excessos cênicos guiados pelo arbítrio deles mesmos, emanando uma essência sua que só poderia ser acessada pela autoparódia em sua mais pura ingenuidade, e trazendo a descontração como tom geral de um filme que poderia ser bem mais pesado. Mas, claro, é um filme que quer ser sobre um grupo de homens, não sobre um grupo de prisioneiros.

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Panorama (Alexandre Wahrhaftig, 2022)

Por Natália Reis

Um dos conceitos explorados pelo pesquisador e realizador Jean-Louis Comolli nos seus estudos a respeito do cinema documentário é o da auto-mise-en-scène. A ideia parte da constatação de um gesto inerente ao objeto filmado, que, ao tomar consciência da câmera, passa a empreender uma forma de ficcionalização do próprio comportamento e da maneira como se porta e se coloca no mundo. Para Comolli, é quase inconcebível acreditar que um indivíduo ao ser observado nessas condições não entre também no jogo da representação. Em  Panorama, documentário sobre a gentrificação que engole cada vez mais uma comunidade de mesmo nome no bairro nobre Jardim Panorama, no Morumbi, o diretor Alexandre Wahrhaftig vai se valer da articulação da auto-mise-en-scène manifesta no depoimento dos moradores da região para traçar um mapa territorial e memorialístico de um espaço que existe sob a constante ameaça de desaparecimento pela especulação imobiliária.

Aqui, os relatos de figuras veteranas da favela tomam a dianteira da narrativa, pendendo ora para o naturalismo ora para a artificialidade de situações claramente propostas pelo diretor. O que, ainda que não interfira na pulsão nostálgica do filme ou na explicitação da relação dos moradores com o estatuto da incerteza no futuro, deixa de fora algumas informações que poderiam complementar a força desses momentos.  A imagem geral acaba sendo um tanto difusa, enfraquecida, perdendo-se numa estrutura simplista e num tratamento da linguagem documental que não busca em nada se afastar dos lugares-comuns, mas ainda assim podendo reservar instantes de beleza singela, como uma caminhada de dois velhos amigos pelos labirintos de construções (abandonadas? ainda inacabadas?) e vielas, a revisitação de um álbum de fotografias da juventude e as letras dos raps feitos anos atrás, que são evocadas entre uma conversa e outra numa constatação de que os sentimentos de pertencimento e incerteza sempre estiveram presentes na vida de quem habita o lado oculto do Jardim Panorama. 

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Bem Vindos de Novo (Marcos Yoshi, 2022)

Por João Lucas Pedrosa

Roberto e Yayoko Yoshisaki, pais do diretor Marcos Yoshi, voltam depois de 13 anos morando no Japão, onde trabalharam como operários de uma fábrica para poder sustentar a educação dos filhos. É se alimentando da súbita aproximação após essa abismal ausência que parte “Bem Vindos de Volta”. Os pais que apareciam apenas por imagens (VHS de viagens passadas, fotos e vídeos que eles mandavam periodicamente), agora são corpo presente. O que fazer agora? Criar as próprias imagens. Mas as imagens criadas não se apresentam como uma invenção ou molde dos pais segundo um sentimento prévio, alimentado pelos anos. O que existe é o vácuo, e é o que a produção tenta preencher: a câmera como desculpa para deles se aproximar demais e, assim, re-conhecê-los. Entender sua anatomia, seus olhares, as reações, as rugas, os poros. Como o dedo mindinho do pai sempre se levanta ao segurar algo; como as articulações das pontas dos dedos da mãe ficaram permanentemente inchadas por conta do trabalho. O trabalho, esse grande sacrifício em prol de um bem maior – a subsistência -, e que aparece tanto como salvador (utilitário) e assassino (afetivo). O labor braçal em longas jornadas surge hereditariamente, desde o pai japonês de sua vó, emigrado na época da guerra, chegando até Marcos e suas irmãs, que precisaram trabalhar por uns meses como operários no Japão quando o pai passou por uma retirada de tumor na cabeça. Foi quando entenderam que seus pais renunciaram na expectativa da formação dos filhos mais que a relação com eles: abriram mão da própria vida. 12h de trabalho manual para voltar a um quarto pequeno, desconfortável. Sobreviver o necessário para que o futuro dos filhos esteja garantido, mas o deles se mantenha instável. E o futuro, prometido na imagem das suntuosas, divinas montanhas japonesas, é uma ideia muito velha que, hoje em dia, se manifesta, mais que tudo, como um fracasso do presente. 

E o fazer cinematográfico aparece como uma resistência ao trabalho. A câmera de Yoshi não entra na fábrica, pois o labor aqui é vilão, e a ela interessa o contato humano que os intervalos do fim da jornada permite. O poder olhar. O cinema possibilita que esse olhar se estenda, pois ainda que corpos presentes, a sombra da ausência dos pais (passada e futura) se mantém, como um espectro. Inventariar os pais como no “Katatsumori”, de Naomi Kawase, em que a diretora põe a câmera numa proximidade invasiva do rosto da avó (que a criou) e fica tocando-o, acariciando-o; a vó questiona e ri estranhando, mas a câmera não sai de perto. Porque, se pudesse, Kawase talvez a engoliria, para mantê-la sempre perto de si. Filmar para aproximar, filmar para não afastar. Filmar pelo pavor da partida.   

Eis que numa cena Yoshi pede ao pai para inventariá-lo com as próprias mãos. “Posso tocar sua cabeça?”, e o pai de primeira entende que ele quer falar uma verdade para mexer em sua opinião. Ia permitir isso também, mas estava nervoso, e é meio nervoso que recebe as mãos do filho nos ombros. Eles se olham fixamente, e Marcos começa a tocar a cabeça do pai. As mãos do filho, enfim, conseguem burlar a prisão laboral. O pai fecha os olhos e relaxa, recebendo o toque como afago. Provavelmente o único momento em que relaxa no filme. 

