A paixão segundo a morte

 

Por João Lucas Pedrosa

“As mãos são como feitas para a eloquência,
como se quisessem expressar nossos sentimentos.
Mas os pés não falam como as mãos, porque eles ancoram a vida”

Kazuo Ohno, Treino e(m) poema

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Por três vezes, a cantora-compositora Mitski e a diretora Zia Anger se uniram na feitura de videoclipes. Em abril de 2016, lançaram Your Best American Girl, o primeiro hit da nipo-estadunidense, com seus ecos simbólicos de retumbante ocupação feminina e asiática num nicho musical até então quase exclusivamente branco e masculino: o indie rock. Em 2019, se unem para os singles Geyser e Washing Machine Heart, de seu mais recente álbum “Be the Cowboy”. A conexão mais explícita entre os três é a presença das mãos da artista como canal sublimatório – em duas delas, de frustração romântico-sexual -, que acaba por ser o epicentro de uma intrincada articulação entre desencaixe sociocultural, construção psicosexual e vigor artístico. Pela similaridade temático-estética entre o primeiro e o último videoclipe da parceria – mas mais pelo bem da concisão textual -, vou me ater aos dois primeiros.

Your Best American Girl começa como uma publicidade antes do “ação”: Mitski olha para baixo usando o celular, vestida elegantemente em frente a um fundo infinito branco, varrido por um homem branco. Uma mulher branca entra para espirrar laquê em seu cabelo e retirá-la de sua introversão, e uma figurinista vem arrumar seu terno. Vem o contraplano: um rapaz branco, biótipo modelo, usando regata. Ele olha para a câmera e seu olhar é o “ação” para o plano de Mitski. Ela olha de volta, sorrindo, e um foco de luz se acende sobre seu rosto. A sua imagem é o resultado de uma manufatura, de camadas de produção que escondem sua forma bruta; a do rapaz é uma imagem dada, já pronta o bastante em seu despojamento. Os dois planos são frontais e se espelham ao mesmo tempo que embatem. Entre eles não se cria intimidade – não se faz proximidade, sequer contiguidade espacial, apenas oposição. Nesta “publicidade” o que os liga é o olhar do público, os verdadeiros olhares de volta. É uma simples abordagem de flerte, mas com uma barreira de olhar público entre as duas partes.

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A linguagem do clipe ganha, assim, uma abordagem sociológica que muito lembra o documentário de Shirley Clarke, Retrato de Jason (1967). Integralmente formado por planos frontais singulares (variando entre close/médio/americano) do malandro e performer de boate Jason Holliday, o filme observa-o contar suas histórias de vida, piadas e mentiras sob efeito crescente do álcool e de seu baseado. Clarke sabe do poder de envolvimento sociopático de Jason, e como ele aprendeu a encantar para distrair o coletivo do ódio que sente dele – e nele desferir uns golpes no processo -, e passa o filme tensionando sua capacidade de perniciosamente envolver o extracampo (novamente nós, o público). Por meios e motivações diferentes, mas assim como Jason, Mitski tenta vender-se. Ele se vende para sobreviver e se aproveitar do que/de quem fornece. Ela se vende pela simples validação aos olhos do homem do imaginário comum – os que ocupam a tela sem esforço, os que se impõem como norte das demais imagens.

Mas ela fracassa: um travelling out revela a entrada em plano de uma mulher branca, biótipo modelo e traje hippie no enquadramento do rapaz. Ela envolve seu pescoço com o braço e eles continuam olhando para Mitski, cujo movimento de câmera revela mais espaço branco, ressaltando seu alheamento. O contraplano não é mais uma promessa, mas um imperativo: veja, não seja parte. Veja, você não é parte. É uma imagem fora de alcance, sua entrada é proibida. O casal começa a se olhar e se acariciar, e a cantora olha para a mão com que acenava. O refrão quebra com o par branco se beijando ardentemente e a cantora o reproduzindo em sua própria mão, enquanto acaricia seu queixo e cabelo com a outra. Eis a primeira presença das mãos como projeção do outro: o braço se estende para fora e a palma da mão para dentro, numa falsa alteridade. Aqui, ela é medida paliativa de uma desesperadora carência. Não é a última vez que veremos este gesto.

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O beijo dos amantes brancos fica cada vez mais lascivo (língua na língua, língua no peito) e mais estilizado (surgem luzes coloridas, bolhas, um pirulito que alterna entre as duas bocas, um vento pelos cabelos da mulher, uma bandeira dos Estados Unidos). Um corte para o sorriso de Mitski e um tilt down mostra que está agora com um vestido dourado, tocando um solo de guitarra (a mão operando de outra forma o mesmo fim: a sublimação). Os movimentos paralelos (Mitski cantando/o casal se pegando) continuam e, enfim, um plano conjunto com a cantora, concretiza o movimento que a montagem prenunciava: Mitski no centro, olhando para nós enquanto canta, e os amantes ao fundo, como satélites e como fantasmas, assombrando sua performance e impedindo seu protagonismo livre. O carisma da guitarrista-vocalista se esvai, e um chicote sai do beijo publicitário para a guitarrista entregando seu instrumento a um membro da equipe e se retirando do estúdio (ocupado por uma equipe inteiramente branca) no decorrer da última nota da música.

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O desvelar metalinguístico é relativamente frequente – e um tanto hiper utilizado, apesar das variantes a cada vez – nos clipes de Mitski; o que não surpreende, pois a própria imagem é fonte de neuroses e obsessões nas letras de suas canções. Existe o muso romântico idealizado, inalcançavelmente superior – “Você é o único/Você é tudo que eu sempre quis”- e a sua existência falha, indesejada pela raiz – “A sua mãe não aprovaria o jeito que a minha mãe me criou”. O clipe de Zia Anger articula essa visão como sintoma de um centro vertiginosamente branco (equipe, elenco, fundo) de produção de imagens – um sintoma da branquitude. Mitski se retira, estabelecendo um primeiro gesto visual positivo em meio à sua poesia masoquista e auto-humilhante. Your Best American Girl é, afinal, uma canção de término: hesitante e auto-depreciativo, o eu-lírico da música escolhe a defesa insegura da forma como sua mãe a criou (“mas eu sim/eu acho que sim”), com o risco de ser também a justificativa para se odiar demais para ficar com aquele rapaz. Mitski surpreendeu-se quando o clipe ganhou interpretações políticas acerca de sua ocupação no nicho indie pop, mas é tanto involuntária quanto inevitável a política que jorra de sua trova suicida.

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A canção Geyser foi lançada com o videoclipe de Zia Anger em maio de 2018. Foi o primeiro single liberado do álbum “Be the Cowboy”, de pegada visivelmente mais pop que os álbuns anteriores. O desespero das repetições e circularidades típicas em Mitski combinam perfeitamente com as mesmas repetições dos hits pop chiclete, e agora misturam-se com sintetizadores e algumas melodias que parecem otimistas. Mas às repetições obsessivas, a compositora alia oscilações tonais (e talvez semitonais, mas não ousaria dizê-lo por ignorância das terminologias musicais) que fazem de suas canções não círculos, mas espirais – daí a vertigem de sua musicalidade. Nobody é provavelmente o mais notório exemplo do procedimento.

Na época de concepção da tour, a cantora se interessou pela dança japonesa butô, originada do pós-guerra. Apesar das inúmeras vertentes decorrentes de sua gênese, o estilo se inspirava na fraqueza do ser, e de seus efeitos potencializadores quando o corpo é tomado como significante opaco (e, portanto, de significado oculto, expandido) no ato de dançar. Nascia, assim, uma arte corporal da loucura, da senilidade, da dor, da doença (os corpos atrofiados dos envenenados pelo mercúrio nas águas japonesas influenciaram poses e movimentos nos anos 1960). O que nela teria interessado a Mitski foi o desenho de emoções caóticas retratadas por gestos precisos e repetitivos – princípios similares aos de sua composição -, e uma rígida coreografia inspirada no estilo foi incorporada a seus shows. Mas voltemos a Geyser.

Um caso extremo, a canção levou dez anos para ser lançada – ainda que se possa encontrá-la no YouTube cantada ao vivo em 2014, quatro anos antes do lançamento. É também uma canção de devoção: “Você é meu número um/você é quem eu quero/e eu recusei toda mão/que me acenou para vir.”. A estrofe é repetida mais duas vezes (com sutis mudanças lexicais), como uma oração. Segundo a artista, porém, a música não é dedicada a uma pessoa, mas à música, seu maior amor.

O clipe abre de um fade in do vermelho. Poderíamos limitar a cor ao simbólico (paixão, sangue, sedução, etc), mas perderíamos de vista a potência de sua vibração. Um impulso de vivacidade que, gradualmente, dá lugar a uma imagem dessaturada: Mitski sozinha num declive de terra, sob um céu nublado. Uma fusão destoante, estranha aos olhos. Ela está de cabelo preso e usa um traje monástico aberto sobre sua roupa. A atmosfera é despojada, quase sacra. O plano geral se aproxima da cantora angulando levemente para a direita, para então contorná-la pelo outro lado. Enquanto ela canta olhando para a câmera, quebrando a quarta parede, o mundo gira ao seu redor. Num gritante oposto a Your Best American Girl, Geyser é feito num dinâmico plano-sequência em amplo espaço aberto. Não mais uma zona psicosexual, mas um movimento existencial. Mitski está sozinha, mas jogada no mundo, na natureza não convidativa pelo bom tempo ou pelo verdejante, e a câmera dialoga com ela, com o redor e com o espaço entre os dois.

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Quando a câmera dá uma volta de 180º em seu entorno, vemos escombros no mar, algo similar às vigas de um píer (seriam as ruínas do estúdio? O declive de terra é curvo embaixo, como o fundo infinito, mas, por sua vez, tem um limite visível, palpável). Mitski vira uma mão para o céu e então para si – a falsa alteridade novamente – e segura-a com a outra para lhe cantar seu devoto louvor: You’re my number one/You’re the one I want. Para a mão a qual compõe, com a qual pratica sua religião. Sai de plano, deixando os escombros protagonizarem alguns segundos. Uma panorâmica para a esquerda revela uma extensa fileira das vigas e um proeminente aprofundamento do plano em camadas de presença, que são jogadas para fora de vista quando a câmera volta a centralizar Mitski e a terra úmida no fundo. Ela é cercada de vazio novamente. No primeiro capítulo de Transcendental Style in Cinema, Paul Schrader investiga as confluências da tradição zen na contenção estética de Yasujirô Ozu. O primeiro traço marcante é o princípio mu, referente à negação, ao vácuo. “A folha branca de papel é percebida apenas como papel, e papel permanece. Apenas preenchendo-o ele se torna vazio”. A ausência passa a operar como elemento positivo, pois é um qualitativo enfatizador da presença que ela cerca. Igualmente opera Geyser, e o vazio em volta da cantora reforça sua solidão, e acima de tudo sua existência.

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Mas Mitski é uma artista do Sagrado pelo fracasso no Profano, e sua arte depende também dos gritos de seu corpo. Ela olha para a câmera, sedutora, descobre o traje monástico do ombro, contrai o corpo em dor e sai correndo. O traje monástico cai sobre a terra, e mais à frente ela também. A câmera se torna lenta enquanto ela rola na lama, engatinha, para e respira. A câmera se afasta, volta a se aproximar e dá uma volta em seu eixo enquanto Mitski desesperadamente usa as mãos para cavar o chão, e grita enfiando a cabeça na terra. Travelling out com ela abaixada. Corte seco para o vermelho. O clipe termina.

