India Matri Bhumi: fábulas indianas narradas em documentário

Por Carla Oliveira

o amestrador de macacos

India: Matri Bhumi (1959), inédita no Brasil até ser apresentada na mostra 6x Rossellini: Uma Homenagem à Cineteca de Bologna (no Festival do Rio de 2014), é uma obra única na filmografia de Roberto Rossellini. Exaltada por Godard, que comparou seu formato documental enriquecido com segmentos ficcionais que abordam mitos e costumes do país retratado a obras-primas do gênero como Tabu (Tabu: a story of the south seas, 1931), de Murnau, Que viva México! (¡Que Viva Mexico! Da zdravstvuyet Meksika!, 1979), de Eisenstein, e É tudo verdade (It’s all true, 1993), de Orson Welles, é ainda pouco vista e discutida.

Depois de ter realizado filmes — Alemanha, ano zero (Germania anno zero, 1948), Stromboli (Stromboli, terra di Dio, 1950) e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) — nos quais seus protagonistas se deslocam para países (Alemanha e Itália) que haviam sido devastados pela Segunda Guerra, deparando-se com o fantasma da violência, a força da natureza e sua própria humanidade, Rossellini decide empreender uma jornada própria para um país rico em narrativas, bastante distintas das europeias. O roteiro de India: Matri Bhumi, que contempla a faceta poética da Índia, sem deixar de lado as preocupações éticas e sociais que sempre assolaram a obra neorrealista de Rossellini, foi escrito por ele, junto à escritora Sonali Senroy Das Gupta (que se tornará sua esposa) e ao diplomata iraniano Fereydoun Hoveyda. Formado na  Sorbonne, o cinéfilo Hoveyda escreveu para a Cahiers du Cinema, entre 1955 e 1965. Era um apreciador do cinema do calcutaense Satyajit Ray e, na sua lista de melhores filmes elaborada para a mítica revista, destacou O tigre da Índia (Der tiger von Eschnapur, 1959), de Fritz Lang, como o melhor filme desse mesmo ano em que India: Matri Bhumi concorreu ao prêmio máximo no Festival Internacional de Cinema de Moscou.

Fritz Lang e Rossellini foram dois dentre vários cineastas europeus que lançaram seus olhares para a Índia no período posterior à sua independência em relação à Inglaterra (a qual se deu em 1947, como decorrência da segunda grande guerra). O tigre da Índia, de Lang, teve uma sequência: O sepulcro indiano (Das indische grabmal), lançada no mesmo ano. Ambos foram baseados em um livro de sua ex-esposa, Thea von Harbou, e narram o encontro e o espanto de um europeu com o exotismo da Índia, em uma história repleta de romance e aventuras. Lang fez várias viagens para a Índia, mas a realização dos filmes se deu na Alemanha. O pioneiro dentre esses cineastas, contudo, foi Jean Renoir, por quem Rossellini nutria grande admiração. O rio (The river, 1950), adaptado da obra da escritora Rumer Godden, é uma obra ficcional, que aborda temas humanistas igualmente caros a Rossellini e contém traços documentais, principalmente no retrato feito por Renoir das festas e cultos religiosos. Fiel a seus preceitos realistas, filmou em Bengala, às margens do Ganges. Pasolini, em 1961, empreendeu uma viagem à Índia na boa companhia de Alberto Moravia e Elsa Morante que resultou no livro O cheiro da Índia, não propriamente documental, e no filme sobre um filme: Appunti per un film sull’India (1968), no qual discute mitologia, costumes e realidade social. Louis Malle filmou um extenso documentário para a TV,  L’Inde fantôme (1969), onde se destaca o segmento Calcutta, focado nas crises políticas e sociais pelas quais o país passava. Marguerite Duras, na França, realizou India Song (1975), obra-prima experimental que retrata a decadência de europeus abastados que compunham a Índia branca colonial nos anos 30. Conflitos morais dos europeus na época colonial também foram abordados por David Lean em Passagem para a Índia (A passage to India, 1984), baseado no livro homônimo de E. M. Forster. Peter Brook e Jean-Claude Carrière fizeram numerosas viagens à Índia na preparação da peça Mahabharata, posteriormente adaptada para a série de televisão The Mahabharata (1989-1990).

O Mahabharata e o Ramayana, que alimentam o imaginário ocidental, são os principais poemas épicos da Índia antiga. Junto aos Vedas, transmitem ensinamentos morais e são a base da mitologia hindu. Foram, inicialmente, transmitidos oralmente. Ainda hoje estão onipresentes entre os indianos, que desenvolveram ao longo de sua história apreço pela arte de contar. A música e o teatro indianos também muitas vezes se aproximam do mito e do sagrado, assim como o cinema, que já impressionava o ocidente desde que Raj Kapoor apresentou O vagabundo (Awaara, 1951), no Festival de Cannes de 1953, e Satyajit Ray, A canção da estrada (Pather Panchali, 1955) — primeiro filme da Trilogia de Apu — , no mesmo festival, em 1956. O cinema de Kapoor  estabelece o estilo de Bollywood: é romântico, tem temática social e utiliza canto e dança como elementos narrativos. Já o cinema de Ray é de cunho realista. Seus temas são também sociais e sua abordagem é bastante humanista.

trabalhador da represa

Em India: Matri Bhumi, Rossellini filma em cenários naturais e se vale da fábula e da poesia para oferecer uma contemplação sobre a Índia. Nos créditos iniciais, vemos imagens de deuses esculpidas na pedra: Shiva, com suas três faces, como um deus que pode assumir todas as formas; e Ganesha, um deus híbrido: tem corpo de homem e cabeça de elefante. Sons de instrumentos musicais indianos ajudam a dar significado às imagens mitológicas.

A seguir, cenas de Mumbai (antiga Bombaim): o porto à beira do mar arábico e a multidão. Um narrador bem humorado e generoso nos fala do cosmopolitismo da cidade, uma das principais portas de entrada para a Índia. Dentre os que caminham por suas ruas, em meio a vacas e variados meios de transporte, há pessoas de várias religiões, de grupos étnicos distintos, descendentes de todas as castas. O narrador as vê como um grupo pacificado e tolerante, em constante deslocamento rumo ao trabalho, ao descanso e ao divertimento. Rossellini não procura (ou explora) a miséria e a doença. Cartazes de filmes de Bollywood são vistos em toda parte.

Mudam o ritmo da música e a paisagem. O narrador parte em busca da Índia  profunda e tradicional. Sua fala, antes frenética, se torna pausada. Passamos a ouvir os sons da natureza. Planos longos acompanham o movimento dos animais e de um rio. Imergimos em uma jornada visual e sonora, como se a mudança do espaço nos levasse a uma viagem no tempo: um caminho ficcional, poético, fabular pelo qual Rossellini nos faz enveredar. Vemos paisagens do sul da Índia: templos, rios, lagos e florestas. Nessa localização, naquele momento, os elefantes eram utilizados como força de trabalho. A relação entre os condutores de elefantes e os animais é mostrada. Suas jornadas de trabalho comparadas. Então, acontece a transmutação do narrador: ele passa a ser um dos condutores de elefante. Passamos indiscutivelmente do documentário para uma fábula, que fala de trabalho, amor, costumes de família, casamento, gestação e nascimento. Isso porque ambos se enamoram simultaneamente, o elefante e o gentil condutor. Uma jovem cantora participante de um grupo de titereiros encanta o nosso narrador. Ele precisará de pausas na sua rotina extenuante de trabalho para viver esse amor. O elefante, também.

condutor de elefantes

Fim da primeira fábula, serão quatro. Volta o nosso primeiro narrador, admirando imagens do Himalaia, onde nasce o Ganges: rio que purifica, que significa a vida. Ele fala do karma, do peso dos nossos atos, discutido no Mahabharata. Passamos para imagens de uma construção de uma barragem em um rio paralelo ao Ganges. A narração passa a ser assumida pela voz de um dos trabalhadores, um migrante que precisou sair de Bengala Ocidental depois da partilha que deu origem ao Paquistão. Ele é um entusiasta da modernização e do progresso. Finda a obra, ele precisa partir para encontrar outro emprego, o que aborrece sua esposa que quer continuar vivendo na mesma terra onde teve seu filho. Ele sente orgulho por ter construído a represa. Acha que é uma construção muito mais grandiosa que um pequeno templo que terá que desaparecer. Toma banho no lago artificial da represa ao invés de purificar sua alma em um rio sagrado. Corpos de trabalhadores mortos são cremados às margens desse mesmo lago. É uma fábula que fala da interferência do homem na natureza e do desafio ao mito e às tradições.

A terceira fábula aborda a velhice. Em um povoado junto a uma antiga fortaleza muçulmana, o narrador, que agora é um senhor de 80 anos, se vê incapaz para o trabalho. Vivendo junto à família, próximo a uma floresta onde se escuta o canto de amor dos tigres, ele sente necessidade de uma vida contemplativa. A harmonia da paisagem e o cotidiano da família são abalados pela chegada de um grupo explorador de minérios. Com a mudança do ecossistema, um dos tigres ataca um homem, algo que nosso narrador nunca tinha visto em toda a sua longa vida. Ele fica ao lado do tigre, pois sempre viveu integrado à natureza.

Em uma região muito quente, um homem e sua macaca amestrada se dirigem a uma festa religiosa. Ele, que poderia ser o narrador desta quarta fábula, morre de calor. A macaquinha consegue se soltar do corpo morto de seu dono e vai só à feira, carregando um pedaço de sua corrente. O condutor principal da história, o narrador viajante, seguirá nos relatando os infortúnios do animal. Na feira, ela fará seus truques e recolherá moedas que não sabe para que servem. Ficará só. Ao tentar interagir com macacos selvagens, será repelida. Eles sentem o cheiro do homem nela. Sua única saída será encontrar um novo dono. Não escapará da domesticação e das correntes.

Rossellini documenta, em India: Matri Bhumi, a realidade contemporânea da Índia: suas questões sociais e morais, a modernização, a interferência do homem na natureza. Os fragmentos de vida relatados nas fábulas mostram o quanto havia de passado naquele presente. Os animais mais emblemáticos da Índia – as vacas, os elefantes, os tigres, os macacos – foram usados como partícipes da narrativa. Uma outra forma de relato, menos poética, não nos causaria o mesmo efeito.

 

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Valerie e sua semana de deslumbramentos: para se perder em uma fábula

Por Chico Torres

 

Livre de qualquer responsabilidade, a fantasia pura se entrega a esses jogos cromáticos.

(Walter Benjamin em Livros infantis antigos e esquecidos).

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As Fábulas de La Fontaine representam uma das lembranças mais significativas de minha infância: mais do que “a moral da história” contida nas adaptações feitas pelo autor francês, o que ficou verdadeiramente gravado em minha memória foi o modo como aquelas breves narrativas eram ilustradas pelas gravuras em preto e branco de Gustave Doré. Hoje sei que as fábulas, assim como o conto de fadas, estão historicamente ligadas a qualidades do universo infantil fundamentais: primeiro a oralidade, depois a ilustração.

Então, me surge a questão: é possível construir uma fábula através de um filme? É possível compor uma “fábula cinematográfica”? Se por questões óbvias, o cinema não é capaz de reproduzir fielmente os efeitos de uma fábula oral/livresca, conseguiria ao menos se aproximar, através de uma composição ou reconstituição, da fábula nos moldes tradicionais? Talvez nesta edição da Multiplot! alguns textos contemplem filmes que vão nesta direção. Por outro lado, penso que o cinema, em seu natural antropofagismo, surge para estabelecer crises em tudo aquilo que toca. No território inimigo do cinema, é possível que a fábula, portanto, seja posta ao avesso e sirva como lastro para a construção de narrativas que podem, inclusive, serem metáforas sobre a própria impossibilidade de se contar histórias como antigamente.

Este parece ser o caso de Valerie e sua semana de deslumbramentos (1970), filme de Jaromil Jires. O diretor, que fez parte da instigante New Wave Tcheca (cito aqui alguns filmes que me vêm à memória: As pequenas margaridas, de 1966; Trens estreitamente vigiados, de 1966; Marketa Lazarova, de 1967), arquitetou um filme que faz jus à sua fonte de inspiração, o romance homônimo de Vítezslav Nezval, escritor ligado ao surrealismo. Por outro lado, o aspecto vanguardista do filme torna-se mais significativo ao se desenvolver sob o pano de fundo da fábula e do conto de fadas: Valerie é uma jovem que vive com sua avó em uma pequena cidade aparentemente feudal. Em um plano maquiavélico, a mulher resolve entregar sua neta a um monstro que em troca promete lhe devolver a juventude perdida. Nesse sentido, há no filme diversas características que remetem ao universo da fábula e do conto de fadas: a presença diabólica e do encantamento por magia; o bucolismo medieval e renascentista, que geralmente compõe o universo fantástico dessas histórias (certamente as fábulas se desenvolveram com mais intensidade nesses períodos); o excesso de cenários e do aspecto pictórico dos planos, reiterando a presença das ilustrações e das cores, elementos característicos do universo infantil.

Valerie parece estar além e ao mesmo tempo aquém em suas intenções simbólicas, não se constituindo nem como fábula e nem como obra propriamente surrealista, encontrando-se em um limiar raramente explorado na história do cinema. Ainda que as associações simbólicas se constituam de forma frágil, suspeita e quase gratuita, através de uma narrativa nonsense que ironicamente pretende dar uma direção, tais associações compõem um filme que consegue ser extremamente crítico, no conteúdo e na forma.

Certamente, o elemento chave da obra é a conscientização de Valerie sobre sua sexualidade. Presenciamos o momento em que, enquanto caminha entre flores e pedras, ela menstrua pela primeira vez e mais adiante confessa: “Eu não sou mais criança, vovó”. A jovem possui um par de brincos que representa um jogo de “perde e ganha”, o que pode significar o lugar de transição no qual ela se encontra (entre a criança e o adulto), passando a compreender que seu corpo se constitui como objeto de desejo. É magistral a forma como se dá a construção desse lugar de Valerie, um misto de ingenuidade e curiosidade sexual que faz com que ela consiga ser o verdadeiro elemento transgressor do filme, já que seus perseguidores são vampiros que escondem desejos perversos sob o aval da religião.

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Com exceção de Orlik, personagem que serve como par romântico e testemunha ocular das desventuras de Valerie, todas as figuras masculinas do filme são monstruosas e ameaçadoras. Valerie vive imersa nesse mundo de criaturas quase mortas, mas sua curiosidade e identificação estão voltadas para outra camada social: a de indivíduos que parecem viver num paganismo que se afirma através de uma vivência sexual sem pudores. Essas personagens aparecem de forma quase sempre alegórica e, basicamente, têm como função expor o voyeurismo de Valerie (todas as cenas de sexo desse grupo se dão em ambientes abertos e quase sempre são testemunhadas pela adolescente), servindo de contraste ao moralismo religioso, representado no filme por figuras monstruosas e perversas.