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Os Primeiros Soldados, de Rodrigo de Oliveira: Os deuses que chegam para morrer

Por Luiz Soares Jr.

“Eu descobri que a AIDS é uma doença estranha (…) É uma doença que nos dá tempo de morrer, e à morte o tempo de viver;” esta é a garrafa lançada ao mar em off de Johnny Massaro para encimar com o hors champ virtual do som o plano de seu corpo conspurcado por úlceras em pose de David, olvidados o mármore , o ósculo de Donatello e a poeira dos séculos; sim, o objeto de Os Primeiros Soldados é o tempo que urge, mais descrito em interjeição exclamativa cassavetiana modulada pelo suspense temporal do furacão pialatiano que narrado ‘pace dies irae’ de vela na mão e filhos em torno dos Greuze e Fragonard neo-clássicos moribundos; em Os Primeiros Soldados, este filme inspirado pelos estertores de écriture da página testamentária manchada de fluidos últimos; como descrever, na carne maculada e no gesto invocativo de personagens que sofrem ativamente a própria experiência/experimento do fim (o vídeo testamentário do terço final, que nada faz senão arrematar em chave para-si, tematizada enquanto tal, a experiência/experimento dos fins últimos, e portanto enfim objetos de narrativa, que estrutura o próprio filme) , senão gritando e mordendo , hipérbole paroxística dos corpos em combustão, contra a inimiga à porta? 

Tudo o mais no filme de Rodrigo de Oliveira é pace distendido, vinheta alegorista (o começo, o fim), unção ritual, da capo apaziguado, neutralidade do découpage: uma rigorosa e extenuada écriture a manchar de névoa o negrume lazúli do crepúsculo; aqui, cabe sobretudo aos corpos dos atores o som e a fúria que os incitam a viver e finalmente a morrer, consequência mais causal impossível a que, na vida como na arte, os dionisíacos e  os barrocos sempre fizeram jus: naturalismo fatigado de Clara Choveaux, picardia melancólica de Johnny Massaro, exaltação demiúrgica de Renata Carvalho, Meyerhold para crianças de Vitor Camilo, todos no entanto vibrados segundo o diapasão cool agonístico da iminência de um acontecimento inclemente, não necessariamente a Morte como é tematizado expressamente no filme, e sim algo prenhe de revelações existenciais sobre si mesmos, de radicais diferenças abertas como crateras no seio do Mesmo; este crédito, este pacto in extremis, esta fé herética, esta aposta visceral no corpo do ator, sigificante-mor a ser celebrado, é herdeira de Cassavetes e de Pialat, como dito acima, mas também nasce de uma conversão muito idiossincrática do diretor em pegar os pelos, os suores, as úlceras e os beijos salivados de seus entes possuídos (lembro-me agora de um texto de Narboni sobre Flammes de Arrieta, em que ele compara o corpo do ator ao da prostituta, pois ambos se utilizam da mesma matéria excremencial dos fluidos, aqui contaminados, mas sigamos) e transformá-los em significantes claros e límpidos num filme que deve ao plano o seu fundamento de estrutura mais sólido,e  portanto ao pano de fundo da stylo bailarina de incrição dos corpos em um disegno de paradoxal combustão, como se ao corpo do plano e ao corpo do ator pré existisse uma consanguinidade uterina que ao filme basta atualizar: um filme velado e expiado pelos anjos da Morte se dedica a maior parte de seu tempo in extremis a nos de-mostrar corpos e processos  desenhados contra o fundo do abismo do tempo, corpos que emergem à superfície apesar de e com o abismo?

Como Encore de Paul Vecchiali, talvez o filme contemporâneo à emergência da AIDS que melhor soube extrair dos corpos decompostos como cavalos cinematografados de Muybridge pela doença um gênio coreográfico único em scope ( e, portanto, plástico como cinético, servindo-se do plano como de um invólucro para a marcha inexorável do Mal), Os primeiros soldados exalta o corpo do plano e o corpo do ator como entidades coexistentes para processos in extremis, de que a performance ( aparição extraordinariamente intempestiva e arquetípica em sua histeria feminil, descendo do ônibus e com os peitos em convulsão expostos , de Renata Carvalho, que já prenuncia o tom, diapasão e arremate do filme numa atuação plena de energia mas aberta igualmente às síncopes da agonia) é o evento melodramático, patético mor, de que a cena em que a travesti canta Gonzaguinha com trejeitos e meneios de dançarina de boulevard,decepcionando o público do réveillon, que esperava outra máscara e corpo, como talvez a plateia de festival esperasse outro filme sobre a experiência/experimento do fim?, menos espetacular que especular, como aqui..a interpretação de Renata Carvalho, moeda de Caronte encarnada para supra espasmos do corpo possuído por exaltações somáticas e metafísicas, imprime à diafaneidade de entretons neutros do découpage geral de Os primeiros soldados um flerte com o Infinito das libações trágicas; o equilíbrio atônico do filme encontra, no desespero somático de menino abandonado de Massaro ao descobrir o corpo ulcerado no espelho da câmera-sintomatológica, como também nos sobressaltos e projeções de voz artaudianas de Renata Carvalho, um veio a partir do qual o equilíbrio atônico de tudo ameaça soçobrar e  cair, mas este resvalo, “reparo” e sobressalto de rampa é apenas um biombo detrás do qual tudo- personas-máscaras, narrativas, eixos- se reorganiza para recomeçar outra vez, em outro diapasão: em alguns instantes, a câmera estaca muda e imóvel diante dos objetos, atomizada pelo progressivo esvaziamento nirvânico da voz narrativa pelo processo niilista do corpo que soçobra, e que portanto parece levar com ele para baixo e  para os fundos este filme tantas vezes sobre corpos em devir extático, para fora e para sempre, mas logo o seu eixo se endireita e retoma fôlego, foco, eixo; a performance em Os Primeiros Soldados, -de que a atuação de exterioridade pura de Carvalho é apenas a ponta de lança de processos de interpretação somática mais em surdina no caso dos outros atores, mas não menos intensa- é o buraco da fechadura da cena originária de Freud, o terceiro olho através do qual a  criança vai se intrometer na trepada do casal para investigar as potências possíveis do terceiro excluído, a fresta da indagação metafísica: é no buraco da Mãe que se escondem A Morte, Deus, o Nada? é este empoleirado pedaço de carne entre as pernas do Pai a lança de Tarquínio que vai penetrá-los, tirá-los de seu escaninho de reclusão para trazê-los à luz do ser?

