Eu ainda acredito em seus olhos: Joias Brutas

Por João Pedro Faro

84049748_182139376379951_7561796447281086464_n

(…) que apagaram em imensos cinemas sórdidos, foram

transportados em sonhos, acordaram numa Manhattan

inesperada e se resgataram de ressacas em porões

de Tokays impiedosos e terrores de sonhos cruéis da

Terceira Avenida & cambalearam até

agências de emprego

– Allen Ginsberg, “Uivo” (trecho)

Compreender cinematograficamente a estética de determinado momento histórico é um trabalho ingrato. Ao mesmo tempo que é possível se render a caricaturas reconhecíveis e trejeitos visuais passados, também é possível complexificar os motores, personagens, consequências e atributos da estética histórica, caso bem trabalhada. Não à toa, Joias Brutas (2019, Josh e Benny Safdie) é um grande exemplo de filme histórico: passado em 2012, criando cinema entorno da enervante temporada dos Celtics com Kevin Garnett, o filme compreende cultura, consumo e história como possibilitadores diretos da formação de uma imagem.

Howie Bling (Adam Sandler), uma espécie de “agente do caos de si mesmo”, funciona como centro de capacitação dos fluxos sonoros e estéticos que cercam qualquer enquadramento de Joias Brutas. Em outras palavras, Howie é um protagonista completo, sendo todo o filme moldado entorno de sua presença e de suas necessidades. Em seu percurso por apostas arriscadas que afundam o personagem em um caos incontrolável pela cidade de Nova York, o que fica marcado pelos Safdie é a acumulação de informações que formam o cosmo do personagem.

86349129_630306514432623_1996008835893952512_n

Existem dois fatores principais na grandeza do personagem Howie. O primeiro está diretamente ligado ao que Joias Brutas compreende como “cultura”: um balanço entre a tradição e a tendência. Howie e seu mundo de venda de joias, apostas e barganhas é apresentado como parte da comunidade judaica novaiorquina. Nesse contexto, carrega inevitavelmente o histórico milenar do judaísmo e de seu povo, além de seu espaço dentro da própria América, seu passado de imigração e sua conquista de poder financeiro e político dentro desse ambiente junto com a atualização de seus conflitos sociais e econômicos. O protagonista de Joias Brutas se veste com brilhantes e se afunda em seu próprio excesso de possibilidades financeiras, sua má relação com a própria história pelo sincretismo impossível entre a religião do espírito e a do capital (expostos no desconforto da cena do jantar e o desastre de sua jornada com a joia que importa de outros judeus). Portanto, a cultura do consumo está em colisão com as antigas organizações sociais de uma comunidade, e Howie é uma síntese desse conflito que desestabiliza todo o espaço em que pertence. Nada é o bastante, sua nova regência cultural é pela exploração dos limites de seu consumo.

Um segundo fator que potencializa o protagonista parte do seu intérprete. Nada diz mais sobre Adam Sandler do que seu papel “oscar baiting” ser nada mais do que uma repetição de seu típico personagem manchild recontextualizado para uma história que foca nas consequências de seu comportamento. Sandler é o mesmo paizão de Esposa de Mentirinha (2011) ou de Gente Grande (2012), o homem que se entrega aos desejos juvenis voltados ao próprio egocentrismo. E seu tom é o mesmo durante todo o filme: não há grandes explosões emocionais ou momentos que só serviriam para demonstrar uma “capacidade escondida” do ator. Sandler é o que é, é um comediante que compreende um certo tipo de interpretação e só precisa de justificativas para fazer valer o esforço de sua presença. Joias Brutas enquadra Sandler até o limite de sua persona, testa todas as possibilidades que esse tipo de interpretação pode oferecer ao cinema de inquietação que os Safdie buscam. Para isso lhe foi entregue um personagem como Howie, e certamente faz justiça ao ator que pertence.

Sandler constrói, em sua postura de imaturidade, um personagem que acredita no que faz o tempo inteiro. É isso torna sua persona genuína. Ele aposta em negócios arriscados pelo vício e pela grandiloquência, mas nunca deixa de crer que seus caminhos são os melhores possíveis para seu destino. Isso está diretamente ligado com o que resta de sua tradição espiritual, do senso da fé por um futuro melhor para si mesmo. Isso é base de sua vivência e também de sua danação, é um humano feito para colapsar entregue em uma performance que mantém isso no rosto durante toda a projeção.

85174786_500801997288493_741882036184154112_n

O cinema de inquietação dos Safdie é o produto final das imagens que criam. Howie é enquadrado dentre o brilho dos ambientes que transita, de flares das joias até telinhas de celular, e as pessoas que o cercam, de agiotas violentos até ex-esposas. Um acúmulo de figurações visuais, energizando um sentimento de excesso que nunca deixa de cansar e testar suas bordas. Um exemplo é a sequência da boate: após uma briga com sua amante Julia (Julia Fox), decupada em planos fechadíssimos e escuros, Howie abandona a garota, que sai andando sozinha. Em um dos poucos momentos do filme sem o protagonista, Julia caminha pela fila da boate, troca xingamentos com uma outra mulher que permanece no extracampo e segue a rua olhando para o chão, em silêncio. Poderia parecer um breve momento de descanso dentro da narrativa intrincada pela correria, mas é apenas um acúmulo de amargura que acompanha a personagem, mesmo que longe de Howie, o centro dos conflitos.

