Nas antípodas da paixão: o ser como instância de modulação

Por Luís Flores

Um plano em close-up nos mostra a tela de um jogo pornô, com escala de cores simplificada, na qual um homem penetra uma mulher por trás. Para simular o ato sexual, o jogo se vale de uma pequena fração da ação replicada infinitamente, em loop digital. Corte para um braço mecânico, na forma de rolo gigante, que testa a qualidade de um colchão recém-fabricado. Corte para o garoto que controla, no primeiro-plano, um joystick em formato fálico, enquanto no fundo do quadro vemos o mesmo computador com o jogo pornô. Os movimentos repetitivos e velozes do jogador adquirem uma gestualidade masturbatória, embora a relação corporal e intersubjetiva do sexo tenha sido abstraída pela mediação da máquina. O que essa combinação de imagens nos diz?

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   A sequência descrita corresponde à abertura de Como viver na RFA (Leben — BRD, 1990), gravado em 1989 pelo cineasta Harun Farocki, logo às vésperas do processo de reunificação da Alemanha. No restante da narrativa, vemos a malha fina de instituições que governam, por meio de fluxos ininterruptos de modulação, cada esfera da vida cotidiana no país. Ao reunir cenas pedagógicas distintas, de cursos instrucionais, treinamentos, sessões de terapia e testes de produtos, o filme expressa a tendência à vida simulada e continuamente doutrinada que rege as relações sociais de um mundo tomado pelo neoliberalismo. A cena do colchão, que remete a outros testes industriais mostrados (a poltrona e a máquina de lavar), ecoa também nas pessoas que são submetidas a contínuos treinamentos e procedimentos de padronização. Não seria essa, afinal, uma das dimensões mais totalizantes da vida, sob o domínio do capitalismo tardio, esse que atravessou, desde a queda do Muro de Berlim, mutações mercantis e tecnológicas ainda mais complexas? Como se o mundo fosse, em sua configuração midiática abrangente, uma instância de preenchimento, com estímulos infinitos, para cada necessidade básica de um indivíduo?

    Farocki, que fez parte da militância estudantil da década de 1960, em Berlim Ocidental, estabeleceu ao longo dos anos um projeto sistemático de mapeamento cognitivo das ordenações tecnológicas do mundo, especialmente aquelas que atravessam o campo do olhar. Sua filmografia pode ser entendida como o esforço de compreender criticamente os dispositivos e processos que condicionam a própria possibilidade de ser e agir no mundo. Para isso, ele organiza, a partir da década de 1980, duas frentes principais de trabalho: a observação incansável da realidade, no intuito de apreender alguns aspectos imperceptíveis da sociedade pós-moderna; e a remontagem crítica das imagens do mundo (poderíamos dizer, ensaística).

    Como viver na RFA, embora guarde algo da forma do ensaio (por expor as imagens em encadeamentos argumentativos), pode ser situado entre os chamados filmes de observação. Trata-se de um conjunto significativo de obras, produzidas entre 1982 e 2013, que se debruçam sobre situações sem interesse cinematográfico explícito, seja pela escassez de oportunidades de drama, pela dificuldade de condensação do tempo ou pelo elevado grau de padronização. São filmes como Uma imagem (Ein bild, 1983) e Natureza morta (Stilleben, 1987), que observam processos de fabricação de fotografias publicitárias (da Playboy alemã, no primeiro caso, e de estúdios de propaganda, no segundo); O treinamento (Die Schulung, 1987), O que há? (Was ist los?, 1991), O re-treinamento (Die Umschulung, 1994) e A entrevista (Die Bewerbung, 1997), que mostram, assim como Como viver na RFA, dinâmicas de adestramento dos sujeitos no universo corporativo; A aparência (Der Auftritt, 1996), Os construtores dos mundos das compras (Die Schöpfer der Einkaufswelten, 2001),  Não sem risco (Nicht ohne Risiko, 2004), Um novo produto (Ein neues Produkt, 2012) e Arquitetos Sauerbruch Hutton (Sauerbruch Hutton Architekten, 2013), filmes que mostram, de maneira geral, reuniões de negociação e de tomada de decisão, no circuito econômico da produção global.

    O que fica explícito, no conjunto, é o desejo do diretor de investigar a existência, nos dispositivos contemporâneos, de novas modalidades de controle dos sujeitos e de padronização do mundo, que se pautam principalmente pela antecipação dos gestos e desejos (algo que ocorre, é claro, em múltiplas e intrincadas camadas). Tal dimensão operativa ou performativa — no sentido basilar do termo, a maneira como a linguagem é manuseada para padronizar determinados efeitos — corresponde a uma quebra dos modelos concentracionários filmadas por um documentarista como Wiseman (e estudadas por Farocki na fábrica e na prisão). Em Como viver na RFA, assim como nos filmes de treinamento corporativo, há uma primeira operação de suspensão tácita da negatividade por parte do cineasta, a fim de que ele possa assumir como válido o sistema observado e enfrentá-lo em uma relação imanente. Num segundo momento, contudo, que envolve a emulação formal desse mesmo sistema, as contradições do objeto começam a aparecer. A observação prolongada, associada às ilações sutis da montagem, mostram como a pedagogia corporativa, que pretende ensinar as pessoas a agirem da maneira desejada em cada situação, acaba por se tornar um trabalho de assimilação que violenta o próprio eu do sujeito.

    O sujeito é atacado, justamente, nas suas posições de singularidade, pois é toda a sua subjetividade que deve ser adestrada para melhor se adequar a um sistema de produção global. Nada mostra melhor isso do que a própria sequência de créditos de O treinamento: junto à trilha musical estranha, vemos uma imagem computacional de formas humanóides alaranjadas, sem diferenciações entre si, que caminham em meio à paisagem desertificada. É uma metáfora perfeita para a dinâmica de padronização do universo corporativo agenciada pelo instrutor — mas não uma metáfora qualquer, pois ela mobiliza justamente uma imagem sintética, pautada pela lógica da simulação realista. O que vemos surgir em filmes como esse, incluindo Como viver na RFA, é um cerceamento constante das manifestações de vida do sujeito, sobretudo ali onde elas escapam aos diagramas instituídos pela razão instrumental. A ordenação totalizante do mundo, em suas redes de processos e circuitos técnicos (que não deixam de ser os da arte), encarrega-se de podar cada indivíduo daquilo que, nele, constitui um transbordamento — podar, ou, então, capturar e canalizar para outro lugar.

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    Esse outro lugar, cabe dizer brevemente, é a esfera do consumo. Não basta ao capitalismo avançado se apossar até mesmo das horas de sono dos sujeitos contemporâneos: para o sistema dominante, essa posse precisa ser rentável. Em dois dos filmes que citei antes, vemos maneiras usadas pelas corporações atuais, apoiadas por agências de propaganda e por pesquisas científicas de ponta, para medir e prever cada mínimo movimento dos circuitos de desejo. Em determinado momento de O que há?, por exemplo, um espectador (que parece ser o próprio Farocki), com a mão estendida ironicamente para a tela, tem seus níveis de estímulo medidos por meio de eletrodos, ao assistir trechos de comerciais televisivos. A voz do diretor oferece uma interpretação aberta para o gráfico das medições, que vai surgindo por cima das imagens mostradas na tela. As imagens, destinadas a exibir e vender produtos, delineiam as representações desses produtos com base em instrumentos sofisticados de exame neurológico, a fim de canalizar, no nível mais imediato, os desejos e as emoções dos consumidores em potencial.

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    Em Os criadores dos mundos das compras, por sua vez, vemos como os shoppings são arquitetados com base em aparelhos exaustivos de medição e controle: um deles rastreia os impulsos do olhar dos sujeitos; outro contabiliza o tráfego de pessoas por cada região do território; um terceiro, ainda, analisa automaticamente perfis de consumo, a fim de otimizar a distribuição dos produtos no supermercado. Para aumentar a compreensão crítica do sistema, Farocki chega até mesmo a entrevistar o analista de sistemas responsável pelo software que examina os perfis de consumo do supermercado. Todo o resto, desde os pacotes temáticos da praça de alimentação até a concepção estética do edifício, torna-se secundário diante dessa codificação incessante do mundo, sob a forma de dados programáveis. Por meio das articulações da montagem, que ligam, dentre outras coisas, os registros das conversas dos arquitetos e executivos, aos softwares de medição, Farocki introduz fissuras de reflexão crítica ao planejamento do mundo para fins de consumo. Vai sem dizer, todavia, que esses problemas basilares da arquitetura e da esfera de produção global são indissociáveis, na atualidade, dos próprios circuitos e espaços de circulação da arte. (A arte que é, sem dúvida, um dos poucos campos que ainda pode restituir ao ser no mundo alguma dose de intensidade passional).
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Se nos deslocarmos novamente ao universo do trabalho, cabe apontar que Farocki se preocupou frequentemente, em especial até o final dos anos 1970, em filmar o gesto do trabalhador na fábrica e em representar os espaços da produção industrial. Nas décadas de 1980 e 1990, ele ainda aborda essa temática, mostrando o processo de ocultamento do trabalho e de expurgação da figura do operário, decorrente grosso modo dos avanços tecnológicos das máquinas. A partir desse ponto, também, os problemas marxistas de alienação e exploração, bem como o modelo disciplinar da fábrica e da prisão, são recobertos labirinticamente pelos princípios da “economia criativa” que diluem, com suas novas práticas de modulação subjetiva e ordenação do tempo, as fronteiras entre a vida e o trabalho. (Onde foi parar, afinal, o louvável direito à preguiça que era defendido com tanto brilho por Lafargue, cem anos antes?).

    Ao mesmo tempo, Farocki explicita em seus filmes o modo como a própria subjetividade é capturada sistematicamente, por meio de estratégias de controle e medição, no circuito totalizante da produção e do consumo global. Nesse contexto, o campo de manifestações passionais do sujeito se torna cada vez mais limitado; a paixão resta empobrecida, enfraquecida, adestrada, perde justamente o caráter de excesso que a caracterizaria. Resta, é claro, o desassujeitamento do sujeito, conclamado por Foucault, a inservidão voluntária, ou então o retorno ao singular da experiência e ao cosmológico, ao mundo propriamente dito. Mas e a paixão? Terá ela forças de interromper o movimento de uma racionalização que deseja, sob as diversas modalidades da técnica, tomar posse do mundo, em sua totalidade? Guardando, sobre isso, mais dúvidas do que respostas (e tentando fazer rima com os escritórios filmados por Farocki, espaços sufocados, pouco propícios à paixão), opto por terminar este ensaio com uma coleção de imagens incontidas, com gestos de revolta, desobediência e insatisfação: https://www.youtube.com/watch?v=aD4thXRn80M

 

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Nomad à deriva e o corpo como utopia

Por Beatriz Pôssa

The secret life of Arabia
Never here, never seen
Secret life, evergreen
(The secret life of Arabia, 1977; David Bowie)

Nomad (1982, Patrick Tam) se inicia quase como um pastelão, nos apresentando os irmãos Louis e Kathy e seus respectivos interesses amorosos, Tomato, Pong e Shinsuke, através de situações cômicas, como uma confusão numa piscina pública e num restaurante. Todos os personagens são levados um ao outro por jogos do acaso, uma faceta de leveza que perdura por quase todo o filme até que há um corte brutal em seus últimos minutos. Se podemos classificar um filme como adolescente, sua primeira hora me parece um bom exemplo devido à atmosfera de imediatismo e desejo por liberdade, em que suas paixões são o ponto central de suas vidas. Há uma pulsão muito juvenil que rege os quatro personagens em suas escolhas afetivas, pulsão esta que combina suas aspirações burguesas de amplas mansões a um senso compartilhado de entitlement, como se o mundo estivesse ao dispor de suas vontades. Esse sentimento se estende até no ato de inventar um novo país, essa criação de uma utopia insular na segunda parte do filme, quando os personagens finalmente são confrontados pelo peso das tradições e a herança de conflitos milenares; tornando-se na meia hora final um derradeiro filme de samurai.

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O filme abre com Louis, personagem de Leslie Cheung, aqui com um dos seus papéis mais ingênuos, e seu olhar distraído se derrama sobre as paredes do quarto enquanto ouve a voz da mãe falecida em fitas velhas. Sobre o televisor de Louis, no qual está passando o que parece ser uma reportagem sobre uma festividade nas ruas de uma cidade anônima, reside uma miniatura de Nomad, o navio que protagoniza seus sonhos febris de partir para Arábia, a promessa de paraíso sussurrada pelos cômodos da grandiosa casa com vista para o oceano que divide com sua irmã Kathy e a madrasta, por quem nutre um desejo secreto e a observa enquanto toma sol na varanda.