Tudo, através da performance, como da interrogação sobre o invisível da criança diante da ultra-visibilidade do corpo humano, se torna complexo, multiforme, outro; morrer é agora não apenas ser abandonado pelo corpo,e  portanto, como pensava Berckley, abandonar a esfera do ser, que é ver e ser visto, mas também o processo, tantas vezes elíptico, elegíaco e machucado em Os primeiros soldados, de reinventar o corpo ainda ativo, ainda vidente como é visto no espelho paulino: Johnny Massaro filmado com suas úlceras pela câmera espelho se torna o objeto candente e a experiência impossível de alguém que advém novamente à vida ( ele morre um pouco antes do terço testamentário ‘em vídeo final) para dar voz, ritmo, textura a um cadáver “que ainda se agita”, como dizia Pascal da errata pensante, ressurreição só possível numa arte do present tense epifânico e do rewind memorialista; Renata Carvalho é este monstro de vitalidade mas também uma abertura taciturna de inervação mediúnica, onde o Feminino dolorido mas funcional de Clara Choveaux reencontra  as graças de uma potência deliberadamente impotente, à ausculta cúmplice maternal ou de irmã mais velha a velar pelas duas crianças grandes masculinas com suas pílulas milagrosas ( através da lógica da performance, morrer pode também ser visto como uma brincadeira seríssima  mas mesmo assim brincante, de qualquer modo uma alteridade convocada para enriquecer as possibilidades do corpo doente, disléxico e  patético: bastam apenas duas pílulas, e tudo vai cessar, talvez para recomeçar sob outra máscara, penso eu).

Os maneiristas inventaram, dos gestos esmaecidos e dos cinzelados empoeirados das esculturas da antiga Grécia, uma nova Grécia, que coincidiu com a morte da Idade Média: a bella ideia, que as manieri tão cariciosamente invocavam e erigiram em mármore, cores fúnebres e stacatti de árias barrocas era na verdade a terminal máscara para o  cadáver semi-embalsamado pela suntuosa múmia dos significantes maneiristas; foi a cerimônia fúnebre, foram seus codex cênicos, imagéticos e metafóricos o grande leitmotif da subtração preciosista da anamorfose maneirista, aquele que resgata a Cena originária da escultura e da arquibancada gregas para inoculá-la  com este insidioso veneno da maniera, à analogia do fantasista (em 1984) wishful thinking da vacina invocada por Renata Carvalho para Johnny Massaro, perto do final ; assim como a  vacina contém em seu cerne o corpo vitrificado, mortificado, mumificado do vírus para injetar a vida sob a máscara da Morte, a operação maneirista se serviu da arcaica Grécia de Praxíteles, Escopas e Lísipos para inaugurar a Renascença sob a inspiração do menino Jesus da Madona Sistina, velado pelos querubins mortuários que, segundo Daniel Arasse, tinham os rostos mortificados e os dedos emaciados de pungente melancolia porque sabiam que agora finalmente Deus ia morrer, uma vez que desde o monte Sinai Ele havia finalmente se encarnado num homem; toda esta elegíaca constatação fúnebre de que parte para não mais voltar eleva Os Primeiros Soldados à posição agonístca de ser um filme sobre os deuses que chegam para morrer; ao contrário das stars caducas de Femmes femmes (Vecchiali novamente), que dedicavam seu álbum de retratos e músicas demi-faisandés ao Camus de Jouez la comédie!, Rodrigo de Oliveira não precisa adular seus atores ou supra-encantar seu público com uma dedicatória empoeirada; mas é para as personas performáticas e fantasmáticas de Renata Cravalho, Johnny Massaro, Clara Choveaux, etc., como os processos, as ações e as inações que imprimem ao corpo de todo ator uma veleidade de posteridade, de in memoriam encarnado (como pensava o Daney de uma correspondência com Biette sobre Wim Wenders e o fantasma encarnado do ator que atravessa eras e envelhece com o cinema) que o filme é subliminarmente dedicado.

Contudo, eu não gosto do final de Os Primeiros Soldados, que me pareceu demasiado copia e cola do gênero “uma imagem exemplar, “redentorista”, para nos demonstrar que a vida, representada pelo casal jovem e erógeno dos dois meninos que se beijam, vence finalmente a morte, com a repetição/rima aqui da ejaculação fantasista da queima dos fogos, ontem com Suzano e hoje com seu sobrinho; para mim, o filme acaba idealmente muito antes, com o wishful thinking de Rose para Suzano de que daqui a dois anos ninguém nunca mais vai ouvir falar de Aids; é sobre a frágil haste desta esperança quase infantil que nos afastamos para ver melhor  e mais longe que o destino ideal para um filme é encarnar as potências oníricas dos pobres espectadores nestas imagens vertiginosas, feitas de sombra e de luz,que a projeção realiza; também nós, como os deuses,merecemos morrer para finalmente começar a sonhar.