Susan Sontag em “O artista como sofredor exemplar” discorre sobre o escritor como quem “descobre o uso do sofrimento na economia da arte”. Ela parte dos diários de Cesare Pavese, e da proeminência de suas frustrações amorosas na construção de um projeto estético ascético, encerrado com o suicídio do autor. O clipe de Mitski mostra um movimento similar. Já constituído e estabelecido o vigor artístico, as pulsões não se esvaem. Há uma contradição suicida em que a positividade de sua expressão depende da extrema negatividade. Um enfiar os dedos ferida adentro, infeccionando-a para que a dor ative os ápices metafísicos do corpo. A autodepreciação e a carência tornam-se veículos de expressão de uma inquebrantável vontade: a expressão da pulsão de morte vira o motivo de vida. Mitski torna-se o veículo de uma paixão ao mesmo tempo transitiva e intransitiva, moldada mas inata e, dentro de sua privação de pertencimento, um vórtice incontrolável de conexão com o público. Poderíamos chamar de Sagrado o infinito atingido pela vertigem do si? “Esses garotos todos parecem que estão na porra duma igreja”, disse uma vez o músico John Doe, atônito com a concentração do público da cantora. Eles estavam mesmo.

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“A atriz foi criada enfim”: Esther Kahn (2000) de Arnaud Desplechin

Por Natália Reis

 

“Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.”

Herberto Helder

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Monstre sacré é uma dessas expressões francesas misteriosamente forjadas que exercem um tipo de fascínio curioso em quem as escuta pela primeira vez. Numa pesquisa rápida, o google nos oferece um relance do que pode vir a ser: “Uma figura pública marcante, excêntrica ou controversa.”, “alguém cujos talentos são muito superiores aos do homem comum.” ou ainda: “uma figura venerável ou popular que é considerada acima de críticas ou ataques apesar de excentricidade, controvérsia, etc.”, “um gigante naquilo que faz”.

Se existiu alguém cujas obra e vida poderiam ser lidas como o despertar de uma “monstruosidade sagrada” em todas as suas nuances, essa pessoa foi Sarah Bernhardt. Atriz de teatro francesa e ascendência judia, Bernhardt (nascida Marie Henriette Bernardt em 1844) conseguiu se manter até o fim dos seus dias sob o olhar atento de uma legião de fãs e admiradores. Entre a figura pública de destaque internacional e uma vida pessoal incandescente, a “Divina Sarah” da “voz dourada” transcendia as noções de atuação e de celebridade numa reinvenção constante da própria persona. Brilhou em papéis masculinos (Hamlet) e como personagens mais jovens (Joana d’Arc, aos 46 anos) ou trágicos (A dama das camélias), usava joias extravagantes, possuía uma relação entusiasmada com pistolas e mancebos, e dizem que dormia em um caixão apenas para se sentir mais próxima da morte iminente. Susan Sontag vai elencar o charme decadentista dos filmes de Sarah Bernhardt realizados no fim de sua carreira como manifestações legítimas do Camp e o crítico e poeta simbolista Arthur Symons dirá que a modernidade poderia ser tipificada por sua presença no palco.

Dentre as muitas citações atribuídas à atriz francesa, uma merece ser destacada aqui por servir bem como introdução a Esther Kahn, personagem inegavelmente moderna (e provavelmente de reverberações bernhardtianas)  do conto de Symons de mesmo nome publicado em 1905 e adaptado para o cinema por Arnaud Desplechin: “A arte dramática é essencialmente feminina. Pintar o rosto, esconder os verdadeiros sentimentos, tentar agradar e se esforçar para atrair a atenção – todos estes são defeitos pelos quais culpamos as mulheres e pelos quais se mostra grande indulgência.”. Longe de levantar qualquer tipo de bandeira feminista, Esther Kahn é uma parábola sobre a libertação de um desejo avassalador – por vezes tido como sintoma de um egoísmo feminino interior –  que age na transformação de um corpo desprovido de afetações em mulher e da mulher em atriz.

“ESTHER KAHN nasceu em uma dessas ruas escuras, mal cheirosas com estranhas esquinas que se encontram sobre as docas.”

Palavra por palavra, a introdução de Arthur Symons é repetida pelo narrador do filme de Desplechin ao passo em que nos é apresentada uma visão geral da infância e do universo primordial da protagonista. Esther é uma criança incomum, judia, filha de alfaiates pobres e residente de uma região obscura da Londres do século XIX. Tem medo de sair de casa porque a paisagem exterior é assustadoramente tomada por casas decrépitas, chaminés e janelas lacradas. Observa a família, mas não se sente parte dela. Enquanto as duas irmãs e o irmão se misturam naturalmente aos demais – pai (László Szabó), mãe (Frances Barber), avó (Hilary Sesta) –, durante o jantar Esther, exibindo um semblante quase estúpido, observa à distância os gestos que lhe parecem tão deslocados da realidade que merecem ser imitados. “Não repare nela”, diz a mãe em determinado momento; “ela não é uma criança humana, ela é um macaco; ela está se agarrando atrás de uma alma, como eles fazem. Parecem pequenos homens, mas sabem que não são homens, e tentam ser; é por isso que nos imitam”.

No desenvolvimento do longa, o diretor francês afirma ter se guiado unicamente por L’Enfant sauvage de François Truffaut, filme que narra a trajetória de uma criança encontrada na selva, incapaz de estabelecer uma forma de comunicação com a civilização. Diferente do garoto selvagem de Truffaut, Esther Kahn não foi destituída de contato humano, nem abandonada, mas não possui qualquer tipo de vínculo com os indivíduos que a cercam diariamente, muito menos com a vida que parece passar por ela sem deixar marcas. O único sentimento que a acompanha até a juventude –  quando passa a ser interpretada por Summer Phoenix (irmã de River e Joaquin) – é uma raiva imanente que se manifesta a cada rompante. Quando questionada pelas irmãs sobre suas expectativas para o futuro, não consegue pensar em nada além de: “ser vingada”. Phoenix encarna com vigor a passividade e letargia de Kahn de modo a tornar visivelmente incômoda a maneira como se esforça e se debate com as palavras (num tipo de performance truncada que se confunde entre os esforços da atriz e da personagem), tudo isso resvalando o furor e a confusão de quem não compreende seu lugar no mundo e se recusa a aceitar o que lhe é oferecido. Essa configuração só poderá ser revertida diante de um maravilhamento legítimo, que tomará de assalto todas as suas convicções: o teatro.

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A primeira vez que Esther Kahn demonstra excitação é justamente quando vai assistir a uma peça com seus irmãos (Claudia Solti, Berna Raif e Akbar Kurtha) e um pretendente pelo qual não possui nenhum apreço (Paul Regan): avança desmedidamente pela multidão para alcançar o guichê, os olhos sempre vidrados no palco e um discurso inflamado sobre o que acredita se tratar de uma boa atuação na volta para casa. A partir daí, presenciamos uma fagulha de desejo queimar na protagonista até então imobilizada por uma vida familiar – e proletária –   insatisfatória, e é essa a direção da arte indicada pelo filme: algo muito próximo de um labor, naturalmente capaz de provocar mudanças e suscitar um sentido de pertencimento até então inalcançável, inerte. Esther resolve se arriscar como atriz e comunica aos pais a decisão, sob protestos de que dessa forma não poderá ajudar financeiramente em casa. Retomando a distância que os envolve como o grupo de estranhos que sempre foram, um contrato é firmado e a jovem promete reembolsá-los pela mão de obra perdida nos trabalhos de alfaiataria e pelos gastos em sua criação até o momento. Os laços já escassos são desfeitos e, por fim, ao quitar sua dívida, Esther Kahn deixa o lar – que nunca de fato fora um lar – para se dedicar ao teatro.

É importante ressaltar que Desplechin preferiu de certa forma mascarar todos os momentos de interpretação de Esther sobre o palco. Fora as aulas que toma com o novo amigo, o ator – também judeu – Nathan Quellen (interpretado por Iam Holm), as demais cenas em que ela atua diante de uma plateia não possuem som além da narração que constata e descreve seu estado de espírito, os movimentos são acelerados, combinados com uma mecanicidade de Esther/Phoenix que só vêm a confirmar a própria crença da protagonista de que a atuação é um trabalho que deve ser executado como o prolongamento de um gesto resguardado nas estruturas ocultas do corpo.

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Apesar de ascender cada vez mais entre papéis importantes e o reconhecimento do público, em algum ponto do percurso as coisas passam a não bastar mais para Kahn. Novamente o vazio conhecido roça seu pescoço e sussurra “e agora?”.  A resposta ao aborrecimento vem de seu mentor, Nathan, que num tom paternal explica que o que lhe falta é amor. Ou sofrer por amor. “Você nunca sentiu algo pior do que um corte no dedo”, diz. Como há de compreender a vastidão dos sentimentos que mimetiza? A jovem atriz decide então eleger um pretendente à altura de uma investida que deve antes de tudo agir como energia renovadora. Nesse momento somos apresentados a Philip Haygarth (Fabrice Desplechin), crítico de teatro e autor de algumas peças. Esther o espia por trás da cortina e passa a dedicar-lhe um amor sorrateiro.

Hedda Gabler, personagem da peça de 1890 de Ibsen, é uma mulher intrigante que se vê de repente presa num casamento tedioso e tentada por uma antiga paixão. O fim trágico que a aguarda é resultado da busca desesperada pelo calor que já a consumiu uma vez, mas que agora só é capaz de anunciar sua presença abrandada nas intrigas e jogos cruéis que promove para se distrair. Há quem consiga dizer, inescrupulosamente, que teria sido “traída pelo próprio desejo”, entre outros clichês que não alcançam em nada a magnitude de seus atos finais, mas é possível ainda compreendê-la dentro de um longo histórico de mulheres que preferem a morte à não-existência. Hedda Gabler se avizinhará de Esther Kahn em dois momentos: primeiro, quando o casal Haygarth-Kahn passa por uma fase cálida –  Ele se faz seu tutor, fala das artes e de coisas maiores da vida; ela, um tipo de aprendiz fiel, corta o cabelo como sugerido pelo parceiro e lhe presenteia com um livro contendo a peça de Ibsen (uma cópia em norueguês, incompreensível para ambos infelizmente). A segunda vez que Gabler dá as caras é na forma da oferta para o papel principal que Esther receberá.

Noite de estreia, a jovem atriz descobre há pouco que o homem amado está vivendo um romance com uma italiana vulgar (e incomunicável, pois não fala outra língua além de um “dialeto provinciano”) de nome Sylvia (Emmanuelle Devos). Da coxia, observa os consortes chegarem para o espetáculo enquanto é arrebatada por um sentimento desconhecido até aquele instante. O que se sucede nos próximos minutos é a colisão das forças que nos foram negadas em todo o filme por um ritmo comedido, que se destinou a preservar a apatia da protagonista e o modo oblíquo com que observava o mundo. Mas aqui as coisas se agitam e se tornam violentamente vivas: Esther se recusa a entrar em cena, sofre com feridas de automutilação enquanto os demais atores e trabalhadores do teatro orbitam a atriz como um astro irresistível e destruidor. Cacos de vidro mastigados, cortes na língua, sangue, gritos e mais choro, ninguém consegue convencê-la a desempenhar seu papel. A volatilidade chega à superfície enfim, e dá lugar a uma nova estrela nascida do caos. Seu corpo é empurrado para o palco e, na luminosidade amarelada das lâmpadas de gás, faz aquilo que lhe cabe tão bem: atua brilhantemente. No intervalo, um bilhete elogioso do traidor: “Me devolva mil vezes o que te dei” e um pedido para encontrá-la. Mas já estava feito:

“A nota tinha sido tocada, ela tinha respondido a ela, como respondia a cada sugestão, sem falhas; ela sabia que poderia repetir a nota, sempre que quisesse, agora que a havia encontrado… Ela poderia retomar seu amante, ou nunca mais vê-lo, isso não faria diferença.”

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Mostra de Tiradentes: Eu, Empresa

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Por Chico Torres

Em Eu, Empresa temos a exposição da uberização da vida, dentro do contexto brasileiro, através de uma abordagem irônica e tragicômica de uma busca de sucesso através do empreendedorismo dentro do mercado dos youtubers. Realizado como ficção, mas repleto de aspectos documentais, o filme possui, ainda que de maneira tímida, uma força denunciadora desse novo sistema de trabalho onde se estabelece a ideia de estrelato e riqueza pela simples exposição do eu, de um eu que se apresenta como conteúdo e viraliza. Uma abordagem atual e que também toca, de modo pertinente, em questões de saúde mental e alienação.