Kathy invade seu quarto praticando o kabuki, uma modalidade de teatro japonês que demonstra ter aprendido com o namorado, e lembranças de momentos íntimos com o amante atravessam rapidamente a tela, seus gestos ritualísticos ricos de uma dramaticidade única. Louis assiste a irmã recostado na parede e dois dos mais importantes álbuns de David Bowie emanam de sua cabeça como um halo: Low (1977) e “Heroes” (1977), os dois primeiros discos da trilogia de Berlim, conhecida como a fase mais experimental de Bowie – em um só plano as influências culturais são postas em confronto. A relação de Bowie com a Berlim Ocidental foi intensa para dizer o mínimo, e os álbuns produzidos durante esse período dialogavam com o complicado momento político na Alemanha durante a Guerra Fria. Consequentemente, sua trilogia, que finaliza com Lodger (1979), conversa com a juventude alemã que efervescia com uma arte absolutamente disruptiva de meados dos anos 70 ao mesmo tempo que estava fisicamente dividida, uma oposição ao desejo simbólico e simplesmente físico de constituir um só grande ser, um anseio sessentista sob os ares da Era de Aquário.

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Bowie talvez seja o maior exemplo de uma geração resultante da revolução sexual, sua obra e sua pessoa agindo como um catalisador das mudanças que ainda seriam experienciadas pelo mundo, concebendo uma música embebida em experimentações andróginas com um grande apetite pela liberdade. Os álbuns produzidos no período em que residiu em Berlim evocam muito desse sentimento compartilhado: era uma tentativa de encontrar na música alguma resposta, ou no mínimo um refúgio, para os conflitos políticos e sociais vividos naquelas décadas. Aliado a isso, havia por trás da criação de diferentes personagens que caracterizariam sua carreira um desejo de se modular multiplicidades, buscando a transfiguração do corpo em uma experiência artística e utópica. Sua obra traz um um reflexo da necessidade dos jovens da época pela formação de um organismo, alguma configuração de agrupamento que oferecesse conforto para que fosse possível explorar a fluidez de suas paixões.

A presença de Bowie na paleta de referências de Louis é interessante porque demonstra o desejo de Tam em retratar uma comunidade que busca o prazer sensorial e espacial, ou seja, dimensões que dizem respeito acima de tudo ao corpo. Uma das sequências mais potentes de Nomad é justamente a que evidencia uma impossibilidade do encontro romântico entre Pong e Kathy, que se inicia com as repetidas interrupções na casa de Pong. O plano de ficar a sós é arquitetado perfeitamente: Pong manda a irmã e a mãe para o cinema, mas não esperava ser atrapalhado pelo irmão mais novo e os idosos de sua família, que invadem a placidez da sala compartilhada. O casal trava daí uma coreografia extensa de troca de lugares, explorando o espaço da casa até esta se tornar pequena demais para seus desejos, o querer de ficarem juntos visível em seus gestos imprevisíveis e quase virginais no dividir da cama de solteiro. Quando mesmo na privacidade do quarto são incomodados, reiniciam o movimento e o jogo ao saírem de casa e entrarem no ônibus, a troca de olhares e beijos deliberada, levando ao momento do êxtase em que parecem não controlar mais os próprios corpos e se agarram até parecerem se fundir, e Tam dá ênfase a um plano da mão de Pong escorregando pelo corrimão enquanto carrega Kathy no colo.

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Essa coreografia apaixonada é cortada por Kathy recebendo a notícia de que Shinsuke, seu namorado, está de volta da guerra, retirando a mulher da bolha idílica em que parece viver durante a primeira parte do filme. Tam constrói a sequência como um momento final de filme de terror, os olhos de Kathy aterrorizados pela realidade que agora teria que enfrentar, tendo o homem que ama se tornado um desertor do exército japonês. Até aquele momento nenhum conflito real havia invadido o universo daqueles personagens, todos os desentendimentos resolvidos de maneira rápida e com graciosidade; e mesmo que nada de imediato aconteça com o grupo, nós como espectadores já reconhecemos os maus agouros e o filme assume ares premonitórios. Cada cena de beleza é permeada pela certeza de um acerto de contas, principalmente quando acessamos a verdade de Chiyoko, secretária de um designer de quem Louis é fã e amante da tia de Kathy; que tem a missão de certificar que Shinsuke irá cometer o seppuku.

Logo no título do filme e do navio-personagem, existe a evocação a povos andarilhos, sem residência fixa, que ultrapassam as fronteiras nacionais sempre em busca de horizontes mais promissores. É um desejo de se jogar ao desconhecido no reconhecimento de que fronteiras não passam de meros acordos tácitos entre as nações, linhas imaginárias responsáveis por acolher uns e expulsar outros. Há em Nomad um comentário categórico tanto sobre a influência ocidental quanto a japonesa que pareciam contaminar a vida da juventude honkongiana do início da década de 80 – como o que hoje analisamos como uma faceta do processo assimilatório da globalização – evidenciando até mesmo o olhar muito mais crítico sobre a “invasão cultural” japonesa do que à presença ocidental, principalmente na relação travada entre Pong e Shinsuke. A herança do conflito sino-japonês é articulada no filme como uma disputa de língua e masculinidade, e as influências japonesas no geral são vistas com maus olhos devido ao passado colonialista do arquipélago.

A partir do retorno de Shinsuke, os personagens decidem recomeçar e inventar um espaço em que seria possível viverem suas paixões e dedicarem suas vidas aos interesses do corpo apenas, o anseio de partirem para Arábia como uma meta mais próxima do que antes, pois agora existe algo material, um inimigo claro, que os empurra para fora do berço. O refúgio em um casebre litorâneo se torna uma utopia multicultural, e com ingenuidade acreditam realmente que assim vão escapar do destino que bate à porta. O navio, Nomad, corta o horizonte, um ponto fixo na paisagem, e Kathy vive uma vida dupla ao se encontrar com os amigos na ilha e o taciturno Shinsuke no navio. É lá que confessa a Shinsuke que gosta de Pong porque com ele não precisa pensar, “é físico, só físico”.

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Uma sessão dupla interessante seria assistir Nomad ao lado de O Império do Desejo (1981, Carlos Reichenbach). Ambos os filmes possuem o movimento de explorar as paixões e a sexualidade em uma realidade ilusória na praia, apenas para serem atravessados pela violência e uma brutalidade que não abre brechas para fuga pois encontra os personagens completamente desprevenidos e entregues ao prazer momentâneo. Em um interlúdio dos jovens na praia, vivendo das “coisas simples” como o imaginário burguês idealiza ao compartilharem almoços e camas naquela comunidade recém-criada, aprendemos que Tomato e Louis estão esperando um filho, um gosto do amadurecimento porvir. Shinsuke está entocado no navio distante da areia, excluído e deprimido, seu destino torpe amaldiçoando a alegria daquela nova experiência, mas os sonhos com sua execução contaminam apenas seus próprios pensamentos – os casais na praia não interrompem a oportunidade de viverem uma felicidade efêmera pela certeza da fatalidade iminente. Enquanto descansam sob o sol e compartilham uma garrafa d’água, Tomato reclama do tédio e diz “não fazemos nada para a sociedade”, ao que Louis responde “que sociedade? Nós somos a sociedade.

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Em poucos minutos, Chiyoko, que até então havia se revelado de maneira apenas submissa e dedicada para o grupo, reaparece para terminar seu trabalho. O banho de sangue que se dá em diante só salva o casal que está à espera de uma criança, a fertilidade como uma chance de redenção diante do indizível. Tam interpreta a paixão como um meio e um fim: não existe outra via de acesso ao paraíso além da entrega, a via crucis do corpo. Nomad abraça a potencialidade enganosa da utopia como artifício de uma juventude burguesa, explorando através dos seus corpos um atravessamento cultural que na mesma medida é veneno e cura. A realidade impetuosa que encerra a utopia também abandona os cadáveres na areia, e as águas manchadas de trauma lavam os corpos que ainda permanecem em pé. Nessa articulação complexa, o casal abraçado na praia está de encontro com a vida adulta, esse abismo; e Nomad, o navio à deriva, parte em direção à terra prometida.

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A paixão pelo poder de alguns encontros resplandecerem frente ao caos: Something Useful (Pelin Esmer, 2017)

Por Lucas Saturnino

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e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela

(Herberto Hélder)

O poeta Herberto Hélder leu algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão? O dom da consciência nos sujeita a tentar encontrar algum sentido para a vida e o fato da morte instiga balanços. Quem foi? O que fez? O que deixa ou leva? A sua iminência incontornável suscita medo, reflexão ou mesmo fascínio. Se o que a sucede é o maior dos mistérios, talvez só haja uma certeza quanto ao prolongamento da vida após a morte: além do tácito testemunho do mundo, a permanência dos que partem na memória dos que ficam.

O encontro de três pessoas que porventura jamais se encontrariam é o mote de Something Useful (İşe Yarar Bir Şey, 2017), da cineasta turca Pelin Esmer. Na estação de trem, duas mulheres cruzam-se por acaso, intromissão, simpatia, curiosidade genuína pelo outro e receptividade ao amparo oferecido. Com cerca de 40 anos, a advogada e poeta Leyla é duas décadas mais velha do que a enfermeira Canan. Elas se conhecem em diferentes estágios da vida, conquanto igualmente suspensas entre o dia em que nasceram e aquele em que irão morrer. Something Useful registra estados pendulares, acompanha almas em movimento, jornadas introspectivas que se entrelaçarão. O destino de uma é o presente do passado (a reunião comemorativa dos 25 anos de formatura da turma do secundário de Leyla), enquanto a outra tem um encontro marcado com a morte (a pedido de um médico que trabalha consigo, Canan se comprometeu a ajudar um homem que deseja morrer).

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O homem é Yavuz, que 6 anos antes sofreu um acidente e ficou paralisado, sem os movimentos do pescoço para baixo. Ele havia pedido a um amigo íntimo, o médico com quem trabalha Canan, que o deixasse morrer, mas seu amigo, por amá-lo tanto, foi incapaz de realizar a eutanásia com as próprias mãos. Após muita insistência, e sentindo a firmeza da resolução de Yavuz, ele consentiu em arrumar outra pessoa que pudesse consumar o pedido fúnebre — uma jovem enfermeira precisando de dinheiro. No trem que atravessa o país e a noite, Canan conta a história a Leyla, que se propõe a acompanhá-la.

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A narrativa é sucinta e precisa — e as encruzilhadas existenciais se colocam sem alarde. São três personagens cujo encontro os deixa profundamente afetados uns pelos outros e Esmer estrutura a obra em torno das reações dos atores principais (Basak Köklükaya, Öykü Karayel e Yigit Özsener, magistrais). A câmera muito próxima e atenta às suas expressões faciais, sensíveis e eloquentes. Aos sorrisos gentis de Köklükaya, à perceptível aflição de Karayel e aos olhos penetrantes de Özsener. Um filme fora de moda? Talvez, o que pode explicar o pouco espaço que lhe foi concedido no circuito de festivais.

A câmera procura gestos mundanos. Como Leyla esperando na fila do banheiro ou pedindo passagem para sair do seu lugar no trem e a senhora ao lado se espremendo no assento sem se levantar. Ou a dificuldade das personagens em chamar um táxi. Quando as duas chegam na porta do prédio de Yavuz, são necessários 4 minutos de filme (entre hesitações e campainhas) até que a primeira suba e entre no apartamento. O trabalho do diretor de fotografia Gökhan Tiryaki (conhecido por sua colaboração com Nuri Bilge Ceylan) é digno de destaque, em especial no tocante à viagem de trem, à captura dos humores refletidos gestualmente e ao jogo visual e simbólico com espelhos e reflexos.

É belo o momento em que Yavuz vê Leyla pela primeira vez: “Eu me irei com a benção de uma poeta!”. Leyla, sentindo-se subitamente insegura ao encontrar-se diante do objeto de sua irrefreável curiosidade, observando do alto da janela a indeterminação de Canan em subir, torcendo para não ser abandonada. E, logo em seguida, sendo acalmada pela encantadora música da vizinha, professora de violoncelo — a arte que, ao menos aqui, alivia as agonias e põe as angústias em perspectiva, perpetuando-se no tempo.