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No entanto, na segunda metade do filme se evidencia mais nitidamente seus aspectos, como não acho outro termo mais adequado, surrealistas: a obra se torna extremamente confusa, com um entrelaçar de situações e ambientes que provocam um incômodo que só pode ser sanado pela sempre impecável direção das cenas. Ainda que durante todo o filme a linearidade narrativa seja subvertida, não obedecendo a uma lógica espaço-temporal, nesta segunda parte a obra deixa transbordar seu desejo de nos provocar de modo radical, de elaborar seu caráter crítico mais especificamente em relação à forma. Se nós esperávamos, mais ou menos confortáveis, o desfecho da estranha fábula, somos jogados em uma história que deixa de comunicar qualquer relação razoável entre os acontecimentos, aprofundando seu aspecto irônico e iconoclasta. Valerie se encaminha para um desfecho em que todas as figuras arquetípicas se integram, literalmente, numa dança surrealista dentro da floresta.

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Não há mais o bem e o mal. Não importa se Valerie será salva das garras dos monstros ou não. Ela agora está integrada a eles, integrada a tudo que é profano e a tudo que é sagrado. A crítica presente no início do filme se dilui em imagens deslumbrantes, em entrega ao que é dado sem julgamentos morais ou elaborações racionais no sentido cartesiano. Valerie é um filme belo e desconcertante que nos mostra, ao mesmo tempo, a subversão de uma tradição e as mazelas que estão em suas origens, e a impossibilidade de reconstituir aquilo que já não pode mais ser moralizado. Valerie é, antes de tudo, uma fábula amoral.

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Fantasmas e reminiscências – as formas de diálogo entre tempos nas Hong Kongs de Stanley Kwan e Wong Kar-Wai

Por Gabriel Papaléo

No início de Dias Selvagens, segundo filme dirigido por Wong Kar-Wai, Yuddy, o personagem vivido por Leslie Cheung diz para Lai-Chung, vivida por Maggie Cheung: “Por conta de você, lembrarei desse minuto para sempre.” Em Rouge, de Stanley Kwan, o espírito da personagem Fleur vivida por Anita Mui se apaixona pelo marido arranjado sem saber do destino que os aguarda. A construção da mitologia da memória é feita com fantasmas palpáveis, e o cinema de Kar-Wai e Kwan nesses filmes se baseia na relação que seus personagens têm com a ciência dos sentimentos que contém e que emanam. O tempo fugidio é como um catalisador de olhares, e a noção do fim que torna os personagens em Dias Selvagens nostálgicos é a mesma que falta na fantasma de Mui em Rouge, e que faz dela uma errante.

Essa galeria de personagens perdidos em seu presente pelos desencontros amorosos que experimentam complexifica as ideias de romantismo aderidas por ambos os diretores, o do relacionamento surgido por motivações sociais e sacralizado pela tragédia inerente ao romantismo em Rouge, e as promessas impossíveis e falta de cotidianos divididos em Dias Selvagens – esse último um reflexo direto de certa tradição pelo gestual de mulheres que sofrem com seus amores egresso do melodrama chinês que Wong Kar-Wai preza por, algo visto mais diretamente em Amor à Flor da Pele (2000) e Hua yang de nian hua (2001), curta do diretor composto exclusivamente por trechos de longas chineses antigos selecionando danças, beijos e cantos das personagens que reverencia, e veio a trabalhar nas suas próprias narrativas.

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Em Rouge, o amor construído sobre os signos do romantismo, dos gestos políticos do casamento, contém o luxo que se espera de tal sociedade de rituais – ritual esse que leva à aproximação de Fleur e seu amado. Todo o lastro emocional construído nesse prólogo na conversa franca com o amor impossível dos grandes gestos é devastado pelo plano de Hong Kong dos anos 80, no escuro da cidade, na noite dos abandonados à metrópole. A cidade do presente, com os empregos burocráticos, com os encontros em restaurantes a céu aberto sem o glamour, vivendo de fabulações esgotadas, testemunhadas pela fantasma vivida por Anita Mui, refém de um olhar de seu passado morto.

Ou estariam esgotadas de fato as fabulações românticas? O estado suspenso de Fleur, à deriva e à descobrir as traduções contemporâneas dos gestos do amor, bate de frente com o ideal fabuloso e fabulesco da sua memória de casal. Na cena do ônibus, ela constroi e desfaz toda a tensão com Yuen ao passar por lugares que lembram seu amado, mas não estão mais por ali – como um travelogue de experimentar o desfazer das memórias afetivas, uma legítima experiência de transporte coletivo dos trânsitos de cidade. É ao se deparar com a namorada de Yuen, e com a simplicidade do apartamento do casal, e sua cumplicidade afetuosa, que Fleur se entende no 1987 do filme. Aprende ali com o cotidiano desse novo amor diante da nova Hong Kong, o casal com roupas simples e pouco caracterizadas dentro de uma cultura chinesa, cujo apartamento guarda diferenças arquitetônicas irreconciliáveis com a opulência da residência do passado de Fleur – e que mesmo assim, e talvez por isso, se une para ajuda-la. Os pequenos atos de esforços de afeto se renovam conforme gerações.

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O que se renova em gestos, no entanto, não é atualizado na ansiedade juvenil pelo fulgor do aqui e agora. Em Dias Selvagens, a fuga como sinal do amadurecimento que afasta os amados é a mesma de Yuddy da mãe, do relacionamento com a personagem vivida por Carina Lau, e também da sua amizade de circunstâncias com o Tide de Andy Lau. Muitos são os relógios ao longo do filme, todos singelos no ambiente mas em quadro, por vezes altos em símbolo, por vezes baixos em volume – o amor está passando, a juventude também, os tempos mudarão.

A tentativa de projetar futuros onde eles não existem, paisagens que mudam com a frequência que apenas uma fuga propicia. O não criar dos laços emocionais com lugares parece a base errante desses personagens fadados a nostalgia, principalmente no protagonista masculino de Dias Selvagens. Yuddy vive de trambiques e embarca em relacionamentos com fins muito demarcados concomitantemente à busca por alguma realeza talvez herdada do pai ausente, nas Filipinas de florestas esverdeadas da fotografia de Christopher Doyle, um lugar estrangeiro diante dos olhos e cuja localização espacial é radicalmente diferente de Hong Kong; mais um terreno propício a desencontros, a uma viagem em busca de respostas que traz apenas novas perguntas e desarranjos. Nos espaços vazios que filma, na investigação de Yuddy, Kar-Wai imagina as historias ali contidas e não acessadas por distanciamento historico, cultural, de país, enquanto organiza um final de esperas por futuros não consumados, de chuva e silêncios, de Lai-Chung aprendendo sob a distância do afeto.

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O cinema surge portanto como forma de reencantar a rotina ao redor para tornar imagem a distância de corpos. Em Dias Selvagens, sob relação mais abstrata, na forma que Wong Kar-Wai se apropria do suspense, do road movie, do filme de luta no segmento das Filipinas, para trafegar seus personagens incertos pelos lugares. Em Rouge, na literal visita a um set de filmagem, a despedida de dois enamorados, uma jovem fantasma e seu amante que sonhou ser um velho, para o beijo derradeiro ser o mais poderoso gesto diante dos voos graciosos e contemplativos do wuxia filmado nos arredores. É como se o poder dos grandes gestos que o cinema fantástico produz ressignificasse – e sobretudo potencializasse – a afetividade que testemunhamos em tela, cheia de peso histórico e contexto, como a Hong Kong que visitamos, como o amor através dos séculos, como o voo dos lutadores.

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A fabulação trabalha sob a estrutura do melodrama nos dois filmes, como um véu fantasioso além vida diante dos eventos e desencontros que acometem os casais fadados a últimos encontros e frustrações. Essa talvez seja a forma tanto de Kwan quanto de Kar-Wai de encapsular suas obras em tempos presentes cortantes, desviados, sempre despidos diante da nostalgia; saudar o passado com os futuros que poderiam ter acontecido mas não o foram é esse ato de romantismo fugidio que os jovens que eles filmam aderem tanto, por noção das escolhas pessoais que os formarão, pelo amadurecimento que sentem chegar longe e o abraçam de formas inevitáveis, no fluxo da vida que por vezes nos chega sem esquemas, sem precisões. Que esses personagens saibam fazer as escolhas difíceis que vemos em Rouge e Dias Selvagens ilumina a inteligência emocional daqueles atos, e portanto ajuda a renovar as noções de romantismo que a literatura, a música, a pintura, e o cinema falam há tantos séculos. A passagem do tempo existe, e quem percebe esse fluxo pode entender melhor as decisões que toma; o abraço a nostalgia facilitadora raramente coexistirá com o presente nos quais vivem as crias de Kwan e Kar-Wai, personagens amargurados, frustrados, mas nunca resignados ou desprovidos de sonhos de futuros.

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Fantasmagorias do Presente

Por Bernardo Oliveira

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No império da opinião, a fabulação toma, por vezes, a forma de uma performance: é na base de stories, posts, podcasts e videocasts que a doxa circula na atualidade. Ainda assim, o ato de fabular parece corresponder inevitavelmente à arte de (re)contar velhas histórias e, como consequência, cristalizar representações correntes. Ordenando-as sobre o diagrama de uma temporalidade contínua, obtém-se a conservação do dinamismo cronológico, garantindo à fabulação o poder de fixar mitos do passado, reforçando tradições precárias em evidente descompasso com fendas abertas pela carga de desorientação acumulada no presente. Tal procedimento acaba por declivar para uma espécie angustiante e abstrata de “futuro”: o futuro moral, com toda sua carga de egoísmo, consequência e expiação, uma perspectiva de futuro que herdamos de forma muito variada da religião, da guerra, da ciência, do capitalismo… Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?

quintal

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Esta “segunda pele” sobrepôs-se à fabulação comum, que, atualizada pela vida bioconectada, revelou uma legião manipulável de espectros opinativos. O “era uma vez” da fabulação comum se alastrou como incêndio na rede, abrindo precedente para uma versão reduzida da comédia humana, reproduzida por engrenagens semelhantes as que fabricam o boato, a fofoca, a autodepreciação e, como não poderia deixar de ser, a notícia jornalística. Desde que os presidentes dos Estados Nacionais resolveram se comunicar com a população por frases bombásticas disseminadas em rede, o caráter estrategicamente auto-depreciativo da fabulação cínica — a mais tenebrosa contração do populismo — adquiriu colorações ainda mais torpes. Os recentes capítulos da novela política brasileira indicam que permanecemos estranhamente desatrelados tanto das evidências trágicas do passado quanto das promessas de um futuro cada vez mais oscilante e imprevisível. A internet como a contraditória auditora de uma falsa universalidade, aniquilou a “metanarrativa” e expôs, muitas vezes sob a forma da certeza moral, o histriônico fracasso da aldeia global. Em comum desacordo com o coro trágico da opinião terraplanista, eclodiram, aqui e ali, os vaticínios calamitosos, as teorias do fim do mundo: o Antropoceno, o esgotamento, o “acabamento”… Em meio à desorientação multifária produzida através das redes, a fabulação teria ainda o poder de criar um presente desembaraçado de todo fatalismo? 

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O cinema, contudo, parece manter a confiança na fabulação, pelo menos como um meio para abrir os caminhos a outras experiências do presente. A chamada “estética do fluxo” visava identificar experiências calcadas na captação de um escoamento aleatório em oposição a uma ordenação narrativa organizada cronologicamente. Como um ativador eficaz , o cinema provoca uma outra sorte de desorientação, distinta daquela que percebemos hoje na alagmática da informação. Uma desorientação ativa e programada apta a cavar desequilíbrios em meio a um aqui-e-agora excessivamente texturizado pelo tempo cronológico. Não apenas desconstruindo a memória que se atualiza de forma errática na proliferação, por exemplo, do linchamento virtual, mas também refabulando as memórias de um futuro que foi cancelado e se alastra como uma legião de malin génies extraviados. Há, como contraexemplo, uma memória muscular que, sendo póstuma e simultânea ao gesto, desdobra a centralidade do presente em outros possíveis — como quando tocamos automaticamente os acordes e sequências harmônicas em um instrumento musical. Neste caso, a memória faz um duplo movimento, fabulador e transindividual: emana dos corpos, incide sobre os corpos, ativando e atualizando uma pluralidade de fiapos soltos, vivências incompletas cuja continuidade deixamos a cargo da imaginação. O cinema atualiza resquícios que fazem parte de um campo de possíveis, de forças que desfiam-se e proliferam no instante, esculturas temporais revestidas por uma superfície porosa através dos quais penetram os fluidos da imaginação. Uma saraivada de tempo: temporada.

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Penumbra. Um casal acordando, o plano frontal enquadra a cama. Com a garganta ainda ressecada, uma voz sussurra “bom dia”. Outra responde, inicia-se um diálogo, trocam-se amenidades, alguém observa uma insônia… Passaram a noite juntos, mas o diálogo permite entrever um acréscimo de cuidado no tom, na escolha das palavras. Um casal cujo encontro se deu muito recentemente, pois há um grau moderado de intimidade. Posso abrir a janela? Pode. Ele está na casa dela. Ele se move e abre a janela. A luz invade, ele vai de encontro à luz, observa um galpão. Uma transportadora, que, segundo ela, costumava fechar às 22h, mas agora “vai direto”. Ele olha o prédio em frente: uma construção inacabada, enquanto ela emenda a pergunta: “posso te mostrar uma coisa? Fecha a porta do banheiro e a cortina, bem fechada.” Ele fecha e, ao olhar para cima, repara que o reflexo invertido da rua, graças ao efeito de câmera escura. Ele conta como descobriu essa técnica, na TV Minas ainda no final dos anos 90. Um feitiço técnico, um dispositivo egresso do campo de mutações constituintes do cinema, libera toda uma fantasmagoria do atual: reminiscências desprovidas de solenidade, contadas na beira da cama, misturam-se a evidências quase imperceptíveis sobre a situação da cidade, da política, do trabalho… Em simétrica oposição à “estética do terror” de Friedrich Kittler, que consistia em projetar “uma imagem fantasmagórica de nosso presente como futuro”, André Novais instala um regime de fabulação difusa, extraindo uma espectralidade dilatada que adere a tudo aquilo que a câmera torna atual.

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Mas ainda não se pode entregar tudo de bandeja à uma lógica do acontecimento sem que nos lembremos do devir, do escoamento inexorável, como “instrumento de uma clínica fina da existência concreta e sempre singular.” O quanto estamos presentes e distantes quando fabulamos uma atualidade? É assim que o presente do acontecimento presenciado e experimentado pelos indivíduos em suas relações transindividuais, resguarda também uma “espiritualidade vivida”, uma dimensão que não diz respeito somente às formas abstratas e míticas da espiritualidade religiosa: “Se não houvesse essa adesão luminosa ao presente, essa manifestação que dá ao instante um valor absoluto, que o consome em si mesmo, sensações, percepções e ações, não haveria significação da espiritualidade”. Vislumbramos em um segundo a eclosão parcial do acontecimento. O espectro do passado sobrevém sob a forma de uma tensão presente que, por sua vez, se expressa como acúmulo de experiências e demais ressonâncias no plano psico-coletivo. Retemos de seu impacto psíquico e sensorial toda uma carga espectral de sensações, possibilidades, mistérios, hesitações…  As forças não se esgotam nesse presente indeterminado, ao contrário, oscilam para todos os lados, absorvem todos os sentidos em bloco. 