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Avá – Até que os Ventos Aterrem (Camila Mota, 2022)

Por Gabriel Papaléo

Vamos às imagens e sensações do fim do mundo, os símbolos místicos, religiosos e mágicos da tradução dessa terra devastada. À tentativa de diálogo para investigar aonde e como foram destruídas as ideias e as terras. Se não há vislumbre de ação nem organização política diante do fascismo, talvez o verbo agressivo da profecia seja o caminho para o revide. A questão que fica latente logo no ato I de Avá – Até que os Ventos Aterrem, no entanto, é que as intenções de destruição e apoteose são quase opostas ao trabalho de câmera e montagem, mais filmagem de peça e registro pouco pensado de performance que propriamente o desencadeamento de imagens fílmicas que almeja. Partir de dois níveis no plano do palco, o alto da deusa e o baixo do humano, para não diferencia-los em imagem e nem localizá-los no espaço, acaba uma boa ideia implodida sem muitas delongas nos 62 minutos do longa.

A encenação não é adaptada para uma lógica cinematográfica, e continua presa à uma ideia de espetáculos teatral – sem o hibridismo de formas da qual a Mostra encoraja nas justificativas curatoriais; o que sobressai é uma cobertura audiovisual do texto e das atuações, com a câmera nunca soando ativa nas decisões narrativas do filme. Existe esse esforço de articulação principalmente no como as realizadoras lançam mão das imagens encontradas e das texturas experimentais que adentram uma pictorialidade na destruição em tela, mas nunca parece tensionar nas disruptivas, e sim nos termos reiterativos. A cada palavra, uma imagem equivalente; não de antítese, não de complemento, mas de equivalência.

Não por acaso, os créditos finais apresentam “Dramaturgia”, no lugar de argumento ou roteiro, porque a vontade de Avá – Até que os Ventos Aterrem parece sempre honrar uma tradição dos palcos, tradição do incômodo proposto pelo histórico do Teatro Oficina. Nesses créditos, homenageiam os atores e diretores que passaram pelo teatro, além de homenagear também os povos indígenas nas suas lutas por dignidade e por suas terras, um ativismo político que, apesar de comentado em tela, nunca ultrapassa a barreira do comentário de rede social sobre os assuntos desesperadores que aparecem nas nossas telas. No campo das profecias, sobram explicações e reflexões, faltam místicos e chamados à ação.

A opção pela crônica do fim do mundo, reduzida a um soldado num ambiente sitiado e destruído que encontra a transcendência ao buscar o contato com a carne – uma trama que já soa uma alegoria cansada e reducionista de cara – encontra pouca inovação numa encenação que não ilustra espacialmente o desafio da distância física entre soldado-entidade, pessoa-deusa, humana-natureza. As atrizes se valem do texto como dá, mas a dimensão política soa como manifesto aos ventos, pouco articulada além da impressão básica do desgoverno, do descontrole pandêmico, e do ataque às minorias a qual o Brasil passa atualmente. Sobram os trocadilhos com vacina e com guerra, falta o corpo presente que o trabalho teatral tanto almeja.

Não ajuda a opção pela lógica estruturada na fala como fluxo de consciência, vomitada pelas entranhas desesperadas, bem ao monólogo de Lucky em Esperando Godot – para trazer o contato que a peça/filme explicitamente busca, como reforçam os créditos citando Beckett; no personagem do dramaturgo irlandês, o desespero é traduzido em sua maior (e quase única) fala, cuja ambição é a pulsão e o caos na falta de coerência daquelas palavras proferidas por um escravo que sonhou com a fuga; aqui, as falas buscam esse desespero em meio a reflexões políticas muito rasas e um mapeamento de possibilidades do que constitui esse mundo imaginado, quase uma consciência una que se comunica por diversas vozes.

Fica sempre a sensação de que falta ao filme a dimensão desse espaço do futuro obliterado que versa sobre, as limitações do palco que funcionam tão bem no teatro, e que aqui soam como rascunhos distantes. É tocante que se pense numa utopia, na melhor sequência do filme perto do final, e na fúria e graça regeneradoras duma natureza agora sem prestar contas a ninguém – mas é também o refúgio mais direto e insuficiente que os supostos retornos ao primitivismo, a empostada ideia simbolista de primeira mão, desenham sem ao menos desconfiar de sua disposição acidentalmente apolítica.

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Seguindo Todos os Protocolos (Fábio Leal, 2022)

Por Natália Reis

Após ficar 10 meses sozinho em quarentena, Francisco quer transar. Francisco, como muitos de nós, é adepto de procedimentos capilares radicais feitos no banheiro de casa e recorre de vez em quando às propriedades paliativas dos cristais, óleos essenciais, tarô e meditação. Ele lê os últimos estudos sobre as respostas imunológicas da vacina, taxas de mortalidade, reações medicamentosas. Segue os protocolos, não sai de casa por razões banais, sabe qual é o melhor modelo de máscara, mas não sabe qual é o plural de “álcool em gel”. Julga quem compartilha as escapadas do isolamento no Instagram e acaba sendo criticado por isso. Francisco não sabe, mas é a pessoa mais bonita do mundo.