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Nesse filme sobre a morte, crenças religiosas não fazem parte da equação. Ninguém se importa com isso. Something Useful nos chega da Turquia secular — a segunda metade se passa em Izmir, uma das mais antigas cidades portuárias do Mediterrâneo. A presença da religião só se manifesta da maneira mais explícita quando o funcionário do trem fecha repentinamente as cortinas da janela de Leyla, interrompendo o fluxo de consciência dela, sob o pretexto de evitar que pedras sejam arremessadas no vidro — “Porque eu sou uma mulher bebendo cerveja?”, confronta-lhe a personagem.

E não é o seu único desgosto em relação ao estado das coisas: Leyla adora contar e ouvir histórias, mas é irredutível quanto a não dar moral para o político que entra no café pedindo votos; ela se levanta e deixa o estabelecimento antes que ele sequer tenha a oportunidade de abordá-la — o que explica a admiração da personagem pelos grafiteiros que, de modo rebelde, inscrevem a sua expressão subjetiva na paisagem do país.

Se há, portanto, uma dimensão, digamos, transcendental em Something Useful, ela está nas conversas que comovem, nos encontros que transformam, na afabilidade com que os personagens se abrem intimamente aos outros. O esquema cinematográfico operado por Esmer consiste em defrontar o registro dos gestos mais cotidianos com a perspectiva extasiante das conversas que trazem a possibilidade do sublime para um dia qualquer.

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Something Useful também é uma inventiva variação de Janela Indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954) — à exemplo do grande plano-sequência de 10 minutos do jantar comemorativo. Leyla e Yavuz observam o mundo através das janelas à sua frente, fronteiras mediadoras entre interiores e exteriores. A diferença entre um e outro é uma questão de mobilidade, que literalmente impõe um limite no horizonte de possibilidades de Yavuz, incapaz de ir atrás das histórias como faz Leyla. Ele não é mais capaz de exercitar a própria curiosidade. E ela, numa pequena gafe de sinceridade desmedida, afirma que perder a curiosidade equivaleria a estar morta.

Assim como James Stewart no clássico de Hitchcock, Yavuz se encontra imobilizado, mas pior: em caráter permanente. A sua janela, de frente para a socialmente estimulante movimentação da bela beira de mar de Izmir, foi o que lhe restou para seus olhos verem em primeira mão — “assistindo vidas saudáveis”. Leyla, ao contrário, está em constante deslocamento, observando as pessoas ao redor, divagando, especulando, fascinando-se — desde o início na estação, quando o desenho de som se abre dos pensamentos interiores que permeiam a mente dela para os murmúrios ambientes do mundo.

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A poeta, contudo, não sai por aí pescando histórias sem gerar tensão. Canan questiona as motivações de Leyla: “Uma jovem enfermeira precisando de dinheiro e um homem aleijado querendo morrer devem render um bom poema, não?”. Surge a questão entre eles: o artista instrumentaliza a curiosidade, as experiências, a compaixão? Voltemos ao primeiro plano do filme: no princípio, a encenação é frontal e mistura-se com a matéria bruta, sendo necessário um enquadramento para formalizar o ponto de vista desejado.

Leyla vai procurando as palavras, experimentando-as, podando o poema. “Você se inspira na vida real?”, pergunta Canan, enquanto as duas brincam de decifrar sombras no teto do quarto de hotel. Something Useful fala de morte para tratar da vida e reflete sobre ambas para debater arte. O cinema de Esmer é um cinema de personagens: Leyla, a poeta consagrada; e Yavuz, o leitor que não conseguiu estabelecer-se como autor. Ela trabalha como advogada, para pagar as contas e também porque queria fazer “algo de útil”. “A poesia não é útil o suficiente?”, rebate ele que, contemplando o próprio fim, se encarrega de deixar as contradições do ser com os vivos que continuarão a alimentá-las.

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Já Canan acredita não entender de poesia. Quem lida com a morte todos os dias não precisa ler sobre coisas fúnebres. Ela sonha em ser atriz, o que, nota-se, certamente não é tão útil quanto o trabalho de enfermeira. O filme tem como base a disposição dramática de dilemas acerca da célebre inutilidade da arte (chamemo-la só aparente ou não) e de qual proveito se tira de existir por existir. “O que eu faria no lugar deles?”, sentimos Leyla formular em pensamento, sem exprimir em voz alta, tal qual uma espectadora exemplar.

No belo poema da conclusão, Leyla escreve sobre “uma ansiedade que remonta à infância”, motivada por palavras que lhe tiram o sono desde a mais tenra idade, como que se referindo à dificuldade de se expressar, encontrar os termos adequados. Yavuz julga que Leyla costuma manejar as palavras para se esconder atrás delas. Mas não naquele momento, pois é justamente a franqueza que faz o encontro dos três ser mágico. E então viver se torna uma questão de prolongar as conversas que valem a pena.

“Hoje não bastou e amanhã você quer fazer algo útil de novo?”. Algo útil, afinal, talvez seja a paixão pelas coisas gerais, como escreve Hélder, ou a paixão pelo poder de alguns encontros resplandecerem frente ao caos, como mostra Esmer. Ao fim, antes que o lirismo inútil da música de Bach dê espaço aos sons ambientes da cidade em dia útil e as personagens voltem se mesclar com a multidão, Leyla lança aquele último olhar que se dedica a registrar uma memória derradeira do que virá a fenecer em instantes.

Como não temos acesso ao contracampo, esse olhar também se dirige a nós, incluindo-nos na conversa, confrontando-nos com as mesmas inquietações dos personagens. A morte, conceito tão intangível quanto concreto, é a epítome do que todos sabemos se tratar, sem que ninguém realmente compreenda o que representa. De qualquer forma, na expressão saudosa de Leyla transparece a sua resposta possível para aquela que é a questão decisiva em tributo à memória dos que partiram: sim, tinha paixão.

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Constelações: O cinema de Helga Fanderl

Por Gabriel Linhares Falcão

Pata por pata, um leopardo realiza seu desfile chegando bem perto da objetiva, e a objetiva chegando bem perto dele. Vai da direita para esquerda do quadro e retorna para o ponto de partida, realizando novamente o movimento repetidas vezes. Seu andar é sensual, sereno, quase flutuante, e seu corpo camufla-se no breu do espaço parcialmente iluminado. A luz forte revela também a terra com pedras que ele pisa, as plantas que o cercam, e nas sombras, barras de ferro de uma jaula que nunca entra em quadro. A câmera de Fanderl é segura, firme, também serena e sensual, e não demonstra nenhum sinal de amedrontamento com o predador diante da câmera.

O leopardo se revela cada vez mais concentrado. Anda em círculos e sempre olha para frente, sugerindo uma atormentação, possivelmente pela situação do encarceramento. O animal não mira sequer um instante para Fanderl e sua câmera. Apesar da inquietação, as eventualidades além da jaula parecem não o afetar. Tanto quanto o ambiente extra imagem não desestabiliza Fanderl, nem implica na unidade do filme; não há um mundo para além do pictórico na película, nem se quer a jaula importa. A concentração é total; existe apenas a diretora e o leopardo.

Leopard (Helga Fanderl, 2012)
Leopard (Helga Fanderl, 2012)

As cores escapam. Um amarelado que parece extrapolar a forma do animal, como pintado à mão, e o verde forte das poucas plantas reflete no pelo branco da parte inferior do leopardo. A cor de seus olhos parece uma mistura em aquarela de todos os tons que passam pelo quadro; em constante mutação a cada volta.

O animal com toda sua elegância parece aos poucos cansar. Suas piscadas vão pesando. O olhar concentrado está cada vez mais perdido, sem direção, apesar da retidão. A câmera de Fanderl gradativamente altera seu comportamento: há mais cortes e as imagens se fecham em diferentes partes do bicho. A alteração é sensitiva. Pouco a pouco a maneira de filmar se ajusta às intuições perceptivas do instante; uma comunhão cada vez mais íntima entre sujeito e objeto, regida pelo olhar de Fanderl. A única ordem imutável presente em todos os seus filmes é a montagem na câmera Super 8, que permite, nas palavras da diretora: “concentrar e mergulhar no fluxo do tempo, filmando, por assim dizer, tempos e eventos que acontecem no tempo, buscando o “gesto” que pudesse integrar a complexidade de tudo o que acontece no “aqui e agora” quando filmei e pela expressão da reciprocidade entre o que está acontecendo em mim e fora de mim.[1]

A maioria de seus filmes consiste em apenas um rolo de Super 8, com cerca de 3 minutos cada, e são exibidos publicamente em grupos organizados pela própria diretora, compondo uma obra maior. Seus filmes são registros diretos do presente e dos infinitos tempos contíguos nele. Um olhar atento que captura manifestações do instante explicitando as peculiaridades, como desenhos muito bem definidos, e por um acúmulo de gestos e tempos, elabora filmes densos em que todo contraste é evidente pela clareza das especificidades. O leopardo faz sempre o mesmo movimento no mesmo espaço, mas nos é revelado uma infinidade de detalhes que divergem, seja pela alteração do objetivo ou do subjetivo. A reciprocidade entre estes aumenta no decorrer do rolo, e as mais leves imprevisibilidades vão sendo impressas por Fanderl na película. Todo registro objetivo é também um registro da experiência sensível da diretora no mundo – este que parece desaparecer durante seus filmes.

Estamos sempre vendo pela primeira vez; tanto na unidade, neste processo de investigação minucioso do presente pela montagem na câmera, quanto nos filmes compostos, em que a organização das obras curtas sublinha ainda mais as especificidades de cada uma destas, criando um drama formal intenso por meio das discrepâncias. Em Konstellationen (2013)[2], por exemplo, são necessários seis filmes curtos em preto e branco para finalmente conhecermos as cores em Leopard (2012), sendo que estas, como já descritas, parecem escapar do domínio das formas esparramando-se pelas rápidas imagens; como uma evidência do processo físico natural em que a luz rebate nos objetos que toca antes de encontrar a lente da câmera. A cor também está nascendo diante de nossos olhos ainda inocentes.

Vemos o vegetal pela primeira vez em uma árvore seca e sombria, para em um fragmento posterior sermos apresentados às folhas coloridas já no chão.[3]

Vemos grandes estruturas metálicas, pela primeira vez artefatos feitos pelo humano, por meio do reflexo da água, para no mesmo fragmento a chuva dar fim a solidez imaginada.[4]

É comum a ocorrência de variações internas nos filmes de Fanderl, pequenas mudanças de configuração/comportamento decorrentes da intuição, do acaso e da experimentação de diferentes velocidades da Super 8. Em Bläter fliegen (2001), a diretora captura pássaros que se alimentam em uma árvore. O foco de captura são os animais, a câmera se movimenta preferencialmente pelo eixo e abusa do zoom para alcançar os ligeiros pássaros. Quando as aves vão embora e o foco se torna a árvore, a diretora começa a se movimentar ao redor para capturar diferentes ângulos. O tronco, que antes parecia firme ao chão assim como Fanderl, agora desliza levemente pela imagem como se flutuasse. Não só diferentes “tempos e eventos que acontecem no tempo”, mas também diferentes materialidades são descobertas nessa progressiva soma; o cinema de Fanderl não é regido pelas leis materialistas, pelo contrário, encontra suas próprias ordens cosmológicas pela principal evidência imaterial que nos é permitida: a experiência sensível.

Mesmo que sempre evite comparações[5], Helga Fanderl aproxima sua maneira de filmar (montagem na câmera, estruturação formal e rítmica no ato de filmagem, reciprocidade entre sujeito e objeto e risco elevado de erro por conta dos procedimentos adotados) à caligrafia zen:

Esse estado de espírito é muito intenso e excitante. É como se todas as condições mentais, emocionais e técnicas tivessem que ser percorridas e coincidirem na ideia de fazer um bom filme. Às vezes, esse tipo de filmagem é um gesto que me lembra a caligrafia zen. Não há possibilidade de corrigir e alterar. A obra revela o estado de espírito no momento de sua criação.” Helga Fanderl[6]

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Strom (2010)

 Impossível não cair no clichê de que é possível ouvir sons nos densos filmes silenciosos de Fanderl. Os demarcados contrastes que se ampliam de fragmento em fragmento, nos apresentam diferentes intensidades sensíveis e imaginativas, acumulando memórias de primeiros contatos neste mundo que começou no início da projeção. Em Konstellationen (2013), como não perceber o estrondo das cataratas do fragmento Strom (2010)? O contato é ainda mais chocante pois havíamos sido apresentados primeiramente ao silencioso nado da tartaruga em águas invisíveis aos nossos olhos em Aquarium (2009). O único indicativo pictórico de um registro aquático, além dos animais presentes, são algumas bolhas e características ondulações luminosas. Luz esta que se torna um privilégio do aquário comparado aos pássaros que se alimentam em uma árvore seca completamente negra contra o céu nublado no chapado Blätter fliegen (2001), de um preto e branco quase binário. Os fogos de artifício de uma Torre Eiffel vulcânica, em Feuerturm (2009), deixam rastros nos grãos da película que nenhuma luz natural vista até então ousaria rabiscar. Gradualmente conhecemos a luz a partir de polivalentes luzes; uma infinidade de haikus luminosos se formam nestes micromundos abertos. No fragmento final, encontramos em cataratas que habitam os céus, um milagre: em meio ao vapor que sobe da queda d’água, surge um arco-íris. Toda ação filmada retorna à luz.