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Imagem-enigma: vemos uma esquina, posto de gasolina, carros e ônibus passam. Periferia, a noite cai. Outra imagem, desta vez uma imagem sonora, mas totalmente fora do quando: dois amigos conversam amenidades. A imagem-enigma prossegue, a imagem sonora também. Amenidades. Uma pergunta: “o que você está fazendo?” A resposta, “nada”, lacônica. “Cara, isso é uma câmera, bicho!? O que você está filmando ai? Pra quê isso?” Então, tomamos conhecimento de que se trata de uma filmagem caseira, aparentemente descolada do diálogo que ocorre fora do plano. Alguns registros desarticulados: o plano da esquina, o diálogo e a realidade psicológica de quem filma. Ocorre então um acoplamento que transforma a imagem-enigma, um registro caseiro, em dispositivo dramático, reunindo todas as pontas outrora fragmentadas. Isto ocorre não por captura de uma imagem previamente determinada (mise-en-scène), mas por conexão entre registros de ordem diferentes. A câmera se transforma numa máquina de produzir convergências: os fios soltos e desencapados do espaço-tempo cinematográfico são ativados por um acoplamento entre quadro e extra-quadro. A cena ocorre no plano e fora do plano, o fora habitando o plano e vice-versa. Um provendo ao outro todo o seu movimento, motivo, relação e contexto. Cinema como criação de um dispositivo tecno-dramático, tanto pela decomposição de elementos de narrativa (sincronia, unidade do plano), como por isolamento das linhas (o plano-enigma, a faixa sonora e, enfim, pela “narrativa” e seu teor dramático). O cinema, máquina de esculpir o tempo, engata outra voltagem. 

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No curta Quintal, por exemplo, o que há de aparentemente gratuito ao longo de toda narrativa, não é gratuito, mas latente. Os eventos paranormais e inusitados não parecem constituir uma espécie de suspensão provisória no corpo moribundo da rotina. Pelo contrário, é a rotina que bóia como mosca no leite cósmico do delírio. Idosos marombeiros, pornógrafos estudiosos, místicos e viajantes interdimensionais que se escondem, ocultos, em modos postiços e vidas emprestadas. Em Ela volta na quinta temos a emergência de uma imagem híbrida: modulações da imagem-fluxo, da imagem-torrente como em Sem essa Aranha ou Symbiopsychotaxiplasm, filmes que já mesclavam as cintilações inauditas e obscuras do espaço-tempo cinematográfico, incluindo aquilo que ficava de fora da economia global do plano. Gestos imperceptíveis que correspondem aos movimentos  dos corpos e objetos, estendo-se em uma temporalidade oscilante, variando entre o controle da encenação e o deixa-estar da atuação. O improviso como método, ou, como afirma o próprio diretor: “essa coisa de deixar a cena andar com um plano mais estático, talvez mais aberto, sem tanta interferência…” A familiaridade subjacente à relação entre os personagens transborda uma qualidade coloquial que distensiona cada momento. O prosaico, no entanto, se move de maneira cifrada, a meio caminho de uma narrativa em fluxo, de uma representação que se alimenta das relações familiais (a conexão imediata entre os amigos, a família, o trabalho) e de uma terceira qualidade que irrompe, sempre liberada por algum elemento cinematográfico técnico-gerativo, remetendo-nos simultaneamente à pluralidade do acontecimento e ao que podemos chamar de “origem” do cinema.

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O cinema de André Novais Oliveira encena um tipo de fabulação que se relaciona com essa “adesão luminosa ao presente”, que não atende nem à manutenção antiquária do passado, nem às promessas vazias de um futuro promissor, fincando seu ambiente naquilo que o filósofo Alfred N.Whitehead chamava “o presente insistente”: o presente em relação ao qual atualizamos, com as ferramentas da fabulação, todo um conjunto de experiências que se desdobram na atualidade. Fabular, porém, é também abrir a imaginação como que por infusão, como a erva desprende seu princípio sob efeito da água escaldante. A totalidade está interditada, apenas alguns elementos parecem eclodir, pequenos acontecimentos, microgestos, percepções incompletas… É no entorno desta liquidez apreendida de soslaio que André Novais Oliveira constrói a estrutura narrativa de suas fábulas. É neste grau de percepção da realidade, através do qual vislumbramos, num átimo, a fantasmagórica tessitura de expressões do instante presente, que seu filmes parecem extrair toda uma lógica do acontecimento.

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Parque Oeste (Fabiana Assis, 2018)

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Por Gabriel Papaléo

Qual postura se toma diante do Estado e da iniciativa privada que com ele vem junto, para enfrentar a máquina destruidora de espaços? Em Parque Oeste, documentário de Fabiana Assis, as perguntas vem através de cuidado histórico importante para a contextualização dessas lutas, mas a preocupação em instaurar no espectador o estado emocional das perdas e restabelecimentos que vemos em tela é o que torna o filme algo além da etnografia de combates.

As imagens captadas em vídeo que abrem o filme, caseiras e com toda a visceralidade que o registro in loco traz, carregam toda a força destruidora da polícia no ato da remoção, um cenário de guerra cujo peso emocional para aqueles habitantes perdendo suas casas estão em cada plano desestabilizado, esgueirado pelos escombros, à procura da documentação visual mas também prezando pela sobrevivência de quem filma.

Essa urgência incômoda, organizada com consciência, confere todo o lastro para a dimensão fantasmagórica dos registros observacionais da equipe no presente fílmico, com as protagonistas filmadas entre terrenos baldios e os prédios enormes do condomínio no qual suas residências antes existiam. Após uma contextualização didática dos momentos de caos e descaso público que lidaram, o olhar atenta para o que vem depois, como reagir da maneira que dá para permanecer lutando.

É ao retratar o cotidiano atual das moradoras que assumiram uma liderança diante das autoridades na comunidade realocada que o filme revela sua estrutura mais arriscada: a segunda metade se concentra nas formas de resistência micropolíticas, no dia a dia de reuniões nas casas das mulheres e nas ações com a comunidade para resolver problemas quaisquer que apareçam em suas casas compulsórias, não desejadas mas nunca desprezadas.

A vontade de reconstruir memórias e culturas como forma de preservar onde todos moravam, e como isso pode ser um projeto contínuo nessas novas habitações, é das maneiras mais pungentes visto pelas mulheres dali contra o protocolo de isolamento e descentralização de lideranças comunitárias, que desloca pessoas unidas pelo perigo que elas organizadas oferecem, e com isso estabelecem uma política de ideias que resiste nas ações mais cotidianas. Cotidiano esse de lembrar terras antigas sequestradas pelo estado para ressignificar os espaços que sobraram para habitar.

Visto na na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Trágicas (Aida Marques, 2019)

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Por Gabriel Papaléo

As primeiras cenas de Trágicas são bem reveladoras: um palco, com a luz estilizada teatral, e a interpretação grandiloquente da atriz que interpreta as três deusas gregas, seguidas de depoimentos de mulheres que perderam seus filhos na ditadura. Uma tentativa de interpretação metafórica entre duas questões díspares demais, a dor das tragédias gregas em consonância com mortes cujos rastros revelam um problema essencialmente social e estrutural. O letreiro com a palavra “Trágicas” em diversas línguas dá uma ideia da proposta por uma universalidade que a diretora parece buscar pelo filme, decisão delicada dado os temas.

O explicitar da metáfora através dos cortes entre os rostos das mulheres entrevistadas com a atriz performando no palco se repete pelos 70 minutos sem que exista uma progressão na reflexão do filme, apenas a repetição dos cacoetes de montagem colocando o off de uma mulher para comentar a da outra, aproximando perdas sem quaisquer parâmetro além da associação de morte, uma tese acadêmica filmada com mão pesada, e closes que recortam as bocas e olhos chorosos das mulheres em falas de impacto – o que só me faz lembrar dos planos abertos e médios de Chantal Akerman, que não queria “cortar as mulheres ao meio” para propósitos dramáticos explícitos demais.

Quando o foco vai para as entrevistadas que perderam seus filhos para a milícia ou para a polícia, uma miopia social e especialmente de classe tremenda em nivelar problemas de origens distintas aparece. A violência dos relatos é coberta sob olhos simbólicos e previsíveis da câmera, e a montagem entrecortada tira o impacto e só aumenta o desconforto de algo que poderia estar num programa jornalístico sensacionalista, e não num documentário cuja ética social passa pelo cuidado com quem está exposto na frente da câmera.

A tendência à exploração desconfortável das dores das mães que perderam seus filhos por suas etnias, descrevendo com riqueza de detalhes atos atrozes e que em nada se associam às dores de Medeia ou Electra, dizima qualquer contato emocional com um filme que parece cínico em suas associações, academicista ao triturar fatos sob a venda do bom gosto plástico. Colocar a mulher que matou seus filhos por vingança e fazer qualquer comparação com os mortos da ditadura, do genocídio negro ou étnico me parece condenável especialmente em 2019. No debate, o roteirista disse que os depoimentos foram filmados em close para se assemelhar com as máscaras do teatro grego, o tipo de relação ofensiva que privilegia a metáfora acerca do peso social da tradição oral do relato.

A estrutura investe nessa interminável associação entre ficção e realidade, entre palco e depoimentos, entre poéticas da metáfora e do relato oral, e não só subestima o espectador ao exaurir a já óbvia relação academicista e cansada como passa por cima de responsabilidades sociais através de uma suposta dialética do afeto que me parece tirar o protagonismo das palavras dessas mulheres vítimas da brutalidade estrutural da sociedade e do estado. O palco sempre parece ser o carro chefe do filme, e enquanto ambos estiverem na mesma narrativa e a interpretação mitológica embasada nas teorias mais superficiais se sobrepor às questões urgentes dos relatos brutais que precisam ser ouvidos além das páginas policiais exploratórias, haverá uma discrepância enorme nessa dialética que antes de tudo é um dever cívico.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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SESSÃO CURTAS PANORAMA – DIA 3

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Por Gabriel Papaléo
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Relato de fantasias e um histórico de resistências subjetivas e também políticas, é dos raros filmes da Mostra que conciliam sua proposta estética com um ativismo social frontal e combativo. O dispositivo das memórias da drag queen que protagoniza o filme propõe uma liberdade formal para cada memória que relembra no caminho para o que parece sua última performance. A paz com o corpo traz a paz de espírito que escapa nos cerceamentos sociais que interferem no projeto estético de cores e purpurinas, as vezes com os percalços do didatismo em um número musical, mas sem perder a honestidade e principalmente a sensibilidade do esforço de traduzir enfrentamentos em cenas e luzes.Princesa Morta do Jacuí
A armadilha da visão das memórias como ciclos intermináveis de busca e curiosidade que alcançam níveis de paranoia que sequestram o poder de escolhas nas ações é o que move essa ficção-científica especial, nos enquadramentos 4×3 do 16mm que conferem a fantasia fabular necessária as matas abandonadas desse pós-apocalipse industrial a ser visitado pelo arqueólogo protagonista. É um ambiente de pesadelo colonialista como Jauja e Zama, mas sob o filtro dos escombros, das memórias pessoais que interferem na narrativa como forma de difusão temporal, uma ilha dos desejos mais profundos como em Solaris, mas conduzida com o apego ao registro oral da narração que atravessa o curta inteiro. Estimula a criação de um mundo além das margens da imagens, sugere passados incompletos para o presente árido, e ainda deixa clara sua ideia da falência paradoxal do ato de descobrir terras – um progresso industrial enraizado na exploração colonialista que não parece ter fim.

Liberdade
Quando exatamente existe a transição de povos na convivência entre estrangeiros em um lugar comum no qual eles não pertencem por completo? O segundo plano de Liberdade já dá o tom do filme, com a senhora japonesa que habita a casa que conhecemos com o bairro ao seu fundo, meio fora de foco, presente como paisagem mas soando como uma reminiscência de casa, espaço e humana nunca conciliados propriamente. Os diferentes registros das memórias, a família japonesa em fotos 35mm preto e branco, a família guinéu-equatoriana em fotos digitais coloridas bem mais recentes – todo um imaginário de congregações exibido apenas pela nostalgia de casa.

Bup
O fluxo de consciência doido de uma artista tentando organizar seus pensamentos enquanto atua apenas com o rosto para uma câmera em close, um tanto inquisidora, que parece guardar as expectativas de um público específico mesmo que Dandara esteja nervosa diante deles – e na ótima narração em off ela desarma totalmente a pose do que poderia cair num pomposo registro de processo da atriz. Uma adaptação curiosa de Lago dos Cisnes, meio na sátira, meio na franca zoeira, que parece entender que passar num festival às vezes é atender a expectativas e lidar com elas com senso de humor, sabendo dos códigos para então subverte-los, com a personalidade inquieta da diretora e atriz que se expõe com estilo diante daquele plano único.

Mesmo com tanta Agonia
Recortes difusos de uma rotina de combates cotidianos, de lutas quase invisíveis sob a banalidade do cotidiano. Do primeiro contato com o chefe homem na cozinha quase exclusivamente de mulheres até o potente final de luzes e trânsitos, a protagonista anda em meio a lentes de longa distância e o caos da cidade de São Paulo em uma rotina de poucos eventos, passando brevemente por momentos de brutalidade corporativa no metrô e a fuga através da linda cena da festa da filha. As lutas de uma mulher negra de classe média diante das opressões tão específicas e tão enraizadas na ideia de metrópole, justificadas pelo serventilismo e o machismo, e distantes de uma resolução mas não de confrontos possíveis.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

tiradentes*

PARQUE OESTE (Fabiana Assis)
Gabriel Papaléo

UM FILME DE VERÃO (Jo Serfaty)
Pedro Tavares

VERMELHA (Getúlio Ribeiro)
Pedro Tavares

DESVIO (Arthur Lins)
Pedro Tavares

A RAINHA NZINGA CHEGOU (Junia Torres e Isabel Gasparino)
Pedro Tavares

TRÁGICAS (Aida Marques)
Gabriel Papaléo

SESSÃO DE CURTAS – PANORAMA, DIA 3
Gabriel Papaléo

TREMOR IÊ (Elena Meirelles, Lívia de Paiva)
Pedro Tavares

SEUS OSSOS E SEUS OLHOS (Caetano Gotardo)
Pedro Tavares

CALYPSO (Rodrigo Lima e Lucas Parente)
Pedro Tavares

INFERNINHO (Guto Parente e Pedro Diógenes)
Pedro Tavares

ILHA (Glenda Nicácio e Ary Rosa)
Pedro Tavares

OS SONÂMBULOS (Tiago Mata Machado)
Pedro Tavares

TEMPORADA (André Novais Oliveira)
Pedro Tavares

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EXTREMOS DA CARNE – OS CORPOS E AS POSSIBILIDADES DA IMAGEM

EDITORIAL – O RITO DE SENTAR-SE À MESA
Pedro Tavares

CORPOS QUE COLIDEM, CORPOS QUE SE ATRAEM
Camila Vieira

STUART GORDON: FETICHE, CAOS E METAMORFOSE
João Pedro Faro

QUAL PEDAÇO? – SEXO SURREALISTA E VIOLÊNCIA
Adrian Martin

A COR ENQUADRADA NOS VÃOS DA IMAGEM – EM BUSCA DO ROSTO DA MORTE
Diogo Serafim

BUSH MAMA: ASSIMETRIAS DA CARNE E DO CORPO
Kênia Freitas

BIOPOLÍTICA E CYBERPUNK: AS MÁQUINAS DESEJANTES
Zoë Masan

Vídeo: CAM (2018) – AS EXTREMIDADES DO CORPO
Arthur Tuoto

KINOGLAZ PEEPING TOM: SUTURAS
Bernardo Oliveira

A CIDADE FOI FEITA PARA CAMINHAR – O ANDARILHO DE TSAI MING-LIANG
Gabriel Papaléo

NÃO FUI EU QUE TRANSCENDI, MAS DEUS QUE DESCEU ATÉ O INFERNO, OU: A HISTÓRIA DO OLHO
Felipe Leal

O CORPO COMO SENTIDO
Chico Torres

MAL DO SÉCULO
Carla Oliveira

21 REFLEXÕES SOBRE CRIATIVIDADE E CINEMA NO SÉCULO XXI
Daniel Fawcett & Clara Pais

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Biopolítica e cyberpunk: as máquinas desejantes

Por Zoë Masan

“O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida, e por fora, o doente brilha, reluz, em todos os seus poros, estourados”

– Antonin Artaud

“Se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias”

– Gilles Deleuze

 

Um fetichista por metal, um assalariado e uma prostituta. Os arquétipos base de Tetsuo: The Iron Man (1989), ironicamente, mostram protótipos nos quais os cidadãos das grandes capitais super-industrializadas do final do século XX se estruturam: a obsessão pela máquina, o homem médio executivo e as vontades carnais do sexo. Esses três pilares da narrativos de Tetsuo, encontram um lugar comum para acontecerem: o corpo.