Joder surge como uma caricatura desses indivíduos de classe média que, diante do esvaziamento crescente das possibilidades de perspectivas, mergulha em uma busca alienada de autorrealização através da internet. Uma busca imediatista e que, para o personagem, se justifica em um tipo de exposição do seu fracasso. O conteúdo, portanto, é justamente a sua não realização, o seu não sucesso, uma autoindulgência que denota já de imediato um tom irônico e que vai se obscurecendo ao longo do filme, com diversas cenas que provocam o nosso riso constrangido.

 Como todos que estão ao seu redor, enquanto o sucesso não vem, Joder passa a improvisar para sobreviver. É nesse sentido que o filme ganha aspectos documentais e esboça uma nova potência narrativa, mas são momentos muito pontuais e logo abandonados, como a sua conversa com os entregadores do ifood. Todo o processo de busca do personagem orbita entre uma ideia de fracasso e um desejo irrefreável de sucesso, desejo que pode ser lido como sintomatização de um tipo de cultura que recusa os modos tradicionais de emprego e se deslumbra pelo coaching e empreendedorismo pessoal como soluções instantâneas de seus problemas. Esse processo de alienação é evidenciado na exagerada e justificável personalidade ingênua e depressiva de Joder. Ele realmente acredita naquele sistema e sofre por não ter êxito, mas todo o seu esforço parece surgir de modo sintomático porque se dá na repetição de um ciclo psíquico em que o fracasso o persegue implacavelmente e, justamente por isso, o seu desespero pelo sucesso.

A estética de Eu, empresa é interessante à medida que empobrece, com sua fotografia opaca e visualmente amadora, esse ambiente que está entorpecido pela imagem. A fotografia do filme responde àquilo que quer criticar e se sustenta de modo pertinente dentro dessas imagens empobrecidas e despretensiosas. A atuação de Marcus Curvelo impressiona não só por seu carisma, mas também por seus momentos infantis e bizarros. Um personagem complexo que representa um tipo de personalidade cada vez mais presente em um país imbecilizado pela ilusão de que o sucesso e a riqueza dependem pura e simplesmente de uma vida transformada em conteúdo.

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Mostra de Tiradentes: O Cerco

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Por Chico Torres

Um filme que é concebido durante o processo de sua feitura precisa saber dos riscos que corre e da natureza diversa desses riscos. Ao ver o debate com os realizadores de O cerco, fiquei com a impressão de que o filme possui uma ótima justificativa, mas que funciona apenas de maneira intelectual e extra-fílmica. Como acontece com boa parte da arte contemporânea que depende da legenda e que por isso mesmo se apresenta articulado com um conceito prévio, fui levado a esse lugar de que o filme não possui em si a força daquelas argumentações apresentadas durante o debate, ou que pelo menos não foi construído de uma maneira que me convencesse particularmente.

A ideia de um “tempo quântico”, como foi indicado por um dos realizadores, é bastante promissora. O que se tem é passado, presente e futuro interagindo dentro de um edifício em ruína, centrado em uma personagem feminina que convive com todas essas camadas materializadas através de outros personagens. Alegoricamente, a casa serve como uma espécie de núcleo de tensão para tratar de uma questão política recorrente no Brasil: a ditadura militar e suas implicações no presente e no futuro.

A partir disso, identifico dois problemas que me parecem fundamentais sobre a diferença entre aquilo que foi conceituado pelo filme e a sua realização. O primeiro problema é que todo o arcabouço conceitual da obra parece funcionar de modo circular, o que faz com que aquele discurso se esgote muito rapidamente. Ou seja, não nos são apresentadas camadas, desdobramentos.  Pelo contrário, parece que tudo flutua dentro dessa ideia primária e que nada se desenvolve através dela. O segundo problema relaciono com o modo improvisado e documental no qual o filme foi realizado. Essa intenção, ainda que nos aproxime da protagonista e dos adolescentes do filme, acaba, por outro lado, esvaziando o pretenso valor simbólico atribuído a eles e que tenta ser transmitido através da estranheza do filme (sua montagem, seus planos e sua fotografia se esforçam nesse sentido). A construção dos planos, com a maioria das cenas construídas fragmentariamente e dentro de ambientes fechados, criam um tipo de contraste estranho entre personagens quase sempre simples e reais, com uma ambientação fantasmagórica e imprecisa.

A sensação que se fica é que o filme procura fugir daquilo que quer dizer, que é o seu discurso político que articula acontecimentos passados com os vividos na atualidade. Mas essa fuga, ainda que tenha seus méritos formais, parece, sobretudo, um artifício para esconder ainda mais o modo improvisado e dispersivo de sua construção. Desse modo, penso que O cerco não consegue se realizar sob as ideias que foram “achadas” por seus realizadores no processo do filme, nos restando a sua bela fotografia e bons momentos de atuação de todos os personagens, em uma entrega sincera e livre em um filme que parece estar perdido tal qual a protagonista que orbita em temporalidades indefinidas.

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Mostra de Tiradentes: A Mesma Parte de Um Homem (Ana Johann)

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Por Chico Torres

Toda a lógica de A mesma parte de um homem se sustenta em uma ideia de transição. Transição do desejo, do corpo, do medo. Tudo parece fluir dentro dessa concepção de que, através de acontecimentos traumáticos, mudanças se instauram e transformam toda a realidade das personagens, principalmente da protagonista Renata (Clarissa Kiste). Uma mulher retraída dentro de um ambiente rural e marcado pela violência, se descobre possuidora de desejo, de voz, de vontade, ainda que tudo isso se dê através da presença de outro homem.

Em seu primeiro ato, temos uma atmosfera ora explícita, ora sutil de medo, abuso sexual e violência doméstica. O ambiente familiar é marcado por uma presença masculina maléfica, na figura de um pai que domina tudo o que está ao seu redor. Por outro lado, o medo que existe em relação ao ambiente externo, presente obcessivamente em Renata e que paira por toda a primeira parte do longa, não é devidamente trabalhado ao ponto de embarcamos junto com ela em sua angústia.

Com a chegada de Lui (Irandir Silva) logo se percebe que esse medo do externo não será relevante para o desenvolvimento do filme, mas sim a relação daquelas mulheres com o estranho que logo ocupa, sem grandes complicações, o lugar de esposo e pai.  A aposta no estranhamento e na falta de respostas muito claras sobre diversos acontecimentos ao longo do filme, conferem originalidade à obra, já que nos escapa certos psicologismos previsíveis. Não se descobre exatamente quem é aquele homem que “chega”, do mesmo modo que mãe e filha não revelam em nenhum momento o segredo que guardam de Lui. O longa está cheio desses elementos que provocam dúvida quanto ao caráter e motivações de todos os personagens, mas que são bem aproveitados à medida que povoam todo o filme, criando uma atmosfera bizarra e de abertura interpretativa.

 Essa quebra de expectativas nos ajuda a focarmos no que parece ser o objetivo central da obra: o modo como ocorre a transição de Renata em relação ao seu desejo, à sua vontade. As cenas de sexo são filmadas magistralmente e marcam o quanto a questão da descoberta sexual é um ponto fundamental. É assim que se estabelece a transição. Renata passa a descobrir o prazer e a se impor diante do novo esposo, dando vazão aos seus desejos e vontades. A fotografia e o corpo da personagem vão gradualmente se transformando: ela começa o filme apagada, curvada e com medo, mas termina iluminada, sentindo as novas possibilidades atingidas através do afeto e do sexo, ainda que timidamente. Um filme que, apesar de estar pincelado por alguns elementos pouco convincentes, é bem-sucedido ao desenvolver, através do bom uso da fotografia e do trabalho dos atores, uma ideia sutil de transição que revela descobertas pessoais há muito reprimidas.

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Mostra de Tiradentes: Kevin (Joana Oliveira)

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Por Chico Torres

Kevin, de Joana Oliveira, me remete ao cinema de Hong Sang-Soo, sobretudo ao The woman who ran, seu filme mais recente. A premissa é semelhante: uma mulher que, longe de casa e do ambiente familiar, dialoga com algumas amigas sobre diversos assuntos cotidianos. Por trás dessa banalidade aparente, o filme expõe algumas questões acerca de dilemas femininos há muito conhecidos, sem nunca perder de vista a subjetividade das personagens, o que imprime originalidade e verdade à obra.

Se The woman who ran é uma ficção com ares documentais, Kevin é um documentário constituído por diversos aspectos ficcionais, expondo com muita potência esse limite tênue entre gêneros. Conhecendo alguns detalhes da produção do filme, se descobre, por exemplo, que ele foi feito em duas etapas, com duas viagens à Uganda. O filme passa a sensação de que Joana fez uma viagem relativamente curta e na ausência de seu esposo, Gustavo Fioravante, que aparece apenas no começo do filme, ainda no Brasil. Mas Gustavo, além de personagem, fez também o desenho de som do longa, estando em África nas duas ocasiões. Esse é um exemplo entre tantos, mas serve para mostrar o quanto Kevin é construído dentro de um controle e rigidez que se afasta, em alguma medida, da imprevisibilidade do documentário, daquela tentativa de capturar o real em detrimento do bom acabamento e do resultado esperado. Pelo contrário, o filme não possui quase nenhuma ranhura ou entrave em sua construção, mas nem por isso perde a naturalidade e a sinceridade que se dão através do encontro entre as duas personagens.

O longa carrega o nome de Kevin, mas sua protagonista é Joana. Somos apresentados primeiro aos seus dilemas e é sua jornada pessoal que sustenta todo o filme, além de olharmos Kevin a partir do ponto de vista da diretora/personagem. Entretanto, como no filme de Hong Sang-Soo, as questões emocionais de Joana não só vão sendo reveladas de maneira sutil através de seu convívio com Kevin, mas são atravessadas por sua presença, sua vida, suas falas.  E aquilo que Kevin expõe à sua amiga, inevitavelmente, acaba por se relacionar com questões sobre interculturalidade e interracialidade. Desse modo, Kevin cresce em protagonismo à medida que vamos conhecendo sua realidade de mulher negra, mãe solo e africana com vivência na Alemanha.

Essas duas instâncias, a subjetiva e a política, nunca se conflitam porque não se separam, funcionando sempre através dos diálogos e do cotidiano dividido entre as personagens. Mais do que uma história de uma amizade, Kevin é sobre a história de duas mulheres que vivem realidades completamente díspares, mas que através do afeto se reconhecem, se somam e se acolhem dentro de seus dilemas, como na cena em que ambas caminham sobre os trilhos do trem e percebem que de mãos dadas conseguem um melhor equilíbrio para seguir o caminho.

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Mostra de Tiradentes: Rosa Tirana (Rogério Sagui)

açucena

Por Chico Torres

O sertão alegórico e fantástico é uma das fixações do cinema brasileiro. A ideia de que, em detrimento de todo o vazio, morte e desamparo, há espaço para a cor, para a beleza, para o encantamento, repetindo a velha história de que o sofrimento, ainda que endureça, é o que conduz o caráter de um povo que é essencialmente bom e criativo. O desejo de fantasiar, nesse sentido, parece estar sempre ligado ao clichê da esperança: esperança da chuva, esperança da comida, esperança do trabalho. Dedicar-se a esse tipo de fabulação e, provavelmente, cair no erro de produzir formas fetichizadas ou romantizadas do Nordeste e do sertão, há muito tempo se tornou um lugar comum do cinema e sobretudo da televisão, criando um tipo de produção específica que pode ser sintetizada, em seu estágio de máxima realização, com a minissérie Hoje é dia de Maria.

Ainda que o longa se utilize de aspectos mais contemplativos desde o seu início, quase que equilibrado com a sua tentativa de dar uma jornada à protagonista, o que se tem é a utilização da contemplação e também da fantasia de modo vazio e meramente pictórico. Todos os personagens do filme estão esvaziados de humanidade, de uma história particular, e o que realmente se destaca é a beleza dos quadros e algumas incursões não usuais da fotografia. Mas não se ultrapassa essa fronteira. Fica-se com a impressão de que o filme existe para a fotografia e para a direção de arte, não o contrário.