 Joias Brutas está sempre cercado de problemas a serem resolvidos e pendências amontoadas, ninguém que está sendo filmado está livre desse cercamento asfixiante. Diversas vezes, os Safdie aproveitam o tamanho de seu scope  para colocar o desfoque da imagem no centro da ação de um quadro, gerando a instabilidade necessária para seus interesses de desestabilização. Se não estão à beira do desfoque, os personagens estão enquadrados por trás de vidros, entre lentes de óculos ou por reflexos, gerando sempre a sensação de que cada pessoa em cada plano está a beira de se desfazer por meio da multiplicação, distorção ou má-resolução de suas próprias imagens. Os olhos sempre estão guiados, o eixo entre os cortes está constantemente sendo quebrado, nada parece juntar em uma narrativa impulsionada pela fuga.

85249698_813358719181451_4046526334397054976_n

Parte dessa inquietação gerada em Joias Brutas surge também da percepção de seus personagens como frações de algo maior. Howie é apenas uma peça de uma movimentação em cadeia do sistema de consumo, começando do nível mais baixo de exploração com os mineiros etiópes e atingindo o consumidor e astro mundial na figura de Kevin Garnett. Nesse contexto, Howie existe como um rosto esquecido que esbarra com consequências maiores. Ele não é uma celebridade, mas circunda seus meios, ajuda a criar suas imagens de riqueza, revende seus brilhantes. No caso da narrativa de Joias Brutas, Garnett precisa de uma joia cedida por Howie que lhe oferece capacidades especiais místicas que ajudarão no resultado de uma partida aguardada. É a partir desse momento que a realidade do anônimo e a realidade do sujeito histórico se intervém, pois o segundo passa a depender do primeiro. De alguma forma bizarra e enervante, Howie, um anônimo à história, está como parte da resolução final de um contexto maior, portanto suas ações se tornam ainda mais inconsequentes e inquietantes quando sentimos que o resultado final delas pode estar sendo, por exemplo, televisionado ao mundo inteiro em uma partida decisiva da NBA. Howie não é uma estrela, é um anônimo que vive por trás do luxo da história, um personagem secundário dos protagonistas da vida real que, por ironia do destino, pode estar interferindo na realidade exposta oficialmente.

Na obsessão do jogador de basquete pela joia-mcguffin, também ressurge o conflito entre o consumo e sua personalização dentro da modernidade. Garnett, ao observar a joia importada por Howie de mineiradores judeus negros, encontra um universo particular que capacita tanto sua trajetória pessoal enquanto astro negro quanto um estado de exploração escravagista sofrido pelos negros que mineiraram aquela joia. Isso é mostrado através de flashes de imagens que correm por alguns segundos de tela enquanto Garnett está hipnotizado pela joia, e automaticamente após essa percepção de um produto de consumo que comunica diretamente com seu estado de existência no mundo, onde também se percebe como parte de algo ainda maior que seu próprio estrelato. Primeiramente, Howie contesta a decisão de Garnett levar a joia, sendo retrucado pelo jogador: “Por que você me mostraria algo que eu não posso ter?”. O consumo e a existência, portanto, habitam um mesmo estado de essencialidade aos personagens-chave do filme.

É muito característico a um filme como Joias Brutas poder ser intitulado como o primeiro filme de época situado nos anos 2010, afinal é o produto audiovisual de um mundo em aceleração. Atualmente, apenas ter personagens usando um modelo “antigo” de Iphone, usando o Instagram em sua interface passada e falando sobre The Weeknd como um vindouro sucesso já garantem um tom de antiguidade. Escolher criar a ficção a partir de um momento recente de nossa história, ainda mais de um causo tão específico quanto três partidas da NBA, carrega em si todo o peso de um aceleracionismo vigente.

O que existe como histórico em Joias Brutas é o reconhecimento de passagens aparentemente irrelevantes ao processo “oficial” do mundo contemporâneo como carregado de uma série de imagéticas próprias, como um clima de início de década e de correria que perpassa seus momentos de cultura popular (o esporte, as celebridades, a exposição virtual), através de uma série de personagens que habitam os bastidores de uma cultura de consumo imediato cada vez mais veloz, retroalimentada e exacerbada pela acumulação. A história dos anos 2010 já começa a partir dessa velocidade, e nada mais justo que um filme de 2019 retorne à 2012 para reaver o que já é concretizado como intrínseco à década que conhecemos. No caso, flashes de celular, excesso de informações e um sentimento de esgotamento agoniante. Só podemos parar para descansar no anonimato post-mortem, lá o universo nos aguarda. Basta acreditar.

84177575_190244628728100_7133638188404310016_n85108448_228773651481658_4575786572938477568_n

FacebookTwitter