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Enquanto muitas obras de cyberpunk e outros subgêneros da ficção científica são construídas sob uma cidade distópica estruturada por um Estado controlador, Tetsuo: The Iron Man (1989), trabalha o cyberpunk fundado no corpo. Com uma visão pós-estruturalista da significação da tecnologia, máquina, industrialização e tensões corpóreas. O corpo em Tsukamoto ressignifica o próprio cyberpunk, enquanto gênero, e assume o corpo como uma estrutura onde todas as possibilidades estão abertas, até mesmo da carne ser dominada pelo metal.

Cercado por metal, O Fetichista implanta em sua carne um pedaço da pilha de metais que o cercam. O experimento não ocorre como o esperado, e como uma doença, o metal se multiplica e se alastra por sua carne, o dominando gradativamente. Não há estatização da máquina, tampouco uma indústria, apenas o desejo pulsante pela modificação e potencialização das capacidades do corpo humano, um pós-humano micropolítico que abriga poder em suas moléculas de metal. Como uma doença, o metal toma conta do corpo do Fetichista, assim como acontece com o Assalariado, quando esse, atropela o Fetichista. Uma espécie de epidemia maquinaria se alastra transformando deformando corpos, com uma força de poder incontrolável.

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Em Tetsuo (1989) o metal toma uma forma autoconsciente, ele vive, como um parasita que necessita do corpo para suprir suas necessidades de dominação e sobrevivência. O metal produz uma espécie de adestramento, reeduca o corpo para transformá-lo. Não existe máquina antes do corpo, apenas metal. A máquina é a fornicação entre o metal e a carne. O organismo de poder representado pelo metal, exerce a castração das vontades humanas e impõe uma utilidade belicista para esses corpos. Quando o Assalariado está com parte do seu corpo transformado em máquina, e tenta ter relações sexuais com uma prostituta (que também começa a ter seu corpo dominado pelo metal), as vontades humanas (sexuais) entram em conflito com as da máquina (destrutivas), transformando o sexo entre os dois em uma cena tragicômica em que o pênis se torna uma broca de metal, fazendo dessa uma das cenas de sexo mais grotescas e intensas do cinema.

A biopolítica pode ser definida como uma nova dimensão de poder que visa controlar a vida humana no campo biológico dos saberes. Para estabelecer controle sobre homem enquanto espécie é necessário entender, analisar e estudar esse corpo. Em Tetsuo (1989) a biopolítica é exercida através da máquina de uma maneira prática e bem mais crua. O corpo humano é assimilado gradativamente pelo metal que o domina, criando uma tecnologia própria de controle: a epidemia. Fetichista, Assalariado e prostituta se fundem em uma grande maquina constituída de metal e carne com o objetivo desejante da dominação bélica e aniquilação. Esses novos humanos tiveram seus desejos carnais suprimidos e substituídos pela vontade latente da maquina de se alastrar e disciplinar corpos humanos ao redor do mundo e transformar carne em metal. É uma nova fase de evolução da espécie, um novo passo em um mundo regido pela biopolítica do homem, as maquinas instalaram sua própria biopolítica, muito mais poderosa, que coloca em prática um controle em níveis moleculares.

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Quando o experimento inicial do Fetichista acaba o transformando em uma máquina sub-humana, é possível entender o experimento como uma tentativa de subversão e descentralização do domínio maquinário-industrial, bem como, do poder biopolítico exercido pelo Estado (controle de natalidade, políticas de controle populacional, etc.) Mas no universo de Shinya Tsukamoto, o metal vive, e a máquina emana um poder epidêmico por si só. Esse maquinario biológico e desejante, se coloca aberto a qualquer tipo de possibilidade vida. Um desejo pulsante de se expandir e criar. Recusa-se quaisquer interpretações, sejam elas de natural moral ou política. A biopolítica torna a vida humana um ato político por si só, mas a máquina aniquila o controle biológico estatal sobre o corpo, destrói a biopolítica humana e cria uma biopolítica pós-humana, a maquina controla sua própria e nova estrutura, o corpo humano.

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As maquinas desejantes do Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, são os organismos que se conectam e formam o corpo humano, que é por sua vez, outra máquina inserida dentro de uma máquina social. Pode-se dizer que “o que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito em todos os sentidos e em todas as direções.” Deleuze & Guattari.

A máquina se conecta, mantém fluxo e produz. Como uma super estrutura de uma indústria, a produção não cessa. Tudo o que se cria e se expande é através do desejo. As maquinas desejantes são sistematicamente organizadas para se encaixar na máquina social, através de papéis e funções sociais bem definidas. Em uma interpretação menos psicanalítica possível, o homem-maquina de Tsukamoto, que antes era um Fetichista e um Assalariado, é o resultado mais genuíno possível da libertação da maquina social. É uma maquina desejante anti-social e anti-sociedade, um grande abolicionista dos desejos sociais, um herói que alcançou a revolução em nível celular, rejeitando a carne e abraçando as possibilidades do metal.

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A cidade foi feita para caminhar – o Andarilho de Tsai Ming-Liang

Por Gabriel Papaléo

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Qual a reação possível de indivíduos em um espaço social de metrópole cuja arquitetura e disposição econômica não foram pensadas para a existência deles? Nos filmes do diretor Tsai Ming-Liang, especialmente a partir de Adeus, Dragon Inn (2003), os personagens andam muito por espaços vazios, por ambientes que parecem apocalípticos devido ao abandono, mas sem que percam uma localização evidente de cidade, como dejetos espaciais de um projeto de metrópole que se renova esquecendo dos seus passados. O corpo em manifestação social quase anestesiada seja pelo excesso, pela culpa, pelo peso da memória – isso varia dentro da filmografia do malaio radicado em Taiwan. O ritmo do presente em Hong Kong, Tóquio e Marselha não parece combinar com o ritmo do corpo, e ao passo que o diretor sabe da problemática nesse conflito Tsai também sabe que andar é importante, sempre, porque é um sinal em harmonia com a ideia de que o mundo está em movimento. O convite é a repensar a lentidão, porque a velocidade está na perspectiva, e de cidade em cidade encontramos a exaustão tanto do corpo quanto do ambiente que ele está inserido.

O movimento cênico inicial de Walker e Jornada ao Oeste é um recado visual das origens imateriais do Andarilho vivido por Lee Kang-Sheng, inclusa no zen-budismo no qual a tradição do monge está inscrita: a saída de ambientes similares à cavernas, com cores terrosas, remetendo quase a um primitivismo histórico das moradas humanas, recusando não apenas estímulos visuais contemporâneos como também sonoros, cujo som da cidade abafado em Walker e o silêncio de Jornada ao Oeste se comportam como prenúncios estéticos de um excesso. A saída psicológica e física do lugar cujos costumes e tradições imateriais têm mais signos evidentes no quadro para a metrópole, lugar onde esses costumes e tradições estão enterrados, por vezes até visíveis mas ainda tímidos e em minoria, pela passagem do tempo. E se existe uma certa lamentação pela perda dessa ideia por vezes abstrata da plenitude no que não vemos mas sentimos, nunca está associada a um signo de estagnação, ou de fatalismo na passagem material do tempo. O que interessa ao Andarilho é a resistência do flanar porque não é uma antítese da cidade, mas sim uma ressignificação do espaço. A importância da cidade ser ambiente pensado para pessoas interessadas na mudança dos tempos, no fluxo – estudado pelo zen-budismo – contínuo da vida, no qual o progresso seja uma ideia espiritual ao invés de materialista do capital. O choque da violência entre corpo e cidade, da cidade hostil com o corpo habitante de outro ambiente e outro tempo – não-cronológico, mas relativo.

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E por um conflito de corpos não apenas vemos o Andarilho de Tsai em choque com o urbano, mas os próprios transeuntes que por ele passam. A câmera surge como um dispositivo fílmico de observação escancarado, desvelado diante dos habitantes das cidades filmadas, e interferindo nas suas vidas mesmo apenas colocada num tripé à média distância, raramente privilegiando closes, sempre expondo a distância cênica entre ela e os sujeitos – e entre os sujeitos e a cidade. Na Marselha de Jornada ao Oeste talvez seja a relação mais agressiva dentre os três filmes do Andarilho abordados aqui, talvez por ser a única dessas cidades situadas fora da Ásia; porque para Tsai existe um movimento político no flanar, uma ocupação espacial que outrora, e sob outra via, não seria possível. A estranheza dos pedestres com aquela ação em tela é por conta do movimento extremamente lento do Andarilho e do personagem de Denis Lavant em proporção ao ritmo da cidade, mas também por uma interação entre continentes distintos, entre culturas por vezes em choque, e até por ideais religiosos: o monge budista que enfrenta a cidade esgotando seu corpo pelo oposto do hiperestímulo em uma França majoritariamente ateia.

É nesse diálogo com as narrativas mais fragmentadas que Tsai começou a explorar em seus filmes rodados em digital – culminando na duração maior dos planos que a película dificultava (ou até impossibilitava) – que o Andarilho existe nesses filmes, na alta definição das câmeras expondo o desafio de um corpo ao extremo de suas possibilidades, as pequenas expressões que vazam no rosto quase impávido de Lee Kang-Sheng na sua meditação de tempos suspensos, no tecido que parece se mover numa velocidade diferente do homem que o traja. Parece que a cidade está toda cristalina quando filmada em planos abertos, iluminada e com todos os seus pequenos movimentos em foco, e no meio desse frenesi visual banalizado pelas experiências do cotidiano a figura do Andarilho entra como um dispositivo cênico que nos convida a olhar e experimentar uma nova dimensão do que é visto como banal para quem vive em metrópoles, quadros rigorosos que expõe a escala quase operática da cidade como também explicita o esforço cru de um corpo em movimento deslocado ao meio. Não à toa Tsai expõe esses filmes mundo afora em museus, ambientes cuja natureza é mais volátil, cujas possibilidades visuais são mais diversas que a unidade da tela escura projetando uma única perspectiva – e portanto mais similares ao jogo imagético que as metrópoles que filma propõe.

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A distância corpórea dos homens na sauna em Wu Wu Mian, em ritual de resistência à cidade à suas próprias maneiras, parece guardar um canal metafísico que a urgência dos planos noturnos da Tóquio lotada dos pedestres em Shinjuku e do metrô em movimento brusco a observar uma cidade cujas luzes estão se desfazendo sob nossos olhos em registro digital não chama para si. É como se fosse o chavão da cidade que nunca dorme versus os homens que dormem como enfrentamento a ela, mediada pelo monge em seu tempo próprio, encontrando ambientes que procuram essa mesma dinâmica – talvez a exclusividade de noturnas aqui seja um sinal de que é o horário do dia que mais se pensa o absurdo do fluxo irrestrito da cidade, o momento diária e também ritualístico da ansiedade da privação do sono, da dificuldade de conciliar o ritmo acelerado com a desaceleração proposta pelo corpo ao pedir repouso. É a jornada mais abstrata dos três filmes, por partir de um choque de sentimentos, de exaustão política refletida no ciclo corporal, cuja geopolítica está em segundo plano mas tão relevante e mapeada quanto nos outros.

Em Walker, o Andarilho passa por anúncios múltiplos e coloridos, por mercados ao ar livre, e filmado como silhueta em meio aos habitantes passando por uma ponte provavelmente de algum transporte coletivo, e nunca deixa de estar solitário nos quadros; não parece haver distinção tão grande entre os planos abertos afastados do monge na cidade noturna e vazia para os planos mais ocupados pelo fluxo de pedestres, porque o que o enclausura diante de Hong Kong é uma solidão que não interpreta multidões e vazios sob diferentes óticas, a impessoalidade surgindo equivalente em ambas as dimensões. O momento de maior impacto, quando este é filmado frontalmente em meia distância ocupando uma rua lotada, é reconhecido por transeuntes que param ao seu redor, o filmam, no maior diálogo que uma interação assim pode proporcionar. Se em Hong Kong e Tóquio os obstáculos são íngremes, de proporções diferentes, ambientes fechados e vazios com os mesmos estímulos visuais caóticos, em Marselha os entraves são em planície, mais turísticos, com corpos que parecem mais interessados em uma investigação/contemplação do que está ao redor, mas também aparentemente desconectados para com o outro.

Em Hong Kong o monge termina sua jornada comendo algo após ser negado o seu acesso a um lugar, em Tóquio é através de um sono em uma cápsula que lhe aliena do ambiente – ambos rituais solitários de sobrevivência, mas também de autoconhecimento dada a metafísica tão convidativa desses filmes. Mas em Marselha a jornada termina na cidade literalmente de cabeça para baixo, com o monge e seu seguidor ocidental em meio aos transeuntes, todos dispersos no ritual do flanar, sem apreensão individual, sem conciliação entre o pessoal e o público. A metrópole na França está fadada ao peso do turístico, da cidade-museu, do urbano não funcional ao humano, do ambiente cujas motivações não são de um trânsito de acasos mas a um ritual muito marcado e formulado, assimilado pelo status que o flanar com viés cultural traz.

O esforço corporal deixa de ser do monge para ser de todos os outros corpos anônimos na cidade, impessoais, diante de um ritmo imposto a eles por uma dinâmica de sociedade ao redor do trabalho, quase oposta a ideia do Andarilho a dançar no urbano. No início dos três filmes o extremo e o cansaço podem ser características associadas ao monge protagonista, mas ao final a impressão que fica é que exaustos estão os corpos em movimento desordenado e perdido que testemunhamos com frequência ao redor dele.