[1] Em HAMLYN, Nick. Layers and Lattices: Films of Helga Fanderl, in Sequence, issue number 1,No.w.here Publications ISSN 2048-2167, 2010.

[2] Konstellationen é um projeto contínuo realizado pela diretora de 1992 até 2016, em que novos curtas eram adicionados. Este texto se baseia na versão de 2013 exibida no Festival Internacional de Cinema de Toronto 2013, que segue a seguinte ordem de curtas: Blätter fliegen (2001), Gasometer I (2010), New Hope I (1992), Aquarium (2009), Geburtstagsfeier (2004), Feuerturm (2009), Leopard (2012), Laub (2010), Rost (2010), Container (2011), Gläser (2011), Gelbe Blätter (2011), Strom (2010).

[3] Respectivamente, Bläter fliegen (2001) e Laub (2010)

[4] Gasometer I (2010)

[5] Fanderl, ex-aluna de Peter Kubelka e Robert Breer, revelou nos Extras do DVD Fragil(e), que “influências existem, mas não no sentido direto, mais indiretamente”. Continuando, cita Dziga Vertov (em especial Um Homem com uma Câmera), Jean Vigo (em especial À propos de Nice e L’Atalante), Gregory J. Markopoulos (em especial Ming Green, também montado inteiramente na câmera), Robert Beavers (em especial Work Done) e também Jonas Mekas.

[6] Entrevista com Helga Fanderl por Andrea Piccard, em Cinemascope nº 55

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A doutrina dos afetos

Por Chico Torres 

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O artista está sempre em conflito com a sociedade e, portanto, em conflito consigo mesmo. Um conflito que, no âmbito pessoal, não se resume a “sonho versus realidade”, mas diz respeito a algo mais substancial em relação à constituição do próprio sujeito. Em certo sentido, o artista é um excluído não apenas por exercer o seu ofício, mas por ser aquilo que é, por se apresentar como um diferente: ele é a diferença em meio à repetição, e justamente por isso fascina e incomoda.

Em A ponte das artes (2004), filme de Eugène Green, vemos esse tipo de conflito que se liga mais especificamente à natureza do artista e o modo como o seu ser está unido irreversivelmente à sua paixão. O filme apresenta a evolução de duas almas que, por conseguirem viver apenas sob o influxo de seus afetos, servem como uma alegoria do Barroco, mais especificamente sobre a relação entre vida e morte, porque ao mesmo tempo que emancipa – revelando novas possibilidades para a existência – também se realiza em uma dimensão devastadora e trágica.

Temos a história de dois casais como a espinha dorsal do filme: Pascal e Christine, Manuel e Sarah. Christine e Manuel, os coadjuvantes, servem como ilustrações não apenas do lado mais pragmático da vida, mas também do fascínio e negação que essa dimensão barroca e artística exerce em um mundo marcado pela praticidade. Christine, uma estudante de filosofia, é extremamente racional e objetiva. Já de imediato, a sua personalidade centrada tenta se impor à melancólica e displicente postura de Pascal, jovem insatisfeito com suas obrigações acadêmicas, e que se vê arrebatado pela poesia de Michelangelo. Christine exige que Pascal amadureça, que busque concluir seus objetivos, mas Pascal não consegue se encontrar naquele universo acadêmico no qual a arte está encarcerada em representações falsas e pedantes.

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Já Manuel, um simples programador, sem ligação alguma com o universo intelectual e artístico, é fascinado por Sarah, uma cantora lírica que está debruçada sobre a obra de Monteverdi, mas que se vê em um crescente estado depressivo por causa da postura tirânica do maestro com o qual trabalha. Manuel tenta resgatá-la, explicitando o seu amor e o seu desejo de constituir família, mas Sarah está perdida por não se sentir devidamente reconhecida em seu ofício. Por outro lado, independentemente desse fato, há em Sarah o estigma barroco da ruína, da catástrofe. Esse aspecto é reforçado quando ela, em uma festa de final de ano onde jovens dançam rock’n’roll em um salão, percebe cair a sua máscara social, que é como se tivesse caído todo o escopo de sua existência, fazendo com que ela se perceba um ser completamente vazio.

Sarah e Pascal, afinal, possuem almas barrocas. Mesmo que queiram viver as coisas desse tempo, algo os leva a uma suspensão e esvaziamento da vida por precisarem ceder às pressões sociais, por não poderem ser exatamente o que são. Nesse sentido, as instituições e os lugares de poder são colocados de modo extremamente caricatural e perverso, para reforçar, através da presença desabusada do grotesco, a ideia de que para ser artista não é suficiente dominar a técnica, mas também possuir dignidade para viver aquilo que a arte procura despertar na alma. O maestro, chamado por Sarah de “o inominável”, e outros poderosos do universo da música, são seres que conseguem falar e tocar o Barroco com grande virtuosismo, mas são incapazes de senti-lo de modo genuíno e, portanto, incapazes de expressá-lo verdadeiramente. Já Sarah, em seu silêncio e dedicação, sente tanto em sua alma essa dignidade artística que na mesma intensidade que transborda toda verdade barroca através de sua voz, sofre por ser incapaz de suportar as injustiças cometidas pelo maestro nos momentos de ensaio, que percebe o poder artístico da cantora e imediatamente trata de apagá-lo. O suicídio de Sarah, aos olhos de Manuel (que representa o olhar normativo), é uma atitude drástica e inesperada, mas ganha um maior significado se for pensado como alegoria do aspecto trágico do Barroco que pouco a pouco se revela no espírito da cantora.

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Pascal é também tocado pelo suicídio e por motivos semelhantes, mas a voz de Sarah, ouvida através de um disco com a música de Monteverdi, o faz declinar. Todo o verdadeiro transbordamento de Sarah revela a Pascal uma nova chance para a sua vida, ainda que seja sob uma perspectiva de busca, uma recherche. E mais uma vez se desenrola essa dimensão barroca, agora como promessa de redenção, como procura constante por um sentido superior da existência, ainda que tal sentido seja um ideal inalcançável. Esse encantamento da vida surge através da música e do silêncio, que se dão como uma presença ancestral e poderosa da arte, em seu sentido mágico. Seja com o teatro japonês, ou quando Pascal vagueia por Paris e cruza com um acordeonista que toca música tradicional francesa, ou quando em seguida dialoga com uma cantora curda que, como uma aparição, canta em uma rua vazia alguma canção do seu povo, o que se tem é uma dimensão da arte vivida através de tradições profundas, contrastando com a arte institucionalizada ensinada nas universidades e nos conservatórios, representada no filme através do bizarro.

A doutrina dos afetos, técnica desenvolvida no Barroco que tinha como objetivo expressar emoções precisas através da música, tocou a alma de Pascal ao ouvir Monteverdi e o canto de Sarah, o transportando para uma dimensão existencial ligada ao mistério e à beleza. O encontro entre os dois, sobre a ponte das artes, constrói, em uma única cena, as alegorias que são trabalhadas ao longo de todo o filme: relação entre vida e morte e o papel da arte como essa ponte que transita afetos, sejam eles destrutivos ou redentores. Mostra, fundamentalmente, que o artista é maior do que o seu ofício e que a dimensão espiritual da arte ultrapassa as convenções estabelecidas socialmente.

 

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Enclausuramentos sentimentais, físicos e fílmicos e a paixão fantasma em “Manji” (1964)

Por Anita Gonçalves

“E, quando enfim comecei a temer que os nossos corações explodissem, senti-me de súbito firmemente apertada nos braços dele.

Gota a gota, gota a gota… que dizem eles? Gota a gota, gota a gota… Ah, já sei, Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko…, chamam a pessoa que me é tão querida. Tokumitsu, Tokumitsu… Mitsuko, Mitsuko… Sem ao menos me dar conta disso, eu já tinha apanhado a caneta e escrito nos dedos da mão esquerda incontáveis Mitsukos, um a um, desde o polegar até o mindinho.”

(Voragem, Junichiro Tanizaki)

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Em Manji (1964) de Yasuzo Masumura – adaptação do romance de mesmo título (1931) de Junichiro Tanizaki (em português, traduzido como “Voragem”) – temos, como premissa, uma história de amor proibido entre duas mulheres. No centro de tudo, Sonoko, a narradora que conta sua história a sensei (um suposto escritor), e Mitsuko, por quem Sonoko se mostra devota e perdidamente apaixonada, não havendo palavras que de antemão a descrevam, apenas seus olhos e sua beleza hipnótica. Juntas, elas vivem um relacionamento íntimo e intenso que se torna cada vez mais enclausurado, complexo e tempestuoso devido a um emaranhado de fatores externos e, sobretudo, internos (e fílmicos) que influenciam, amplificam, acometem a relação e os sentimentos que a constituem. A partir do contexto claustrofóbico que ambienta o filme e reitera seu caráter trágico, estamos diante de uma situação progressiva de desconfiança incessante e ausência de discernimento, marcada pela prevalência e comando dos sentimentos, do espectro da paixão revelado nas imagens, nos corpos, gestos e expressões emocionados.

Tudo se inicia na escola de pintura para mulheres onde Sonoko estuda – mulher da elite, parece que a arte lhe serve mais como um passatempo, livramento do tédio e do seu próprio casamento, com o qual se mostra muito insatisfeita. É nesse contexto que o filme apresenta uma aula durante a qual as alunas desenham a Deusa Kannon (Deusa da Misericórdia) a partir de uma modelo-viva. Nessa circunstância, o corpo da modelo – do qual não se espera ser mais do que uma base à perscrutação, ao estudo – ao ser filmado por Masumura, consagrado nos planos, anuncia a dimensão do desejo e da reverência que paira sobre todo o filme e conduz a experiência da narradora. Nesse contexto, uma infidelidade estética no desenho de Sonoko cativa a atenção do professor, que nota nele um semblante distinto daquele que possui a modelo. Sonoko justifica-se ao professor: “Eu concebi meu rosto ideal (…) Era para mostrar a espiritualidade da Deusa da Misericórdia”. Ela havia desenhado, inconscientemente, quase como uma sina, Mitsuko Tokumitsu, também aluna da escola. Assim, o que marca esse prelúdio emocionado do encontro das duas personagens e determina, dali em diante, a dinâmica conturbada e intensa do relacionamento e a própria narrativa e experiência de Sonoko, são a primazia – desde o princípio – dos desejos, imaginários, ideais e sentimentos (da subjetividade) da narradora e a ambivalência das personagens. No caso de Mitsuko, mistificada por um lado e submetida à condição de “criação” por outro. No caso de Sonoko, detentora da linguagem falada, uma vez que é a narradora da história, mas também subjugada aos próprios sentimentos, uma vez que sua experiência é fundada e inteiramente movida por eles.

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Por outro lado, existe a influência externa e a obrigação social: a partir do ocorrido na aula de desenho, boatos sobre um suposto romance secreto entre Sonoko e Mitsuko começam a se alastrar na escola, induzindo um primeiro encontro das duas e contribuindo, ao que parece, à concretização do relacionamento apaixonado. No entanto, essa influência externa não surge apenas como pretexto da união, mas, pelo contrário, também como um empecilho ao relacionamento, na forma das obrigações e convenções sociais. Diante de um Japão cada vez mais ocidentalizado, além da obrigação matrimonial de Sonoko, ela e Mitsuko estão inseridas em uma sociedade que julga como imoral o amor entre mulheres e que se torna refém tanto da noção de separação entre vida pública e vida privada como também da ótica judaico-cristã acerca do tópico sexual. Isso implica na privação do desejo, no constante medo acerca do julgamento moral e, apesar de uma primeira idealização do âmbito privado das relações por parte das personagens (cultivam no dia a dia costumes e condutas ocidentais), em um relacionamento enclausurado que só existe entre as limitações das quatro paredes, distante dos olhares e julgamentos da sociedade.

