Olhar de Cinema: No Salão Jolie (Rosine Mbakam)

uma corrente selvagem

Por Gabriel Papaléo

Pouco antes do título surgir na tela, alguém passa na frente da câmera e bota as mãos na lente com agressividade, e pede para não ser filmado. Logo depois, a cabeleireira Sabine pede a Rosine, diretora do filme, que entre com a câmera porque “filmar ai fora vai dar problema”. A câmera então entra, pra não sair mais. Em No Salão Jolie o dispositivo observacional é muito claro e é o que conduzirá o filme pelos seus 70 minutos, mas a disposição da diretora Rosine Mbakam em desafiar essa observação teoricamente passiva é estabelecida desde esse início. Os quadros escolhidos por Mbakam, diante dos apenas 8m2 do salão, são surpreendente variados na construção e organização daquele espaço, seja através dos rostos que filma, seja através dos espelhos que ali dilatam.

Nesse contexto dado, a interação entre as mulheres dali gira em torno de assuntos cotidianos ao longo das muitas e muitas horas de trabalho, que revelam pontualmente dados importantes como os detalhes do processo de imigração e a rede de auxílio mantida pelas mulheres dali para pessoas que querem também emigrar. Existe um panorama da relação entre Camarões e Bélgica tratado aqui com afinco, mas através da luta diária de Sabine e suas amigas e funcionárias, representada sutilmente, um dia-a-dia que inevitavelmente sugere lutas diversas. O contexto emocional das consequências desses entraves sociais se dá na atenção de Mbakam também para as pequenas histórias, como a da filha que perde a mãe e enfrenta a burocracia do país, questões elementares no mapear da geopolítica ali discutida.

O lidar com os brancos de Bruxelas que passam pelo salão encarando, com olhos curiosos ou inquisidores (às vezes os dois), estabelece boa parte da tensão racial que parece ficar sempre do lado de fora do salão, o microcosmo que acaba por exemplificar um bastião da sociedade segregada dos imigrantes negros da cidade. Ali os brancos agem como turistas, corroborando o preconceito com atitudes passivo-agressivas sempre à distância, com historias similares sendo apresentadas no cotidiano da porta pra fora – como a da mulher negra cheia de sacolas no metrô, encarada pelos brancos com medo irracional. São contos falados pelas mulheres do salão com naturalidade, certo deboche com os belgas até.

Os relatos passam por exemplos objetificação feminina (é um filme que relata estéticas das mais diversas, afinal), e ao falar da opressão das mulheres negras em outros países, chegam no caso das que procuram (e acham) homens brancos no Canadá, e são sexualizadas sob a promessa de ascensão social. Sabine então fala: “elas queriam achar homens brancos, elas acharam homens brancos”. A violência é a primeira impressão no confronto racial, mesmo – e talvez por causa disso – quando envolve gênero.

Contextualizando por esses tópicos até parece que No Salão Jolie trata com rigor sociológico acadêmico seus temas, mas é um filme de encenação marcada e simples, de cotidiano, de ações repetidas e bom humor, de quem sabe que o contexto será afirmado com o passar do tempo, através da voz de quem luta silenciosamente. Todo esse pano de fundo político se torna palpável de fato no medo da polícia de imigração bater ali, toda a construção da tensão final em volta da correria pontual das fugas discretas de Sabine e as outras ilegais. É nesse final que todo o lastro de combate político é visível, antes tão escondido sob a capa da civilidade europeia, e nos lembramos então que mesmo a rotina trivial comunica bastante sobre nossos tempos.

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Olhar de Cinema: Vaga Carne (Ricardo Alves Jr. e Grace Passô)

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Por Gabriel Papaléo

No circuito de festivais, se tornou constante o uso do cinema como via de resistência diante do momento político de total instabilidade pro audiovisual. Muito dessa resistência se dá de forma direta, sem meias palavras, geralmente pela via do documentário como forma de representar visualmente corpos não-hegemônicos. Por conta desse contexto é muito interessante ver um filme como Vaga Carne, que após ser exibido em Tiradentes agora passa em Curitiba. É um retrato diferenciado porque parte de uma ficção altamente abstrata para organizar um jogo de textura de rostos e luzes que ocultam o entorno pra criar alegorias, presenças intuídas.

A ferramenta de uma suposta voz que toma corpos por possessão é o foco do filme baseado na peça de Grace Passô, e esse conceito pouco corpóreo toma vias palpáveis à medida que a atriz passa a demonstrar os efeitos dessa voz diante do corpo, como uma tomada de consciência de identidade diante do estranho. A violência na qual a voz percebe se deparar ao demonstrar que não consegue lidar com a forma humana de ver seu corpo mantém a urgência durante toda a metragem, num crescendo de percepção das origens dessa violência para desvelar o problema social entranhado nessa dialética.

Quando o filme lida com rumos mais clássicos narrativos em estrutura, organiza seu clímax numa tentativa do expurgo pela fala não alcançado, frustração traduzida no corpo furioso de Passô, explorando a violência do sequestro discursivo através apenas do corpo reagindo à máquina ao redor – alegoria visual explorada justamente para sintetizar figuras cotidianas de opressão que a encenação do filme evita mostrar. Toda a mediação com os rostos espectadores, herança provavelmente da peça de teatro, tenta localizar esse confronto com o sistema social de opressão pela alteridade, como se intuísse que aqueles rostos são afetados diretamente pelo que as abstrações de Passô falam sobre.

É um filme de microcosmo, portanto, em suas escolhas espaciais limitadas ao palco, mas assume essa dimensão política com propriedade e raramente cai na armadilha do simbolismo óbvio. A encenação mínima de Grace Passô e Ricardo Alves Jr, focada especialmente em closes para transfigurar a peça que originou o filme em um estudo de expressões e conflitos de olhares, calcados nas nuances múltiplas do rosto de Passô, orquestra tudo para traduzir o desespero do vozerio ali sendo acostumado e depois abarrotado do corpo – e parece bastar para as articulações viscerais propostas pelo texto. Não há tempo a se perder em Vaga Carne, filme de verdades diretas e luz e sombra elementares, e seu recado ao acender das luzes é claro.

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Olhar de Cinema: Diz a Ela que me Viu Chorar (Maíra Buhler)

uma corrente selvagemPor Gabriel Papaléo

Na abertura do filme, a cineasta Maíra Buhler falou sobre o desmonte atual dos centros públicos de apoio psiquiátrico no país. Ontem, dia da sessão, foi aprovada uma lei que tira a liberdade de escolha de um dependente químico à internação. O indivíduo mesmo em estado vulnerável perde sua vontade diante da máquina bruta do exercício de poder. A potência de Diz a ela que me viu chorar reverbera desde o primeiro plano, e o retrato de drogas aqui é escasso porque a urgência de um retrato habitacional que busca os contornos do confronto dos abandonados pelo Estado ao mesmo tempo é também o investir de tempo na observação das trocas entre os moradores, o cotidiano formador que humaniza.

O observacional novamente é o formato do dispositivo escolhido, de uma não-interferência que virou regra no documentário contemporâneo brasileiro, e é através da forma que Buhler mapeia o condomínio que o filme tenta se distanciar da distância que marca esses filmes. Nesse apreço pelo geográfico do local, se diz muito sobre a ideia de civilidade que Buhler tenta atribuir àquelas pessoas, dando forma ao lugar para contextualizar com mais responsabilidade os atos que verá.

A força dos personagens transborda na câmera atenciosa aos detalhes, e seus instantes de vulnerabilidades falam sobre desencontros, amores quebrados, problemas de família e a tentativa de lidar com o passado; dilemas quase sempre retratados à margem da dependência química, sem descartar o problema que ela causa mas trazendo motivos mais emocionais, num escopo maior da simples condenação das drogas. Buhler sabe que a humanização reside no cotidiano, nos problemas triviais do dia-a-dia, e não por acaso é tão raro que apareçam personagens consumindo crack.