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Kinoglaz Peeping Tom: suturas

Por Bernardo Oliveira

Em “Nós: variações do manifesto” (1919), o Conselho dos Três — capitaneado por Dziga Vertov, sua esposa Elizaveta Svilova e seu irmão Philip Kaufman — assevera que o futuro da arte cinematográfica estaria condicionado à aceleração de sua morte. “Nós afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente. A morte da ‘cinematografia’ é indispensável para que a arte cinematográfica possa viver.” Opondo-se ao campo semântico que circunscrevia nesta época o termo “Cinema”, cuja morte o Conselho previa ainda no curso da década seguinte, Vertov propunha o Kinokismo, cujos preceitos diferiam radicalmente dos princípios norteadores da “arte sem futuro” no contexto norte-americano. Para além de um suporte meramente narrativo, o Kinokismo consistia “na arte de organizar os movimentos necessários dos objetos no espaço, graças à utilização de um conjunto artístico rítmico adequado às propriedades do material e ao ritmo interior de cada objeto.”

No contexto pós-revolucionário russo, o Conselho propunha uma clara deriva em relação à perspectiva eisensteiniana sobre a arte cinematográfica, a busca pela especificidade do cinema segundo uma sorte de acoplamento técnico. Sua autonomia em relação a outras artes estaria diretamente ligada à substituição do drama e de seu fator “psicológico” inerente, relativo à imprecisão do olho e do corpo humanos, pelo cinematógrafo, o dispositivo maquínico revolucionário capaz de captar os registros invisíveis ao olho humano, transformar a imaginação coletiva e, com isso, a experiência de mundo. Articulado à precisão da câmera e da moviola, o olho humano poderia não só captar e regular os movimentos invisíveis da realidade —  por exemplo, a opressão, a superação — como também abrir caminho para outras formas de percebê-la e, por consequência, transformá-la.

Pela natureza transversal de seu movimento, o otimismo teórico de Vertov extrapolava o pensamento cinematográfico e se imiscuía nos debates políticos e científicos com suas reflexões que, sob certos aspectos, assemelhavam-se àquelas propostas pelo Futurismo e por todo o sentimento triunfalista que a ascenção dos valores tecno-científicos tornou unânime na Europa do final do XIX. Foram fundamentais suas projeções acerca de um “homem do futuro”, imune à morte e às imperfeições do corpo, da percepção, do entendimento: “o ‘psicológico’ impede o homem de ser tão preciso quanto o cronômetro, limita o seu anseio de se assemelhar à máquina.” Vale segui-los adiante em uma espécie de guinada futurista, e, a depender do ponto de vista, eugenista: “Pela poesia da máquina, iremos do cidadão lento ao homem elétrico perfeito.” A busca pela concretização do “homem perfeito” remete a um consenso de época, de caráter multidisciplinar, relacionado à perceptível tendência para a fixação de modelos ontogenéticos. Servindo de paradigma, tais modelos se constituiriam como uma estratégia eficaz de reprodução da normalidade, garantindo o enraizamento da ideologia tecno-científica que marcou a virada do XIX para o XX.

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A ciência se utilizou das potencialidades do registro cinematográfico, como na produção do neurologista romeno Gheoge Marinescu, enquanto cineastas flertavam com os anseios de depuração, aperfeiçoamento técnico e enaltecimento da própria raça. Não raro percebemos os traços indisfarçáveis das linhas da produção cinematográfica atravessando o campo de batalhas políticas de cunho estatal, ou científicas, inseridas como ferramenta nos gabinetes, centros técnicos e laboratórios de pesquisa. De tal forma que o problema do racismo científico excede as fronteiras da própria ciência, reproduzindo socialmente toda a cornucópia de falseios nos quais se baseiam os modelos de segregação racial. O cinema criou suas ficções com ampla repercussão social e cultural, inclusive valendo-se de assuntos que fortaleciam as razões para a eclosão de movimentos fascistas e racistas nos Estados Unidos e em países europeus. Antes da biopolítica, antes mesmo da necropolítica, pudemos acompanhar, por dentro de suas entranhas, as sendas e veredas por onde se entrecruzaram o registro da imagem, as ciências e o racismo.

O modelo do “homem perfeito” egresso do Futurismo reverbera por todo o discurso Kinok, através de uma apologia do homem que detém o poder de subtrair-se à própria morte. Mas de que perspectiva o Kinokismo nos fala sobre a vida e a morte? A experimentação nos limites da estética como forma de purgar os efeitos libidinais de uma civilização autofágica? O acoplamento da percepção aos objetos técnicos como forma de transformar uma realidade, ampliando-a do ponto de vista da expansão do campo de experiências? Ou a utilização servilista da máquina assassina e opressora, que só concretiza seu poder através da eliminação do outro? Este último caso parece se identificar com Mark, o Peter Pan atormentado de “Peeping Tom”, filme dirigido em 1960 pelo cineasta britânico Michael Powell. Se pode ser considerado também como um “homem com sua câmera”, não me parece aleatório que sua relação com o objeto técnico seja atravessada por algumas demandas de ordem psico-fisiológica. O esquema que o filme de Powell propõe não é tão complexo, mas o resultado extrapola os fatores exclusivamente técnicos ou psíquicos e nos impele a uma análise tecno-fisiológica do que este homem faz com sua câmera.

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Quando criança, seu pai, psicólogo e estudioso do comportamento humano, o atormentava registrando em detalhes todos os momentos de sua vida, focando particularmente nos momentos em que Mark sentia medo. Já adulto, ele não resistirá ao impulso de causar o medo para poder captá-lo com seu objeto técnico, no caso, o cinematógrafo. Enquanto, do ponto de vista do Conselho, o olhar subjetivo é empecilho para uma apropriação potente do dispositivo audiovisual — o olho percebendo a realidade através de uma plasticidade regulável possibilitada pela câmera —, para Mark a câmera se constituirá como um prolongamento psiquíco, um disco rígido externo capaz de reencenar e ajustar provisoriamente os sentimentos negativos que o acometem quando revive os momentos torturantes de sua infância.

O fascínio pela morte tenderia a destacar-se da pulsão de morte, a primeira remetendo ao efeito libidinal associado a um regime afetivo que goza ante a anulação de toda existência (pois nunca concretizamos a morte como uma experiência). Ao passo que a pulsão de morte encena uma contradança com o instinto de vida, lançado-nos em uma existência determinada por aquilo que Espinosa chamava conatus, a potência em perseverar em seu próprio ser. Em decorrência deste entrelaçamento entre vida e morte, eclode um conjunto de relações, de trocas e equivalências libidinais, que oscilam entre a sustentação das contradições do capitalismo e a eclosão de seu mais terrível aspecto pulsional: niilista, assassino, destrutivo — por vezes, auto-destrutivo. Atentando para a diferença de natureza entre fascínio e pulsão, chegamos à conclusão de que o primeiro, como processo isolado, tende à satisfação neurótica, ao passo que o segundo se afigura de forma inescapável a toda existência.

O Kinokismo percebe o mundo através do dispositivo cinematográfico com o objetivo de criar movimento, o que implica em escapar do caráter indireto da representação e fazer com que aquilo que escapa à nossa percepção “se torne visível”: suturas entre a realidade disponível e a força de realização concreta atravessada por uma imaginação ampliada. Substitui, assim, a máquina psicanalítica estruturada sobre a relação consciente/inconsciente pelos efeitos criadores do homem-máquina. Ao passo que Mark, tomado pela tendência à satisfação neurótica, só vê a si mesmo e, por razões diferentes, também se transforma em uma espécie de “homem-máquina”. Mas uma máquina incapaz de criar movimento, máquina feminicida que silencia, oprime, massacra e se alimenta do medo alheio. Em sua aparente vulnerabilidade, Mark encontra força na máquina: introjeta a câmera, torna-se câmera e vice-versa. A câmera também ganha uma consciência, faz-se de armadilha, captura suas presas sempre em situação vulnerável, acolhe a covardia alheia, faz dessa covardia a sua própria: preconceito de câmera. Seu movimento é negativo porque simula a interiorização da violência e concretiza uma realização escabrosamente dialética. A câmera como máquina de matar e, através do feminicídio, uma ferramenta de ajustes e auto-correções psíquicas. Uma máquina assassina que se limita a buscar incessantemente a sutura canalha para uma ferida que permanece irremediavelmente aberta.

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Qual pedaço? – Sexo Surrealista e Violência

Por Adrian Martin

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1. Objetos Misteriosos

Perto do início de Feeling Sexy (1999), único filme até agora feito pela artista australiana Davida Allen, Vicki (Susie Porter) analisa um corte médico, um espécime cerebral em vidro, e indaga: “O que é a imaginação?”. Esta é uma das grandes questões subjacentes e anima o impulso surrealista no cinema. Eu poderia expressar isso de maneira diferente: qual é a parte invisível de um objeto e, ainda mais particularmente, de nossa experiência desse objeto? A vida cotidiana é cheia de objetos que, em sua aparência exterior, trazem pouco do que significam para nós: as memórias que desencadeiam, os incidentes em que estão envolvidos, as emoções que catalisam por meio de uma cadeia de associações internas. Para chegar a essa realidade mais profunda de aparências ocultas, você tem que contar uma história, pintar uma imagem, cunhar uma metáfora – ou fazer um filme.

E nós que estamos fazendo todo esse sentimento – nós também somos objetos misteriosos; Podemos parecer tão inertes ou inanimados quanto os objetos físicos ao nosso redor. O que é nesta massa de sangue e ossos, de órgãos e vísceras, que parte de tudo isso é materialmente nosso? Qual é o verdadeiro pensamento e sentimento, o amor e o sofrimento? Onde está o reino sensual, o reino poético, o reino criativo do ser humano? Qual é a imaginação nesse cérebro miserável e seccionado sob o vidro?

A própria palavra surrealismo, como é bem conhecido, significa um super-realismo, um realismo elevado. Não significa, em primeiro lugar, irrealismo ou anti-realismo – um equívoco comum. O alicerce da arte surrealista é, em muitos casos, extremamente realista. Jean Cocteau refletiu certa vez sobre sua experiência de fazer Orphée (1950): “Quanto mais perto você chega de um mistério, mais importante é ser realista”.

Georges Franju, com espírito semelhante, prefaciava seu curta-metragem La première nuit (1958) – um conto lírico de amor vislumbrado e perdido entre crianças, quando os respectivos trens que eles se encontram e depois passam longe um do outro em um metrô – com essa passagem dos autores originais de Vertigo, Pierre Boileau e Thomas Narcejac: “Um pouco de imaginação para que nossos gestos mais comuns se tornem carregados de um significado inquietante, pois a decoração de nossa vida cotidiana dá origem a um mundo fantástico”.

Franju também refletiu sobre a experiência inerentemente surreal da mudança de casa: de repente, os objetos domésticos se tornam estranhos e hiper-realistas, à medida que ele os remove de seus pontos habituais e os embala; espaços estranhos e zonas da casa – um canto empoeirado, um local esbranquiçado onde uma imagem pendia uma vez – são notados pela primeira vez. É a apreensão de um mundo surreal e estranho sob o mundo dado ou dentro dele.

Franju foi um dos vários artistas modernos que retornaram ao grande amor dos surrealistas: os seriados de crime e fantasia feitos na era silenciosa por Louis Feuillade, longos filmes (ou séries em episódios) nos quais assassinos em trajes de homens-sapos pulam pela verdadeira Paris e cafés com contracenantes involuntários sentados à pouca distância. A homenagem específica de Franju a Feuillade foi seu filme Judex (1963); mais recentemente, Olivier Assayas retornou a outra série de Feuillade, The Vampires (1915-1916), em seu Irma Vep (1996). Alain Resnais nutriu seu próprio projeto nesse sentido, comentando: “As pessoas dizem que há uma tradição de Méliès no cinema e uma tradição de Lumière: eu acredito que há também uma corrente de Feuillade, uma que liga maravilhosamente o lado fantástico de Méliès com a realismo de Lumière, uma corrente que cria mistério e evoca sonhos pelo uso dos elementos mais banais da vida cotidiana (entre os comentaristas de Resnais, Richard Roud chama essa conjunção de fantasia e realismo, estilo Magritte, precisamente de “o método surrealista”).

Comecei este devaneio com aquele espécime cerebral de aparência curiosa em Feeling Sexy porque aponta um conjunto de termos e sensações que são cruciais para o surrealismo. Primeiro, a filosofia deste mundo material nosso em relação a outro mundo – não um mundo em outro lugar, no céu ou no inferno ou sobre o arco-íris, mas aqui mesmo, dentro dos recessos secretos do mundo dado. Segundo, a noção de uma força animada, alguma emoção ou desejo que respira vida nas estátuas de pedra da realidade. Histórias surrealistas são tantas vezes uma forma de rejuvenescimento, reavivamento, um despertar para a vida ou uma reabertura para as maravilhas do mundo cotidiano: da alegre comédia de ficção científica de René Clair da era silenciosa, Paris qui dort (aka The Crazy Ray, 1927) – em que um laser pode congelar e descongelar o mundo em suas trilhas – para as visões políticas dos irmãos Taviani em filmes como A Noite das Estrelas Cadentes (1982) e Kaos (1984), no qual o som da música, viajando magicamente através da terra ou do mar, pode agitar um indivíduo, uma comunidade ou uma nação inteira em música e dança instantâneas e ação revolucionária, num transe febril e possuído.

Vamos considerar agora não um filme surrealista certificado, mas o tipo de filme que os surrealistas de ontem ou de hoje poderiam gostar de assistir: um filme de terror de Hollywood, The Devil-Doll (1936), dirigido por Tod Browning (que fez o inquietante clássico Freaks em 1932), derivado de uma história de Erich von Stroheim. Uma cena inicial demonstra o plano maligno e visionário de um cientista louco do estilo Dr. Frankenstein, que sonha em encolher a população do mundo inteiro (por razões não especificadas em termos racionais). O que eu acho irresistivelmente surrealista neste espetáculo? Em primeiro lugar, a louca obsessão magnífica envolvida: encolher o mundo! E porque não? Eu adoro a forma como essa suposta racionalidade científica passou completamente para a irracionalidade quase mística: isso é ciência como vodu, ou como truques de mágica de circo (e, aqui novamente, vemos aqui o legado dos filmes de truques de Méliès). Então, eu amo os efeitos especiais em dois registros: tiros nos quais uma figura humana foi inserida em uma imagem normal para criar um desequilíbrio de escala; e aqueles em que enormes conjuntos foram construídos para dar a ilusão de um vasto mundo enorme superando as matérias encolhidas. Eu também adoro os in-between shots: momentos em que atores estão segurando bonecas inanimadas ou adereços, ou aplicando pedaços de algodão apenas fora da tela, abaixo da linha do quadro.

Não me entenda mal: não estou dizendo que os efeitos especiais analógicos de 1936, porque eles não são tão simples quanto os efeitos digitais em Star Wars: Episódio 1 – A Ameaça Fantasma (1999), são risíveis. Muito pelo contrário: quando você consegue ver os fragmentos de artifício e ilusão, então o efeito estranho, onírico e poético – o efeito surrealista – pode ser aumentado em dez vezes. Claude Ollier uma vez elogiou os efeitos especiais algo desajeitados e óbvios no King Kong original (1933) ao observar: “Tão verdadeiro é que o mundo dos sonhos é um dos efeitos especiais, com deslocamentos ópticos, quebras sequenciais e descontinuidade geral”. Evocou “um universo visual que percebe perfeitamente o efeito de ‘colagem’ básico de qualquer visão de pesadelo: espaço pontilhado e tempo pontilhado, lacunas, sobreposições e incompatibilidades em ação, zonas de duração imponderável, vazias, nas quais apreensões de irrealidade caem de cabeça”.