Essa questão encontra a própria câmera observadora de Masumura, que compreende e circunscreve muito bem o suposto espaço privado e a vida secreta, ao mesmo tempo que questiona essa condição pelo simples fato de filmar (ou buscar filmar) a relação, de retratar o que não deveria ser contemplado, o que deveria ser omisso e velado. Nesse sentido, as cenas de sexo do filme são apenas sugestivas; o erotismo, na forma do desejo, está sempre implícito nas imagens. Frequentemente, é uma câmera que espia os corpos através daquilo que pauta, sutilmente no plano, a noção de aposento como aquilo que limita e retém: através de cortinas, de mobílias desfocadas não identificáveis, biombos, do shoji e fusuma – que ganham aqui uma dimensão de parede/barreira muito forte (diferente da sua função de fundir espaços privados distintos e torná-los unos e públicos, reforçando a dinâmica coletiva da vizinhança, em “Bom Dia” de Yasujiro Ozu, por exemplo).

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 Mesmo possuindo um caráter de câmera espiã em algum grau, o que lhe pressupõe uma relação intrínseca com o mundo externo (alguém que espia, a própria concepção e condição do realizador), a câmera aqui não representa uma determinada “sobriedade” em relação à dinâmica tempestuosa que domina o quadro, não possui um senso de convicção e de estabilidade sobre a atmosfera de incerteza e de instabilidade. A câmera é tragada para o universo das paixões sobre e a partir do qual Sonoko – com sua condição poética inicial de “criadora” – narra. Masumura pactua com ela e busca criar imagens em primeira pessoa; imagens que imprimem sua paixão, seus sentimentos, suas impressões e sua narrativa pessoal/sentimental – como se tudo isso, por sua vez, determinasse o quadro.

Ao mesmo tempo que Sonoko possui um aparente controle sobre o que consta nas imagens, sobre a linguagem falada que é transmutada e recriada em linguagem cinematográfica, ela é uma personagem regida pelos próprios sentimentos e submissa a eles. O enquadramento de Masumura, aliado à passionalidade de Sonoko, dá ao enclausuramento pela paixão e sentimentos uma dimensão arquitetônica e física (a partir da ausência de espaço), intensificando a sensação claustrofóbica e reiterando a ausência de contexto através dos enquadramentos fechados, do plano-sentimental-espacial: apesar de o contexto histórico, cultural e social do Japão ser como um subtexto motivador à questão do enclausuramento, ele se vê praticamente aniquilado no plano, o qual corpos, expressões e gestos emocionados ocupam quase que totalmente; ou como se os sentimentos, por serem tão intensos e excessivos, fossem demasiadamente volumosos para o pequeno espaço fílmico (marcado pela limitação das quatro paredes/do plano), tomando o oxigênio e espremendo as personagens, deixando-as imensas e sozinhas no quadro e no quarto, asfixiadas, insanas.

Em um dos momentos iniciais do filme, quando Sonoko mostra a sensei uma fotografia das duas juntas, o rosto de Mitsuko ganha um plano só seu, como se ela estivesse não só encarando a câmera que a fotografou em determinado momento, mas encarando, sobretudo, a câmera espiã de Masumura. Mitsuko se revela através dos olhos e da beleza de Ayako Wakao, atriz por quem Masumura é aficcionado e que, através do que ela concede de si às imagens (sua beleza, seus gestos, suas expressões), define em absoluto a personagem que interpreta: hipnotiza a câmera (Masumura) como hipnotiza Sonoko; sabota a ordem fílmica e supera sua mera condição de personagem diegética através da atriz. Assim, Mitsuko estabelece um contato com o que há através da câmera, com o externo/extraplano, com o que não sofre do enclausuramento pelo plano-espacial-sentimental.

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Como seu olhar (e a própria Sonoko) em sua narrativa sugerem, já se pode presumir o suposto feitio manipulador de Mitsuko, enquanto Sonoko exprime uma certa ingenuidade e vulnerabilidade. Nesse contexto, o que justifica a subversão da ideia de “criação submissa à criadora” é, paradoxalmente, o fato de Mitsuko só existir no filme enquanto criação idealizada de Sonoko (o rosto ideal da pintura), reflexo de seus desejos e, principalmente, por se tornar sua própria paixão: assim como os sentimentos de Sonoko a aprisionam, Mitsuko – a nível deles – também possui um domínio definitivo sobre sua amante. Isso é o que vai pautar toda a experiência e maneira com a qual Sonoko encara o relacionamento, no sentido de sua devoção (deusificação) e submissão à amada.

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Assim, pode-se discorrer também sobre a atmosfera desatinada do filme. Quanto menos noção de espaço, de ambiente, de contexto – ou seja, quanto maior a claustrofobia, a asfixia, a supremacia dos corpos emocionados e do âmbito privado sobre o âmbito público – menor é a capacidade dos personagens de discernir sobre o caráter e as intenções uns dos outros. Sonoko, a única voz que podemos realmente ouvir (enquanto narradora), atinge um estado tormentoso de receio e angústia, constantemente questionando a índole de Mitsuko. Tudo se acentua com a entrada de outros dois personagens no relacionamento (Watanuki – pretendente de Mitsuko – e Kotaro – marido de Sonoko -, formando um quadrado amoroso), o que deixa todos cada vez mais espremidos no quadro lotado de sentimentos que se entrecruzam e se mesclam com intenções secretas (das mais amáveis às mais perversas), complexificando o relacionamento e encaminhando-o ao seu fim trágico. Nesse sentido, o exagero melodramático que aqui existe pode tanto marcar a intensidade do amor, do desejo e da paixão – dos sentimentos no geral -, como tornar uma mentira ainda mais mentirosa, encenada.

O clima constante de dúvida e desconfiança não se limita ao universo enclausurado do filme, excede e atinge a experiência do próprio espectador: nem em Sonoko – por narrar movida e possuída pelos sentimentos, inseguranças e ideias próprias sobre cada uma das figuras – devemos confiar. Sonoko é realmente ingênua e Mitsuko manipuladora? Como podemos garantir que, enquanto narra, Sonoko, que também se mostra perversa em vários momentos do filme, não deturpa ou omite fatos? Devemos confiar nas imagens e no que é exibido nelas?

Masumura, pactuado com Sonoko e, portanto, movido e movendo o filme pela paixão e por tudo que ela magnetiza, não nos dá respostas. Ao real detentor da linguagem aqui vigente não interessa o valor crível da imagem e sim seu potencial expressivo: amplifica a narrativa à expressão fílmica dos sentimentos, desejos, ideias, paixões. Temos aqui a estética que emerge da vazão que tem a dúvida não-elucidada, da claustrofobia estimulante à propagação indomável dos sentimentos: a expressividade e a beleza dos corpos, gestos e rostos emocionados; até mesmo a poesia plástica nas cores, na caligrafia e nas estampas das correspondências trocadas pelas amantes.

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O final trágico conjecturado: em determinado momento, quando o relacionamento está configurado em um triângulo amoroso entre Sonoko, Mitsuko e Kotaro – emocionados e totalmente alheios à realidade -, todos os fatores externos (e internos) fazem do suicídio passional a única saída. Esperançosa de que enfim encontraria na morte um estado puro e eterno ao amor, Sonoko é surpreendida pela desilusão: a única que continua viva e cativa; a união das amantes não sublima. (Teria Mitsuko a enganado?)

Prenunciando o desfecho desde o início, Sonoko narra sua experiência, sobrecarregando no coração inquieto e no corpo cansado todo o acúmulo sentimental do filme; apaixonada por uma aparição profetizada por sua narração. Criadora do que ali alguma vez existiu ou não existiu, ela permanece tomada pelas incertezas e, sobretudo, enclausurada à sua paixão – Mitsuko, Mitsuko, Mitsuko… -, que agora é mais do que memória ou saudade: um fantasma sagrado que a assombra, quimérico e imenso nas imagens.

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A paixão segundo a morte

 

Por João Lucas Pedrosa

“As mãos são como feitas para a eloquência,
como se quisessem expressar nossos sentimentos.
Mas os pés não falam como as mãos, porque eles ancoram a vida”

Kazuo Ohno, Treino e(m) poema

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Por três vezes, a cantora-compositora Mitski e a diretora Zia Anger se uniram na feitura de videoclipes. Em abril de 2016, lançaram Your Best American Girl, o primeiro hit da nipo-estadunidense, com seus ecos simbólicos de retumbante ocupação feminina e asiática num nicho musical até então quase exclusivamente branco e masculino: o indie rock. Em 2019, se unem para os singles Geyser e Washing Machine Heart, de seu mais recente álbum “Be the Cowboy”. A conexão mais explícita entre os três é a presença das mãos da artista como canal sublimatório – em duas delas, de frustração romântico-sexual -, que acaba por ser o epicentro de uma intrincada articulação entre desencaixe sociocultural, construção psicosexual e vigor artístico. Pela similaridade temático-estética entre o primeiro e o último videoclipe da parceria – mas mais pelo bem da concisão textual -, vou me ater aos dois primeiros.

Your Best American Girl começa como uma publicidade antes do “ação”: Mitski olha para baixo usando o celular, vestida elegantemente em frente a um fundo infinito branco, varrido por um homem branco. Uma mulher branca entra para espirrar laquê em seu cabelo e retirá-la de sua introversão, e uma figurinista vem arrumar seu terno. Vem o contraplano: um rapaz branco, biótipo modelo, usando regata. Ele olha para a câmera e seu olhar é o “ação” para o plano de Mitski. Ela olha de volta, sorrindo, e um foco de luz se acende sobre seu rosto. A sua imagem é o resultado de uma manufatura, de camadas de produção que escondem sua forma bruta; a do rapaz é uma imagem dada, já pronta o bastante em seu despojamento. Os dois planos são frontais e se espelham ao mesmo tempo que embatem. Entre eles não se cria intimidade – não se faz proximidade, sequer contiguidade espacial, apenas oposição. Nesta “publicidade” o que os liga é o olhar do público, os verdadeiros olhares de volta. É uma simples abordagem de flerte, mas com uma barreira de olhar público entre as duas partes.

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A linguagem do clipe ganha, assim, uma abordagem sociológica que muito lembra o documentário de Shirley Clarke, Retrato de Jason (1967). Integralmente formado por planos frontais singulares (variando entre close/médio/americano) do malandro e performer de boate Jason Holliday, o filme observa-o contar suas histórias de vida, piadas e mentiras sob efeito crescente do álcool e de seu baseado. Clarke sabe do poder de envolvimento sociopático de Jason, e como ele aprendeu a encantar para distrair o coletivo do ódio que sente dele – e nele desferir uns golpes no processo -, e passa o filme tensionando sua capacidade de perniciosamente envolver o extracampo (novamente nós, o público). Por meios e motivações diferentes, mas assim como Jason, Mitski tenta vender-se. Ele se vende para sobreviver e se aproveitar do que/de quem fornece. Ela se vende pela simples validação aos olhos do homem do imaginário comum – os que ocupam a tela sem esforço, os que se impõem como norte das demais imagens.

Mas ela fracassa: um travelling out revela a entrada em plano de uma mulher branca, biótipo modelo e traje hippie no enquadramento do rapaz. Ela envolve seu pescoço com o braço e eles continuam olhando para Mitski, cujo movimento de câmera revela mais espaço branco, ressaltando seu alheamento. O contraplano não é mais uma promessa, mas um imperativo: veja, não seja parte. Veja, você não é parte. É uma imagem fora de alcance, sua entrada é proibida. O casal começa a se olhar e se acariciar, e a cantora olha para a mão com que acenava. O refrão quebra com o par branco se beijando ardentemente e a cantora o reproduzindo em sua própria mão, enquanto acaricia seu queixo e cabelo com a outra. Eis a primeira presença das mãos como projeção do outro: o braço se estende para fora e a palma da mão para dentro, numa falsa alteridade. Aqui, ela é medida paliativa de uma desesperadora carência. Não é a última vez que veremos este gesto.