Rosa Tirana parece ser mais uma dessas obras que reitera a ideia de um sertão encantado sem a devida responsabilidade quanto às implicações que esse tipo de projeto pode suscitar. Essa responsabilidade não existe por alguma necessidade de estabelecer um papel político para a arte, mas é importante quando se quer falar de um lugar, de um povo, de uma cultura específica, de algo que tem o real como referência e que agora está sendo retratado por um grupo de pessoas que geralmente não possuem relação alguma com aquela realidade. Pode parecer bobagem, mas é um tanto chocante ver, por exemplo, a personagem de Rosa, que vive em extrema pobreza, possuir uma bolsa de couro nova e impecavelmente trabalhada. Apesar de sair um pouco fora da curva por seus aspectos de fantasia e contemplação, Rosa Tirana entra no rol dos filmes que colore e fantasia o sertão sem olhar devidamente para as pessoas que habitam aquele mundo.

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Mostra de Tiradentes: Rodson ou (onde o sol não tem dó)

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Por Chico Torres

Rodson ou (onde o sol não tem dó) procura se estabelecer dentro de uma rebeldia cyberpunk tropical, explorando, através de excessivos efeitos visuais e sonoros, ideias de desbunde, ironia e revolta. Sustentado pela estética de um cinema marginal, o longa narra a odisseia futurista de Rodson, um jovem que sai pelos confins de um Brasil dos anos 3000 em busca de sua realização pessoal.

Ainda que parta de uma ideia clara de desconstrução radical, tendo no lisérgico e no lixo o princípio de seus inúmeros efeitos visuais e sonoros, Rodson possui uma narrativa tradicional: a da jornada do herói. É perceptível a tentativa de sair desse espectro narrativo na inserção de pequenas rupturas ou interrupções estabelecidas através de esquetes, mas a sua estrutura básica é linear e simplista. Outro dado que faz o longa perder em potência como obra disruptiva, é a constante necessidade, como se diz em literatura, não de mostrar, mas dizer. Ainda que isso revele a existência efervescente de um grupo, por outro lado revela exatamente o desejo de se afirmar como coletivo e de levantar explicitamente a bandeira de seus princípios. Essa necessidade leva a uma romantização que acaba se contrapondo negativamente às possibilidades niilistas da obra, o que a poderiam levar para um nível maior de abertura. Por fim, há também um dizer que corresponde às agendas políticas atuais que, mesmo sendo tratadas com alguma ironia, servem como uma espécie de domesticação do filme, o tornando uma obra quase complacente.

Mesmo flutuando entre essas duas esferas contrárias, Rodson é interessante pela extrema criatividade e variedade de seus recursos. Diante dessa pulsante diversidade sonora e visual, percebe-se um intenso desejo de criar, de dar vazão a algo que estava represado (e, de alguma forma, é esse o desejo do próprio personagem: se realizar em seus impulsos criativos). Tudo isso, aliado à sua ótima noção de ritmo, fazem do longa uma experiência que nos leva a pensar sobre as inúmeras possibilidades de um cinema que se desenvolve através de uma força coletiva que, retomando propósitos vanguardistas, encontra na escassez a fonte primária de sua criatividade.

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Mostra de Tiradentes: Açucena (Isaac Donato)

açucena

Por Chico Torres

Um filme sobre uma outra percepção do tempo. Um tempo dilatado, que vai de encontro ao tempo cronológico porque é um tempo de espera, de contemplação, de suspensão. Açucena coloca o espectador em uma ambientação que, pouco a pouco, desvela os mistérios que cercam a personagem mítica apenas de modo parcial, pois a revelação não está disponível nem para os que convivem intimamente com aquela presença difusa.

A atmosfera infantil, onde flutua uma casa rosa repleta de bonecas, é completada pelo trabalho sério e zeloso daqueles que fazem acontecer o aniversário, compreendido na acepção plena de um ritual que deve ser cuidadosamente preparado. Açucena, eternamente com 7 anos de idade, habita não apenas Mãe Guiomar, mas é como um ser onipresente dentro daquela comunidade que de modo extremamente delicado cuida dos preparativos da festa: pequenas roupas que são construídas, o reparo das bonecas, o portão e a casa pintados, os detalhes da decoração, tudo gira em torno desses afazeres, como se cada gesto devotasse à Açucena aquilo que devidamente lhe cabe: respeito, sacrifício, entrega.

Percebe-se que o processo de construção é tão importante quanto a realização do aniversário em si. Desse modo, o ritmo do filme é lento e não há o compromisso tranquilizador do ato de revelar (ainda que possa ser compreendido como um documentário de suspense), mas sim o de se incorporar àquela temporalidade. A fotografia procura acompanhar esse tempo de latência e mistério, nunca enquadrando de modo resolutivo e convencional, mantendo-se em distância respeitosa para que aquele microcosmo exista sem interferências externas. A paciência e o excesso cenográfico de toda aquela preparação são incorporados aos planos do filme, fazendo de Açucena um caleidoscópio inundado por várias tonalidades de rosa.

O fundamento é o tempo que permite uma dedicação séria à realização do brincar, da alegria, as pedras de toque das religiões de matrizes africanas. O existir dentro dessa realidade onírica da infância, na qual o adulto deve devoção, cuidado e afeto, se reforça pelo caráter mítico e ancestral. Açucena surge como a infância eternizada que se espalha beneficamente pela comunidade, reforçando experiências integradoras através de gestos de cuidado em nome de uma celebração.

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Mostra de Tiradentes: Subterrânea (Pedro Urano)

subterraneaPor Chico Torres

 

Sou a pedra que caiu do céu
E virou peça de museu
Que ardeu em grande fogaréu
Mas que sobreviveu

(Trecho de Bendegó, canção de Renato Frazão e Cláudia Castelo Branco)

A pedra falava
Ao longo das eras
Sempre baixinho
Ninguém suspeitava
Que no meio da pedra
Tinha um caminho

(Trecho de Pedra de iniciação, canção de Thiago Amud)

 

Subterrânea surge como alegoria para denunciar diversos acontecimentos ocorridos no estado do Rio de Janeiro que fazem parte tanto de sua fundação quanto de seu aspecto sociopolítico atual. Todos esses acontecimentos, expostos através de uma série de metáforas, falam, em síntese, sobre o desequilíbrio entre homem e natureza, ou sobre o desequilíbrio do homem consigo mesmo. A obra parte da premissa de uma natureza mineral que, ao ser explorada, enterrada ou destruída por um ideal de progresso, gera a própria ruína humana.

Já de imediato, percebemos um cinema de gênero. Somos levados pelo estudante Leo (Negro Leo) e por sua tia e professora de geologia Stein (Susana Stein) em uma aventura exploratória que procura desvendar os símbolos gravados em pedras encontradas aos arredores da região do extinto Morro do Castelo. Em paralelo a esse aspecto fabulesco, Subterrânea também se desenvolve como documentário, o que reforça seu tom de ironia e denúncia. Todas as buscas de Leo e Stein caem nas mesmas conclusões: o homem é o destruidor de si mesmo porque não consegue se enxergar como parte da própria natureza. Ao destruir, implodir, demolir, o ser humano alimenta o motor que acelera a sua própria destruição, já que esse passado latente, mais cedo ou mais tarde, vem cobrar a dívida.

O filme passeia por diversos temas que exploram a ideia de que essa natureza subterrânea e mineral pode nos indicar um caminho (ou pelo menos entender que o caminho traçado até agora está errado), à medida em que acompanhamos o seu processo de destruição. Vemos como o meteorito de Bendegó “sobreviveu” ao incêndio do Museu Nacional: a sua resistência e presença nos servem como marco simbólico de um apagamento não apenas material, mas de todo um registro cultural e científico que viraram pó. Vemos, ao acompanhar parte do processo da demolição do Morro do Castelo e a lenda do seu tesouro, a história atual do Rio de Janeiro, pela relação entre religião e poder, seja através dos Jesuítas no passado colonial, ou do poder dos neopentecostais no presente capitalista. O fantasma de Lima Barreto parece ser o guia para o verdadeiro caminho por entre esse passado apagado, mas que ainda resiste sob os escombros da história. Esse aspecto fantasmagórico e sombrio se reforça, ainda que de maneira menos significativa em relação ao tema que norteia o filme, com a presença da estudante Clara (Clara Choveaux), personagem que simboliza os casos de suicídio acontecidos na UERJ. Uma denúncia sobre o processo de desmonte das pesquisas nas universidades federais e suas consequências aterradoras.

O arrasamento de tudo como processo de desenvolvimento. Maceió, capital de Alagoas, serve como o exemplo mais atual dessa constatação: a Brasken, empresa de exploração do sal-gema, foi responsável pela destruição de bairros inteiros a partir ano de 2019, desabrigando centenas de famílias de suas casas devido à exploração inadvertida do minério. Nascem cidades fantasmas de ações como essas. É assim que a natureza cobra, revelando que o avanço é também o prenúncio do fim. E, como é citado no início do filme por Leo, uma referência a Eduardo Viveros de Castro, quem paga primeiro com esse aniquilamento são os povos indígenas, os negros, os empobrecidos, todos eles são especialistas em fim de mundo, já que para eles o mundo acaba diversas vezes e sistematicamente. Mas a ruína está para todos que fazem parte desse jogo civilizatório em nome do progresso. E o que resta fazer? Ressuscitar os mortos, recontar a história e entender o caminho que está inscrito nas pedras.

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Mostra de Tiradentes: Ostinato (Paula Gaitán, 2021)

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Por Chico Torres

Em Ostinato, Paula Gaitán persegue o compositor Arrigo Barnabé. Não uma perseguição no sentido de almejar uma investigação total, como acontece em alguns documentários que se debruçam, com uma nostalgia sedutora e vendável, sobre a biografia de artistas, surgindo como heróis da tropicália, da bossa, do samba e por aí vai. Não, Paula persegue Arrigo como aquilo que ele é: um ser no presente, com inquietações, aspirações e dúvidas no presente. Persegue-o também como inspiração estética, buscando no próprio método do compositor as soluções para o filme que se dedica a ele.

E o que Paula captura é um homem fragmentado, ou, como no título de uma reunião de textos de Walter Benjamin sobre Baudelaire, “um lírico no auge do capitalismo”. São muitos os Arrigos que surgem: aquele que revolucionou a música popular brasileira ao antrofogizar o dodecafonismo de Schoenberg, o desdobrando em canção, substituindo o serialismo pelo ostinato. Há também aquele que surge como Beethoven, em semelhança física e intelectual: Gaitán filma Arrigo em close, como se quisesse reproduzir em fotografia o retrato mais famoso do autor alemão, pintado em 1820 por Karl Stieler. Logo em seguida, Arrigo cita a Grande Fuga e diz ser a música de Beethoven a expressão do “pensamento puro”. Assim é também a música de Arrigo: exigente, feita para desafiar o cérebro. Por fim, há um Arrigo crítico da contemporaneidade, expondo a decadência do gosto e a falta de comunicação entre autor e público. Um Arrigo confuso, quase nostálgico, um homem de vanguarda perdido em um tempo sem vanguarda.

Todas esses Arrigos que aparecem dispersos ao longo do filme, como que em série dodecafônica sem repetição, surgem novamente em seu final, como em ostinato, nos dando a ideia de organicidade, de completude, tal qual o método composicional de Arrigo Barnabé. Todas as ideias do músico, seus desafios e frustrações, parecem sintetizadas em uma bela citação de um fragmento de Benjamin feita por Arrigo:

E por que? Porque se curvou. Assim, o corpo é justamente o que desperta a dor profunda. E pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambas as coisas precisam do isolamento. Quem alguma vez subiu sozinho a uma montanha, chegou ao topo esgotado, e depois inicia a decida, com passos que abalam todo o seu corpo. Sentiu que o tempo se desagrega, as paredes divisórias no seu interior desabam, e ele caminha por entre o cascalho dos instantes, como num sonho. Por vezes tenta parar e não consegue. Quem sabe que coisa o abala, se os pensamentos ou o caminho difícil. O seu corpo transformou-se num caleidoscópio que a cada passo lhe mostra figuras mutantes da verdade.