Já faz um tempo que venho me questionando sobre o sentido de um incômodo que tenho com a ideia de “filme pandêmico” enquanto gênero. Ainda não consegui chegar a uma conclusão quanto a isso, mas, conversando com um amigo, levantamos alguns motivos prováveis dessa cisma: “pode ser que esse filme já nasça um tanto datado, fixo num momento histórico” ou ainda “se aproveite de forma leviana do tema para conquistar certos espaços”, ou como gostamos de chamar (venenosamente) “filme espertinho”, o tipo de obra consciente dos mecanismos aos quais vai recorrer para arrematar o maior número possível de respostas positivas. O filme de Fábio Leal não é um filme espertinho, é um filme esperto. De uma esperteza tamanha que me deixou por quase 48 horas pensando nele, com medo de começar um texto que não desse conta nem de parte dessa esperteza. É esperto porque é sincero, engraçado, dolorido e se vale de personagens totalmente adoráveis e palpáveis nas suas neuroses e desejos. Também não merece ser descrito apenas como um “filme pandêmico”, pois ainda que a pandemia seja esse acontecimento de proporções globais, seus efeitos devem ser individualizados para não nos tornarmos dormentes. Acredito que as aflições compartilhadas pelo protagonista interpretado pelo próprio diretor vão além do momento atual. A vontade, e muitas vezes dificuldade, de se relacionar, de encontrar no outro uma companhia ou mesmo o gozo rápido, são sentimentos que acompanham a história da humanidade. Sentimentos terrivelmente humanos. 

Seguindo todos os protocolos (2021) vai narrar a saga de Francisco, homem branco, gay, classe média, em busca de uma transa que não ofereça riscos de contaminação por Covid-19. Passado quase um ano de quarentena, a necessidade de estabelecer contato físico vai se tornar uma grande questão na sua rotina de cuidados e preocupações que ocasionalmente extrapolam em paranoia, e nos encontros nem sempre satisfatórios com outros rapazes, quer sejam no ambiente virtual ou no seu apartamento bem decorado. No desencadeamento de um processo de autoficcionalização, tão bem sintetizado na obra truth, fiction de Leonilson na parede de Chico, Fábio nos presenteia com momentos de humor genuíno, sem apontar dedos ou se amparar em críticas pontuais. O humor aqui é muito mais um meio – pelo qual as contradições e insatisfações de seus personagens podem vir à tona – que um fim. Em poucas palavras: tudo é muito sério e ao mesmo tempo nada é sério. 

Oscilando entre tópicos dolorosos que perpassam a conjuntura pandêmica, como o afastamento dos vínculos afetivos ou o medo de contágio que se desenvolve em ansiedades mais profundas e a precarização do trabalho, e instantes de leveza, de uma intimidade construída na perscrutação dos corpos masculinos e um erotismo arrebatador digno de Robert Mapplethorpe, o filme vai desembocar numa comédia sensível, rendendo cenas memoráveis de interação entre personagens tão prismáticos que podem transitar pela brutalidade e o enternecimento sem nem nos darmos conta. A sensação que fica é que, ao trabalhar a distância e a solidão na impossibilidade do toque, estamos diante de uma obra que se avizinha bastante de um filme como Un chant d’amour de Jean Genet. Se Genet faz uso do encarceramento para tratar desses temas, Leal vai pegar alguns dos maiores temores da nossa geração e moldá-los para que caibam numa história sobre os embaraços da reaproximação e da insatisfação sexual na quarentena, ao mesmo tempo que resguarda – como um segredo prestes a ser partilhado – a esperança e a possibilidade de expurgo dessas mazelas num gesto tão singelo e libertador quanto um passeio de moto pelo quarteirão.

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Filme Caseiro (O Dia Posse, Allan Ribeiro)

Por Luiz Soares Jr.

Os Walsh e os Ludwig do auge da era clássica nos deram instantes privilegiados, elegias encarnadas no lusco-fusco evanescente de tantas inolvidáveis obras de ourives; para os modernos, restou a desolação câmera na mão e atalhos de zooms descontínuos pelas crateras da cidade arruinada pela guerra: o neo-realismo e a nouvelle vague não falaram de outra triste Venise; e os pós-pós, aqueles que erigiram sua obra de linguagem sobre os escombros da obra diegética, acmé fascinatória e litúrgica quando clássica e cinema verdade ladeira abaixo quando moderna?

Godard, Kluge, Fassbinder maneirista, Kurt Kren actionista…inauguraram uma enlutada posteridade, nossa História aziaga do significante flutuante, do lugar de fala, do dispositivo e do simulacro; neste filme quase-caseiro mas com ambições narcisistas demiúrgicas (o seu ‘objeto’ Brendo, pelo menos, é devedor desta exaltação enlutada, desta excitação mortificada, desta paradoxal chama que nasce das cinzas do confronto com a ninfa Eco e em O dia da posse com a tela virtual da TV), Allan Ribeiro fala da percepção maníaco-depressiva dos BBBs desfolhados antes da primeira floração (digo: paredão) e dos presidentes tirados a fórceps do Poder antes do decisivo decreto’ para entrar na História, hebdomadária e mítica; não, não se trata de má poesia, de elegia avant la lettre ou de metáfora segundo o espírito, de metonímias desfiguradas pela totalidade que falta, pois aqui o objeto jamais vai ser reconstituído por inteiro, uma vez que, como o próprio sujeito da enunciação fracassada exprime, “quando diante de uma câmera jamais conseguiremos ser nós mesmos”; O dia da posse, que passou e transbordou de maniera povera por todos os codex do cinema pós-pós acima enumerados,  nos fala desta ruptura instransponível, desta falha, desta fratura, impossibilidade de ser que trafica o fantasma pelos meios assombrados da imagem documental de base, sua morada senão ideal pelo menos possível, à mão: a grande épica, como o kammerspiel intimista encantatório, jamais pertencerão a Brendo, porque, tardio dentre os tardios, é um personagem elaborado pela retórica niilista que sabe que o rosto jamais vai coincidir com a máscara e que a persona humana é a invenção a posteriori de plenipotências de teatro e de elocução, de gesto e de quadro encimadas por ninguém senão as miudezas de um microfone de lapela, uma câmera DV de baixa definição, um Dream’s factory de BBB, panteão consagrado de um último capítulo surrupiado à sua plenitude pelos fac-similes lívidos e canhestros da TV mofo numinosa do youtube; mas voltemos ao fulcro, ao centro, à ribalta do final de Cidade dos sonhos de Lynch: “… o que sei é que ninguém que é filmado por uma câmera jamais consegue ser ele mesmo”.