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O beijo dos amantes brancos fica cada vez mais lascivo (língua na língua, língua no peito) e mais estilizado (surgem luzes coloridas, bolhas, um pirulito que alterna entre as duas bocas, um vento pelos cabelos da mulher, uma bandeira dos Estados Unidos). Um corte para o sorriso de Mitski e um tilt down mostra que está agora com um vestido dourado, tocando um solo de guitarra (a mão operando de outra forma o mesmo fim: a sublimação). Os movimentos paralelos (Mitski cantando/o casal se pegando) continuam e, enfim, um plano conjunto com a cantora, concretiza o movimento que a montagem prenunciava: Mitski no centro, olhando para nós enquanto canta, e os amantes ao fundo, como satélites e como fantasmas, assombrando sua performance e impedindo seu protagonismo livre. O carisma da guitarrista-vocalista se esvai, e um chicote sai do beijo publicitário para a guitarrista entregando seu instrumento a um membro da equipe e se retirando do estúdio (ocupado por uma equipe inteiramente branca) no decorrer da última nota da música.

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O desvelar metalinguístico é relativamente frequente – e um tanto hiper utilizado, apesar das variantes a cada vez – nos clipes de Mitski; o que não surpreende, pois a própria imagem é fonte de neuroses e obsessões nas letras de suas canções. Existe o muso romântico idealizado, inalcançavelmente superior – “Você é o único/Você é tudo que eu sempre quis”- e a sua existência falha, indesejada pela raiz – “A sua mãe não aprovaria o jeito que a minha mãe me criou”. O clipe de Zia Anger articula essa visão como sintoma de um centro vertiginosamente branco (equipe, elenco, fundo) de produção de imagens – um sintoma da branquitude. Mitski se retira, estabelecendo um primeiro gesto visual positivo em meio à sua poesia masoquista e auto-humilhante. Your Best American Girl é, afinal, uma canção de término: hesitante e auto-depreciativo, o eu-lírico da música escolhe a defesa insegura da forma como sua mãe a criou (“mas eu sim/eu acho que sim”), com o risco de ser também a justificativa para se odiar demais para ficar com aquele rapaz. Mitski surpreendeu-se quando o clipe ganhou interpretações políticas acerca de sua ocupação no nicho indie pop, mas é tanto involuntária quanto inevitável a política que jorra de sua trova suicida.

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A canção Geyser foi lançada com o videoclipe de Zia Anger em maio de 2018. Foi o primeiro single liberado do álbum “Be the Cowboy”, de pegada visivelmente mais pop que os álbuns anteriores. O desespero das repetições e circularidades típicas em Mitski combinam perfeitamente com as mesmas repetições dos hits pop chiclete, e agora misturam-se com sintetizadores e algumas melodias que parecem otimistas. Mas às repetições obsessivas, a compositora alia oscilações tonais (e talvez semitonais, mas não ousaria dizê-lo por ignorância das terminologias musicais) que fazem de suas canções não círculos, mas espirais – daí a vertigem de sua musicalidade. Nobody é provavelmente o mais notório exemplo do procedimento.

Na época de concepção da tour, a cantora se interessou pela dança japonesa butô, originada do pós-guerra. Apesar das inúmeras vertentes decorrentes de sua gênese, o estilo se inspirava na fraqueza do ser, e de seus efeitos potencializadores quando o corpo é tomado como significante opaco (e, portanto, de significado oculto, expandido) no ato de dançar. Nascia, assim, uma arte corporal da loucura, da senilidade, da dor, da doença (os corpos atrofiados dos envenenados pelo mercúrio nas águas japonesas influenciaram poses e movimentos nos anos 1960). O que nela teria interessado a Mitski foi o desenho de emoções caóticas retratadas por gestos precisos e repetitivos – princípios similares aos de sua composição -, e uma rígida coreografia inspirada no estilo foi incorporada a seus shows. Mas voltemos a Geyser.

Um caso extremo, a canção levou dez anos para ser lançada – ainda que se possa encontrá-la no YouTube cantada ao vivo em 2014, quatro anos antes do lançamento. É também uma canção de devoção: “Você é meu número um/você é quem eu quero/e eu recusei toda mão/que me acenou para vir.”. A estrofe é repetida mais duas vezes (com sutis mudanças lexicais), como uma oração. Segundo a artista, porém, a música não é dedicada a uma pessoa, mas à música, seu maior amor.

O clipe abre de um fade in do vermelho. Poderíamos limitar a cor ao simbólico (paixão, sangue, sedução, etc), mas perderíamos de vista a potência de sua vibração. Um impulso de vivacidade que, gradualmente, dá lugar a uma imagem dessaturada: Mitski sozinha num declive de terra, sob um céu nublado. Uma fusão destoante, estranha aos olhos. Ela está de cabelo preso e usa um traje monástico aberto sobre sua roupa. A atmosfera é despojada, quase sacra. O plano geral se aproxima da cantora angulando levemente para a direita, para então contorná-la pelo outro lado. Enquanto ela canta olhando para a câmera, quebrando a quarta parede, o mundo gira ao seu redor. Num gritante oposto a Your Best American Girl, Geyser é feito num dinâmico plano-sequência em amplo espaço aberto. Não mais uma zona psicosexual, mas um movimento existencial. Mitski está sozinha, mas jogada no mundo, na natureza não convidativa pelo bom tempo ou pelo verdejante, e a câmera dialoga com ela, com o redor e com o espaço entre os dois.

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Quando a câmera dá uma volta de 180º em seu entorno, vemos escombros no mar, algo similar às vigas de um píer (seriam as ruínas do estúdio? O declive de terra é curvo embaixo, como o fundo infinito, mas, por sua vez, tem um limite visível, palpável). Mitski vira uma mão para o céu e então para si – a falsa alteridade novamente – e segura-a com a outra para lhe cantar seu devoto louvor: You’re my number one/You’re the one I want. Para a mão a qual compõe, com a qual pratica sua religião. Sai de plano, deixando os escombros protagonizarem alguns segundos. Uma panorâmica para a esquerda revela uma extensa fileira das vigas e um proeminente aprofundamento do plano em camadas de presença, que são jogadas para fora de vista quando a câmera volta a centralizar Mitski e a terra úmida no fundo. Ela é cercada de vazio novamente. No primeiro capítulo de Transcendental Style in Cinema, Paul Schrader investiga as confluências da tradição zen na contenção estética de Yasujirô Ozu. O primeiro traço marcante é o princípio mu, referente à negação, ao vácuo. “A folha branca de papel é percebida apenas como papel, e papel permanece. Apenas preenchendo-o ele se torna vazio”. A ausência passa a operar como elemento positivo, pois é um qualitativo enfatizador da presença que ela cerca. Igualmente opera Geyser, e o vazio em volta da cantora reforça sua solidão, e acima de tudo sua existência.

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Mas Mitski é uma artista do Sagrado pelo fracasso no Profano, e sua arte depende também dos gritos de seu corpo. Ela olha para a câmera, sedutora, descobre o traje monástico do ombro, contrai o corpo em dor e sai correndo. O traje monástico cai sobre a terra, e mais à frente ela também. A câmera se torna lenta enquanto ela rola na lama, engatinha, para e respira. A câmera se afasta, volta a se aproximar e dá uma volta em seu eixo enquanto Mitski desesperadamente usa as mãos para cavar o chão, e grita enfiando a cabeça na terra. Travelling out com ela abaixada. Corte seco para o vermelho. O clipe termina.

Susan Sontag em “O artista como sofredor exemplar” discorre sobre o escritor como quem “descobre o uso do sofrimento na economia da arte”. Ela parte dos diários de Cesare Pavese, e da proeminência de suas frustrações amorosas na construção de um projeto estético ascético, encerrado com o suicídio do autor. O clipe de Mitski mostra um movimento similar. Já constituído e estabelecido o vigor artístico, as pulsões não se esvaem. Há uma contradição suicida em que a positividade de sua expressão depende da extrema negatividade. Um enfiar os dedos ferida adentro, infeccionando-a para que a dor ative os ápices metafísicos do corpo. A autodepreciação e a carência tornam-se veículos de expressão de uma inquebrantável vontade: a expressão da pulsão de morte vira o motivo de vida. Mitski torna-se o veículo de uma paixão ao mesmo tempo transitiva e intransitiva, moldada mas inata e, dentro de sua privação de pertencimento, um vórtice incontrolável de conexão com o público. Poderíamos chamar de Sagrado o infinito atingido pela vertigem do si? “Esses garotos todos parecem que estão na porra duma igreja”, disse uma vez o músico John Doe, atônito com a concentração do público da cantora. Eles estavam mesmo.

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“A atriz foi criada enfim”: Esther Kahn (2000) de Arnaud Desplechin

Por Natália Reis

 

“Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.”

Herberto Helder

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Monstre sacré é uma dessas expressões francesas misteriosamente forjadas que exercem um tipo de fascínio curioso em quem as escuta pela primeira vez. Numa pesquisa rápida, o google nos oferece um relance do que pode vir a ser: “Uma figura pública marcante, excêntrica ou controversa.”, “alguém cujos talentos são muito superiores aos do homem comum.” ou ainda: “uma figura venerável ou popular que é considerada acima de críticas ou ataques apesar de excentricidade, controvérsia, etc.”, “um gigante naquilo que faz”.

Se existiu alguém cujas obra e vida poderiam ser lidas como o despertar de uma “monstruosidade sagrada” em todas as suas nuances, essa pessoa foi Sarah Bernhardt. Atriz de teatro francesa e ascendência judia, Bernhardt (nascida Marie Henriette Bernardt em 1844) conseguiu se manter até o fim dos seus dias sob o olhar atento de uma legião de fãs e admiradores. Entre a figura pública de destaque internacional e uma vida pessoal incandescente, a “Divina Sarah” da “voz dourada” transcendia as noções de atuação e de celebridade numa reinvenção constante da própria persona. Brilhou em papéis masculinos (Hamlet) e como personagens mais jovens (Joana d’Arc, aos 46 anos) ou trágicos (A dama das camélias), usava joias extravagantes, possuía uma relação entusiasmada com pistolas e mancebos, e dizem que dormia em um caixão apenas para se sentir mais próxima da morte iminente. Susan Sontag vai elencar o charme decadentista dos filmes de Sarah Bernhardt realizados no fim de sua carreira como manifestações legítimas do Camp e o crítico e poeta simbolista Arthur Symons dirá que a modernidade poderia ser tipificada por sua presença no palco.

Dentre as muitas citações atribuídas à atriz francesa, uma merece ser destacada aqui por servir bem como introdução a Esther Kahn, personagem inegavelmente moderna (e provavelmente de reverberações bernhardtianas)  do conto de Symons de mesmo nome publicado em 1905 e adaptado para o cinema por Arnaud Desplechin: “A arte dramática é essencialmente feminina. Pintar o rosto, esconder os verdadeiros sentimentos, tentar agradar e se esforçar para atrair a atenção – todos estes são defeitos pelos quais culpamos as mulheres e pelos quais se mostra grande indulgência.”. Longe de levantar qualquer tipo de bandeira feminista, Esther Kahn é uma parábola sobre a libertação de um desejo avassalador – por vezes tido como sintoma de um egoísmo feminino interior –  que age na transformação de um corpo desprovido de afetações em mulher e da mulher em atriz.

“ESTHER KAHN nasceu em uma dessas ruas escuras, mal cheirosas com estranhas esquinas que se encontram sobre as docas.”

Palavra por palavra, a introdução de Arthur Symons é repetida pelo narrador do filme de Desplechin ao passo em que nos é apresentada uma visão geral da infância e do universo primordial da protagonista. Esther é uma criança incomum, judia, filha de alfaiates pobres e residente de uma região obscura da Londres do século XIX. Tem medo de sair de casa porque a paisagem exterior é assustadoramente tomada por casas decrépitas, chaminés e janelas lacradas. Observa a família, mas não se sente parte dela. Enquanto as duas irmãs e o irmão se misturam naturalmente aos demais – pai (László Szabó), mãe (Frances Barber), avó (Hilary Sesta) –, durante o jantar Esther, exibindo um semblante quase estúpido, observa à distância os gestos que lhe parecem tão deslocados da realidade que merecem ser imitados. “Não repare nela”, diz a mãe em determinado momento; “ela não é uma criança humana, ela é um macaco; ela está se agarrando atrás de uma alma, como eles fazem. Parecem pequenos homens, mas sabem que não são homens, e tentam ser; é por isso que nos imitam”.