Ostinato é sobre esse ser caleidoscópico que busca os fragmentos da verdade através de uma música construída na esfera do pensamento. É também sobre Paula Gaitán, sobre seu cinema agora inspirado na música, nesse esforço incomensurável de encontrar, ainda, novas maneiras de dizer, sugerindo novas maneiras de pensar e sentir.

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Editorial: Os imaginários de cidade

Por Gabriel Papaléo

 

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“Contando” de Jem Cohen

 

“O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. (…) A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata.”

Ítalo Calvino, As cidades invisíveis

Se talvez não tenha nascido com a cidade, ao menos transformado, retorcido e intoxicado por ela o cinema foi. A relação simbiótica com o movimento é particularidade tanto da cidade quanto do cinema, e a partir dele muitas vezes adentramos esses espaços e seus códigos e mistérios. Para o tema desse trimestre atravessamos filmes que intuem um pensamento de cidade, iconográficos de representação no espaço urbano, os meandros e processos do trânsito de pessoas e máquinas. A ocupação do ambiente como violência ou resistência, e as ramificações desse choque social da presença. Olhares de contexto, panorâmicos, detalhados e íntimos do que colocamos como ideais de espaço de convívio de trabalho e trânsito. O que esse urbano oferece de mitológico, máquinas e humanos em confronto e harmonia, o que a cidade evoca de invisível. De travelogues que funcionam como registro emocional da experiência de vagar pela cidade, a retratos que parecem filmar os fantasmas históricos de cidades cuja carga histórica parece indissociável do presente, passando pelos filmes cujas entranhas ficam pelo chão quente do Rio de Janeiro, ruas de fogo sob as profecias e cataclismas culturais dos delírios febris de fabulação no ambiente urbano.

Variedade de metrópoles de diferentes continentes, e as repetições do que nelas se insere. Variedade também de gêneros e dispositivos representando as diferentes formas de intervenção na cidade, nas formas que somos atravessados por seus signos, pulsões e ações. De filmes que debatem diretamente sobre como representar a cidade, aos filmes cuja paisagem e arquitetura da cidade ajuda a refletir sobre a passagem do tempo nela, suas transformações e os retornos de seus habitantes.

Que todos os fantasmas passados e presentes continuem assombrando as cidades, gravando sob as mais diversas armas sua existência nesses lugares por vezes grandes demais, por vezes pensado por e para quem não vive o dia a dia, mas que só são alçados à fabulação e ao coração dos sonhos e esperanças quando atravessado pelo povo que habita esses centros urbanos no cotidiano.

Boa leitura!

Edição revisada e editada por Camila Vieira.

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Duas noites brancas

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Por Gabriel Papaléo

“Mas pra quê preciso de relações? Eu já conheço toda Petersburgo sem isso; aí está por que me parecia que todos me abandonavam quando toda Petersburgo se levantou e partiu de repente para o campo.”

Dostoiévski, Noites Brancas.

Das muitas imagens e sensações de uma cidade em expansão, das mais marcantes em Noites Brancas são sobre o fluxo migratório de uma cidade e do que isso representa na memória de um habitante jovem dela – e especialmente como um encontro pode despertar uma nova relação com esse lugar. O contexto da São Petersburgo descrito por Dostoiévski no seu breve livro é o de transição dos tempos, das pessoas voltando ao campo para o trabalho à época de 1848, ano de lançamento do livro, ainda no início da carreira do autor. A cidade descrita pelo russo é dos solitários, dos jovens que ficaram para trás, e em Quatro Noites de um Sonhador e Millennium Mambo, Robert Bresson e Hou Hsiao-Hsien atualizam essa sensação para cidades sob diferentes sombras – e cada qual reagindo a seus respectivos tempos.

Noite silenciosa em Paris

“A nossa imagem, como lembrança desse lugar.”

Marku Ribas, na música “Porto Seguro”

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Cineasta que adaptou obras de Dostoiévski em duas outras oportunidades, de forma livre em O Batedor de Carteiras (1959) e de forma direta em Uma Mulher Delicada (1969), Bresson inicia sua investigação do flanar e das intenções incendiárias da juventude aqui em Quatro Noites de um Sonhador. Mas se o cineasta viria a radicalizar no elogio ao arrojo político dos jovens em O Diabo, Provavelmente (1977), aqui, seis anos antes, o seu elogio é ao romantismo de quem entende que vive no presente à sua disposição.

E a Paris de Quatro Noites de um Sonhador é uma cidade para ser tocada pelas mãos, nos corrimãos, maçanetas e bondes, e para ser vivida pelos abraços apaixonados que persistem aos olhares perdidos corriqueiros do trânsito. Explora essas sensações na figura do sonhador do título, que percebe os amores que habitam a cidade pelas trocas fugidias nas ruas, e vê a mulher com quem passou as noites sumir no mesmo balaio das canções urbanas, dos transeuntes, que os uniram, no mesmo fluxo de pessoas a caminhar. Essas são partes fundamentais para Bresson conjurar momentos mágicos de vivência no ambiente propício aos acasos, como nos interlúdios musicais que atravessam as águas em português ou em inglês, e criam essa Paris suspensa pela fantasia mas sempre tão cotidiana e verdadeira, disposta às andanças, não-turística.

É um olhar atento de planos que sempre estão concentrados na ação de deixar Paris viver seus movimentos paralelos, as pessoas entrando no fundo do quadro com tanta frequência, a noite iluminada pelos anos 70 e pelos tons azulados do eastmancolor. A descoberta de Marthe com seu próprio corpo embalada pela mesma voz que mais tarde virá a marcar uma memória de um barco a passar cantando, que sinaliza a vontade do amor que virá em seguida apenas pelas sugestões de toques, pela batida delicada na parede, as luzes que se apagam, e a câmera precisa e focada de Bresson, cineasta mudo das ações e sobretudo romântico; o caminhar pelas ruas e a aspiração de dias de suspensão, dois dos maiores registros que senti com o Noites Brancas.

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Se o campo da Rússia era narrado como o distante retrato do fluxo migratório de São Petersburgo, aqui na França o campo são flores amarelas fortes, seus tons idílicos de memória enquanto Jacques anda pela cidade, como a tradição bucólica dos quadros de Renoir e de quando Van Gogh se dedicava à natureza. Bresson ilustra e sugere através dessa visão mais individualizada, do diálogo com as artes plásticas, mais francesa enfim, uma resposta moderna de cotidiano parisiense dos encontros que passam, mantendo toda a solidão dos anônimos da metrópole sob outro contexto social, e mesmo assim deixando aos amores que acontecem e passam toda a atenção que eles merecem e a eles é concedida – por Dostoievski e as palavras, por Bresson e os gestos.

O protagonista Jacques começa perdido na solidão de sua história. Está feliz na primeira noite porque “hoje foi ao campo”, se distrair dos ruídos urbanos, dos amores perdidos em uma porta de bondinho fechada, do movimento que não cessa. É nesse fluxo anterior ao encontro que Bresson estuda o espaço e organiza os rituais do flanar, do passeio diurno e noturno, do que Jacques enxerga enquanto olhar atento e curioso para o urbano. É uma visão idealizada também da cidade, sob as tintas melancólicas que um idioma como o francês traz, e essa ligação aparece sobretudo na primeira aproximação de amor entre Marthe e seu amor platônico, feita através dos gestos, dos sons e das sombras. O toque no corrimão, como o toque nas portas, como o toque na pele, experimentando o que se pode na cidade ao alcance – inclusive o que não conhecemos.

No encontro breve no confinamento do apartamento, nas possibilidades da terra estrangeira, nas fugas imaginadas de uma Paris infértil àquele olhar entediado de Marthe, essa idealização se desenha na figura do inquilino, do fantasma do passado que assombra o relato contado para Jacques. E quando testemunhamos essa aproximação entre memória e presente se desenhando, Bresson retrata o que o amor tem de palpável, nos toques e gestos, nas andanças e abraços, em compartilhar momentos na noite estrelada e urbana que se mantém em movimento sempre. O amor de Marthe é sobretudo de intimidade e idealização, enquanto o do Jacques por Marthe é do acaso e suas circunstâncias iluminadas.

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Num retrato tão sublime e significativo do passado, o que poderia ser tomado pela névoa ilusória da nostalgia vira uma base emocional para o presente nas mãos e olhos de Bresson, no cuidado sobre com o cotidiano de ocupações através dos gestos. A história de Jacques e Marthe parece tão mais viva e palpável talvez pela forma que esses dois andam em direto diálogo com o coletivo, com a cidade que pulsa; no passado, os encontros de Marthe com o inquilino prometido são sugestivos, sempre à beira das dissonâncias, fugidios e quase místicos. A rica cena musical que compõe a tapeçaria cultural da noite na Paris do presente do filme é muito responsável por essa concretude do presente, que nivela a suposta banalidade das buzinas, dos carros passando, dos transeuntes ao redor do casal, com a magia impressionista dessas músicas que suspendem o tempo e parecem devolver um histórico visível da cidade diante dos olhos.

Na bela cena de Marthe no quarto examinando seu corpo no espelho, ela liga o rádio e ouve “Musseke”, música de Marku Ribas. Essa trilha embala os movimentos graciosos de Isabelle Weingarten, atriz magnânima da qual Bresson sabe guardar um close, e através desses gestos há uma nova curiosidade pela sexualidade, desencadeando ainda no pelo encontro de sombras com o inquilino, feito através de ruídos e sugestões com uma parede de distância entre eles. Mais tarde, de volta ao presente da terceira noite, na cena em que o grupo Batuke aparece tocando e cantando no bateau mouche sob a Pont Neuf, Jacques e Marthe param para ouvir a música que sai dali. É quando a voz agora familiar de Marku Ribas reaparece para cantar “Sou só, na estrada sigo só, levando a espera que era ela/E o meu coração que não traz segredos/Sigo sem medo rumo ao sul.”, trazendo sob a voz brasileira e a língua portuguesa um sentimento que atravessa o olhar dos dois, e talvez inconscientemente manifeste uma aproximação misteriosa entre passado e presente, na mesma voz que desnudou Marthe em seu quarto no dia em que redescobriu os detalhes de seu corpo ser agora a voz que ecoa pela cidade numa “coincidência” que só o trânsito poderia criar. A melancolia e amor do hemisfério sul atravessou a noite francesa como o ruído distante da saudade.

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É por conta desse tipo de sutileza que testemunharam que Marthe lembra a Jacques que agora estão ligados para a vida toda, porque compartilharam um momento de reconhecimento de um no outro por conta da noite da cidade. Ela vive na cidade grande e no meio das multidões, e seu rosto está gravado nas memórias, e Jacques depois percebe que até o nome dela existe nos barcos e nas vitrines de loja que refletem os fantasmas que ali habitam. Como tal fantasma, se pensarmos que na cidade pouco de nós fica gravado e o que nos sobra são as reminiscências com lugares que por vezes nada tem a ver com seu intuito inicial, Marthe pertence à noite e ao acaso, e não abrirá mão de se perder na multidão para se reconectar com quem lhe prometeu o futuro. Jacques percebe que é num sopro que ela vai embora da mesma forma que surgiu, como o vento que Bresson já disse vinte e quatro anos antes que “sopra onde quer”, e o caos de uma rua cheia parece o único palco possível para essa despedida apaixonada.

É nesse encerramento de solidão, mas também de devoção a um dever emocional, que Jacques encontra a confissão final. O movimento anti-nostálgico e sobretudo atencioso às nuances melancólicas da vida que possibilitam um otimismo sonhador, como no livro, se manifesta na serenidade de Jacques em reconhecer que, apesar de ter sido a piada do destino, às andanças pode retornar, ao trabalho dos seus quadros e das paixões muitas pelas ruas, e que será eternamente grato pelos olhos de Marthe que o fizeram procurar novamente por Paris.

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Noite eletrônica em Taipei

“A cidade dos outros / bate à nossa porta.”

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, “Cidade dos Outros”.