O documentarista pós-Coutinho, pós-Lanzsmann e Flaherty, pós-Annales, pós-Histoire(s) du cinema sabe que o seu objeto nunca é totalmente documental pois, desde a falsa ou secundária contraposição (desmascarada pelo Godard da boutade ‘fim de caso’ “Toda ficção é um documentário sobre a sua própria confecção”) entre Lumière e Méliès, sabemos nós também que a captura do Real pela câmera de filmar jamais conhecerá a integridade de um olhar sobranceiro que nos guia e significa senão com o auxílio da inervação fantasmática da ficção; e o que é o Fantasma, senão o arquétipo daquilo que se atualiza numa imagem, inervada, como em todo cinema, por mediações invisíveis (montagem, cadre adstringente, luz, raccord), ou pelo fora de campo? o Fantasma necessariamente vai desaguar numa Imagem, pois como ela o seu significado é consanguíneo a mediações infra e supra visíveis, à saturação pelo fora de campo; as imagens quaisquer, comezinhas “achadas” ou duramente resgatadas à lixeira do youtube de O dia da posse ( cadre do cadre do celular, vista à janela, corpo que flutua sobre as águas em plongée alucinatória, o corpo tumefacto e o gesto evasivo de Brendo falando direta, frontalmente para nós) são devedoras do Fantasma daquilo que Brendo persegue como um bico-de-pena ao gesto do sfumato de Da Vinci e Manet: à Fama, a mais irrisória das quimeras de nosso tempo, seu fetiche e obsessão; todos os filmes, infra ou supra ficcionais, de primeira mão ou superestruturados, primeiros e últimos, originários ou tardios, devem ao Fantasma a sua inspiração-mor, mas jamais a sua execução, que é sempre obra de um manejo ultra-mediado dos significantes e materiais; O dia da posse não aposta na sofisticação dos codex linguísticos do cinema do simulacro e da enunciação diferida, de perífrase ou citação, do dispositivo e do lugar de fala devedor de fora de campo, mas em sua simplicidade frontal e dialógica com o personagem que o obceca como a Fama ao garoto da periferia do Brasil ele nos ensina algo extremamente atual sobre a potência, comum às pessoas marginalizadas politica ou geograficamente, de se servirem da infra estrutura tecnológica para permitirem ao sonho um meio de se engendrar artefato, de se materializar numa imagem, talvez o meio mais poroso às fantasmagorias alucinógenas do devaneio que habita sob as armadilhas do desterro cotidiano; o que é afinal sonhar, pensava o Freud da segunda teoria das pulsões ( 1918), senão imprimir à experiência cotidiana rememorada segundo um continuum de significantes evasivos ou refigurados por ordem temporal outra, um diapasão frenético ou em câmera lenta, ao gesto uma beatitude extática, à causalidade uma tinta de delírio intempestivo, e assim atualizar todas as camadas superpostas do id massacrado pelo prático-inerte da necessidade e da utilidade do dia a dia, dando-lhe enfim a chance de advir à superfície? o sonho de ser ator de novela, BBB ou presidente da República é indiferente, pois depende, como pensava o Deleuze de Diferença e repetição e o Kojève que leu Hegel para os existencialistas, do delírio psicótico impresso no corpo do Desejo pela época (nossa época onívora de sintomas, de grandezas e diapasões energéticos suspeitosos necessita talvez desta tríade de poder para satisfazer seu élan megalômano), mas o essencial a se reter aqui são ao mesmo tempo a insistência sintomatológica de sua expressão ( expressa pela morosidade ou repetição de certos planos), a grandeza histérica do gesto e a simplicidade neutra da fala com que desejos que atingiram os cimos da volúpia do id em se apoderar do ego se apoderam agora do quadro e da frontalidade expositiva; os clássicos sempre foram frontais, simples ( jamais simplistas: o simples acumulou em sua trajetória a imensidão das mediações do percurso fenomenológico, arregimentou vertigens e potências), porque haviam passado pelo abismo e sublimado sua potência maligna, mas sem o abismo jamais haverá suprassunção; em um livro autobiográfico, Mankiewcz nos diz de seus personagens intelectuais, como na obra prima A quiet american, que quanto mais potente  a loucura mais espessa deve ser a máscara da razão; Brendo não é louco como o personagem de Redgrave no filme de 1958, mas um dia chega lá: o delírio de nosso tempo consiste em chegar à Fama sem passar pelo Trabalho, ou em termos filosóficos pela categoria hegeliana do Reconhecimento; desta erosão da experiência pelo delírio já generalizado demais para estar vivo de que Brendo é o intérprete e porta-voz Alan Ribeiro tira a experiência possível dos momentos em suspensão ( no tempo) e dos espaços prenhes de afetividade, como a mãe ao celular e os pés na maré que sobe; o personagem talvez não tenha olhos para ver, mas o diretor solicita ao espectador que complete o circuito invisível de uma vidência impossível ao campo estreito daquele rapaz um tanto deslumbrado demais para poder ver que o evento mais suntuoso de que será testemunha reside não numa tela de tv, e sim ao alcance de sua mão e de nosso olhar; a experiência, no cinema primeiro (guloso e escatológico) e no pós-guerra, sempre foi o ouro do pobre; as festas infinitas do plano sequência e locação ou o uso onívoro da profundidade de campo encapsulavam o presente num maravilhoso escrínio de tempo e espaços puros, a perder de vistas; um respingo desta oferta voluptuosa do milagre ao alcance da percepção cotidiana, agora um milagre para olhos que sabem finalmente ver (lembram-se da cega de Chaplin, ao final? “agora, eu posso ver”, ali eticamente, pois ela podia enfim adivinhar sob as vestes encardidas e rasgadas do vagabundo o grande homem que ele fora sempre) salpica a duração linear de O dia da posse com um rastro de revelações que certamente o post do Facebook ou a foto do Instagram já surrupiaram para o seu códex reminiscente, memorialista de registros hebdomadários efêmeros, mas que numa tela grande de cinema, arte monumental (monumento fúnebre, como nos ensinaram Godard e Daney, também está valendo, pois continua a ser um desvairado in memoriam), subitamente se reerguem das poeira citadina dos dias quaisquer (registrados por registros quaisquer,  e esta banalidade do mal arendtiana não nos deve escapar nunca da vista inocente dos registros cotidianos, pois a exceção do Mal, do delírio ou do sonho sempre habitaram o cerne da dita normalidade, uma vez que afinal com que material se engendraria a negação do Real senão com as hastes precárias e fecundas do próprio Real?) e se postam diante de nós; o encanto e a surpresa pelo encontro com rastros de vida vivida aqui e ali nos surpreendem talvez ainda mais por ser, como dito no início deste texto, um filme quase-caseiro, um filme registro, um filme que recupera o frêmito e o tremens do Real capturado tão sordidamente pelo cadre miniaturizado do celular; em sua pequenez e condensação, em sua negação senão frontal pelo menos subliminar da escritura em sua totalizante abdução da percepção nua, O dia da posse recupera recônditos tesouros perceptivos, que talvez mais do que idos e vividos estejam ainda por vir.