Espaço pontilhado e tempo pontilhado – essa frase me lembra uma “inscrição” do surrealista belga Louis Scutenaire, que certa vez pensou: “Meu gosto por Popeye, o marinheiro, nos desenhos de Max Fleischer, deve muito às liberdades que ele toma. Há uma crença muito cinematográfica de que o espaço e o tempo devem ser considerados como crenças humanas estimadas – e, consequentemente, descarrilados e subvertidos. É por isso que os cinéfilos surrealistas têm tal gosto pelas muitas variedades do cinema B; porque podemos encontrar lá (intencionalmente ou não) um tipo de associação livre e hiper-lógica entre peças e pedaços de papelão, uma montagem maluca entre peças de enredo, personagem e ideia.

A boneca-diabo é explicitamente sobre o tema da animação, o sopro da vida. E que vida isso traz! Quem é essa mulher na cena de demonstração, meio humana e meio boneca, esticando os braços e bocejando como se tivesse acabado de acordar de algum sono de beleza voluptuoso e sobrenatural? Sua imagem alongada – como a imagem de seu corpo envolto em lã, energizada pela eletricidade – é uma daquelas visões impressionantes, desconectadas e excessivas que o cinema surrealista adora apresentar, e que o gosto surrealista gosta de descobrir. Imagens (ou melhor, eventos de som da imagem) que saem do filme à mão, sabotam o enredo, prendem a situação e congelam as inter-relações psicológicas dos personagens, para que algo incandescente e verdadeiramente fenomenal surja, fenômenos de absoluto , estranheza e intensidade máximas.

Em todo o cinema, minha descoberta surrealista favorita desse tipo está em um trabalho silencioso do filme de Fritz Lang, Spione (1928). Uma cena começa, não sabemos onde, como ou por que – uma moldura vazia em algum espaço não identificado. Então, um braço se abaixa lentamente em direção à estrutura: o braço de uma mulher, impecavelmente vestido, polido e apresentado, com a mão segurando uma pequena e delicada pistola prateada. O gatilho é suavemente apertado e um tiro voa. Em algum lugar no espaço que ainda não podemos ver, dentro de uma maquinação de enredo que ainda não conseguimos entender, um cara acaba de levar uma bala no coração. Aqui, em um momento delirante e sublime, é uma boa iniciação nos anais do sexo e da violência surrealistas.

2. Um modo surrealista de ver

O desejo, por muitos anos, teve uma má imprensa na teoria do cinema. O olhar e suas perversões associadas: voyeurismo, escopofilia, fetichismo. Esse tipo de visão vilificada é um olhar distante, faminto, vazio, indiferente, irracionalmente brutal. É o olhar dado por perseguidores, slashers e psicopatas por trás das folhas das árvores nos filmes de Sexta-feira 13 (1980) ou Halloween (1978) – onde a câmera gentilmente toma o lugar dos olhos de perigo estranho do assassino invisível, um olhar dirigido a colegas em dormitórios, crianças ao redor da fogueira ou ao nossos videocassetes. Muito antes da série Pânico de Wes Craven (1996-), os filmes de Brian De Palma dos anos 1970 e 1980 já estavam remetendo essas convenções do “olhar faminto” podre – e, pode-se sentir, igualmente enviando as teorias solenes que estavam ansiosas comentando sobre eles.

A visão surrealista é uma maneira diferente de ver. É criativo reinventar o que se vê. Investe-se intensidade e mistério na menor coisa, ou na menor parte de uma coisa: uma boa definição de fetichismo, se você puder separar esse termo das teorias freudianas da ansiedade de castração de um menino. A maioria dos artistas são fetichistas em um sentido positivo – certamente, os artistas surrealistas são. Eles também são perversos em um sentido positivo. Pois o que é perversão, exatamente? É a religação, a re-canalização das peças do mundo, as peças da ordem social, através de um novo e diferente tipo de lógica. Crash (1996) de David Cronenberg, por exemplo, não é um testamento triste, monstruoso, violento, ofensivo e doentio; Não acho isso frio, desumanizador ou misógino, como alguns o fazem. A visão de Cronenberg é perversa em um sentido criativo: imaginar, e imaginar conexões sem precedentes entre pedaços de corpos e pedaços de máquinas, entre estados emocionais e desejos num mundo onde personalidades e interações entre personalidades (“relacionamentos”, costumávamos chamá-los) foram além do choque, do trauma e da alienação em alguma zona límpida e misteriosa.

A maneira surrealista de ver tende a andar de mãos dadas com a criação e a chegada de novos mundos – mundos da tecnologia, mídia, showbiz, glamour e celebridade. O surrealismo gosta de qualquer estrato social que já esteja fora do chão, elevado e exagerado, em uma escada para o céu ou um elevador expresso para o inferno. A visão surrealista muitas vezes é trabalhada nos enredos e situações dos filmes de inspiração surrealista; como determinados personagens privilegiados olham, veem e  nos dirigem e nos orientam nessa mesma direção sonhadora.

Os filmes de Federico Fellini, por exemplo, gostam de adotar um tipo de visão perturbada, uma percepção sensorial intoxicada. Em Toby Dammit, seu episódio de 35 minutos para a antologia de Edgar Allan Poe, Spirits of the Dead (1968), Toby (Terence Stamp), uma estrela de cinema inglesa ultra-decadente, é entrevistado em um programa de TV. Fellini, aqui, enlouqueceu a percepção sensorial de Toby, ao mesmo tempo em que a personificava e incorporava em sua linguagem de imagem e som do próprio filme. O espaço do mundo, de qualquer lugar, local ou cenário, explode em mil fragmentos cintilantes. Mais uma vez, espaço pontilhado e tempo pontilhado. Fellini dirige este set de entrevistas na TV para a descontinuidade máxima: Toby é banhado por uma luminescência branca e sobrenatural, enquanto tudo ao seu redor está girando incessantemente, movendo-se, navegando, rastejando. Cada foto, cada imagem, é como sua própria ilha atomizada. Os rituais arcanos do showbiz moderno – como o anfitrião do programa desaparecendo abaixo da linha de enquadramento da câmera de TV, avançando em suas mãos e joelhos – tornam-se um momento de visão visionário para Toby.

Tudo é artifício e ilusão, todas as costuras aparecendo – assim como a risada enlatada que vemos e desaparece manualmente, duas décadas antes de aparecerem dispositivos semelhantes em O Show de Truman (1998), de Peter Weir. O estilo de camerawork e corte de Fellini se agarra e, em seguida, trunca abruptamente tudo no meio da viagem ou no meio do gesto, em movimento incessante e inquieto, não necessariamente orientado ou motivado pela ação dos personagens. O diálogo pós-sincronizado está lá, como em um filme de Orson Welles, através das imagens sem sempre respeitar os movimentos dos lábios dos atores. Este típico herói Felliniano – uma alma frágil e perdida, flutuando em um mundo de aparências giratórias e sedutoras, que são muitas vezes, na verdade, uma infinidade de imagens de si mesmo – também é propenso a visões internas emprestadas do cinema de terror, como a notável menininha que o assombra no conto. No geral, o que recebemos aqui não é simplesmente conteúdo ou preocupações surrealistas, mas uma textura surreal mais voltada para as superfícies de um mundo moderno e maluco.

Uma cena relacionada, de uma forma ainda mais cômica, vem da minissérie de TV de três partes de Raúl Ruiz, Manoel na Ilha das Maravilhas (1984, com uma curta edição de longa-metragem intitulada The Destinies of Manoel, em 1985). Série feita, de fato, para crianças, que há muito tempo são uma aspiração de artistas surrealistas de todos os tipos (Jacques Brunius lamentou que, já no final da década de 1940, estava “se tornando quase impossível compor um programa para crianças”). A cena oferece uma cerimônia surreal, mais uma vez em um cenário moderno do showbiz: uma transmissão de rádio ao vivo. Como muitas vezes no trabalho de Ruiz, a cena nominal aqui é mais como um universo constantemente encolhendo e se expandindo como o corpo de Alice no País das Maravilhas; está constantemente se ramificando em outros mundos alternativos, transformando-se, metamorfoseando-se. Como Fellini, Ruiz emprega o máximo de voice-over e pós-sincronização para maior liberdade de manipulação do som, de modo que o estranho texto verbal flutua acima ou abaixo da ação. Esta transmissão de rádio, ocorrendo no espaço estranho e indefinível do domínio de uma menina talentosa, é introduzida no filme por uma voz desencarnada que vem através de um rádio doméstico, assim dá um salto instantâneo para outro filme virtual acontecendo longe da trama principal. As transições de cena são frequentemente traiçoeiras, dessa maneira, no trabalho de Ruiz.

Depois, há os jogos visuais que asseguram a expansão infinita do espaço e a fluidez ou maleabilidade de todas as figuras e objetos: as pessoas se tornam sombras nas paredes, uma lente Split Diopter permite justaposição de um primeiro plano extremo e um fundo extremo, com uma linha difusa ou zona no meio da tela; ângulos malucos – como o repórter de rádio visto através das curvas da pista de corrida de carros modelo – abstraem, multiplicam e redefinem as possibilidades espaciais em cada turno. Como em Fellini, tudo aqui está em movimento perpétuo, incluindo uma criança flutuante e levitando (a quem você nunca vê em toda a extensão), além de vários personagens sendo rodados em cadeiras.

Em Manoel na Ilha das Maravilhas, como um todo, o enredo continua se reiniciando, dobrando de volta, oferecendo novas versões de si mesmo. Em particular, a história é uma variação selvagem do que a psicanálise chama de “romance familiar” – a história arquetípica em que uma criança procura por sua identidade na forma de pais biológicos (que, em Ruiz, continuam transformando-se em diferentes mas com pessoas parecidas, como se todas tivessem sido fisgadas por alienígenas), e para qualquer lugar chamar uma casa estável ou sólida ou um ponto de origem. Mas o garotinho Manoel, perdido em um fluxo constante de possíveis famílias e lares, é o eterno órfão surrealista: como as crianças em Moonfleet de Lang (1955) ou A noite do caçador (1955) de Charles Laughton – dois exemplares inebriantes e inclassificáveis de Hollywood, filmes amados por cinéfilos surrealistas – Manoel é transportado de uma estranha casa improvisada para outra, para campos mágicos e cavernas assustadoras, onde a única paisagem que pode dominar ou sintetizar sua jornada é o mar, que é a imagem favorita de Ruiz do inconsciente de fluxo e auto-abandono.

3. Política Surrealista

Dirijo-me a outro diretor contemporâneo mais conhecido, cujos filmes também são frequentemente sobre identidades e famílias em crise e fluxo: David Lynch. Lynch é uma figura chave para uma sensibilidade surrealista contemporânea, simplesmente porque, em primeiro lugar, confia plenamente em sua intuição inconsciente. Ele descreve como as imagens, personagens, eventos, gestos e tramas de seus filmes surgem de um processo controlado de devaneio sonhador, meio adormecido e meditação profunda e suspensa – assim como Ruiz escreveu outra de suas obras, City of Pirates (1983), usando uma técnica que ele descreveu como uma “sesta experimental”, fazendo-se dormir todas as tardes, em algum lugar estranho da casa, segurando um objeto que ele achava que poderia usar no filme, como uma bola saltitante de uma criança ou uma estátua. Como o crítico de influência surrealista Raymond Durgnat uma vez sucintamente colocou em relação a Veludo Azul (1986): “A psicologia não é sobre o que o filme trata: o enredo é apenas um pretexto para um sonho. Ou melhor, um spin-off de um sonho. Tenho certeza de que Lynch sonhou com esse filme primeiro e planejou depois”.

Lynch faz suas narrativas e personagens, seus temas e humores, subservientes a uma lógica onírica que permanece verdadeira e parece correta, mas não pode ser totalmente articulada ou conscientemente expressa pelo artista. Essa é a diferença entre Lynch e alguns outros artistas que lidam com fantasia (como Neil Jordan ou Sally Potter), onde as lógicas dos sonhos parecem muito conscientes: racionais, teorizadas e pré-programadas na maneira como aparecem e modulam na tela.

Lynch é importante, também, pelos argumentos e debates que ele incita. Seu surrealismo é flagrantemente incorreto, na maneira insolente, desobediente, às vezes alegremente nerd e adolescente que a arte surrealista costumava ter. Como os filmes de Cronenberg, que também traçam lógicas inconscientes profundas e misteriosas, Lynch acaba se tornando provocativo na forma como eles usam e abusam das fixações políticas atuais – muitas vezes puritanas em seu fervor ideológico – e agitam os nós neuróticos e tensos no discurso público. Seus filmes muitas vezes me lembram desse famoso slogan surrealista: “Bata na sua mãe enquanto ela ainda é jovem”. Imediatamente, nós pisamos naquele campo minado de crítica política do surrealismo: particularmente o que acusa o surrealismo em geral, e alguém como Lynch, em particular, de ser nada mais do que um foco de fantasias masculinas construídas sobre os corpos irreais e ilimitados das mulheres.

Há alguma verdade nesta queixa. A recorrência de figuras más da mãe e mulheres violadas em trabalhos de Lynch, incluindo Twin Peaks e Lost Highway, é frequente demais para ignorá-las. Figuras femininas frequentemente figuram como projeções psíquicas dos personagens masculinos: sob controle até virar a mesa e começar a existir independentemente dos homens, o que regularmente desencadeia revelações conspiratórias, paranoicas e até mesmo apocalípticas. No mínimo, teríamos que admitir que Lynch produz uma fina poesia e modela um grande cinema a partir desse nexo de projeções de fantasia e pesadelos de castração – e ele investe seus estereótipos de gênero com mistérios e ambiguidades.

Considere esta passagem de duas cenas consecutivas no Veludo Azul. Jeffrey (Kyle MacLachlan), o herói geek do tipo boy-scout, divide as mulheres em sua psique em dois tipos radicalmente opostos: o tipo limpo, loiro, virginal, Sandra Dee (Laura Dern como Sandy) e o misterioso, a voluptuosa, prostituta maternal (Isabella Rossellini como Dorothy) – sendo esta última assustadora como todo o inferno, mas oferecendo uma iniciação no lado deliciosamente escuro da rua. Lynch cria um tipo diferente de estilo e textura para as cenas que envolvem essas mulheres: as cenas de Sandy são todas de nostalgia dos anos 50, malta de malhas, normalidade em tons pastel – mas não é uma normalidade que você possa realmente gostar ou endossar ou acreditar – enquanto as cenas de Dorothy desencadeiam a ideia completa do surrealismo artruso: objetos fetiches como batom vermelho, deformações de tempo e espaço na escuridão, inserções fantasmagóricas e expressionistas de chamas e outros símbolos obscuros (mas carregados).

Admitamos que Blue Velvet é, em alguma medida, uma fantasia masculina que pertence de uma só vez a um personagem fictício, ao diretor e a uma sociedade. À medida que as fantasias masculinas se passam, tornam-se mais intrigantes e cativantes. Mas certamente estamos errados se tomarmos a posição geral de que o surrealismo é inerente e suspeitamente masculino em sua própria natureza e impulso. Em sua história, sim, até certo ponto; mas em sua quintessência, não. Formas surrealistas de imaginação, visão e contação de histórias não se limitam aos homens, e temos muitos filmes, incluindo Daisies de Vera Chytilová (1966), The Pirate’s Fiancée (1969) de Nelly Kaplan e Amelia Lópes O’Neill (1990) de Valeria Sarmiento para provar.