No desenvolvimento do longa, o diretor francês afirma ter se guiado unicamente por L’Enfant sauvage de François Truffaut, filme que narra a trajetória de uma criança encontrada na selva, incapaz de estabelecer uma forma de comunicação com a civilização. Diferente do garoto selvagem de Truffaut, Esther Kahn não foi destituída de contato humano, nem abandonada, mas não possui qualquer tipo de vínculo com os indivíduos que a cercam diariamente, muito menos com a vida que parece passar por ela sem deixar marcas. O único sentimento que a acompanha até a juventude –  quando passa a ser interpretada por Summer Phoenix (irmã de River e Joaquin) – é uma raiva imanente que se manifesta a cada rompante. Quando questionada pelas irmãs sobre suas expectativas para o futuro, não consegue pensar em nada além de: “ser vingada”. Phoenix encarna com vigor a passividade e letargia de Kahn de modo a tornar visivelmente incômoda a maneira como se esforça e se debate com as palavras (num tipo de performance truncada que se confunde entre os esforços da atriz e da personagem), tudo isso resvalando o furor e a confusão de quem não compreende seu lugar no mundo e se recusa a aceitar o que lhe é oferecido. Essa configuração só poderá ser revertida diante de um maravilhamento legítimo, que tomará de assalto todas as suas convicções: o teatro.

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A primeira vez que Esther Kahn demonstra excitação é justamente quando vai assistir a uma peça com seus irmãos (Claudia Solti, Berna Raif e Akbar Kurtha) e um pretendente pelo qual não possui nenhum apreço (Paul Regan): avança desmedidamente pela multidão para alcançar o guichê, os olhos sempre vidrados no palco e um discurso inflamado sobre o que acredita se tratar de uma boa atuação na volta para casa. A partir daí, presenciamos uma fagulha de desejo queimar na protagonista até então imobilizada por uma vida familiar – e proletária –   insatisfatória, e é essa a direção da arte indicada pelo filme: algo muito próximo de um labor, naturalmente capaz de provocar mudanças e suscitar um sentido de pertencimento até então inalcançável, inerte. Esther resolve se arriscar como atriz e comunica aos pais a decisão, sob protestos de que dessa forma não poderá ajudar financeiramente em casa. Retomando a distância que os envolve como o grupo de estranhos que sempre foram, um contrato é firmado e a jovem promete reembolsá-los pela mão de obra perdida nos trabalhos de alfaiataria e pelos gastos em sua criação até o momento. Os laços já escassos são desfeitos e, por fim, ao quitar sua dívida, Esther Kahn deixa o lar – que nunca de fato fora um lar – para se dedicar ao teatro.

É importante ressaltar que Desplechin preferiu de certa forma mascarar todos os momentos de interpretação de Esther sobre o palco. Fora as aulas que toma com o novo amigo, o ator – também judeu – Nathan Quellen (interpretado por Iam Holm), as demais cenas em que ela atua diante de uma plateia não possuem som além da narração que constata e descreve seu estado de espírito, os movimentos são acelerados, combinados com uma mecanicidade de Esther/Phoenix que só vêm a confirmar a própria crença da protagonista de que a atuação é um trabalho que deve ser executado como o prolongamento de um gesto resguardado nas estruturas ocultas do corpo.

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Apesar de ascender cada vez mais entre papéis importantes e o reconhecimento do público, em algum ponto do percurso as coisas passam a não bastar mais para Kahn. Novamente o vazio conhecido roça seu pescoço e sussurra “e agora?”.  A resposta ao aborrecimento vem de seu mentor, Nathan, que num tom paternal explica que o que lhe falta é amor. Ou sofrer por amor. “Você nunca sentiu algo pior do que um corte no dedo”, diz. Como há de compreender a vastidão dos sentimentos que mimetiza? A jovem atriz decide então eleger um pretendente à altura de uma investida que deve antes de tudo agir como energia renovadora. Nesse momento somos apresentados a Philip Haygarth (Fabrice Desplechin), crítico de teatro e autor de algumas peças. Esther o espia por trás da cortina e passa a dedicar-lhe um amor sorrateiro.

Hedda Gabler, personagem da peça de 1890 de Ibsen, é uma mulher intrigante que se vê de repente presa num casamento tedioso e tentada por uma antiga paixão. O fim trágico que a aguarda é resultado da busca desesperada pelo calor que já a consumiu uma vez, mas que agora só é capaz de anunciar sua presença abrandada nas intrigas e jogos cruéis que promove para se distrair. Há quem consiga dizer, inescrupulosamente, que teria sido “traída pelo próprio desejo”, entre outros clichês que não alcançam em nada a magnitude de seus atos finais, mas é possível ainda compreendê-la dentro de um longo histórico de mulheres que preferem a morte à não-existência. Hedda Gabler se avizinhará de Esther Kahn em dois momentos: primeiro, quando o casal Haygarth-Kahn passa por uma fase cálida –  Ele se faz seu tutor, fala das artes e de coisas maiores da vida; ela, um tipo de aprendiz fiel, corta o cabelo como sugerido pelo parceiro e lhe presenteia com um livro contendo a peça de Ibsen (uma cópia em norueguês, incompreensível para ambos infelizmente). A segunda vez que Gabler dá as caras é na forma da oferta para o papel principal que Esther receberá.

Noite de estreia, a jovem atriz descobre há pouco que o homem amado está vivendo um romance com uma italiana vulgar (e incomunicável, pois não fala outra língua além de um “dialeto provinciano”) de nome Sylvia (Emmanuelle Devos). Da coxia, observa os consortes chegarem para o espetáculo enquanto é arrebatada por um sentimento desconhecido até aquele instante. O que se sucede nos próximos minutos é a colisão das forças que nos foram negadas em todo o filme por um ritmo comedido, que se destinou a preservar a apatia da protagonista e o modo oblíquo com que observava o mundo. Mas aqui as coisas se agitam e se tornam violentamente vivas: Esther se recusa a entrar em cena, sofre com feridas de automutilação enquanto os demais atores e trabalhadores do teatro orbitam a atriz como um astro irresistível e destruidor. Cacos de vidro mastigados, cortes na língua, sangue, gritos e mais choro, ninguém consegue convencê-la a desempenhar seu papel. A volatilidade chega à superfície enfim, e dá lugar a uma nova estrela nascida do caos. Seu corpo é empurrado para o palco e, na luminosidade amarelada das lâmpadas de gás, faz aquilo que lhe cabe tão bem: atua brilhantemente. No intervalo, um bilhete elogioso do traidor: “Me devolva mil vezes o que te dei” e um pedido para encontrá-la. Mas já estava feito:

“A nota tinha sido tocada, ela tinha respondido a ela, como respondia a cada sugestão, sem falhas; ela sabia que poderia repetir a nota, sempre que quisesse, agora que a havia encontrado… Ela poderia retomar seu amante, ou nunca mais vê-lo, isso não faria diferença.”

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Mostra de Tiradentes: Eu, Empresa

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Por Chico Torres

Em Eu, Empresa temos a exposição da uberização da vida, dentro do contexto brasileiro, através de uma abordagem irônica e tragicômica de uma busca de sucesso através do empreendedorismo dentro do mercado dos youtubers. Realizado como ficção, mas repleto de aspectos documentais, o filme possui, ainda que de maneira tímida, uma força denunciadora desse novo sistema de trabalho onde se estabelece a ideia de estrelato e riqueza pela simples exposição do eu, de um eu que se apresenta como conteúdo e viraliza. Uma abordagem atual e que também toca, de modo pertinente, em questões de saúde mental e alienação.

Joder surge como uma caricatura desses indivíduos de classe média que, diante do esvaziamento crescente das possibilidades de perspectivas, mergulha em uma busca alienada de autorrealização através da internet. Uma busca imediatista e que, para o personagem, se justifica em um tipo de exposição do seu fracasso. O conteúdo, portanto, é justamente a sua não realização, o seu não sucesso, uma autoindulgência que denota já de imediato um tom irônico e que vai se obscurecendo ao longo do filme, com diversas cenas que provocam o nosso riso constrangido.

 Como todos que estão ao seu redor, enquanto o sucesso não vem, Joder passa a improvisar para sobreviver. É nesse sentido que o filme ganha aspectos documentais e esboça uma nova potência narrativa, mas são momentos muito pontuais e logo abandonados, como a sua conversa com os entregadores do ifood. Todo o processo de busca do personagem orbita entre uma ideia de fracasso e um desejo irrefreável de sucesso, desejo que pode ser lido como sintomatização de um tipo de cultura que recusa os modos tradicionais de emprego e se deslumbra pelo coaching e empreendedorismo pessoal como soluções instantâneas de seus problemas. Esse processo de alienação é evidenciado na exagerada e justificável personalidade ingênua e depressiva de Joder. Ele realmente acredita naquele sistema e sofre por não ter êxito, mas todo o seu esforço parece surgir de modo sintomático porque se dá na repetição de um ciclo psíquico em que o fracasso o persegue implacavelmente e, justamente por isso, o seu desespero pelo sucesso.

A estética de Eu, empresa é interessante à medida que empobrece, com sua fotografia opaca e visualmente amadora, esse ambiente que está entorpecido pela imagem. A fotografia do filme responde àquilo que quer criticar e se sustenta de modo pertinente dentro dessas imagens empobrecidas e despretensiosas. A atuação de Marcus Curvelo impressiona não só por seu carisma, mas também por seus momentos infantis e bizarros. Um personagem complexo que representa um tipo de personalidade cada vez mais presente em um país imbecilizado pela ilusão de que o sucesso e a riqueza dependem pura e simplesmente de uma vida transformada em conteúdo.

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Mostra de Tiradentes: O Cerco

o cerco

Por Chico Torres

Um filme que é concebido durante o processo de sua feitura precisa saber dos riscos que corre e da natureza diversa desses riscos. Ao ver o debate com os realizadores de O cerco, fiquei com a impressão de que o filme possui uma ótima justificativa, mas que funciona apenas de maneira intelectual e extra-fílmica. Como acontece com boa parte da arte contemporânea que depende da legenda e que por isso mesmo se apresenta articulado com um conceito prévio, fui levado a esse lugar de que o filme não possui em si a força daquelas argumentações apresentadas durante o debate, ou que pelo menos não foi construído de uma maneira que me convencesse particularmente.

A ideia de um “tempo quântico”, como foi indicado por um dos realizadores, é bastante promissora. O que se tem é passado, presente e futuro interagindo dentro de um edifício em ruína, centrado em uma personagem feminina que convive com todas essas camadas materializadas através de outros personagens. Alegoricamente, a casa serve como uma espécie de núcleo de tensão para tratar de uma questão política recorrente no Brasil: a ditadura militar e suas implicações no presente e no futuro.

A partir disso, identifico dois problemas que me parecem fundamentais sobre a diferença entre aquilo que foi conceituado pelo filme e a sua realização. O primeiro problema é que todo o arcabouço conceitual da obra parece funcionar de modo circular, o que faz com que aquele discurso se esgote muito rapidamente. Ou seja, não nos são apresentadas camadas, desdobramentos.  Pelo contrário, parece que tudo flutua dentro dessa ideia primária e que nada se desenvolve através dela. O segundo problema relaciono com o modo improvisado e documental no qual o filme foi realizado. Essa intenção, ainda que nos aproxime da protagonista e dos adolescentes do filme, acaba, por outro lado, esvaziando o pretenso valor simbólico atribuído a eles e que tenta ser transmitido através da estranheza do filme (sua montagem, seus planos e sua fotografia se esforçam nesse sentido). A construção dos planos, com a maioria das cenas construídas fragmentariamente e dentro de ambientes fechados, criam um tipo de contraste estranho entre personagens quase sempre simples e reais, com uma ambientação fantasmagórica e imprecisa.

A sensação que se fica é que o filme procura fugir daquilo que quer dizer, que é o seu discurso político que articula acontecimentos passados com os vividos na atualidade. Mas essa fuga, ainda que tenha seus méritos formais, parece, sobretudo, um artifício para esconder ainda mais o modo improvisado e dispersivo de sua construção. Desse modo, penso que O cerco não consegue se realizar sob as ideias que foram “achadas” por seus realizadores no processo do filme, nos restando a sua bela fotografia e bons momentos de atuação de todos os personagens, em uma entrega sincera e livre em um filme que parece estar perdido tal qual a protagonista que orbita em temporalidades indefinidas.