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Diário remoto de Tiradentes – Parte 2

Por Natália Reis

Tendo em mente que “panorama” é um termo que diz respeito à vista privilegiada de uma paisagem, ou ainda uma visada geral do entorno, a Mostra Panorama, que teve início neste domingo, dia 23, configura uma espécie de cartografia diversificada das manifestações cinematográficas emergentes em território nacional. Reitero a definição da proposta curatorial porque o que se apresenta para nós nessa primeira sessão são obras que se relacionam intimamente com a geografia dos locais onde foram desenvolvidas, e com os sentidos de existência de indivíduos nesses territórios. 

A começar por Transviar (2021), de Maíra Tristão, um retrato, realizado em película, de Carla da Victoria, artesã e mulher transexual residente de Vitória, Espírito Santo.  De maneira sensível, o filme de Maíra vai lidar com questões que perpassam as relações familiares recondicionadas pela transexualidade e o trabalho manual enquanto um dos fatores constituintes da identidade. No processo intrincado de fabricação de panelas de argila, Carla se pergunta sobre o lugar que ocupa numa tradição compartilhada já por quatro gerações de mulheres da família, ao passo que o rio e o mangue se abrem como cenário acolhedor para essas e outras indagações. 

Em Dois bois (2021) de Perseu Azul, Joana retorna à casa da família após a morte da mãe para encontrar um lar hostil e um irmão atormentado pelo comportamento nocivo do pai. Ambientado no pantanal matogrossense, Dois Bois busca desenvolver uma ideia de insurreição feminina que se perde em meio a personagens planificados e situações derivativas que não vão além das oposições arquetípicas (feminino/masculino, autoridade/insubordinação) retratadas como mero jogo de força bruta. Ainda que possa contar com uma fotografia apurada e um entendimento extensivo das articulações da linguagem cinematográfica, o filme de Perseu não consegue ser feliz na direção dos atores e muito menos no desenvolvimento da alteridade dos seus protagonistas, que não conseguem ir além de uma trajetória limitada, feita de heróis e vilões.

Uma embarcação avança pelas águas esverdeadas de um rio parcialmente dominado pela vegetação costeira. Mais à frente, avistamos uma casa sustentada por colunas que se elevam sobre a maré. De lá desponta uma criança uniformizada segurando com cuidado os sapatos e o material escolar. Na cena seguinte, um grupo de alunos na faixa dos 8 anos de idade, já reunidos no interior do barco a motor, interagem animadamente. São alunos do 3º ano da Escola Sítio Porto Alegre, situada no pequeno município de Curralinho, na Ilha do Marajó. Uma escola no Marajó (2021) é o nome do belo documentário de Camila Kzan que acompanha a rotina diária de uma pequena escola de comunidade ribeirinha. Valendo-se de uma abordagem um tanto wisemaniana, Camila observa com primor as dinâmicas institucionais que contribuem para a estruturação desse espaço (como a preocupação da diretora com o combustível do barco fornecido pelo governo e as limitações de transporte), vez ou outra flagrando instantes encantadores de brincadeiras e interações das crianças entre elas, e entre a turma e seu professor. 

Em Curupira e a máquina do destino (2021), de Janaina Wagner, a noção de progresso defendida inescrupulosamente pelo regime militar na construção da Rodovia Transamazônica faz parte de uma história de fantasmas e outros ecos de um tempo distante. Se no filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna Iracema é uma prostituta de 15 anos entregue à sorte, aqui ela retorna como uma aparição nas estradas que levam à cidade de Realidade (AM), numa busca constante pelos mistérios ancestrais que habitam a mata. Partindo de um ritmo desacelerado em que imagens pujantes se arrastam, Wagner vai nos contemplar com a promessa de redenção do passado e do futuro resguardada no encontro da entidade sobrenatural “a curupira” e a menina Iracema, que invoca sua presença como quem chama uma velha aliada. 