É nos momentos da câmera como intrusa que o filme enfrenta os dilemas éticos que são comuns ao subgênero do doc observacional, não apenas no princípio de criar uma narrativa de disparidades sociais (entre equipe do filme e personagens filmados, uma diferença irreconciliável na sua base) mas também na dialética com os moradores, nas indisposições que escapam na câmera. No plano que um dos personagens grita com a mulher que ama no telefone, sua explosão emocional revela uma vulnerabilidade desconfortável, às vezes ambígua, suscitando a dúvida se ele está mesmo ciente do alcance dessa filmagem. É uma cena forte e tem seu valor na estrutura de Buhler em estabelecer humanização nos dilemas amorosos de certos personagens, mas até que ponta não expõe demais aquela pessoa. Algo similar acontece quando a câmera no tripé ocupa um grande espaço no elevador. Uma mulher, que o filme não acompanha com frequência, olha para a câmera e a equipe e reclama de ser filmada ali; “vocês não tem educação não?”, ela pergunta. E o plano continua, continua, continua. Soa uma provocação de Buhler diante do próprio dispositivo, como se fosse importante expor que houve resistência diante da filmagem, mas que ao mesmo tempo não obedece o pedido da moradora para parar de gravar naquela hora.

A forma que Buhler constroi atmosfera de um condomínio caótico esquecido no meio de São Paulo, a cidade motor que aqui é uma miragem distante vista de cima e sentida e ouvida apenas pelos trens que passam, cria de forma sucinta a distância que existe entre a cidade vista como civilizada e o condomínio visto como excluído. A cidade funciona assim como reminiscência de passados que não acessamos dos moradores, o que potencializa esse abandono social. É o retrato fílmico como dever cívico de representação, e nisso a ambiguidade da ética do relato aqui visto é colocada novamente.

A força do retrato de algo denso e ambíguo assim dá a relevância e dignidade ao filme, mesmo quando se questiona o que essas imagens de cidadãos vulneráveis e expostos às minúcias pode provocar no público homogêneo de sempre que costuma frequentar os festivais. A distância entre o Hotel São Pedro em São Paulo e a sala 3 do Itaú aqui em Curitiba permanece enorme.

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Olhar de Cinema: MS Slavic 7

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Por Gabriel Papaléo

No momento que a luz do projetor liga, a protagonista de MS Slavic 7, vivida por Deragh Campbell segura a carta da avó com cuidado. A câmera então se foca no manuseio do papel e nos olhos de Campbell examinando a carta enquanto a luz do projetor apontada pra câmera ilumina seu rosto. Esse é o jogo formal assumido por MS Slavic 7, filme de Sofia Bohdanowicz sobre a troca de cartas de sua avó Zofia com o poeta polonês Josef Wittlin, desde o princípio. O estudo das cartas como forma de entender origens, de um passado remoto para alguém que não encontra lastro no caos da cidade e nem na beleza do campo que naquelas cartas são descritos.

Na festa familiar, o que se intui ser o motivo da viagem da protagonista, a burocracia da família aparece nos pequenos detalhes, nos olhares desapaixonados da mulher que dentro da biblioteca soa atenta. Essa falência na estrutura da biblioteca, na curiosa cena de confronto entre o funcionário e ela, encontra reflexo direto na briga com a tia quando ela diz que “todos querem ser curadores”, à medida que a pesquisa da personagem avança. A crítica à metodologia falha versus os procedimentos de observação empírica aparece como o arco mais próximo de amadurecimento da protagonista, como se fosse preciso tomar as rédeas da memória familiar para crescer como pessoa.

Enquanto imagina os encontros, interpreta as palavras pela força do relato, a protagonista testemunha um vislumbre no presente do que seria a passagem do tempo desses amantes distantes das cartas na cena do aniversário de casamento. Aquele ideal, o suposto amor entre eles (como a própria personagem aponta), parece ali transfigurado numa possibilidade do que seria se Zofia e Josef tivessem se encontrado e ficado juntos. A historia familiar portanto funciona apenas como uma subjetividade distante e que estimula interpretações racionais e principalmente emocionais, mas como cotidiano fruto do tempo presente é um tanto frustrante com suas cerimônias distantes e distanciadas do afeto.

O exame cuidadoso do objeto, do documento que revela o passado, do processo pessoal que é refletido diretamente nas cartas, surge como antídoto disso. A atenção ao detalhe, apenas à observação, sugere passados nunca acessados para a protagonista, e esse apego ao manuseio surge como o contato mais próximo dela com o palpável.

Nesse apuro visual baseado na síntese de cores e locações, a ambientação básica do quarto de hotel comenta diretamente a solidão de Josef na cidade, sim, mas também ilustra com economia a ambiguidade da relação da protagonista com seu nome, com suas raízes. Em determinado momento, ela diz para o tradutor das cartas que “só sabe inglês”, e pede uma tradução de estrutura gramática, não de interpretação diretamente. Sua relação distante com a família, cuja briga pelo espólio parece um sinal de subjetividade cultural roubada, envolve a encenação de festa protocolar e tão insípida – e apenas nas cartas, na subjetividade, encontra algum alento no nome que carrega. É uma busca por identidade se confundindo com obsessão de investigação, tudo sutil pela narrativa de cenas calmas e de ações dilatadas, de alguém que admira o esforço de dois fantasmas em transformar tudo em linguagem.

Talvez seja por não falar o idioma natal da família que já exista a distância espacial tão clara entre a protagonista e sua famílias nos relatos cotidianos de autodescoberta sem possibilidade de conclusões em MS Slavic 7.

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A POÉTICA DA FABULAÇÃO

pássaro azul

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O Zumbi da História – ecos de Calibã e A Bruxa em George Romero
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India Matri Bhumi: fábulas indianas narradas em documentário
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A fábula do autor-animal: Alex Cox e a trilogia do ridículo
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O sabre de madeira, o pássaro azul, o espelho fragmentado e a luz que parte
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A perda da inocência e do encanto: os contos de Perrault por Breillat
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Fantasmas e reminiscências – as formas de diálogo entre tempos nas Hong Kongs de Stanley Kwan e Wong Kar-Wai
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O sabre de madeira, o pássaro azul, o espelho fragmentado e a luz que parte

Por Diogo Serafim

Se ha llenado de luces
Mi corazón de seda,
De campanas perdidas,
De lirios y de abejas,
Y yo me iré muy lejos,
Más allá de esas sierras,
Más allá de los mares
Cerca de las estrellas,
Para pedirle a Cristo
Señor que me devuelva
Mi alma antigua de niño,
Madura de leyendas,
Con el gorro de plumas
Y el sable de madera.¹

Federico García Lorca, Balada de la Placeta

                Não há filme mais belo na história do cinema que a adaptação de Maurice Tourneur do teatro de Maeterlinck. Avez-vous ici l’herbe qui chante ou l’oiseau qui est bleu?² Eu não tenho conhecimento da grama que canta, mas creio que seja suficiente que encontremos o pássaro azul para a minha filha doente. Sabendo ser perigoso crer e não crer, o filme de Tourneur exige de nós um retorno, mesmo que inconsciente, para uma condição primordial da experiência, essencialmente um salto de fé, olhar no rosto misterioso dos abismos e perceber ali a natureza mítica de tudo que é.

                Como é da natureza de todas as fabulações que iniciam com uma súplica de “quem dera assim fosse!”, a fábula termina por se tratar de um veículo que trabalha mais em uma instância delirante de onirismo velado que propriamente em um plano associativo da realidade. Assim, o filme de Tourneur é um filme infantil no sentido lato do termo, mais filme dos sonhos que filme de realidades sociais, mais experiência visual que palestra motivacional, mais deleite espiritual que laboração mental. É a materialização da nossa constituição fundamental, nosso ímpeto basilar rumo à felicidade, nossas inquietações mais inocentes, nossos sinos roucos e nossos pássaros aleijados que não permitimos sair à luz do dia ou sequer florescer internamente quando afastados de nossos solilóquios noturnos.

pássaro azul

                O filme de Tourneur apresenta claramente um apuramento visual que funciona em duas instâncias. Primeiramente em um nível puramente estético, composições que trabalham a priori em uma lógica vertical, mas que possui tantos picos nessa organização que aparenta ser homogeneamente horizontalizada no seu virtuosismo, forte uso de silhuetas, sombras e véus, adornos e artifícios excessivos, tudo que há de mais impactante e grandioso visualmente, mas que encontra nos seus mais simples e singelos gestos toda a sua potência. Em segundo plano, o filme possui um cuidadoso uso de frases perfeitamente incrustadas na matéria poética do filme, não só pelo seu lirismo espontâneo, mas também pela forma como elas parecem brotar com uma simplicidade e uma claridade poucas vezes encontrada no cinema. É um filme de uma tonalidade fabular essencialmente anti-esopiana, longe de chegar em uma conclusão moral reveladora, Tourneur trabalha com uma abordagem dialeticamente anterior que aparenta tentar florescer por si própria, uma certa resignação retórica que parece encontrar na sua passividade, no seu onirismo anunciado, toda a beleza da vida.