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Mostra de Tiradentes: A Mesma Parte de Um Homem (Ana Johann)

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Por Chico Torres

Toda a lógica de A mesma parte de um homem se sustenta em uma ideia de transição. Transição do desejo, do corpo, do medo. Tudo parece fluir dentro dessa concepção de que, através de acontecimentos traumáticos, mudanças se instauram e transformam toda a realidade das personagens, principalmente da protagonista Renata (Clarissa Kiste). Uma mulher retraída dentro de um ambiente rural e marcado pela violência, se descobre possuidora de desejo, de voz, de vontade, ainda que tudo isso se dê através da presença de outro homem.

Em seu primeiro ato, temos uma atmosfera ora explícita, ora sutil de medo, abuso sexual e violência doméstica. O ambiente familiar é marcado por uma presença masculina maléfica, na figura de um pai que domina tudo o que está ao seu redor. Por outro lado, o medo que existe em relação ao ambiente externo, presente obcessivamente em Renata e que paira por toda a primeira parte do longa, não é devidamente trabalhado ao ponto de embarcamos junto com ela em sua angústia.

Com a chegada de Lui (Irandir Silva) logo se percebe que esse medo do externo não será relevante para o desenvolvimento do filme, mas sim a relação daquelas mulheres com o estranho que logo ocupa, sem grandes complicações, o lugar de esposo e pai.  A aposta no estranhamento e na falta de respostas muito claras sobre diversos acontecimentos ao longo do filme, conferem originalidade à obra, já que nos escapa certos psicologismos previsíveis. Não se descobre exatamente quem é aquele homem que “chega”, do mesmo modo que mãe e filha não revelam em nenhum momento o segredo que guardam de Lui. O longa está cheio desses elementos que provocam dúvida quanto ao caráter e motivações de todos os personagens, mas que são bem aproveitados à medida que povoam todo o filme, criando uma atmosfera bizarra e de abertura interpretativa.

 Essa quebra de expectativas nos ajuda a focarmos no que parece ser o objetivo central da obra: o modo como ocorre a transição de Renata em relação ao seu desejo, à sua vontade. As cenas de sexo são filmadas magistralmente e marcam o quanto a questão da descoberta sexual é um ponto fundamental. É assim que se estabelece a transição. Renata passa a descobrir o prazer e a se impor diante do novo esposo, dando vazão aos seus desejos e vontades. A fotografia e o corpo da personagem vão gradualmente se transformando: ela começa o filme apagada, curvada e com medo, mas termina iluminada, sentindo as novas possibilidades atingidas através do afeto e do sexo, ainda que timidamente. Um filme que, apesar de estar pincelado por alguns elementos pouco convincentes, é bem-sucedido ao desenvolver, através do bom uso da fotografia e do trabalho dos atores, uma ideia sutil de transição que revela descobertas pessoais há muito reprimidas.

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Mostra de Tiradentes: Kevin (Joana Oliveira)

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Por Chico Torres

Kevin, de Joana Oliveira, me remete ao cinema de Hong Sang-Soo, sobretudo ao The woman who ran, seu filme mais recente. A premissa é semelhante: uma mulher que, longe de casa e do ambiente familiar, dialoga com algumas amigas sobre diversos assuntos cotidianos. Por trás dessa banalidade aparente, o filme expõe algumas questões acerca de dilemas femininos há muito conhecidos, sem nunca perder de vista a subjetividade das personagens, o que imprime originalidade e verdade à obra.

Se The woman who ran é uma ficção com ares documentais, Kevin é um documentário constituído por diversos aspectos ficcionais, expondo com muita potência esse limite tênue entre gêneros. Conhecendo alguns detalhes da produção do filme, se descobre, por exemplo, que ele foi feito em duas etapas, com duas viagens à Uganda. O filme passa a sensação de que Joana fez uma viagem relativamente curta e na ausência de seu esposo, Gustavo Fioravante, que aparece apenas no começo do filme, ainda no Brasil. Mas Gustavo, além de personagem, fez também o desenho de som do longa, estando em África nas duas ocasiões. Esse é um exemplo entre tantos, mas serve para mostrar o quanto Kevin é construído dentro de um controle e rigidez que se afasta, em alguma medida, da imprevisibilidade do documentário, daquela tentativa de capturar o real em detrimento do bom acabamento e do resultado esperado. Pelo contrário, o filme não possui quase nenhuma ranhura ou entrave em sua construção, mas nem por isso perde a naturalidade e a sinceridade que se dão através do encontro entre as duas personagens.

O longa carrega o nome de Kevin, mas sua protagonista é Joana. Somos apresentados primeiro aos seus dilemas e é sua jornada pessoal que sustenta todo o filme, além de olharmos Kevin a partir do ponto de vista da diretora/personagem. Entretanto, como no filme de Hong Sang-Soo, as questões emocionais de Joana não só vão sendo reveladas de maneira sutil através de seu convívio com Kevin, mas são atravessadas por sua presença, sua vida, suas falas.  E aquilo que Kevin expõe à sua amiga, inevitavelmente, acaba por se relacionar com questões sobre interculturalidade e interracialidade. Desse modo, Kevin cresce em protagonismo à medida que vamos conhecendo sua realidade de mulher negra, mãe solo e africana com vivência na Alemanha.

Essas duas instâncias, a subjetiva e a política, nunca se conflitam porque não se separam, funcionando sempre através dos diálogos e do cotidiano dividido entre as personagens. Mais do que uma história de uma amizade, Kevin é sobre a história de duas mulheres que vivem realidades completamente díspares, mas que através do afeto se reconhecem, se somam e se acolhem dentro de seus dilemas, como na cena em que ambas caminham sobre os trilhos do trem e percebem que de mãos dadas conseguem um melhor equilíbrio para seguir o caminho.

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Mostra de Tiradentes: Rosa Tirana (Rogério Sagui)

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Por Chico Torres

O sertão alegórico e fantástico é uma das fixações do cinema brasileiro. A ideia de que, em detrimento de todo o vazio, morte e desamparo, há espaço para a cor, para a beleza, para o encantamento, repetindo a velha história de que o sofrimento, ainda que endureça, é o que conduz o caráter de um povo que é essencialmente bom e criativo. O desejo de fantasiar, nesse sentido, parece estar sempre ligado ao clichê da esperança: esperança da chuva, esperança da comida, esperança do trabalho. Dedicar-se a esse tipo de fabulação e, provavelmente, cair no erro de produzir formas fetichizadas ou romantizadas do Nordeste e do sertão, há muito tempo se tornou um lugar comum do cinema e sobretudo da televisão, criando um tipo de produção específica que pode ser sintetizada, em seu estágio de máxima realização, com a minissérie Hoje é dia de Maria.

Ainda que o longa se utilize de aspectos mais contemplativos desde o seu início, quase que equilibrado com a sua tentativa de dar uma jornada à protagonista, o que se tem é a utilização da contemplação e também da fantasia de modo vazio e meramente pictórico. Todos os personagens do filme estão esvaziados de humanidade, de uma história particular, e o que realmente se destaca é a beleza dos quadros e algumas incursões não usuais da fotografia. Mas não se ultrapassa essa fronteira. Fica-se com a impressão de que o filme existe para a fotografia e para a direção de arte, não o contrário.

Rosa Tirana parece ser mais uma dessas obras que reitera a ideia de um sertão encantado sem a devida responsabilidade quanto às implicações que esse tipo de projeto pode suscitar. Essa responsabilidade não existe por alguma necessidade de estabelecer um papel político para a arte, mas é importante quando se quer falar de um lugar, de um povo, de uma cultura específica, de algo que tem o real como referência e que agora está sendo retratado por um grupo de pessoas que geralmente não possuem relação alguma com aquela realidade. Pode parecer bobagem, mas é um tanto chocante ver, por exemplo, a personagem de Rosa, que vive em extrema pobreza, possuir uma bolsa de couro nova e impecavelmente trabalhada. Apesar de sair um pouco fora da curva por seus aspectos de fantasia e contemplação, Rosa Tirana entra no rol dos filmes que colore e fantasia o sertão sem olhar devidamente para as pessoas que habitam aquele mundo.

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Mostra de Tiradentes: Rodson ou (onde o sol não tem dó)

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Por Chico Torres

Rodson ou (onde o sol não tem dó) procura se estabelecer dentro de uma rebeldia cyberpunk tropical, explorando, através de excessivos efeitos visuais e sonoros, ideias de desbunde, ironia e revolta. Sustentado pela estética de um cinema marginal, o longa narra a odisseia futurista de Rodson, um jovem que sai pelos confins de um Brasil dos anos 3000 em busca de sua realização pessoal.

Ainda que parta de uma ideia clara de desconstrução radical, tendo no lisérgico e no lixo o princípio de seus inúmeros efeitos visuais e sonoros, Rodson possui uma narrativa tradicional: a da jornada do herói. É perceptível a tentativa de sair desse espectro narrativo na inserção de pequenas rupturas ou interrupções estabelecidas através de esquetes, mas a sua estrutura básica é linear e simplista. Outro dado que faz o longa perder em potência como obra disruptiva, é a constante necessidade, como se diz em literatura, não de mostrar, mas dizer. Ainda que isso revele a existência efervescente de um grupo, por outro lado revela exatamente o desejo de se afirmar como coletivo e de levantar explicitamente a bandeira de seus princípios. Essa necessidade leva a uma romantização que acaba se contrapondo negativamente às possibilidades niilistas da obra, o que a poderiam levar para um nível maior de abertura. Por fim, há também um dizer que corresponde às agendas políticas atuais que, mesmo sendo tratadas com alguma ironia, servem como uma espécie de domesticação do filme, o tornando uma obra quase complacente.

Mesmo flutuando entre essas duas esferas contrárias, Rodson é interessante pela extrema criatividade e variedade de seus recursos. Diante dessa pulsante diversidade sonora e visual, percebe-se um intenso desejo de criar, de dar vazão a algo que estava represado (e, de alguma forma, é esse o desejo do próprio personagem: se realizar em seus impulsos criativos). Tudo isso, aliado à sua ótima noção de ritmo, fazem do longa uma experiência que nos leva a pensar sobre as inúmeras possibilidades de um cinema que se desenvolve através de uma força coletiva que, retomando propósitos vanguardistas, encontra na escassez a fonte primária de sua criatividade.

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Mostra de Tiradentes: Açucena (Isaac Donato)

açucena

Por Chico Torres

Um filme sobre uma outra percepção do tempo. Um tempo dilatado, que vai de encontro ao tempo cronológico porque é um tempo de espera, de contemplação, de suspensão. Açucena coloca o espectador em uma ambientação que, pouco a pouco, desvela os mistérios que cercam a personagem mítica apenas de modo parcial, pois a revelação não está disponível nem para os que convivem intimamente com aquela presença difusa.

A atmosfera infantil, onde flutua uma casa rosa repleta de bonecas, é completada pelo trabalho sério e zeloso daqueles que fazem acontecer o aniversário, compreendido na acepção plena de um ritual que deve ser cuidadosamente preparado. Açucena, eternamente com 7 anos de idade, habita não apenas Mãe Guiomar, mas é como um ser onipresente dentro daquela comunidade que de modo extremamente delicado cuida dos preparativos da festa: pequenas roupas que são construídas, o reparo das bonecas, o portão e a casa pintados, os detalhes da decoração, tudo gira em torno desses afazeres, como se cada gesto devotasse à Açucena aquilo que devidamente lhe cabe: respeito, sacrifício, entrega.

Percebe-se que o processo de construção é tão importante quanto a realização do aniversário em si. Desse modo, o ritmo do filme é lento e não há o compromisso tranquilizador do ato de revelar (ainda que possa ser compreendido como um documentário de suspense), mas sim o de se incorporar àquela temporalidade. A fotografia procura acompanhar esse tempo de latência e mistério, nunca enquadrando de modo resolutivo e convencional, mantendo-se em distância respeitosa para que aquele microcosmo exista sem interferências externas. A paciência e o excesso cenográfico de toda aquela preparação são incorporados aos planos do filme, fazendo de Açucena um caleidoscópio inundado por várias tonalidades de rosa.

O fundamento é o tempo que permite uma dedicação séria à realização do brincar, da alegria, as pedras de toque das religiões de matrizes africanas. O existir dentro dessa realidade onírica da infância, na qual o adulto deve devoção, cuidado e afeto, se reforça pelo caráter mítico e ancestral. Açucena surge como a infância eternizada que se espalha beneficamente pela comunidade, reforçando experiências integradoras através de gestos de cuidado em nome de uma celebração.

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