O surrealismo não pode ser investigado, diagnosticado ou atacado de forma muito literal. Se tomarmos uma abordagem literal, se lermos puramente o que pode ser visto à primeira vista, então é fácil cair na intolerância moralista e desaprovadora – encontrar evidências a cada passo de que o surrealismo é repressivo, punitivo, dirigido pela morte, o privilegiado passatempo libertino de um culto social exclusivista, movido apenas pela ansiedade, repressão, homofobia, misoginia e alienação. Mas essa linha de ataque é difícil de sustentar quando o surrealismo se propõe a nos ensinar, em primeiro lugar, que as aparências nunca são meramente aparências. As aparências são na verdade véus, pretextos, metáforas, encarnações fugazes ou aparições de fervura de algum sentimento ou impulso mais profundo e amplo. Outro grande e lúdico slogan surrealista, este emprestado de uma era romântica de arte, literatura e filosofia há muito tempo anterior ao surrealismo: a vida é um sonho. O que significa que este mundo, o mundo em vigília, é a ilusão, a habitação temporária, enquanto o mundo dos sonhos é o reino verdadeiramente real e coletivo que só conseguimos vislumbrar e aproveitar enquanto dormimos, enquanto estamos vivos.

É nesse caminho sombrio e fugaz que devemos explorar as representações e evocações de sexo, violência e transgressão do surrealismo – o conteúdo que muitas vezes é rotulado como doente ou suspeito por seus críticos contemporâneos. O dano causado aos corpos no surrealismo é uma violação menos literal do que a fuga e o abandono figurativo, ao estilo de fantasia. Cronenberg diz isso em filme após filme: “viva a nova carne”, um grito surrealista para a era cibernética. Vamos dar um exemplo literário desse processo complicado. Em uma passagem particularmente delirante de seu romance Camponês de Paris, de 1926, Louis Aragon mergulha em um devaneio sobre a experiência do amor e do desejo como uma experiência de se perder. Quanto a mim, desejo apenas que esses corpos estranhos que me seguram juntos me deixem finalmente, que meus dedos, meus ossos, minhas palavras e sua amálgama me abandonem, que eu me separe no azul magnético do amor!

Há uma parte particular desta passagem potente em Camponês de Paris que há muito me cativa. É quando Aragon se debruça sobre o oceano (as imagens lembram a Cidade dos Piratas de Ruiz) e os cadáveres que se encontram no fundo: Mar, você realmente ama os cadáveres putrescentes de suas vítimas afogadas? você ama a suavidade de seus membros fáceis? Você ama o amor que vem das profundezas insondáveis? Sua pureza incrível e seu cabelo flutuante? Então deixe meu oceano me amar.

Um dos aspectos mais notáveis da prosa de Aragon é sua violência. Uma certa perda é descrita como um assassinato, uma automutilação prolongada, a decadência do corpo. Este é um clássico paradoxo surrealista, pura lógica surrealista: a pureza do amor (que é sobre o que Aragon realmente fala) é retratada como a pureza da morte; e imagens horríveis da morte servem, de fato, como uma imagem da vida, da força da vida. As imagens de Aragon podem parecer, à primeira vista, horríveis, mas, acima de tudo, são rapsódicas. Pois a perda ou morte de si mesmo que ele interpreta não é trágica, mas exatamente o oposto: é estática, uma celebração selvagem.

O surrealismo tem seu próprio programa político bem desenvolvido. Pode parecer um tanto utópico e antiquado hoje em dia, essa política com sua invocação de revolução permanente no plano do cotidiano. A ideia de revolução permanente é em si um paradoxo, às vezes escondendo uma reflexão tardia melancólica. A revolução é permanente, contínua, perpétua – mas nunca chega verdadeiramente. Isso não significa que a revolução não vale a pena experimentar ou lutar; mas há um ponto de interrogação sobre sua eficácia e praticidade no mundo real.

De certo modo, esse é o ponto político do surrealismo: há sempre algo mais, algo melhor, esperança, esforço, sempre um novo prazer a ser encontrado onde você está, sempre uma nova transformação a ser alcançada, algumas novas potencial a ser extraído. No entanto, é interessante que, quando se trata de surrealismo e cinema, grande parte da escrita expressa uma decepção inconfundível. Jean Epstein na década de 1920 elogiou o cinema por suas qualidades mágicas do que ele chamou de fotogênico – quando ampliado, rostos, gestos na tela se torna irreal e sublime – mas ele já pensou: “Eu nunca vi um minuto inteiro” de pura foto-gênese. Durante setenta anos, escritores e críticos surrealistas adotaram o cinema como sendo o ideal do meio de sonho, a porta de entrada para o inconsciente e o fantástico, enquanto também, na próxima sentença, expressam pesar por uma indústria cinematográfica por dinheiro, que quer nos vender apenas sonhos e fantasias formulados e comprometidos, desejos comercializados e mercantilizados. Ainda assim, eles voltam ao cinema procurando por aquele lampejo de êxtase, aquele vislumbre de outro mundo que, ainda que breve e inadvertido, pode ser profundo, devastador, capaz de mudar a vida, realçar a realidade. Talvez toda a nossa relação com a arte e a cultura siga uma lógica tão inquietante de desapontamento perpétuo lutando com uma esperança irreprimível e impossível.

Eu sou lembrado aqui de um ensaio sobre surrealismo escrito pelo famoso filósofo alemão e comentarista social Walter Benjamin. Em uma reflexão de quão fugazes, efêmeras, às vezes quiméricas são as promessas e fantasias do surrealismo, Benjamin evocou uma cena bastante melancólica, mas adorável (e certamente cinematográfica). Breton, especialmente em seu romance Nadja (1928), foi “o primeiro a perceber as energias revolucionárias que aparecem no ‘antiquado’ – nas primeiras construções de ferro, os primeiros edifícios fabris, as primeiras fotos, objetos que começaram a ser extintos, os pianos de cauda, os vestidos de cinco anos atrás, restaurantes da moda quando a moda começou a se desfazer deles”. E continua: “Breton e Nadja são os amantes que convertem tudo o que experimentamos em lúgubres viagens ferroviárias (as ferrovias estão começando a envelhecer), em tardes de domingo esquecidas pelos Deuses nos bairros proletários das grandes cidades, à primeira vista através da janela turva pela chuva. No apartamento, em experiência revolucionária, se não ação. Eles trazem as imensas forças da “atmosfera” escondidas nessas coisas até o ponto de explosão. Que forma você supõe o momento decisivo de uma vida que foi determinada como uma música de rua, passada na boca de todos?”

4. Ficção Surrealista

Precisamos prestar atenção às formas de ficção surrealista, narrativa surrealista, a fim de contrabalançar o que muitas vezes é enfatizado sobre as imagens, sensações e espetáculos singulares dessa tendência. Eu me volto para meu exemplo final, o maior filme do grande surrealista do século XX, Luis Buñuel.

Hoje em dia ouvimos muito sobre a narrativa de histórias como uma força vital, positiva e quase nova. Suntuosos manuais de como escrever um roteiro, modelados principalmente em meia dúzia de mãos, enormes sucessos de Hollywood; pregam a necessidade de heróis fortes, conflitos, estruturas clássicas de três atos – e, acima de tudo, a necessidade do (normalmente masculino) herói para fazer uma jornada definitiva, muitas vezes uma jornada literal, física, baseada em ação, na qual ele ganha algo, ganha alguma coisa e se encontra.

É esclarecedor comparar os filmes de Buñuel ou Cronenberg com esse modelo prescritivo irremediavelmente limitado. Histórias buñuelianas sobre uma gangue de burgueses que olham interminavelmente para uma refeição (The Discrete Charm of the Bourgeoisie, 1972) ou que tentam sair de uma sala (The Exterminating Angel, 1962) não têm o padrão de três atos, conflitos bons contra maus ou triunfantes. São, em vez disso, histórias de repetição enlouquecedora, construídas sobre uma sucessão quase musical de temas e variações. Esses filmes surrealistas têm formas e padrões notáveis, altamente originais e únicas de um trabalho para o outro, mas raramente (ou nunca) o gráfico de Hollywood normal e padronizado.

A ideia de uma jornada, no entanto, pode ser resgatada e reescrita de uma perspectiva surrealista. Os surrealistas há muito amam certos tipos de jornadas míticas e aventuras: a jornada de Alice pelo País das Maravilhas, O Progresso do Peregrino, A Odisseia, As Estações da Cruz. Mais recentemente, o gosto surrealista surgiu em coisas como Fantastic Voyage (Richard Fleischer, 1966), no qual se registra viagem pelo interior de um corpo humano; ou as muitas prestações através da mídia do épico Star Trek (1966-), com suas constantes rupturas e deformações do contínuo tempo-espaço, e aquele dispositivo chamado Holodeck que simula mundos alternativos e às vezes os solta em um selvagem, imparável contágio. (A série Star Wars, por outro lado, é muito parecida com um manual triste de como escrever um roteiro).

Os surrealistas amam as viagens porque estas implicam transformação, metamorfose; bem como a experiência de ser movido, transportado, levado para algum lugar dentro do passeio emocional e imaginário criado por um filme. Mesmo os “arcos de caráter” amados de Hollywood podem ser bem aproveitados, uma vez que quanto mais um personagem muda, mais distante ele ou ela pode se afastar de si mesmo e de seu papel social sancionado. Algo desse gosto por mudanças radicais era evidente, por exemplo, na consideração intoxicada de Ado Kyrou pelos papéis constantemente mudados por Marlene Dietrich nos exóticos melodramas de Josef von Sternberg no início da década de 1930: “Nunca consegui enumerar os figurinos de Marlene em Shanghai Express (1932)”.

Belle de jour (1967) oferece um papel magnífico. É preciso uma dona de casa de classe média reprimida (Catherine Deneuve como Séverine), sexualmente alienada e frígida em casa, impulsionada para o meio de um bordel de alta classe. Assim, ela é uma cidadã modelo à noite e uma beleza sem lei durante o dia – já uma inversão intrigante da polaridade dia/noite tipicamente carregada. O estilo caracteristicamente calmo, discreto, sutil e manhoso de Buñuel nunca dramatiza mudanças de caráter dentro de uma determinada cena. A jornada pessoal de Séverine em e entre vários níveis de vida consciente, pré-consciente e inconsciente descreve um itinerário que se imprime em seu ser apenas da maneira mais ilusória, fantasiosa e inverificável.

O que mais importa, para nós, como espectadores, são as súbitas progressões e saltos de uma cena para a outra. Cada cena é concebida e construída como um quadro ou estação (exatamente como aquelas Estações da Cruz, que atraíram a sagacidade blasfema do diretor em A Via Láctea, 1969) – e quando passamos para cada uma delas, há uma colisão hiperlogical, uma elipse. Séverine passou de um nível para outro, um planalto mais estranho, mais complicado e mais perverso – mas, no tempo que passou, aquele personagem teve tempo de se acostumar com esse novo mundo e se aclimatar a ele, porque agora o trata como vida cotidiana normal. Nós, por outro lado, assistindo ao filme, demoramos um pouco mais para entender realmente o que está acontecendo e onde estamos agora; corremos para acompanhar, conceitualmente, essas mudanças sem fôlego. É uma forma ostensivamente excitante de ficção que Cronenberg também usa.

Assim, podemos ver por que as aparências são tão importantes no cinema surrealista: mudanças súbitas em figurino, penteado, maquiagem são tão importantes em Belle de jour, Xangai ou Rivette em Céline e Julie Go Boating (1974) porque marcam esses saltos praticamente inexplicáveis. e metamorfoses. Mudanças na aparência marcam mudanças ainda maiores no caráter, na identidade e na psicologia: as pessoas raramente acabam sendo iniciadas como na ficção surrealista. De fato, eles podem acabar se contemplando literalmente do lado de fora, na forma de um clone duplo ou dopplegänger: como a criança que uma vez foi, e poderia facilmente ser novamente, com outro lançamento no espaço-tempo do universo.

Considere o segundo dia de Séverine no trabalho em Belle de jour. Em primeiro lugar, o elemento de surpresa ou revelação no final desta cena: seu rosto varrido de êxtase erguendo-se dos lençóis, dizendo casualmente a linha mundana: “O que você sabe?” Segundo, os dispositivos poéticos simples, mas muito eficazes. Multiplicado e espalhado pelo filme em muitas variações e ecos: o sino que o homem toca, e as muitas maravilhas misteriosas fora da tela, invisíveis, o invisível dentro do visível, como o que o cliente tem em sua caixa, ou (em outra cena), o que Séverine e um cara estão fazendo debaixo de uma mesa de restaurante com uma garrafa quebrada. Terceiro, e acima de tudo, o sentido de uma jornada, uma progressão que nos leva muito além dos polos extremos da moralidade ou amoralidade, além do bem e do mal, noções passadas de alienação e repressão e em um mundo sem peso do sexo, desejo, boa aparência e comportamento ritual hiper-refinado. Buñuel teria concordado com Ruiz, que certa vez sugeriu que as duas grandes forças que estruturam o universo são a vontade de mistério e a vontade de ministrar – tudo o que é, por um lado, mágico, maravilhoso e surpreendente; e depois, por outro lado, tudo ordenado, racional e burocrático. Mas com esta condição dinâmica: temos que estar conscientes de que o mistério pode facilmente tornar-se ministério, chato, não surpreendente e estereotipado; enquanto o ministério, em seu excesso de racionalidade e rotina, pode se tornar misterioso e completamente louco. Belle de jour nos mostra um mundo bem preparado, posicionado neste desafio entre o mistério e o ministério.

Uma vez, tentando formular a filosofia particular ou visão de mundo do surrealismo, eu ponderei as opções usuais. Por um lado, o surrealismo definitivamente não é religioso ou metafísico. Sempre foi orgulhosa e ferozmente mantida no credo de 1880 de Louis Auguste Blanqui de “nem Deus, nem mestre”. Em algum sentido fundamental, o surrealismo está fundamentado na realidade do mundo. E é de natureza política, frequentemente esquerdista em sua orientação e afiliações. Então, poderíamos chamar o surrealismo de materialismo? Bem, sim, mas isso não parece muito divertido – e muito severo.

O surrealismo é, ao mesmo tempo, sobre o invisível, “outro” mundo, o invisível no interior do visível, carregando o visível. Mas há uma via de mão dupla de comunicação entre os domínios do imaginário e do real que Gilles Deleuze descreveu melhor. “Por quê”, pergunta ele, “podemos distinguir entre sonhos como fantasia e caminhar na rua como reais? Vemos claramente por que o real e o imaginário foram levados a exceder-se, ou mesmo a intercambiar-se um com o outro: um devir não é imaginário, mais do que uma viagem é real. Está se tornando a mais desprezível das trajetórias, ou mesmo uma imobilidade fixa, em uma viagem; e é a trajetória que transforma o imaginário em um devir. Cada um dos dois tipos de mapas, os de trajetórias e dos afetos, refere-se ao outro”. E acrescenta: “E assim como as trajetórias não são mais reais do que os devires são imaginários, há algo único em sua união que pertence apenas à arte”.