                Há no filme um anacronismo dialético que faz da natureza epistemológica humana não uma instância que necessariamente acumula em uma lógica construtiva, mas uma que se confunde, que se perde nesse sistema; pretensa epistemologia que alcança o estado final no empírico imediato, o fim da dialética platônica está na sua gênese, a essência de todas as coisas materiais é de faculdade inata. A alma dos elementos é de natureza conflitante, e esse mundo heraclitiano é retrato desse conflito constante, desse embate perene entre todas as entidades impulsivas por essência.

pássaro azul

                Encontramos o pássaro azul. Est-ce qu’il est assez bleu?³ Não sei dizer, mas o compartilho com quem precisa mais que eu – talvez aí repouse a felicidade, no compartilhamento da experiência, passando o nosso pássaro azul para o vizinho doente. Enquanto indagamos se é aquilo mesmo o que buscamos, a nossa conquista material foge do nosso alcance, seja por desleixo, por soberba, ou até mesmo pela erosão dos anos. O filme termina com uma perda mas também com um último grito de esperança – mas será que isso basta? Pasolini em uma de suas entrevistas certa vez desabafou: “e o que eu quero com a esperança? De que ela me serve?”. Ela pode servir como força motriz das nossas vidas e desejos, mas também como desilusão e condescendência inerte. Não se pode viver apenas de sonhos.

pássaro azul

                Ainda que Sócrates e Fedro suplicassem aos deuses por auxílio na busca pela beleza interior e ainda que eles fossem capazes de harmonizar o exterior com essa beleza espiritual, nós ainda precisamos de pães e bolos para nos mantermos em pé. Imaginá-los às vezes não basta – enquanto os anos passam e vou envelhecendo, meu corpo decadente me recorda inclemente o fardo daquele meu espelho, aquele espelho que continua sendo o mesmo ponto de inflexão lacaniano entre a minha consciência e o Outro. E mesmo que a reminiscência me ludibrie com os resquícios do que um dia foi sentido, imbuído da satisfação delirante dos sonhos daquilo que não o foi, meu corpo ainda anseia por aquele átimo fugaz, lacônico e sintético na sua transcendência, no qual a fabulação se reconcilia com o físico. Nossa memória é porosa para o esquecimento, inerte na sua dinâmica. Nosso corpo é desmoronamento, dinâmico na sua inércia. Se há o senso de realidade, e ninguém duvida da sua justificada existência, o que me resta é o de possibilidade, e a ardência pungente que acompanha cada instância de contentamento, cada quimera claudique que me provoca um sorriso segmentário, cada pássaro azul que me faz cantar e me lembra de quando dançamos sob a luz daquelas estrelas com as quais sonhávamos. Estamos sempre no aguardo mudo para nascer de novo.

By a departing light
We see acuter, quite,
Than by a wick that stays.
There’s something in the flight
That clarifies the sight
And decks the rays.4

Emily Dickinson, By a Departing Light

  1. Meu coração de seda
    Está cheio de luzes,
    Com sinos perdidos,
    Com lírios e abelhas.
    Irei bem longe,
    Mais longe que aquelas colinas,
    Mais longe que os mares,
    Para perto das estrelas,
    Para pedir ao Cristo nosso Senhor
    Que me devolva a alma que tinha
    Antigamente, quando era criança,
    Amadurecida com lendas,
    Com um boné emplumado
    E uma espada de madeira.
  1. Você tem aqui a grama que canta ou o pássaro da cor azul?
  2. Seria ele suficientemente azul?
  3. À uma luz evanescente
    Vemos mais agudamente
    Que à da candeia que fica.
    Algo há na fuga silente
    Que aclara a vista da gente
    E aos raios afia.

 

 

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India Matri Bhumi: fábulas indianas narradas em documentário

Por Carla Oliveira

o amestrador de macacos

India: Matri Bhumi (1959), inédita no Brasil até ser apresentada na mostra 6x Rossellini: Uma Homenagem à Cineteca de Bologna (no Festival do Rio de 2014), é uma obra única na filmografia de Roberto Rossellini. Exaltada por Godard, que comparou seu formato documental enriquecido com segmentos ficcionais que abordam mitos e costumes do país retratado a obras-primas do gênero como Tabu (Tabu: a story of the south seas, 1931), de Murnau, Que viva México! (¡Que Viva Mexico! Da zdravstvuyet Meksika!, 1979), de Eisenstein, e É tudo verdade (It’s all true, 1993), de Orson Welles, é ainda pouco vista e discutida.

Depois de ter realizado filmes — Alemanha, ano zero (Germania anno zero, 1948), Stromboli (Stromboli, terra di Dio, 1950) e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) — nos quais seus protagonistas se deslocam para países (Alemanha e Itália) que haviam sido devastados pela Segunda Guerra, deparando-se com o fantasma da violência, a força da natureza e sua própria humanidade, Rossellini decide empreender uma jornada própria para um país rico em narrativas, bastante distintas das europeias. O roteiro de India: Matri Bhumi, que contempla a faceta poética da Índia, sem deixar de lado as preocupações éticas e sociais que sempre assolaram a obra neorrealista de Rossellini, foi escrito por ele, junto à escritora Sonali Senroy Das Gupta (que se tornará sua esposa) e ao diplomata iraniano Fereydoun Hoveyda. Formado na  Sorbonne, o cinéfilo Hoveyda escreveu para a Cahiers du Cinema, entre 1955 e 1965. Era um apreciador do cinema do calcutaense Satyajit Ray e, na sua lista de melhores filmes elaborada para a mítica revista, destacou O tigre da Índia (Der tiger von Eschnapur, 1959), de Fritz Lang, como o melhor filme desse mesmo ano em que India: Matri Bhumi concorreu ao prêmio máximo no Festival Internacional de Cinema de Moscou.

Fritz Lang e Rossellini foram dois dentre vários cineastas europeus que lançaram seus olhares para a Índia no período posterior à sua independência em relação à Inglaterra (a qual se deu em 1947, como decorrência da segunda grande guerra). O tigre da Índia, de Lang, teve uma sequência: O sepulcro indiano (Das indische grabmal), lançada no mesmo ano. Ambos foram baseados em um livro de sua ex-esposa, Thea von Harbou, e narram o encontro e o espanto de um europeu com o exotismo da Índia, em uma história repleta de romance e aventuras. Lang fez várias viagens para a Índia, mas a realização dos filmes se deu na Alemanha. O pioneiro dentre esses cineastas, contudo, foi Jean Renoir, por quem Rossellini nutria grande admiração. O rio (The river, 1950), adaptado da obra da escritora Rumer Godden, é uma obra ficcional, que aborda temas humanistas igualmente caros a Rossellini e contém traços documentais, principalmente no retrato feito por Renoir das festas e cultos religiosos. Fiel a seus preceitos realistas, filmou em Bengala, às margens do Ganges. Pasolini, em 1961, empreendeu uma viagem à Índia na boa companhia de Alberto Moravia e Elsa Morante que resultou no livro O cheiro da Índia, não propriamente documental, e no filme sobre um filme: Appunti per un film sull’India (1968), no qual discute mitologia, costumes e realidade social. Louis Malle filmou um extenso documentário para a TV,  L’Inde fantôme (1969), onde se destaca o segmento Calcutta, focado nas crises políticas e sociais pelas quais o país passava. Marguerite Duras, na França, realizou India Song (1975), obra-prima experimental que retrata a decadência de europeus abastados que compunham a Índia branca colonial nos anos 30. Conflitos morais dos europeus na época colonial também foram abordados por David Lean em Passagem para a Índia (A passage to India, 1984), baseado no livro homônimo de E. M. Forster. Peter Brook e Jean-Claude Carrière fizeram numerosas viagens à Índia na preparação da peça Mahabharata, posteriormente adaptada para a série de televisão The Mahabharata (1989-1990).