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Partiremos de uma suposição: se Bresson escolhe a distância entre a perspectiva de Jacques e Marthe, em Millennium Mambo é como se Hou Hsiao-Hsien focasse inteiramente no passado da protagonista feminina do livro, e imaginasse todas as turbulências que os amores dela causaram. E aqui o movimento migratório russo vira as lembranças de uma Taipei em transformação. Hou localiza com atenção uma suspensão histórica, um momento de transição sem perspectivas de conclusão no fim do século que chega, na música eletrônica abrindo as portas para o desconhecido cujas elipses são difusas justamente pela forma que registramos o amadurecimento sem certezas. Estamos sob a visão de Vicky, a protagonista, testemunhando sua história; na noite branca de Taipei os sonhadores são os espectadores silenciosos.

A rotina de Vicky, a personagem vivida por Shu Qi, já é iniciada num contexto de efervescência cultural jovem da música eletrônica como um sinal de fluxo ininterrupto dos tempos, das drogas que borram a percepção do tempo e ativam a nostalgia de sua passagem. É sob seu olhar que vemos os dilemas diante o pêndulo da sua entrega aos relacionamentos que a atravessam, e talvez a única vez que enxerguemos a protagonista em total plenitude é no estonteante primeiro plano do filme, quando ela anuncia em off onde estava emocionalmente essa mulher “há dez anos atrás, na virada do milênio”. Millennium Mambo já começa com a voz do futuro porque a percepção do tempo para Hou aqui demanda distância – no presente estão todos à flor da pele.

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Muito por isso é fundamental para Hou que o espaço esteja bem localizado; sua dinâmica de planos inteiros sem corte, com a câmera se movimentando dentro de um mesmo plano, à procura das ações, quase sempre à meia distância, deixa transcorrer na encenação o tempo presente do drama. Seja nas cenas de agitação das boates, seja nas interações domésticas entre Vicky e Hao-hao, o espaço existe como nos filmes silenciosos dos Lumière, revelados por um ponto de vista fixo, que ilustre as nuances entre primeiro plano e fundo do quadro, mas que comporte todo o movimento. O extracampo é intuitivo e Hou prefere o sugerir com o mistério de quem escolhe a posição do olhar e se agarra nela. É através dos acumulados desses espaços, que se repetem e também se comentam, que entenderemos as elipses e o tempo. Mas adentremos primeiro no espaço.

É como o espaço retratado por Kenji Mizoguchi, outro mestre em separar com cautela o que acontece em primeiro plano e o que acontece no fundo do quadro, nos seus filmes voltados às protagonistas femininas pagando o preço emocional da dureza institucionalizada dos homens. A câmera passeia por cômodos e pelos rostos dos personagens, mas sempre num fluxo calmo, no seu próprio tempo, como um observador atento que já sabe do destino daquelas pessoas. No caso de Vicky, pelo off reflexivo vindo do futuro, é como se o olhar fosse o da câmera, que procura nessas memórias o sentido totalizante daquelas experiências – cenas essas escolhidas a dedo para criar um retrato suficiente da personagem em poucos momento; é uma herança também da literatura, como o próprio Dostoiévski e o argentino Jorge Luís Borges – cujo prólogo de História Universal da Infâmia diz justamente sobre seu desejo de falar sob a “redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas”¹.

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E quais são essas poucas cenas que definem Vicky, e essa transformação íntima de Taipei? O fluxo de dois romances que se interpelam, de duas cidades de épocas diferentes. A partir da liberdade da primeira cena, do fugidio que é o suficiente para ser gravado na jornada pessoal, o já citado pêndulo constante entre o relacionamento abusivo com Hao-Hao e o flerte com Jack – esse um homem mais velho, mais paternalista, mais seguro, uma promessa de solução na tradição, dos rituais, das câmeras de segurança, da calma, do silêncio, dos trens tão filmados por Ozu. O estrangeiro e a tradição taiwanesa sem respostas, a carência de perguntas do presente, e o acaso possibilitador como o que persiste.

A relação de Vicky e Hao-hao, por sua vez, é mediada pelo confinamento – e talvez aí seja a proposta estética mais arriscada do diretor: de organizar uma mudança quase romanesca de Taipei diante dos olhos de Shu Qi, mas quase exclusivamente filmando cenas internas, domésticas, onde as mudanças externas são mais intuídas que mostradas, como a batida da trilha de Lim Giong, que atravessa paredes, tempos, corações e corpos. Mal existe acaso na vida de casal de Vicky e Hao-hao, é a mesma trilha de destruição que não consegue ser evitada pela personagem que busca solitária por equilíbrio emocional diante do desarranjo irresponsável do parceiro. Quando existe o acaso é para propor a mudança, como todo acaso que se preze numa vida urbana, e é o suficiente para fazer Vicky largar seu namorado sem precisar recorrer a fuga imaginária e impossível ao passado que sua mãe e sua cidade natal no interior representam.

É um desejo evidente em Vicky, ainda que nada verbalizado, a vontade de presenciar a vida na cidade. Flui como um rio o corpo da personagem indo de uma festa em outra, seja em boates ou no seu próprio apartamento, os cigarros que se enfileiram, as bebidas que nunca saem da mão, os olhos cansados como numa ressaca constante – tudo isso para de alguma forma se sentir na cidade. É um detalhe bonito demais quando Hou filma a primeira ida de Vicky ao Japão e conhecemos brevemente a velha de Yubari, uma mulher de 80 anos que quer ficar viva mais vinte para ver a cidade se transformando. A sede de mudanças e de se manter testemunha do tempo não é sinal de juventude ou velhice, mas algo que se reimagina de geração em geração, de idade para idade.

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Quando surge a oportunidade de filmar uma imagem dessa mudança, Hou elege os rostos marcados pela neve de Vicky com o amigo no Japão. A neve que cai rapidamente os dissolverá, mas a necessidade de se gravar na cidade não passa pela razão, mas sim pelo gesto. E na estrutura da montagem, que intercala tempos com elipses às vezes desavisadas, desafiadoras, o tempo fragmentado é que exerce o acúmulo de sensações, acompanhado como o fluxo de uma reminiscência, como pequenos registros de uma realidade de mudança cujas permanências são de relações que ajudam a moldar a relação com os espaços que vimos ao longo de cem minutos que agem – da melhor forma possível – como anos a fio.

A fuga pertence ao futuro que não acessamos através da imagem; o intuímos pela voz de Vicky, por sua memória da década futura, propondo uma Taipei esgotada cuja batida uniforme da música eletrônica anestesia como as paisagens de segurança que estão pela janela. O que resta é um movimento não de nostalgia reverente e sacralizadora, mas um aceno com respeito ao passado pelo seu poder de formação; um filme de amadurecimento antes de um filme de amor.

E a imagem desse aceno não poderia ser outra que não a neve, que sobra no fim, a acabar no dia seguinte, mas ainda ali para ser aproveitada com quem lhe faz bem, para lembrar que a natureza está ali em harmonia e que o vento e os pássaros existem para além dos dilemas das pessoas. Ali na serenidade da viela solitária ocorre a noite branca final, de despedida do mágico encontro com alguém, dos cartazes antigos ficando nesse milênio que se esvai, da memória desse cinema rumo ao desconhecido como a neve a derreter com a chegada do Sol.

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Referências:

1 – Jorge Luís Borges, “Prólogo a primeira edição” em História Universal da Infâmia (1935), pag. 9

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O pântano sob Berlim: à volta de Undine

Por Lucas Saturnino

 

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A palavra alemã Landschaft pressupõe uma paisagem cultural. A ideia está embutida no próprio termo. Falar sobre paisagem na Alemanha é falar sobre um lugar moldado por pessoas, e, tendo em vista a história do século passado, nem sempre foi tão fácil falar sobre isso. Mas os campos agrícolas, as florestas e encostas romantizadas, os rios cheios de história que atravessam o país: tudo isso é cultural, em algum nível moldando a cultura e sendo moldado por ela. (Turning: A Swimming Memoir, Jessica J. Lee)

O cinema é um imenso registro de modos de vida, paisagens e paixões fadadas a desaparecer. Assim foi e é a sua história na Berlim palimpséstica. Todo filme berlinense é um testemunho sobre a cidade em movimento perpétuo de inclemente transformação. E isso permeia, norteia e condiciona Berlim enquanto espaço cênico cinematográfico. Nesse contexto, insere-se Undine (2020), do alemão Christian Petzold.

I.

Embora Undine venha sendo descrito como uma declaração de amor a Berlim, precisamente metade do filme não se passa na cidade — e sim em Nordrhein-Westfalen, onde o bucolismo romântico coexiste com a barragem que reflete a industrialização. A paisagem urbana berlinense possui tanto tempo de tela quanto o vestiário do trabalho da personagem e muito menos do que os minutos debaixo d´água.

Após o monólogo (“Form follows function”) que divide o filme pela metade, corta e assistimos aos amantes percorrendo juntinhos o centro nevrálgico da nova República Federal. Onde antes o Muro cortava a vizinhança, hoje se situam altivos o Palácio do Reichstag (que, após ser restaurado, voltou a sediar o parlamento alemão em 1999), a Chancelaria Federal (inaugurada em 2001) e a Estação Central de Berlim (aberta em 2006). Contudo, o primeiro está fora de quadro e os outros dois fora de foco.

De resto, não se vê praticamente nada da cidade, exceto a visão sobre Alexanderplatz do quarto de Undine — de onde nem se espreita a Fernsehturm dos cartões-postais, mas outra, mais reveladora, perspectiva da capital alemã: apenas o fluxo de trens indo e voltando em conjunto à Galeria Kaufhof, icônica loja de departamentos, templo do comércio, e o hotel Park Inn, o modernoso arranha-céu espelhado. Do outro lado do apartamento, construções históricas como a Marienkirche (igreja) e a Rotes Rathaus (a prefeitura) desaparecem por detrás da cordilheira de edifícios que as ocultam.

Berlim? Petzold esquiva-se de filmá-la. Apesar de residir na cidade há cerca de 40 anos, dentre os seus filmes apenas Undine e Gespenster (Fantasmas, 2005) são ambientados lá. Gespenster, inspirado pelos Irmãos Grimm, foi quase todo rodado nos arredores de Potsdamer Platz — o símbolo da nova Berlim: de terra de ninguém dividida pelo Muro a maior canteiro de obras da Europa a centro comercial e empresarial ultramoderno.

Só que o interesse de Petzold é pelo elusivo e não pelo dado. Em Potsdamer Platz, ele busca superfícies típicas de contos de fadas, transfigurando o parque urbano em floresta até que os lagos artificiais adquiram organicidade. Petzold cria uma contrafábula — sobre traumas, ilusões, frustrações e abandonos — à fabulação topográfica das reformas pós-reunificação. Mais do que uma disputa de narrativas, um choque de (re)encenações. “Você poderia me ressuscitar outra vez?”, pede Undine a Christoph, com carinho.

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Jaimey Fisher[1] observa que as jovens personagens de Gespenster caminham por esse espaço sobrecarregado historicamente sem jamais interagir com os muitos monumentos montados para fins turísticos ou políticos. Alheias à intensa memorialização pública da cidade, os interesses delas são mundanos e imediatos: comida, bens materiais, afetos, oportunidades. A câmera se recusa a registrar a arquitetura ultramoderna da região, mas revela as marcas de tiro da guerra ainda visíveis no edifício neoclássico do Martin-Gropius-Bau, filmado de maneira sempre fragmentária, lateral e passadiça.

A janela do quarto de Undine evoca a do apartamento da personagem de Hannelore Schroth em Unter den Brücken (Por baixo das pontes, Helmut Käutner, 1945/6). No filme, a jovem mulher inicia o relato sobre como quase chegou ao suicídio fazendo alusão à paisagem na janela do seu quarto, de onde só se vê o nada aconchegante paredão lateral do prédio em frente, composto somente por tijolos e um grande anúncio, tampando a vista inteira, com exceção de duas grandes chaminés e o fluxo dos trens ao fundo. O retrato zero hospitaleiro da metrópole industrial. “Sem sinal da primavera”, ela diz.