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Mostra de Cinema de Tiradentes: Germino Pétalas no Asfalto

Por Gabriel Papaléo

As redes de apoio, o conforto para facilitar, melhorar, e tornar mais visível a convivência com pessoas trans e travestis, são fruto da escuta e da vontade de grupos que abraçam sem desmedidas a franca ação direta. Como no curta Corre das Marmitas, também presente na Mostra de Tiradentes, Germino Pétalas no Asfalto faz do retrato de ações sociais o seu panorama de resistência contra o desgoverno atual. No filme de Ricardo Pretti e Phillipe Urvoy, o elogio experimental ao poder do movimento; aqui, no filme de Coraci Ruiz e Julio Matos, a opção pela escuta na câmera, pelas entrevistas e relatos. É um campo já coberto anteriormente pela diretora ao retratar em Limiar a transição de gênero de seu filho Noah, aqui também presente como um dos amigos do protagonista Jack, um menino de 15 anos que tem seu processo de transição filmado pelos diretores por anos. O que promete no seu primeiro plano uma investigação do amadurecimento, de um corpo e de uma personalidade, se torna um coral de demonstrações de afeto para se fazer presente diante de quem precisa de apoio ao tomar escolhas que infelizmente ainda soam tão incômodas a uma sociedade retrógrada.

É um filme que propõe o olhar para as alternativas, para as formas de organização e união que surgem como parapeitos para pessoas que são rejeitadas nos meandros mais normativos sociais no Brasil – religião, política de situação, relação afetiva, família. Nesse campo, visitamos um encontro mediado por Victoria, personagem que se identifica como “travesti feiticeira”, e que cria rodas de conversa e escuta para compartilhamento das experiências, suas e alheias, sobre sua identidade e como ela se insere no social. É através dela que o filme se permite passagens mais performáticas, focadas no misticismo dessa nova religião travesti, uma revisão de ícones de religiões outras para propor visibilidade diante do apagamento. É um jogo narrativo tendendo a transgressão mas que é montado como causa e consequência das mais básicas, mesclando essas alternativas afetivas com a violência do bolsonarismo e seus tentáculos, o que sublinha demais as ideias propostas pelos diretores.

O detalhamento na estética do cinema observacional, mais atento aos processos e comportamentos, acaba conflitando com a disposição pontual de criar uma disparidade com a violência dos relatos trans e homofóbicos dos homens da extrema direita que têm seus palcos nas igrejas e nas sessões parlamentares. Essa disparidade é reforçada até a exaustão, tanto na montagem quanto nos grafismos que volta e meia tomam a imagem, animações que propõe uma “sensibilidade”, uma “pureza” desses gestos que se espalham pela cidade (como o título propõe), mas que acabam domesticando e trivializando um tanto essas ações de pertencimento. Os glitches na imagem, que surgem como dizendo que as representações estéticas estão em crise, também soam gratuitos e afirmam mais ainda que o forte do filme é na temática e nos personagens que retrata.

Em certo momento, uma pessoa toma o microfone no encontro da UNA para falar sobre como a pós-modernidade aceita que as mudanças de estrutura social podem ser feitos dentro do próprio sistema heteronormativo, e como ter essa visão é algo perigoso e insuficiente para dar conta das vontades e anseios da comunidade que representa. Essa fala não apenas evidencia bem toda a disposição do filme em focar nos rituais alternativos, uma questão moderna por excelência e que serve bem ao senso de coletividade despertado por essa transformação pessoal de Jack e seus amigos, como também preenche lacunas que o filme infelizmente deixa, ao apostar mais num panorama um tanto genérico das trocas necessárias para se confrontar essa dura realidade de enfrentamento.

É complicado pensar nos termos de forma e conteúdo em filmes como esse, não só porque seria um reducionismo estético separar as duas margens que nunca deveriam soar dissociadas, como também se argumenta que fazer isso é cair no binarismo que a própria natureza temática do filme critica – mas a desconexão entre as boas intenções e a articulação estética sobre elas fica bem evidente. A câmera parte de um relato de amadurecimento, das incertezas e da identidade na formação de jovens, para se contentar com o que se espera do registro afetuoso tantas vezes vistos sob temas sensíveis e atuais – não por acaso presentes com frequência em Tiradentes. Fica a torcida por um alcance maior de público para elucidações acerca do tema; é a limitação e a vontade de Germino Pétalas no Asfalto.

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25ª Mostra de Cinema de Tiradentes

DIÁRIO REMOTO DE TIRADENTES – PARTE 1 (Natália Reis)

GERMINO PÉTALAS NO ASFALTO (Gabriel Papaléo)

SESSÃO DE CURTAS: CINEMA, DINHEIRO E MARMITAS (Geo Abreu)

O DIA DA POSSE (Geo Abreu)

DIÁRIO REMOTO DE TIRADENTES – PARTE 2 (Natália Reis)

FILME CASEIRO: O DIA DA POSSE (Luiz Soares Jr.)

MEU SANTOS SAÚDAM TEUS SANTOS: CARTA A RODRIGO ANTÔNIO (Geo Abreu)

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ANOTAÇÕES SOBRE UMA PACIÊNCIA SELVAGEM ME TROUXE ATÉ AQUI, DE ÉRICA SARMET (Geo Abreu)

OS PRIMEIROS SOLDADOS DE RODRIGO DE OLIVEIRA: OS DEUSES CHEGAM PARA MORRER (Luiz Soares Jr.)

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PANORAMA (Natália Reis)

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