O Mahabharata e o Ramayana, que alimentam o imaginário ocidental, são os principais poemas épicos da Índia antiga. Junto aos Vedas, transmitem ensinamentos morais e são a base da mitologia hindu. Foram, inicialmente, transmitidos oralmente. Ainda hoje estão onipresentes entre os indianos, que desenvolveram ao longo de sua história apreço pela arte de contar. A música e o teatro indianos também muitas vezes se aproximam do mito e do sagrado, assim como o cinema, que já impressionava o ocidente desde que Raj Kapoor apresentou O vagabundo (Awaara, 1951), no Festival de Cannes de 1953, e Satyajit Ray, A canção da estrada (Pather Panchali, 1955) — primeiro filme da Trilogia de Apu — , no mesmo festival, em 1956. O cinema de Kapoor  estabelece o estilo de Bollywood: é romântico, tem temática social e utiliza canto e dança como elementos narrativos. Já o cinema de Ray é de cunho realista. Seus temas são também sociais e sua abordagem é bastante humanista.

trabalhador da represa

Em India: Matri Bhumi, Rossellini filma em cenários naturais e se vale da fábula e da poesia para oferecer uma contemplação sobre a Índia. Nos créditos iniciais, vemos imagens de deuses esculpidas na pedra: Shiva, com suas três faces, como um deus que pode assumir todas as formas; e Ganesha, um deus híbrido: tem corpo de homem e cabeça de elefante. Sons de instrumentos musicais indianos ajudam a dar significado às imagens mitológicas.

A seguir, cenas de Mumbai (antiga Bombaim): o porto à beira do mar arábico e a multidão. Um narrador bem humorado e generoso nos fala do cosmopolitismo da cidade, uma das principais portas de entrada para a Índia. Dentre os que caminham por suas ruas, em meio a vacas e variados meios de transporte, há pessoas de várias religiões, de grupos étnicos distintos, descendentes de todas as castas. O narrador as vê como um grupo pacificado e tolerante, em constante deslocamento rumo ao trabalho, ao descanso e ao divertimento. Rossellini não procura (ou explora) a miséria e a doença. Cartazes de filmes de Bollywood são vistos em toda parte.

Mudam o ritmo da música e a paisagem. O narrador parte em busca da Índia  profunda e tradicional. Sua fala, antes frenética, se torna pausada. Passamos a ouvir os sons da natureza. Planos longos acompanham o movimento dos animais e de um rio. Imergimos em uma jornada visual e sonora, como se a mudança do espaço nos levasse a uma viagem no tempo: um caminho ficcional, poético, fabular pelo qual Rossellini nos faz enveredar. Vemos paisagens do sul da Índia: templos, rios, lagos e florestas. Nessa localização, naquele momento, os elefantes eram utilizados como força de trabalho. A relação entre os condutores de elefantes e os animais é mostrada. Suas jornadas de trabalho comparadas. Então, acontece a transmutação do narrador: ele passa a ser um dos condutores de elefante. Passamos indiscutivelmente do documentário para uma fábula, que fala de trabalho, amor, costumes de família, casamento, gestação e nascimento. Isso porque ambos se enamoram simultaneamente, o elefante e o gentil condutor. Uma jovem cantora participante de um grupo de titereiros encanta o nosso narrador. Ele precisará de pausas na sua rotina extenuante de trabalho para viver esse amor. O elefante, também.

condutor de elefantes

Fim da primeira fábula, serão quatro. Volta o nosso primeiro narrador, admirando imagens do Himalaia, onde nasce o Ganges: rio que purifica, que significa a vida. Ele fala do karma, do peso dos nossos atos, discutido no Mahabharata. Passamos para imagens de uma construção de uma barragem em um rio paralelo ao Ganges. A narração passa a ser assumida pela voz de um dos trabalhadores, um migrante que precisou sair de Bengala Ocidental depois da partilha que deu origem ao Paquistão. Ele é um entusiasta da modernização e do progresso. Finda a obra, ele precisa partir para encontrar outro emprego, o que aborrece sua esposa que quer continuar vivendo na mesma terra onde teve seu filho. Ele sente orgulho por ter construído a represa. Acha que é uma construção muito mais grandiosa que um pequeno templo que terá que desaparecer. Toma banho no lago artificial da represa ao invés de purificar sua alma em um rio sagrado. Corpos de trabalhadores mortos são cremados às margens desse mesmo lago. É uma fábula que fala da interferência do homem na natureza e do desafio ao mito e às tradições.

A terceira fábula aborda a velhice. Em um povoado junto a uma antiga fortaleza muçulmana, o narrador, que agora é um senhor de 80 anos, se vê incapaz para o trabalho. Vivendo junto à família, próximo a uma floresta onde se escuta o canto de amor dos tigres, ele sente necessidade de uma vida contemplativa. A harmonia da paisagem e o cotidiano da família são abalados pela chegada de um grupo explorador de minérios. Com a mudança do ecossistema, um dos tigres ataca um homem, algo que nosso narrador nunca tinha visto em toda a sua longa vida. Ele fica ao lado do tigre, pois sempre viveu integrado à natureza.

Em uma região muito quente, um homem e sua macaca amestrada se dirigem a uma festa religiosa. Ele, que poderia ser o narrador desta quarta fábula, morre de calor. A macaquinha consegue se soltar do corpo morto de seu dono e vai só à feira, carregando um pedaço de sua corrente. O condutor principal da história, o narrador viajante, seguirá nos relatando os infortúnios do animal. Na feira, ela fará seus truques e recolherá moedas que não sabe para que servem. Ficará só. Ao tentar interagir com macacos selvagens, será repelida. Eles sentem o cheiro do homem nela. Sua única saída será encontrar um novo dono. Não escapará da domesticação e das correntes.

Rossellini documenta, em India: Matri Bhumi, a realidade contemporânea da Índia: suas questões sociais e morais, a modernização, a interferência do homem na natureza. Os fragmentos de vida relatados nas fábulas mostram o quanto havia de passado naquele presente. Os animais mais emblemáticos da Índia – as vacas, os elefantes, os tigres, os macacos – foram usados como partícipes da narrativa. Uma outra forma de relato, menos poética, não nos causaria o mesmo efeito.

 

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Valerie e sua semana de deslumbramentos: para se perder em uma fábula

Por Chico Torres

 

Livre de qualquer responsabilidade, a fantasia pura se entrega a esses jogos cromáticos.

(Walter Benjamin em Livros infantis antigos e esquecidos).

valerie

As Fábulas de La Fontaine representam uma das lembranças mais significativas de minha infância: mais do que “a moral da história” contida nas adaptações feitas pelo autor francês, o que ficou verdadeiramente gravado em minha memória foi o modo como aquelas breves narrativas eram ilustradas pelas gravuras em preto e branco de Gustave Doré. Hoje sei que as fábulas, assim como o conto de fadas, estão historicamente ligadas a qualidades do universo infantil fundamentais: primeiro a oralidade, depois a ilustração.

Então, me surge a questão: é possível construir uma fábula através de um filme? É possível compor uma “fábula cinematográfica”? Se por questões óbvias, o cinema não é capaz de reproduzir fielmente os efeitos de uma fábula oral/livresca, conseguiria ao menos se aproximar, através de uma composição ou reconstituição, da fábula nos moldes tradicionais? Talvez nesta edição da Multiplot! alguns textos contemplem filmes que vão nesta direção. Por outro lado, penso que o cinema, em seu natural antropofagismo, surge para estabelecer crises em tudo aquilo que toca. No território inimigo do cinema, é possível que a fábula, portanto, seja posta ao avesso e sirva como lastro para a construção de narrativas que podem, inclusive, serem metáforas sobre a própria impossibilidade de se contar histórias como antigamente.