Porque o surrealismo é sobre uma força animadora de sentimento, desejo e investimento emocional, também precisamos afirmar que é, também, uma filosofia estática. Não uma espiritualidade religiosa, mas transes e transportes, sonhos e visões, o inconsciente. Se existe um misticismo no surrealismo – e muitos surrealistas têm sido atraídos, teoricamente ou praticamente, para funções que incluem o uso de drogas, o vodu e o ritual mágico – então é um misticismo mundano secular ou terreno. E se há materialismo no surrealismo, certamente tem que ser um materialismo estático. E é por isso que, sempre que me perguntam hoje em dia qual é a fé que possuo, ou em que ideologia acredito, essa é sempre a minha resposta preferida: sou um materialista em êxtase. E essa é a minha maneira de tentar participar, como cinéfilo, da eterna e contínua aventura e experiência do surrealismo no cinema.

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A cor enquadrada nos vãos da imagem – em busca do rosto da morte

Por Diogo Serafim

With Blue – uncertain – stumbling Buzz –
Between the light – and me –
And then the Windows failed – and then
I could not see to see –

Emily Dickinson

schiele

Saturno devora o seu filho, atira flechas contra a quimera de Frida, cobre de flores o corpo de Mendieta. O esvanecimento do laranja de Rothko para o vermelho que o contorna, a aura flava que apossa o entorno da cabeça inclinada do Cristo de Velásquez, o abraço da seda preta com a vermelha no lençol branco de Schiele – nada disso trata de uma transição brusca, mas sim de uma dinâmica constantemente equilibrada pela confrontação direta da ideia de morte, ontologicamente limitada, com a sua inevitabilidade espontaneamente sentida. Trata-se de uma cinesia que se dá no tempo, e não na suspensão deste, apreender a cor que sustenta cada predicado constituinte da morte, pesar cada contato interrompido ou arroubo descontinuado que contorna o seu evento e unir todas essas previsões, subjetividades e parâmetros em uma base estrutural, alicerçada na certeza de que o único momento em que a vida não me inclina para a ideia de morte é quando esta já se faz presente no meu corpo. Só penso em viver quando tenho em mim que, inevitavelmente, vou morrer.

A morte e a vida do corpo é sempre transcendida na obra de Brakhage – na luz pasteurizada que sai da janela para incidir no ventre habitado de Jane, com seu corpo submerso em água, em Window Water Baby Moving (1959) para o corpo inerte violado em autópsias de pessoas inominadas em The Act Of Seeing With One’s Own Eyes (1971), a forma deste se altera conforme a necessidade, seja na concepção ou na morte, na deformação ou na desfiguração, na mariposa destrinchada entre os rompantes de cor e abstração de Mothlight (1963) ou no mito ressurgente de Eye Myth (1967). Toda a obsessão parece encontrar em seu filme Dog Star Man (1961-1964) uma resposta definitiva – é um filme-chave, filme-síntese, filme-testamento, filme que apresenta não apenas um leque de técnicas e preferências estéticas do autor mas também de uma ambição deste mais primária enquanto artista, parecendo encontrar uma resposta para até onde o cinema pode chegar enquanto arte, onde os limites não apenas estruturais mas também sensíveis da matéria aparentam ser constantemente expandidos, ressignificados, em uma liberdade muito possibilitadora e particular.

Se Dog Star Man é um filme-filosofia, The Act Of Seeing With One’s Own Eyes é um filme-procedimento, um filme assombrado exatamente pela sua aparente secularidade. Reside na carne exposta – distendido nos músculos, nos órgãos escavados, fendido na gordura lacerada e no sangue asfixiado, furtivo nos interstícios da vida dissipada – um ideal transcendental espontaneamente caracterizado analiticamente, seja por uma valoração ontológica prática ou por uma negação técnica, em um caso deslocando e no outro reforçando uma tese que é alheia ao material em questão, isto é, aberto para uma concepção teológica de uma alma, uma continuidade extra-sensível que não é exposta na tela, ou para um princípio entrópico de esvaziamento de forma e conteúdo, a morte como tal, propriamente destrutiva no seu ato de reorganização material. Mais que um tratado investigativo é um tratado fundamentalmente expositivo, o momento presente de morte e o pragmatismo de um procedimento constituindo uma espécie de aporia vigente, o instante é encapsulado e reproduzido com uma frieza irremediavelmente vinculada ao presente enquanto matéria mas que em última instância nos afeta para além desta, uma aporia de difusão não apenas empática mas também niilista, fundada em um paradoxo multifacetado, o que resta em matéria do que era e do que será do corpo, do que pode constituir ou destituir algo de conteúdo, um trabalho de campo e extracampo fundamentalmente procedimental mas com possíveis desdobramentos metafísicos.

actofseeing

Brakhage se associa e simultaneamente se distancia do acionismo vienense. Associa-se enquanto existe uma recusa imediata à reflexão e à hermenêutica em prol de uma crueza frontal, escancarada, consignada na tela conforme os cortes desvendam a unidade corporal sendo violada. Associa-se também enquanto transparece uma transcendência espontânea, declarada na inércia do corpo, aceitando resignada a violação lúgubre, uma vulnerabilidade encontrada em algum grau na sinfonia ‘Island’ de Hermann Nitsch, a cacofonia e os ruídos iterativos compondo uma apoplexia sonora que trabalha em uma lógica de esvaziamento do eu, nos submetendo a uma dimensão que se perde em um niilismo holístico ao mesmo tempo que o reconstitui em prol da espiritualidade desvirtuada. Distancia-se do movimento na mesma medida que também se distancia da sinfonia de Nitsch – o filme é intuído por uma lógica que também é de esvaziamento, mas para por aí. Enquanto o indivíduo na sinfonia se permite ser absorvido por uma dimensão que parte da corporalidade para constituir algo muito maior que ele, algo governado por forças misteriosas pouco definidas apesar de manifestas nos seus desdobramentos, o filme não se desmembra para alcançar uma totalidade cósmica particular, mas tem no seu próprio procedimento a sua teleologia constituinte. Logo, foge naturalmente dos desdobramentos políticos do acionismo ou pelo menos os modula de uma forma claramente distinta. Em uma segunda instância, é particular também na pergunta fundamental que aparenta propor: onde reside a alma? Resta, naquela corporalidade fundamentalmente material, claramente desprovida de força vital, algum resquício do espírito?

A busca pelo holismo existencial, por uma possível espiritualidade moldadora investigando a ligação entre a natureza e o indivíduo, é o tema central em um de seus projetos mais ambiciosos: Dog Star Man é um filme maior que o mundo, do tamanho do universo que reside dentro de um homem. O filme tem tudo. Constituído de uma cosmologia de afetos, é uma epopeia sensorial com uma narrativa perdida nas entranhas da sua avalanche de texturas e colagens, rasgaduras estruturais e saltos temporais. Nascer, trabalhar, amar, pôr-se em fuga mas continuar no mesmo lugar, imagens que retornam, imagens que persistem, instantes que resistem. É a versão expandida da sua obra-prima For Marilyn (1992), onde inicialmente toda a angústia e todo o sentido se reduz a uma busca mais fundamental e incisiva, apenas aqui ela sendo abrangida para uma matriz ampla, orgânica, de sentimentos e objetos, lembranças e desejos, ausências e contatos.

marilyn

For Marilyn é um dos maiores filmes da história do cinema exatamente por evidenciar uma das maiores obsessões de sua história em matéria esculpida: o ato de buscar o rosto de alguém nos interstícios da imagem, nos espaços vazios que podem ser ocupados por corpos, memórias, vontades e espíritos, no ritmo desencadeado do estímulo – um trabalho de cor, linguagem e, acima de tudo, de paixão.

Entre a brutalidade da carne, o desvelo dos cortes, a aspereza das texturas, a intrusão das imagens, a polidez da iluminação e as teleologias dos procedimentos, resta a pergunta: onde cabe o amor? A resposta não está no que é visto e sim em quem vê. O amor para além do racional, que se precipita, não questiona nem incide, apenas se apodera e se engrandece. Por que só no Outro eu posso finalmente me ver, e eu só vejo o Outro em você. Compreender a vida para além desta, não na dicotomia com a morte e muito menos na teologia de uma possível continuidade da mesma, mas finalmente na aniquilação da pergunta, porque ela se reduz a nada quando toda a sua sustentação se evidencia. É só luz incidindo objetos, é só o sol se inclinando sobre mim, é só a sua cor que vejo quando respiro, é só eu sabendo que te amo e saber que isso basta.

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O Corpo Como Sentido

Por Chico Torres

“Apesar da noite” (Malgré la nuit), de Philippe Grandrieux, pode ser comparado à quadrilha de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili, / que não amava ninguém.” Se, por um lado, é essa estrutura narrativa simples que permite que o filme avance em suas duas horas e meia de duração, há em seu desenvolvimento diversos elementos disruptivos e metafóricos que fazem com que o filme cresça e ganhe várias camadas de interpretação. No tocante à sua linguagem, a grande questão de “Apesar da noite” é o modo como se desenvolve a narrativa, praticamente através da hipersensorialidade dos corpos. O corpo é o lugar do encontro, é causa e efeito da ação de todos os personagens que transitam fantasmagoricamente por uma Paris quase invisível.

O tom sensório-experimental e pictórico do filme já está presente em seu início: uma mulher, como que em delírio, dança diante da câmera. Em meio à dança frenética, ela lança os olhos febris para o alto, exibindo uma estranha expressão de êxtase (figura 1). A cena está acelerada e, em contraste ao fundo preto, há uma luz branca e perturbadora que vem de cima e ofusca a estranha dança. Como que parido, Lenz, o protagonista, surge nesse lugar escuro e esfumaçado. O ambiente, ainda que irreconhecível, exala algo como vício e promiscuidade, ao mesmo tempo que possui uma aura pictórica, como se fosse a reprodução de um quadro renascentista que retrata a errante vida moderna. (figura 2).

apesar da noite 4Fig 1.

apesar da noite 5Fig 2.

O diálogo sussurrante entre Lenz e Louis ganha expressividade através do toque entre as mãos (recurso excessivamente utilizado no filme), do beijo e do abraço, da quase obsessiva demonstração de afeto. O elemento sensorial é reforçado pelo enquadramento fechado, o que transmite a sensação da existência de um microcosmo onde residem apenas corpos que se conectam vibracionalmente.

Ainda nesse diálogo entre Lenz e Louis, onde se descobre que Lenz está em busca de uma mulher chamada Madeleine, há uma série de jogos, de charadas. Jogo linguístico através da aliteração dos nomes das próprias personagens que vão surgindo: Lola, Lenz, Louis, Madeleine, Hélène e Lena; jogo literário através da memória proustiana presente indiretamente na fala de Louis; e um jogo através da analogia entre personagens fictícios e históricos, também expressado inicialmente por Louis: Madeleine é prostituta, como foi a Madalena de Cristo. Esses jogos terão seus desdobramentos, alguns aparentemente menos importantes (como o da aliteração, que talvez indique um mesmo propósito ou uma mesma personalidade para todos as personagens); outros mais reveladores, como a figura arquetípica de Maria Madalena presente nas personagens femininas do filme, sobretudo em Hélène.

Ainda que “Apesar da noite” estimule algumas reflexões através de suas diversas e frágeis associações (religião, pecado, memória, arte etc.), é difícil encontrar ali elaborações dialógicas sobre qualquer coisa. Os temas se apresentam sorrateiramente através de imagens que exploram aspectos sensoriais: o toque, o contraste da textura dos corpos que se entrelaçam, as expressões faciais e corporais, e o prazer através do sexo e do uso de drogas. O filme se detém tanto ao corpo que torna-se irrelevante compreender qual o tempo-espaço da narrativa. A presença do amor, do tom melodramático, da obsessão pelo outro, da traição, dos conflitos pessoais, tudo parece existir apenas para que os corpos se satisfaçam em relações que possuem uma profundidade visceral e que não vão mais longe do que isso.

O filme revela, ainda que de maneira fugidia, uma relação entre prazer e sofrimento, questão que mais uma vez remente ao religioso, desenvolvido através do entrelaçamento entre Madeleine/Madalena e Hélène. A priori pensamos que Hélène é a Madeleine procurada por Lenz; e mesmo quando descobrimos que Madeleine se trata de outra personagem (que irá permanecer até o final do filme como um ideal a se buscar, como um objeto de desejo nunca encontrado), só se reforça a sensação de que Hélène carrega, simbolicamente, as tensões mais significativas do filme e que fazem parte da imagem paradoxal que se construiu de Madalena.

Ao longo da história ocidental, a imagem de Maria Madalena ficou ligada a alguns estereótipos. O mais conhecido é de Madalena como prostituta que passa a seguir Jesus depois que este expulsa sete demônios que habitavam seu corpo. Ainda que nenhum dado biográfico concreto ligue Madalena à prostituição, o fato é que sua imagem ficou gravada na memória coletiva e na história da arte sob esse estigma. Parece-me que Hélène se aproxima de Maria Madalena por sua posição ambígua da mulher devota e cuidadora (Hélène é enfermeira, ou seja, cuida do corpo do outro), mas que ao mesmo tempo se perverte e se entrega sem freios ao desejo carnal, vivenciando experiências limítrofes. A construção de Hélène como Madalena não se desenvolve de modo satisfatório, porque o que prevalece é a exploração da sensorialidade e não da reflexão, mas a relação entre ambas é evidente no filme.

Quando Hèléne participa de uma orgia na floresta, cena que se realiza sob uma crua e terrível luz branca, seu encontro com o Homem da Voz Metálica revela-se extremamente violento, ainda que tudo pareça acontecer sob o consentimento de Hélène. Ao ser violentada, ela olha para o alto em êxtase (figura 3), olhar recorrente em pinturas renascentistas ligadas ao universo religioso; inclusive há diversas pinturas que retratam Madalena nessa postura (figura 4). Esse olhar, em síntese, pode ser interpretado como a união complexa entre o sagrado e o profano, entre o desejo carnal e a devoção religiosa, mas nada disso é indicado por Hélène, essas relações se dão apenas por sua expressão corporal e facial.

apesar da noiteFig. 3

a631547e39b3fd188173e11653091867Fig. 4

Se por um lado a fotografia transita entre diversas camadas de uma luz branca que expõe os corpos de modo violento, além das sobreposições que dão ao filme um teor experimental, há também em muitas cenas a presença de um claro-escuro pictórico no qual prevalecem um preto e vermelho aveludados, semelhante à luz de velas. Ainda que esses elementos não estejam distribuídos de modo equacional no filme, interpreto essas camadas como a presença do conflito entre o profano (representado pelo branco frio e cru) e o sagrado (representado pelo claro-escuro, quente e pictórico), que se entrelaçam e coexistem durante o filme.

Em “Apesar da noite” quase tudo é perturbador: Lenz é obcecado por Madeleine; Lena e seu pai são figuras malignas, invejosas e vingativas; Louis é viciado e trai Lenz e Hélène por causa de Lena. Uma quadrilha muito mais maligna do que a de Drummond. Enquanto isso, Hélène, que concentra todos esses embates humanos em si, desafia Deus ao se entregar deploravelmente ao prazer da carne, como se sua religião fosse cumprir o desafio de se deixar levar por aquilo que é mais latente no corpo. Prazer e dor. Em “Apesar da noite” tudo aquilo que pode produzir sentido é absorvido pelas veias, pelos poros, pelo gozo.

 

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