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Em Undine, onde está Berlim? No mapa e no ethos — na mística local. A cidade é vista através de mapas — as maquetes da exposição apresentada pela personagem, as quais, como ela observa, são todas representações incompletas e tendenciosas. Petzold reduz Berlim à sua dimensão teórica, à sua tangibilidade conceitual.

A maquete central divide as edificações em duas cores, que sinalizam se elas foram construídas antes ou depois de 1990. Dessa maneira, a sua composição bicolor materializa o acúmulo de temporalidades num tempo presente em que elas forçosamente coexistem, representando visualmente o corpo urbano cicatrizado pela história.

Como em Transit (Em Trânsito, 2018), Petzold trabalha um diálogo materialista entre esferas imateriais à semelhança do que Serge Daney definiu como “não-reconciliação”. Daney escreve: “A não-reconciliação não é a união nem o divórcio, nem o corpo pleno nem o pressuposto do esfacelamento, do caos […], mas sua dupla possibilidade. Straub e Huillet partem, no fundo, de um fato simples e irrecusável: o nazismo existiu […] No sistema straubiano, uma moda retrô é simplesmente impossível: tudo está no presente”[2].

O impacto da reunificação na topografia urbana pode ser verificado no documentário Berlin Babylon (Hubertus Siegert, 2001), que retrata o período dos anos 90 no qual a cidade se transformou em um imenso canteiro de obras. No filme, a arquiteta e diretora de obras do Departamento do Senado de Berlim para Desenvolvimento Urbano e Habitação (onde Undine trabalha como guia da exposição oficial do órgão) comenta diante de uma maquete idêntica da cidade — possivelmente a mesma — que “o chanceler [Helmut Kohl, 1982-98] tinha uma nítida fraqueza por símbolos e grandes gestos”.

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Frente a isso, Petzold reage reduzindo essas ideias ao plano do esboço. Tal concepção de cidade reabilitada, consubstanciada e reestruturada permanece uma maquete inorgânica. Os símbolos tão abundantes quanto irrelevantes e os grandes gestos jamais conseguiram ser mais do que intenções branqueadoras do poder aliado ao capital. Tudo ainda é projeto mesmo que já tenha sido pomposamente edificado. Daí a opção por desfocar a Chancelaria e a Estação Central e relegá-las ao segundo plano. Como tensionar as fissuras da história em um lugar que erige monumentos à própria vergonha?

No curta Der Weg, den wir nicht zusammen gehen (O caminho que nós não percorremos juntos, Dominik Graf & Martin Gressmann, 2009), a voz off de Graf disserta sobre imagens de construções abandonadas: “Esses edifícios são corpos que preservam o espírito da Alemanha do pós-Guerra. Eles contam o que os museus […] e os centros reformados das cidades não conseguem nos contar […] Esses corpos de pedra serão demolidos porque nós queremos outros corpos. ‘Nós’. Quem será isso?”.

Eles também nos levam a uma reunião do já mencionado Departamento do Senado de Berlim (então Ocidental) para Desenvolvimento Urbano e Habitação: em pauta, a remoção dos “indivíduos indesejados”, “drogados, mendigos e prostitutas”, dos arredores da Estação Zoo, “zona futuramente significativa”. Nos anos 70 e 80, o Senado já tinha o costume de “remover os vagabundos” da região durante a Berlinale para que os convidados internacionais do evento não presenciassem a pobreza. O objetivo seria, portanto, sacramentar a gentrificação sazonal adotada a cada festival. Na opinião de um dos trabalhadores sociais presentes, a vilania do representante da Deutsche Bahn (a empresa estatal de transportes) seria algo tão clichê que se excederia na caricatura.

Às ruínas dos corpos e lugares sem função no neoliberalismo, sucede-se, por via da imagem do colosso espelhado da Estação Central de Berlim, a imponente arrogância do novo presente que obsoleta tudo à sua volta e não admite rivais. Conforme a Alemanha é tomada por um “programa de eutanásia arquitetônica”, a desatualização não-lucrativa passa a ser punida com pena capital pelo frenesi destrutivo de investidores e tecnocratas.

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Graf & Gressmann atacam a instrumentalização da palavra “emocional” na Alemanha pós-Guerra Fria (cujos termos da reunificação sob a égide da vacuidade programática do neoliberalismo implementada por uma elite falida moralmente em meio à corrupção sistêmica Graf vem criticando desde os anos 90 em sobretudo thrillers policiais, mas também melodramas, realizados majoritariamente para a TV):

Como disse um conhecido arquiteto bávaro? «No lugar do antigo prédio da Agfa, o novo edifício irá oferecer acesso emocional». Sim, «emocional»… Uma palavra de extrema importância na cultura alemã dos últimos 20 anos […] Na política, no cinema, na música, nas finanças e na publicidade. Precisamos sempre cativar as pessoas emocionalmente. Os artistas, os políticos… A arquitetura agora também é emocional […] Mas sempre foi assim, inclusive nos períodos mais nefastos da história alemã […] Sublime, grandiosa, comovente, tocante, excitante, empolgante, sensível. Talvez esse estranho emocionalismo dos arquitetos, dos burocratas e dos políticos seja só a cortina de fumaça por trás da qual a verdadeira história alemã é descartada. Tudo o que sobra é pano de fundo. E Stadtschlossen (“Palácios da cidade”) [vemos imagens da demolição do Palast der Republik, o parlamento da Alemanha Oriental, para dar lugar à reconstrução do Berliner Stadtschloss, a antiga residência da monarquia Hohenzollern, remodelada para acolher o museu Humboldt-Forum, sobre o qual disserta Undine]. Tudo desaparece: os edifícios, o sol, os Reichs alemães, o dos nazistas e o dos stalinistas. Essas cores também desaparecerão. As maravilhosas cores desse material fílmico [a película]. Nenhum outro material fílmico no mundo é capaz de fazer esse muro ter essa aparência”.

Também os filmes do que se rotulou “Escola de Berlim”, tidos como austeros em excesso, sofreram muitas críticas centradas no argumento de que eles negariam ou dificultariam o acesso emocional do espectador. Conquanto refletissem justamente o estado emocional letárgico e desgarrado da burguesia alemã naquele período histórico. Já no fim da era Merkel, os desassossegos subiram de tom e romperam com o realismo: obras como In My Room (Ulrich Köhler, 2018), Ich war zuhause, aber… (Eu Estava em Casa, Mas…, Angela Schanelec, 2019) e Undine afastaram-se ainda mais da estética que outrora os notabilizou.

Ao final de Der traumhafte Weg (O Caminho dos Sonhos, Schanelec, 2016), a Estação Central de Berlim emerge melancolicamente como signo da perda do comum, do espaço público neoliberal hostil à sociabilidade retraindo os indivíduos à neurose dos interiores domésticos, em contraponto à ensolarada Ágora grega da sequência inicial durante as eleições europeias de 1984 e a luta política idealista por uma “nova Europa”.

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A paisagem urbana reflete o espírito do seu tempo e influencia a psique do sujeito. Em 1998, o desemprego na Alemanha atingiu um pico histórico e Stefan Hayn começou a pintar em aquarelas a transitória agressividade dos cartazes publicitários (políticos, comerciais) que colonizavam a paisagem urbana (cognitiva, sensível) de Berlim, prenunciando a ruína do Estado de segurança social, como forma de registrar (processar, compreender) as transformações econômicas, políticas e interpessoais que acometiam o país reunificado à sombra sitiante do neoliberalismo. Assim nascia o poderosíssimo Malerei heute (Pintando hoje, Anja-Christin Remmert & Stefan Hayn, 2005).

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Além de Undine, outro grande filme sobre o amor agourado pela gentrificação é Berlin Chamissoplatz (Rudolf Thome, 1980). Uma jovem estudante de sociologia se apaixona por um arquiteto de meia-idade. Ela integra um coletivo político que luta contra o projeto estatal de renovação urbana, considerado vetor da especulação imobiliária e da elitização higienizadora do bairro. Ele trabalha no Senado de Berlim, envolvido nessas mesmas obras. Como tão bem sintetizado pelo crítico Lukas Foerster, “o filme de Thome indica um lugar impossível entre as utopias contraculturais dos anos 70, que haviam se tornado antiquadas e paranoicas, e o autoisolamento burguês dos anos 80”[3].

“Eu acho que você está personalizando as pressões do sistema”, rebate o arquiteto. Ao contrapor dois personagens tão exemplarmente antagônicos, a proposta de Thome não é personalizar questões estruturais, as quais não partem do sujeito e nem se encerram nele, mas sim dar forma ao modo furtivo como elas se sobrepõem a eles. A estrutura social é tanto o que permite quanto o que obstrui a mobilidade dos indivíduos — por isso, o cinema de Thome desde sempre se dedicou a investigar a estabilidade das estruturas que pudessem viabilizar suas utopias particulares (políticas, românticas, sexuais). E o que os une e os separa é a indiferença que em última instância o progresso reserva-lhes.

Na janela de Berlin Chamissoplatz? Outro paredão, com os tijolos aparentes, sem acabamento. Se a bruteza da paisagem poderia ser deprimente, ela passa a representar uma imagem na contramão da gentrificação, e depois ainda será por cima dessa mesma superfície, banal e simbólica, que o arquiteto escreverá sua declaração de amor.

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Esse “Eu te amo”, entre a simplicidade da mensagem e o peso do quadro no qual ela é inscrita, dialoga com o modo petzoldiano de sobrepor o pessoal no político e vice-versa. A tensão constitutiva do cinema de Petzold se dá entre o arcabouço conceitual altamente elaborado dos projetos e o andamento narrativo melódico e retilíneo que eles apresentam. Seja lá o que mais estiver se desenrolando concomitantemente na forma ou no discurso, em primeiro plano mantém-se a obra de arte dramática — ação, reação e ficção.

Se uns personalizam as pressões do sistema, Petzold as mitifica. Assim Undine consegue se vingar do ex-namorado — redirecionando o alvo do sacrifício ritual — de modo que a camareira de Dreileben: Etwas Besseres als den Tod (Petzold, 2011) não fora capaz. Em ambos, Jacob Matschenz interpreta o (homônimo) imbecil de classe alta que não se importa com o mal que causa aos outros. Ainda que a ambientação na floresta germânica remeta aos contos de fadas, em Dreileben a realidade socioeconômica se impõe ao final.

Já o novo filme se assemelha ao japonês Mermaid Legend (Toshiharu Ikeda, 1984), também uma reação à modernização de uma antiga potência do Eixo, identificando que a única forma de romper com a ordem coercitiva social e com o modus operandi cínico e criminoso do status quo político-econômico é transformando-se no distúrbio solitário que incorporará a saída mitológica do impasse público, apresentando a conta por si só.

O que Undine não conta sobre o Humboldt-Forum — porque os empregadores dela não permitiriam — é que o museu vem sendo alvo de intensos protestos por se propor a ser um centro global de intercâmbio e diversidade cultural, entre outros desígnios superlativos, embora parte do seu acervo, herdado dos antigos Museu Etnológico e Museu de Arte Asiática locais, tenha sido formada em circunstâncias moralmente condenáveis, que representariam a manutenção de pontos de vista e metodologias coloniais.

Acusa-se o museu de apresentar a história de maneira falseada, dissociando o espólio material das expedições científicas europeias pelo mundo do contexto colonial no qual elas estavam inseridas. Portanto, se o Humboldt-Forum pode simbolizar que “o progresso é impossível”, como aludido por Undine, seria mais no sentido da inviabilidade de um simulacro hipócrita, estéril, autocongratulatório e ahistórico de progresso.

II.