Este parece ser o caso de Valerie e sua semana de deslumbramentos (1970), filme de Jaromil Jires. O diretor, que fez parte da instigante New Wave Tcheca (cito aqui alguns filmes que me vêm à memória: As pequenas margaridas, de 1966; Trens estreitamente vigiados, de 1966; Marketa Lazarova, de 1967), arquitetou um filme que faz jus à sua fonte de inspiração, o romance homônimo de Vítezslav Nezval, escritor ligado ao surrealismo. Por outro lado, o aspecto vanguardista do filme torna-se mais significativo ao se desenvolver sob o pano de fundo da fábula e do conto de fadas: Valerie é uma jovem que vive com sua avó em uma pequena cidade aparentemente feudal. Em um plano maquiavélico, a mulher resolve entregar sua neta a um monstro que em troca promete lhe devolver a juventude perdida. Nesse sentido, há no filme diversas características que remetem ao universo da fábula e do conto de fadas: a presença diabólica e do encantamento por magia; o bucolismo medieval e renascentista, que geralmente compõe o universo fantástico dessas histórias (certamente as fábulas se desenvolveram com mais intensidade nesses períodos); o excesso de cenários e do aspecto pictórico dos planos, reiterando a presença das ilustrações e das cores, elementos característicos do universo infantil.

Valerie parece estar além e ao mesmo tempo aquém em suas intenções simbólicas, não se constituindo nem como fábula e nem como obra propriamente surrealista, encontrando-se em um limiar raramente explorado na história do cinema. Ainda que as associações simbólicas se constituam de forma frágil, suspeita e quase gratuita, através de uma narrativa nonsense que ironicamente pretende dar uma direção, tais associações compõem um filme que consegue ser extremamente crítico, no conteúdo e na forma.

Certamente, o elemento chave da obra é a conscientização de Valerie sobre sua sexualidade. Presenciamos o momento em que, enquanto caminha entre flores e pedras, ela menstrua pela primeira vez e mais adiante confessa: “Eu não sou mais criança, vovó”. A jovem possui um par de brincos que representa um jogo de “perde e ganha”, o que pode significar o lugar de transição no qual ela se encontra (entre a criança e o adulto), passando a compreender que seu corpo se constitui como objeto de desejo. É magistral a forma como se dá a construção desse lugar de Valerie, um misto de ingenuidade e curiosidade sexual que faz com que ela consiga ser o verdadeiro elemento transgressor do filme, já que seus perseguidores são vampiros que escondem desejos perversos sob o aval da religião.

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Com exceção de Orlik, personagem que serve como par romântico e testemunha ocular das desventuras de Valerie, todas as figuras masculinas do filme são monstruosas e ameaçadoras. Valerie vive imersa nesse mundo de criaturas quase mortas, mas sua curiosidade e identificação estão voltadas para outra camada social: a de indivíduos que parecem viver num paganismo que se afirma através de uma vivência sexual sem pudores. Essas personagens aparecem de forma quase sempre alegórica e, basicamente, têm como função expor o voyeurismo de Valerie (todas as cenas de sexo desse grupo se dão em ambientes abertos e quase sempre são testemunhadas pela adolescente), servindo de contraste ao moralismo religioso, representado no filme por figuras monstruosas e perversas.

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No entanto, na segunda metade do filme se evidencia mais nitidamente seus aspectos, como não acho outro termo mais adequado, surrealistas: a obra se torna extremamente confusa, com um entrelaçar de situações e ambientes que provocam um incômodo que só pode ser sanado pela sempre impecável direção das cenas. Ainda que durante todo o filme a linearidade narrativa seja subvertida, não obedecendo a uma lógica espaço-temporal, nesta segunda parte a obra deixa transbordar seu desejo de nos provocar de modo radical, de elaborar seu caráter crítico mais especificamente em relação à forma. Se nós esperávamos, mais ou menos confortáveis, o desfecho da estranha fábula, somos jogados em uma história que deixa de comunicar qualquer relação razoável entre os acontecimentos, aprofundando seu aspecto irônico e iconoclasta. Valerie se encaminha para um desfecho em que todas as figuras arquetípicas se integram, literalmente, numa dança surrealista dentro da floresta.

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Não há mais o bem e o mal. Não importa se Valerie será salva das garras dos monstros ou não. Ela agora está integrada a eles, integrada a tudo que é profano e a tudo que é sagrado. A crítica presente no início do filme se dilui em imagens deslumbrantes, em entrega ao que é dado sem julgamentos morais ou elaborações racionais no sentido cartesiano. Valerie é um filme belo e desconcertante que nos mostra, ao mesmo tempo, a subversão de uma tradição e as mazelas que estão em suas origens, e a impossibilidade de reconstituir aquilo que já não pode mais ser moralizado. Valerie é, antes de tudo, uma fábula amoral.

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Fantasmas e reminiscências – as formas de diálogo entre tempos nas Hong Kongs de Stanley Kwan e Wong Kar-Wai

Por Gabriel Papaléo

No início de Dias Selvagens, segundo filme dirigido por Wong Kar-Wai, Yuddy, o personagem vivido por Leslie Cheung diz para Lai-Chung, vivida por Maggie Cheung: “Por conta de você, lembrarei desse minuto para sempre.” Em Rouge, de Stanley Kwan, o espírito da personagem Fleur vivida por Anita Mui se apaixona pelo marido arranjado sem saber do destino que os aguarda. A construção da mitologia da memória é feita com fantasmas palpáveis, e o cinema de Kar-Wai e Kwan nesses filmes se baseia na relação que seus personagens têm com a ciência dos sentimentos que contém e que emanam. O tempo fugidio é como um catalisador de olhares, e a noção do fim que torna os personagens em Dias Selvagens nostálgicos é a mesma que falta na fantasma de Mui em Rouge, e que faz dela uma errante.

Essa galeria de personagens perdidos em seu presente pelos desencontros amorosos que experimentam complexifica as ideias de romantismo aderidas por ambos os diretores, o do relacionamento surgido por motivações sociais e sacralizado pela tragédia inerente ao romantismo em Rouge, e as promessas impossíveis e falta de cotidianos divididos em Dias Selvagens – esse último um reflexo direto de certa tradição pelo gestual de mulheres que sofrem com seus amores egresso do melodrama chinês que Wong Kar-Wai preza por, algo visto mais diretamente em Amor à Flor da Pele (2000) e Hua yang de nian hua (2001), curta do diretor composto exclusivamente por trechos de longas chineses antigos selecionando danças, beijos e cantos das personagens que reverencia, e veio a trabalhar nas suas próprias narrativas.

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Em Rouge, o amor construído sobre os signos do romantismo, dos gestos políticos do casamento, contém o luxo que se espera de tal sociedade de rituais – ritual esse que leva à aproximação de Fleur e seu amado. Todo o lastro emocional construído nesse prólogo na conversa franca com o amor impossível dos grandes gestos é devastado pelo plano de Hong Kong dos anos 80, no escuro da cidade, na noite dos abandonados à metrópole. A cidade do presente, com os empregos burocráticos, com os encontros em restaurantes a céu aberto sem o glamour, vivendo de fabulações esgotadas, testemunhadas pela fantasma vivida por Anita Mui, refém de um olhar de seu passado morto.

Ou estariam esgotadas de fato as fabulações românticas? O estado suspenso de Fleur, à deriva e à descobrir as traduções contemporâneas dos gestos do amor, bate de frente com o ideal fabuloso e fabulesco da sua memória de casal. Na cena do ônibus, ela constroi e desfaz toda a tensão com Yuen ao passar por lugares que lembram seu amado, mas não estão mais por ali – como um travelogue de experimentar o desfazer das memórias afetivas, uma legítima experiência de transporte coletivo dos trânsitos de cidade. É ao se deparar com a namorada de Yuen, e com a simplicidade do apartamento do casal, e sua cumplicidade afetuosa, que Fleur se entende no 1987 do filme. Aprende ali com o cotidiano desse novo amor diante da nova Hong Kong, o casal com roupas simples e pouco caracterizadas dentro de uma cultura chinesa, cujo apartamento guarda diferenças arquitetônicas irreconciliáveis com a opulência da residência do passado de Fleur – e que mesmo assim, e talvez por isso, se une para ajuda-la. Os pequenos atos de esforços de afeto se renovam conforme gerações.

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O que se renova em gestos, no entanto, não é atualizado na ansiedade juvenil pelo fulgor do aqui e agora. Em Dias Selvagens, a fuga como sinal do amadurecimento que afasta os amados é a mesma de Yuddy da mãe, do relacionamento com a personagem vivida por Carina Lau, e também da sua amizade de circunstâncias com o Tide de Andy Lau. Muitos são os relógios ao longo do filme, todos singelos no ambiente mas em quadro, por vezes altos em símbolo, por vezes baixos em volume – o amor está passando, a juventude também, os tempos mudarão.

A tentativa de projetar futuros onde eles não existem, paisagens que mudam com a frequência que apenas uma fuga propicia. O não criar dos laços emocionais com lugares parece a base errante desses personagens fadados a nostalgia, principalmente no protagonista masculino de Dias Selvagens. Yuddy vive de trambiques e embarca em relacionamentos com fins muito demarcados concomitantemente à busca por alguma realeza talvez herdada do pai ausente, nas Filipinas de florestas esverdeadas da fotografia de Christopher Doyle, um lugar estrangeiro diante dos olhos e cuja localização espacial é radicalmente diferente de Hong Kong; mais um terreno propício a desencontros, a uma viagem em busca de respostas que traz apenas novas perguntas e desarranjos. Nos espaços vazios que filma, na investigação de Yuddy, Kar-Wai imagina as historias ali contidas e não acessadas por distanciamento historico, cultural, de país, enquanto organiza um final de esperas por futuros não consumados, de chuva e silêncios, de Lai-Chung aprendendo sob a distância do afeto.

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O cinema surge portanto como forma de reencantar a rotina ao redor para tornar imagem a distância de corpos. Em Dias Selvagens, sob relação mais abstrata, na forma que Wong Kar-Wai se apropria do suspense, do road movie, do filme de luta no segmento das Filipinas, para trafegar seus personagens incertos pelos lugares. Em Rouge, na literal visita a um set de filmagem, a despedida de dois enamorados, uma jovem fantasma e seu amante que sonhou ser um velho, para o beijo derradeiro ser o mais poderoso gesto diante dos voos graciosos e contemplativos do wuxia filmado nos arredores. É como se o poder dos grandes gestos que o cinema fantástico produz ressignificasse – e sobretudo potencializasse – a afetividade que testemunhamos em tela, cheia de peso histórico e contexto, como a Hong Kong que visitamos, como o amor através dos séculos, como o voo dos lutadores.

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A fabulação trabalha sob a estrutura do melodrama nos dois filmes, como um véu fantasioso além vida diante dos eventos e desencontros que acometem os casais fadados a últimos encontros e frustrações. Essa talvez seja a forma tanto de Kwan quanto de Kar-Wai de encapsular suas obras em tempos presentes cortantes, desviados, sempre despidos diante da nostalgia; saudar o passado com os futuros que poderiam ter acontecido mas não o foram é esse ato de romantismo fugidio que os jovens que eles filmam aderem tanto, por noção das escolhas pessoais que os formarão, pelo amadurecimento que sentem chegar longe e o abraçam de formas inevitáveis, no fluxo da vida que por vezes nos chega sem esquemas, sem precisões. Que esses personagens saibam fazer as escolhas difíceis que vemos em Rouge e Dias Selvagens ilumina a inteligência emocional daqueles atos, e portanto ajuda a renovar as noções de romantismo que a literatura, a música, a pintura, e o cinema falam há tantos séculos. A passagem do tempo existe, e quem percebe esse fluxo pode entender melhor as decisões que toma; o abraço a nostalgia facilitadora raramente coexistirá com o presente nos quais vivem as crias de Kwan e Kar-Wai, personagens amargurados, frustrados, mas nunca resignados ou desprovidos de sonhos de futuros.

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Fantasmagorias do Presente

Por Bernardo Oliveira

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No império da opinião, a fabulação toma, por vezes, a forma de uma performance: é na base de stories, posts, podcasts e videocasts que a doxa circula na atualidade. Ainda assim, o ato de fabular parece corresponder inevitavelmente à arte de (re)contar velhas histórias e, como consequência, cristalizar representações correntes. Ordenando-as sobre o diagrama de uma temporalidade contínua, obtém-se a conservação do dinamismo cronológico, garantindo à fabulação o poder de fixar mitos do passado, reforçando tradições precárias em evidente descompasso com fendas abertas pela carga de desorientação acumulada no presente. Tal procedimento acaba por declivar para uma espécie angustiante e abstrata de “futuro”: o futuro moral, com toda sua carga de egoísmo, consequência e expiação, uma perspectiva de futuro que herdamos de forma muito variada da religião, da guerra, da ciência, do capitalismo… Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?

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Esta “segunda pele” sobrepôs-se à fabulação comum, que, atualizada pela vida bioconectada, revelou uma legião manipulável de espectros opinativos. O “era uma vez” da fabulação comum se alastrou como incêndio na rede, abrindo precedente para uma versão reduzida da comédia humana, reproduzida por engrenagens semelhantes as que fabricam o boato, a fofoca, a autodepreciação e, como não poderia deixar de ser, a notícia jornalística. Desde que os presidentes dos Estados Nacionais resolveram se comunicar com a população por frases bombásticas disseminadas em rede, o caráter estrategicamente auto-depreciativo da fabulação cínica — a mais tenebrosa contração do populismo — adquiriu colorações ainda mais torpes. Os recentes capítulos da novela política brasileira indicam que permanecemos estranhamente desatrelados tanto das evidências trágicas do passado quanto das promessas de um futuro cada vez mais oscilante e imprevisível. A internet como a contraditória auditora de uma falsa universalidade, aniquilou a “metanarrativa” e expôs, muitas vezes sob a forma da certeza moral, o histriônico fracasso da aldeia global. Em comum desacordo com o coro trágico da opinião terraplanista, eclodiram, aqui e ali, os vaticínios calamitosos, as teorias do fim do mundo: o Antropoceno, o esgotamento, o “acabamento”… Em meio à desorientação multifária produzida através das redes, a fabulação teria ainda o poder de criar um presente desembaraçado de todo fatalismo? 

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O cinema, contudo, parece manter a confiança na fabulação, pelo menos como um meio para abrir os caminhos a outras experiências do presente. A chamada “estética do fluxo” visava identificar experiências calcadas na captação de um escoamento aleatório em oposição a uma ordenação narrativa organizada cronologicamente. Como um ativador eficaz , o cinema provoca uma outra sorte de desorientação, distinta daquela que percebemos hoje na alagmática da informação. Uma desorientação ativa e programada apta a cavar desequilíbrios em meio a um aqui-e-agora excessivamente texturizado pelo tempo cronológico. Não apenas desconstruindo a memória que se atualiza de forma errática na proliferação, por exemplo, do linchamento virtual, mas também refabulando as memórias de um futuro que foi cancelado e se alastra como uma legião de malin génies extraviados. Há, como contraexemplo, uma memória muscular que, sendo póstuma e simultânea ao gesto, desdobra a centralidade do presente em outros possíveis — como quando tocamos automaticamente os acordes e sequências harmônicas em um instrumento musical. Neste caso, a memória faz um duplo movimento, fabulador e transindividual: emana dos corpos, incide sobre os corpos, ativando e atualizando uma pluralidade de fiapos soltos, vivências incompletas cuja continuidade deixamos a cargo da imaginação. O cinema atualiza resquícios que fazem parte de um campo de possíveis, de forças que desfiam-se e proliferam no instante, esculturas temporais revestidas por uma superfície porosa através dos quais penetram os fluidos da imaginação. Uma saraivada de tempo: temporada.