Quanto ao ethos local, questão de geografia: o trabalho de Undine fica nas imediações do 1) Muro, i.e., do fantasma do Muro, que representa simultaneamente uma das principais fontes de renda turística da cidade — a personagem faz referência ao mercado da “Ostalgie”, de mimetização nostálgica da Alemanha Oriental, símbolo da comoditização do passado para consumo fetichista, o que se estende à exploração comercial dos traumas do século XX — e a “dor fantasma de uma amputação violenta” — como ela caracteriza o vazio deixado pela demolição do Berliner Stadtschloss na topografia urbana, sentimento de dor e de ausência que é igualado ao término súbito de um relacionamento e à partida de uma paixão, tão consumada quanto inconclusa —, e de 2) boates célebres — outro enorme bastião da economia local, redutos de hedonismo e do transe psicoativo que atraem indivíduos do mundo inteiro, e que, entre outras coisas, são expressão da liberdade sexual e da possibilidade prática dos desejos (hiper)transitórios em comunhão coletiva.

O circuito noturno da cidade floresceu após a queda do Muro, ocupando criativamente as suas ruínas urbanas devido à abundância de espaço abandonado. Cedo ou tarde, porém, todas as revoluções se institucionalizam. De repente, big business. Não à toa, a Amazon Prime ambientou na cena techno berlinense a sua versão dos seriados policiais alemães, Beat (2018), que abre com um monólogo sobre o apelo — já comoditizado — de “viver o momento e nada mais […] sem gastar tempo pensando no que pode vir a acontecer”.

Undine existe em clara oposição a certa fama e “autoimagem” da cidade, pasteurizada, por exemplo, num Fucking Berlin (Florian Gottschick, 2016) — o portfólio perfeito para a paisagem urbana da vida berlinense, apresentando-a em uma sedutora e festiva embalagem pop, sem que jamais percamos os cartões-postais de vista, na medida em que a credibilidade do romance está diretamente relacionada à encenação instagramável da fotogenia.

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Em Fucking Berlin, é recorrente a imagem da protagonista sentada em sua janela, buscando aproximar-se fisicamente da cidade, cuja aparência é mais humanamente tangível do que no quarto de Undine (que dirá do deprimente paredão de Unter den Brücken), sendo, por sinal, justamente isso que a personagem diz fazê-la menos solitária: embora termine o filme sem o namorado e sem a melhor amiga, ela afirma não estar sozinha, estendendo o braço para fora, tentando tocar o ar e a aura da cidade.

Nota: costuma-se referir ao “ar de Berlim” como metonímia para a aura da cidade. E ele também já virou souvenir: no curta Berliner Luft (Riki Kalbe & Barbara Kasper, 1996), descreve-se como um engenheiro obteve sucesso em vender aos turistas latas de leite vazias, envoltas por uma embalagem com gravuras dos grandes ícones locais, sob o pretexto de que elas continham “ar de Berlim” enlatado — e ainda patenteou a invenção.

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“Berlin não é uma cidade, mas um ritmo. Esse ritmo é tão forte que pode te fazer perder o controle. E cada pessoa que você encontra altera o seu beat”, explica a protagonista de Fucking Berlin. “A cidade mais safada do mundo!”, lhe diz a amiga — vide Yung (Gronkowski, 2018), produção da juventude local. Em suma, a ideia de Berlim como festa infinita, sem limites ou tabus, oscilando entre o que há de autêntico e o que há de branding.

Undine, o conto da ninfa que se entrega ao homem sob a condição de que irá matá-lo caso ele a deixe, também mitifica questões que atravessam o belíssimo e indefectivelmente berlinense Der schöne Tag (O belo dia, Thomas Arslan, 2001), que aborda o ímpeto de desistir dos relacionamentos amorosos em face de quaisquer turbulências, dada a aparente facilidade de se encontrar novos parceiros românticos e sexuais na metrópole.

A sereia sabe que os homens a assimilam como superfície na qual podem projetar os seus desejos até o ponto que lhes for conveniente. Christoph a desconcerta elogiando a sua aula sobre um pântano camaleônico e ela julga ter encontrado o último homem inocente. A problemática da projeção unilateral no outro é uma constante na obra de Petzold. Quer motivada por libido, estratagemas ou esperanças. Uns tentam manipular outros, que, por sua vez, manipulam os manipuladores com base nas expectativas deles. A diferença é que Undine talvez seja a sua primeira história de amor correspondido.

Ansiosa por existir além dos prazos transitórios do desejo e da sala de turnos onde os tesouros afetivos estão destinados a se despedaçar, Undine entrega tudo de si na paixão que crê poder enfim libertá-la do ciclo mítico vicioso. Para ela, o relacionamento é como um salto mortal, a sua última chance. Daí a iminência da queda impiedosa que a assombra, da frustração brutal que se pressente após tamanho investimento emocional. Do material ao metafórico, tudo está se quebrando ou à beira de se quebrar. A pressão se torna palpável além do mais porque Petzold só costuma fazer um take a cada plano. É tudo ou nada.

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Undine realça que uma simulação foi fundamental para angariar apoio à reconstrução do Berliner Stadtschloss — uma imagem em trompe l’oeil da fachada do Palácio foi instalada em seu local original, replicando-o em escala real. Em Gespenster, a mãe à procura da filha desaparecida carrega fotos que simulam digitalmente a aparência da menina depois de tantos anos, as quais revelam uma adolescente muito parecida com a jovem que ela diz ser sua filha. A questão é que a mãe não precisa daquelas imagens para crer no que deseja e a jovem também não cogita mudar de ideia ainda que as fotos suscitem dúvidas.

Christoph necessita da gravação subaquática para que os seus colegas acreditem na existência do peixão que ele alega ter visto. Porém, quando o vídeo lhe mostra que Undine não se encontrava debaixo d’água, ele não toma as imagens como fato e mergulha no fundo do rio para procurá-la novamente. No limite, todas as ações vão se resumindo à vontade de crer e interesses pessoais. E é assim que se originam os infortúnios.

Se em Transit Paula Beer representava a promessa de uma ilusão — a imagem da beleza elusiva que, fugazmente capturada pelo olhar, vem intensificar afetivamente as frustrações existenciais e políticas do protagonista —, em Undine ela personifica — interpretando a figura mitológica que também é uma bela mulher — o destino da musa-motor dramático que é descartada após, julga-se, ter cumprido a sua função. À semelhança do seminal Unter de Brücken, cujo ponto de partida é a tentativa de suicídio de uma jovem mulher que se sente usada e desprezada após ter posado nua como modelo para logo em seguida ter sido grosseiramente dispensada pelo pintor que a persuadira.

Se em Transit enquadrava-se Beer a partir dos olhos de Rogowski, em Undine inverte-se a perspectiva: Rogowski só passa a existir quando Beer repara na presença dele, cujo personagem não pode ser visto em quadro no tour que antecede o encontro. No mais, nós acompanhamos a resistência de Undine em obedecer às expectativas narrativas com as quais ela pode não estar em conformidade. Ciente do seu papel mítico, ela alerta ao ex-namorado que terá de matá-lo, mas posteriormente se permite esquecer da obrigação. Apesar de morar em um local obcecado com a ideia de reinvenção, a tragédia de Undine é não ser capaz de transcender a sua função social como criatura fantástica e ficcional.

Ela compartilha o pouco usual sobrenome Wibeau com o protagonista de Die neuen Leiden des jungen W. (Os novos sofrimentos do jovem W., 1972/3), romance e peça de Ulrich Plenzdorf acerca de um jovem rebelde na Alemanha Oriental obcecado com o Werther, de Goethe, a ponto de ir confundindo a sua vida com o livro, utilizando-o como modelo para as suas ações e ferramenta referencial para expressar os seus sentimentos.

À essa altura, diga-se, Petzold está tanto fazendo referência às suas referências quanto se autorreferenciando a referenciá-las. Em Polizeiruf 110: Kreise (2015), policial e suspeito confrontam-se com estratégias fundamentadas em obras de ficção tidas como úteis para a ocasião. Os dois concordam que o terrível sobre os clichês é que eles costumam ter um fundo de verdade. Por fim, uma maquete (da cena do crime, descobrimos) confeccionada pelo assassino confunde-se com o real, revelando outra perspectiva sobre o passado.

Undine parece portar um celular de flip e um Ipod nano para evitar a simples associação entre as suas angústias e as redes sociais na forma em que elas existem hoje. Afinal, a desorientação existencial da jovem subempregada, fragilizada afetivamente, que desesperadamente anseia por laços de intimidade em decorrência da solidão característica da metrópole moderna já era o tema de Unter de Brücken (1945/6).

Em Unter de Brücken, Käutner apresenta a cidade ao público articulando uma montagem de chaminés esfumaçadas e trens em movimento. Como a personagem havia acabado de se mudar para a capital, ela explica que não tinha ninguém com quem conversar. Então, solitária na grande cidade, relegara-se a uma existência espectral, anônima na metrópole e na modernidade. Aos domingos, só lhe restava observar a felicidade dos casais nas praias fluviais de Potsdam, culpando-se pela própria solidão. Tal e qual fantasma.

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— “Berlim é a sua casa?”

— “Não, minha casa não. Eu estou completamente sozinha em Berlim”.

Unter de Brücken também é a história de dois marinheiros — ocupação dos primeiros emissários da modernidade — que desejam sossegar da vida em trânsito. Sem tempo para conhecer melhor as mulheres com quem se envolvem, eles sentem que estancaram num ciclo cada vez mais solitário de deslocamento perpétuo. “Estamos sempre com pressa”, lamentam, o que, na visão deles, impossibilitaria o fortalecimento de vínculos afetivos.

Undine e Christoph também estão sempre com pressa ou sendo apressados. Nunca andam a esmo, somente com propósitos claros. Em cena, só lhes é permitido amar e trabalhar. Sem um terceiro pilar, quando um dos restantes desmorona… Entre eles, opõem-se mais do que o trabalho braçal e o intelectual (contraste outrora muito explorado no cinema da Alemanha Oriental): Christoph ainda dispõe de algum tipo de solidariedade proletária dos colegas, ao passo que Undine já está inserida no mercado laboral da sociedade pós-industrial. Ela é apenas mais uma freelancer desprovida de seguridade social. Por isso, é tão fácil para ela desaparecer da face da terra e para os outros esqueceram-na.

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No documentário Berlin Babylon, pode-se ver os mergulhadores, vestígios de outra era industrial deslocados em uma economia em processo de desindustrialização, trabalhando incógnitos na reforma subaquática da metrópole erguida sobre terreno pantanoso. Para fazer Undine, Petzold afirma ter sido estimulado por uma mescla singular de marxismo e romantismo[4] — a escola literária alemã, uma reação à industrialização do país.

Longe de Berlim, das profundezas desperta o reencantamento do mundo. Debaixo d’água, onde as cadências do tempo e do movimento são distintas do habitual, os amantes encontram um espaço para harmonizarem-se ao ritmo do outro, em comunhão à natureza, conquanto sem renunciarem à mediação tecnológica dos trajes. Como se fosse uma imersão utópica à procura de qualquer coisa de atemporal, imperturbável e primordial. Mas quem extasia-se tão a fundo não retorna à superfície sem abstinência. Dá-se início à eterna obsessão para retornar àquele estado ou replicá-lo.

Além do que, tudo é tão breve. Os novos locatários (“Sorry, my German…”) do antigo apartamento de Undine informam a Christoph que a residência é destinada a aluguéis de curta duração. Não é por acaso que o romance principal é um namoro à distância. São as adversidades afetivas de um local onde os potenciais relacionamentos sofrem com o clima de transitoriedade cultivado pelo fluxo ininterrupto de turistas e novos moradores temporários, que encaram aquela permanência como uma digressão.

Ou como escreveu Jessica J. Lee em Turning: A Swimming Memoir, sobre a experiência terapêutica da autora nadando nos lagos em torno de Berlim:

“«Talvez eu volte». Ele não parecia convencido. «Todo mundo diz isso» […] Todos partem, ele me disse, então você tenta não se apegar […] Eu fiquei me perguntando se os dias que compartilhamos não estavam apenas marcando o tempo passar”.

[1] Fisher, Jaimey. Christian Petzold. University of Illinois Press, 2013, pp. 89-90.

[2] Daney, Serge. A rampa. Cosac Naify, 2007, pp. 99.

[3] https://letterboxd.com/dirtylaundri/film/berlin-chamissoplatz/

[4] https://www.filmcomment.com/blog/the-film-comment-podcast-christian-petzold-on-undine/

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