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Penumbra. Um casal acordando, o plano frontal enquadra a cama. Com a garganta ainda ressecada, uma voz sussurra “bom dia”. Outra responde, inicia-se um diálogo, trocam-se amenidades, alguém observa uma insônia… Passaram a noite juntos, mas o diálogo permite entrever um acréscimo de cuidado no tom, na escolha das palavras. Um casal cujo encontro se deu muito recentemente, pois há um grau moderado de intimidade. Posso abrir a janela? Pode. Ele está na casa dela. Ele se move e abre a janela. A luz invade, ele vai de encontro à luz, observa um galpão. Uma transportadora, que, segundo ela, costumava fechar às 22h, mas agora “vai direto”. Ele olha o prédio em frente: uma construção inacabada, enquanto ela emenda a pergunta: “posso te mostrar uma coisa? Fecha a porta do banheiro e a cortina, bem fechada.” Ele fecha e, ao olhar para cima, repara que o reflexo invertido da rua, graças ao efeito de câmera escura. Ele conta como descobriu essa técnica, na TV Minas ainda no final dos anos 90. Um feitiço técnico, um dispositivo egresso do campo de mutações constituintes do cinema, libera toda uma fantasmagoria do atual: reminiscências desprovidas de solenidade, contadas na beira da cama, misturam-se a evidências quase imperceptíveis sobre a situação da cidade, da política, do trabalho… Em simétrica oposição à “estética do terror” de Friedrich Kittler, que consistia em projetar “uma imagem fantasmagórica de nosso presente como futuro”, André Novais instala um regime de fabulação difusa, extraindo uma espectralidade dilatada que adere a tudo aquilo que a câmera torna atual.

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Mas ainda não se pode entregar tudo de bandeja à uma lógica do acontecimento sem que nos lembremos do devir, do escoamento inexorável, como “instrumento de uma clínica fina da existência concreta e sempre singular.” O quanto estamos presentes e distantes quando fabulamos uma atualidade? É assim que o presente do acontecimento presenciado e experimentado pelos indivíduos em suas relações transindividuais, resguarda também uma “espiritualidade vivida”, uma dimensão que não diz respeito somente às formas abstratas e míticas da espiritualidade religiosa: “Se não houvesse essa adesão luminosa ao presente, essa manifestação que dá ao instante um valor absoluto, que o consome em si mesmo, sensações, percepções e ações, não haveria significação da espiritualidade”. Vislumbramos em um segundo a eclosão parcial do acontecimento. O espectro do passado sobrevém sob a forma de uma tensão presente que, por sua vez, se expressa como acúmulo de experiências e demais ressonâncias no plano psico-coletivo. Retemos de seu impacto psíquico e sensorial toda uma carga espectral de sensações, possibilidades, mistérios, hesitações…  As forças não se esgotam nesse presente indeterminado, ao contrário, oscilam para todos os lados, absorvem todos os sentidos em bloco. 

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Imagem-enigma: vemos uma esquina, posto de gasolina, carros e ônibus passam. Periferia, a noite cai. Outra imagem, desta vez uma imagem sonora, mas totalmente fora do quando: dois amigos conversam amenidades. A imagem-enigma prossegue, a imagem sonora também. Amenidades. Uma pergunta: “o que você está fazendo?” A resposta, “nada”, lacônica. “Cara, isso é uma câmera, bicho!? O que você está filmando ai? Pra quê isso?” Então, tomamos conhecimento de que se trata de uma filmagem caseira, aparentemente descolada do diálogo que ocorre fora do plano. Alguns registros desarticulados: o plano da esquina, o diálogo e a realidade psicológica de quem filma. Ocorre então um acoplamento que transforma a imagem-enigma, um registro caseiro, em dispositivo dramático, reunindo todas as pontas outrora fragmentadas. Isto ocorre não por captura de uma imagem previamente determinada (mise-en-scène), mas por conexão entre registros de ordem diferentes. A câmera se transforma numa máquina de produzir convergências: os fios soltos e desencapados do espaço-tempo cinematográfico são ativados por um acoplamento entre quadro e extra-quadro. A cena ocorre no plano e fora do plano, o fora habitando o plano e vice-versa. Um provendo ao outro todo o seu movimento, motivo, relação e contexto. Cinema como criação de um dispositivo tecno-dramático, tanto pela decomposição de elementos de narrativa (sincronia, unidade do plano), como por isolamento das linhas (o plano-enigma, a faixa sonora e, enfim, pela “narrativa” e seu teor dramático). O cinema, máquina de esculpir o tempo, engata outra voltagem. 

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No curta Quintal, por exemplo, o que há de aparentemente gratuito ao longo de toda narrativa, não é gratuito, mas latente. Os eventos paranormais e inusitados não parecem constituir uma espécie de suspensão provisória no corpo moribundo da rotina. Pelo contrário, é a rotina que bóia como mosca no leite cósmico do delírio. Idosos marombeiros, pornógrafos estudiosos, místicos e viajantes interdimensionais que se escondem, ocultos, em modos postiços e vidas emprestadas. Em Ela volta na quinta temos a emergência de uma imagem híbrida: modulações da imagem-fluxo, da imagem-torrente como em Sem essa Aranha ou Symbiopsychotaxiplasm, filmes que já mesclavam as cintilações inauditas e obscuras do espaço-tempo cinematográfico, incluindo aquilo que ficava de fora da economia global do plano. Gestos imperceptíveis que correspondem aos movimentos  dos corpos e objetos, estendo-se em uma temporalidade oscilante, variando entre o controle da encenação e o deixa-estar da atuação. O improviso como método, ou, como afirma o próprio diretor: “essa coisa de deixar a cena andar com um plano mais estático, talvez mais aberto, sem tanta interferência…” A familiaridade subjacente à relação entre os personagens transborda uma qualidade coloquial que distensiona cada momento. O prosaico, no entanto, se move de maneira cifrada, a meio caminho de uma narrativa em fluxo, de uma representação que se alimenta das relações familiais (a conexão imediata entre os amigos, a família, o trabalho) e de uma terceira qualidade que irrompe, sempre liberada por algum elemento cinematográfico técnico-gerativo, remetendo-nos simultaneamente à pluralidade do acontecimento e ao que podemos chamar de “origem” do cinema.

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O cinema de André Novais Oliveira encena um tipo de fabulação que se relaciona com essa “adesão luminosa ao presente”, que não atende nem à manutenção antiquária do passado, nem às promessas vazias de um futuro promissor, fincando seu ambiente naquilo que o filósofo Alfred N.Whitehead chamava “o presente insistente”: o presente em relação ao qual atualizamos, com as ferramentas da fabulação, todo um conjunto de experiências que se desdobram na atualidade. Fabular, porém, é também abrir a imaginação como que por infusão, como a erva desprende seu princípio sob efeito da água escaldante. A totalidade está interditada, apenas alguns elementos parecem eclodir, pequenos acontecimentos, microgestos, percepções incompletas… É no entorno desta liquidez apreendida de soslaio que André Novais Oliveira constrói a estrutura narrativa de suas fábulas. É neste grau de percepção da realidade, através do qual vislumbramos, num átimo, a fantasmagórica tessitura de expressões do instante presente, que seu filmes parecem extrair toda uma lógica do acontecimento.

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Parque Oeste (Fabiana Assis, 2018)

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Por Gabriel Papaléo

Qual postura se toma diante do Estado e da iniciativa privada que com ele vem junto, para enfrentar a máquina destruidora de espaços? Em Parque Oeste, documentário de Fabiana Assis, as perguntas vem através de cuidado histórico importante para a contextualização dessas lutas, mas a preocupação em instaurar no espectador o estado emocional das perdas e restabelecimentos que vemos em tela é o que torna o filme algo além da etnografia de combates.

As imagens captadas em vídeo que abrem o filme, caseiras e com toda a visceralidade que o registro in loco traz, carregam toda a força destruidora da polícia no ato da remoção, um cenário de guerra cujo peso emocional para aqueles habitantes perdendo suas casas estão em cada plano desestabilizado, esgueirado pelos escombros, à procura da documentação visual mas também prezando pela sobrevivência de quem filma.

Essa urgência incômoda, organizada com consciência, confere todo o lastro para a dimensão fantasmagórica dos registros observacionais da equipe no presente fílmico, com as protagonistas filmadas entre terrenos baldios e os prédios enormes do condomínio no qual suas residências antes existiam. Após uma contextualização didática dos momentos de caos e descaso público que lidaram, o olhar atenta para o que vem depois, como reagir da maneira que dá para permanecer lutando.

É ao retratar o cotidiano atual das moradoras que assumiram uma liderança diante das autoridades na comunidade realocada que o filme revela sua estrutura mais arriscada: a segunda metade se concentra nas formas de resistência micropolíticas, no dia a dia de reuniões nas casas das mulheres e nas ações com a comunidade para resolver problemas quaisquer que apareçam em suas casas compulsórias, não desejadas mas nunca desprezadas.

A vontade de reconstruir memórias e culturas como forma de preservar onde todos moravam, e como isso pode ser um projeto contínuo nessas novas habitações, é das maneiras mais pungentes visto pelas mulheres dali contra o protocolo de isolamento e descentralização de lideranças comunitárias, que desloca pessoas unidas pelo perigo que elas organizadas oferecem, e com isso estabelecem uma política de ideias que resiste nas ações mais cotidianas. Cotidiano esse de lembrar terras antigas sequestradas pelo estado para ressignificar os espaços que sobraram para habitar.

Visto na na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Trágicas (Aida Marques, 2019)

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Por Gabriel Papaléo

As primeiras cenas de Trágicas são bem reveladoras: um palco, com a luz estilizada teatral, e a interpretação grandiloquente da atriz que interpreta as três deusas gregas, seguidas de depoimentos de mulheres que perderam seus filhos na ditadura. Uma tentativa de interpretação metafórica entre duas questões díspares demais, a dor das tragédias gregas em consonância com mortes cujos rastros revelam um problema essencialmente social e estrutural. O letreiro com a palavra “Trágicas” em diversas línguas dá uma ideia da proposta por uma universalidade que a diretora parece buscar pelo filme, decisão delicada dado os temas.

O explicitar da metáfora através dos cortes entre os rostos das mulheres entrevistadas com a atriz performando no palco se repete pelos 70 minutos sem que exista uma progressão na reflexão do filme, apenas a repetição dos cacoetes de montagem colocando o off de uma mulher para comentar a da outra, aproximando perdas sem quaisquer parâmetro além da associação de morte, uma tese acadêmica filmada com mão pesada, e closes que recortam as bocas e olhos chorosos das mulheres em falas de impacto – o que só me faz lembrar dos planos abertos e médios de Chantal Akerman, que não queria “cortar as mulheres ao meio” para propósitos dramáticos explícitos demais.

Quando o foco vai para as entrevistadas que perderam seus filhos para a milícia ou para a polícia, uma miopia social e especialmente de classe tremenda em nivelar problemas de origens distintas aparece. A violência dos relatos é coberta sob olhos simbólicos e previsíveis da câmera, e a montagem entrecortada tira o impacto e só aumenta o desconforto de algo que poderia estar num programa jornalístico sensacionalista, e não num documentário cuja ética social passa pelo cuidado com quem está exposto na frente da câmera.

A tendência à exploração desconfortável das dores das mães que perderam seus filhos por suas etnias, descrevendo com riqueza de detalhes atos atrozes e que em nada se associam às dores de Medeia ou Electra, dizima qualquer contato emocional com um filme que parece cínico em suas associações, academicista ao triturar fatos sob a venda do bom gosto plástico. Colocar a mulher que matou seus filhos por vingança e fazer qualquer comparação com os mortos da ditadura, do genocídio negro ou étnico me parece condenável especialmente em 2019. No debate, o roteirista disse que os depoimentos foram filmados em close para se assemelhar com as máscaras do teatro grego, o tipo de relação ofensiva que privilegia a metáfora acerca do peso social da tradição oral do relato.

A estrutura investe nessa interminável associação entre ficção e realidade, entre palco e depoimentos, entre poéticas da metáfora e do relato oral, e não só subestima o espectador ao exaurir a já óbvia relação academicista e cansada como passa por cima de responsabilidades sociais através de uma suposta dialética do afeto que me parece tirar o protagonismo das palavras dessas mulheres vítimas da brutalidade estrutural da sociedade e do estado. O palco sempre parece ser o carro chefe do filme, e enquanto ambos estiverem na mesma narrativa e a interpretação mitológica embasada nas teorias mais superficiais se sobrepor às questões urgentes dos relatos brutais que precisam ser ouvidos além das páginas policiais exploratórias, haverá uma discrepância enorme nessa dialética que antes de tudo é um dever cívico.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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SESSÃO CURTAS PANORAMA – DIA 3

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Por Gabriel Papaléo
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Relato de fantasias e um histórico de resistências subjetivas e também políticas, é dos raros filmes da Mostra que conciliam sua proposta estética com um ativismo social frontal e combativo. O dispositivo das memórias da drag queen que protagoniza o filme propõe uma liberdade formal para cada memória que relembra no caminho para o que parece sua última performance. A paz com o corpo traz a paz de espírito que escapa nos cerceamentos sociais que interferem no projeto estético de cores e purpurinas, as vezes com os percalços do didatismo em um número musical, mas sem perder a honestidade e principalmente a sensibilidade do esforço de traduzir enfrentamentos em cenas e luzes.Princesa Morta do Jacuí
A armadilha da visão das memórias como ciclos intermináveis de busca e curiosidade que alcançam níveis de paranoia que sequestram o poder de escolhas nas ações é o que move essa ficção-científica especial, nos enquadramentos 4×3 do 16mm que conferem a fantasia fabular necessária as matas abandonadas desse pós-apocalipse industrial a ser visitado pelo arqueólogo protagonista. É um ambiente de pesadelo colonialista como Jauja e Zama, mas sob o filtro dos escombros, das memórias pessoais que interferem na narrativa como forma de difusão temporal, uma ilha dos desejos mais profundos como em Solaris, mas conduzida com o apego ao registro oral da narração que atravessa o curta inteiro. Estimula a criação de um mundo além das margens da imagens, sugere passados incompletos para o presente árido, e ainda deixa clara sua ideia da falência paradoxal do ato de descobrir terras – um progresso industrial enraizado na exploração colonialista que não parece ter fim.

Liberdade
Quando exatamente existe a transição de povos na convivência entre estrangeiros em um lugar comum no qual eles não pertencem por completo? O segundo plano de Liberdade já dá o tom do filme, com a senhora japonesa que habita a casa que conhecemos com o bairro ao seu fundo, meio fora de foco, presente como paisagem mas soando como uma reminiscência de casa, espaço e humana nunca conciliados propriamente. Os diferentes registros das memórias, a família japonesa em fotos 35mm preto e branco, a família guinéu-equatoriana em fotos digitais coloridas bem mais recentes – todo um imaginário de congregações exibido apenas pela nostalgia de casa.

Bup
O fluxo de consciência doido de uma artista tentando organizar seus pensamentos enquanto atua apenas com o rosto para uma câmera em close, um tanto inquisidora, que parece guardar as expectativas de um público específico mesmo que Dandara esteja nervosa diante deles – e na ótima narração em off ela desarma totalmente a pose do que poderia cair num pomposo registro de processo da atriz. Uma adaptação curiosa de Lago dos Cisnes, meio na sátira, meio na franca zoeira, que parece entender que passar num festival às vezes é atender a expectativas e lidar com elas com senso de humor, sabendo dos códigos para então subverte-los, com a personalidade inquieta da diretora e atriz que se expõe com estilo diante daquele plano único.

Mesmo com tanta Agonia
Recortes difusos de uma rotina de combates cotidianos, de lutas quase invisíveis sob a banalidade do cotidiano. Do primeiro contato com o chefe homem na cozinha quase exclusivamente de mulheres até o potente final de luzes e trânsitos, a protagonista anda em meio a lentes de longa distância e o caos da cidade de São Paulo em uma rotina de poucos eventos, passando brevemente por momentos de brutalidade corporativa no metrô e a fuga através da linda cena da festa da filha. As lutas de uma mulher negra de classe média diante das opressões tão específicas e tão enraizadas na ideia de metrópole, justificadas pelo serventilismo e o machismo, e distantes de uma resolução mas não de confrontos possíveis.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

tiradentes*

PARQUE OESTE (Fabiana Assis)
Gabriel Papaléo

UM FILME DE VERÃO (Jo Serfaty)
Pedro Tavares

VERMELHA (Getúlio Ribeiro)
Pedro Tavares

DESVIO (Arthur Lins)
Pedro Tavares

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