Werther (Max Ophüls, 1938)

Por Fernando Mendonça

Como a sua imagem me persegue! Quer vele, quer sonhe, ela enche a minha alma inteira! É quando fecho os olhos, neste ponto da minha fronte onde se concentra a vista interior, que vejo seus olhos negros. Neste ponto! Não posso exprimir-lhe isto. Cada vez que cerro os olhos, eles lá estão, abrem-se diante de mim, em mim, como um oceano, como um abismo; não sinto outra coisa senão eles no meu cérebro.

No original de Goethe, estas palavras ocupam a última carta endereçada voluntariamente por Werther ao seu editor, escritas alguns dias antes do suicídio que marcaria para todo o sempre a história da literatura mundial; morte provocada por um amor impedido, amor mantido por uma obsessão que — a transcrição afirma — é controlada pela imagem da mulher amada.

Dentre os méritos alcançados por Max Ophüls para a adaptação do cânone, o mais importante está na capacidade de dar formas concretas a esta imagem da obsessão, este tormento do olhar. Para isso, destaque-se a ousadia de colocar o próprio Werther, protagonista trágico, num quase segundo plano de enredo, já que toda sua agonia é acentuadamente mediada pela agonia que Charlotte, seu amor impossível, nos mostrará ter.

Já sabemos da importância que o feminino ocupa na carreira do diretor. Poucas coisas significam mais em seus filmes do que as mulheres que neles habitam, na maneira como ele as faz habitar. E se aqui Charlotte (Annie Vernay) surge como um ponto de luz, carregando velas e candelabros, desfilando suas claras vestes em cenários lúgubres, é porque somente através de seu contraste poderemos nos aproximar das trevas que possuem seu desesperado admirador. Um processo de iluminação. Este é o ofício de Ophüls junto ao texto, matéria bruta que não é simplesmente filmada, mas lapidada sob a perspectiva da dor.

Com isso, é natural que o iluminar da tragédia, ou seja, o olhar lançado pelo cineasta sobre ela, priorize alguns eventos em detrimento de outros, sejam eles evidenciados ou não pelo olhar que um dia Goethe nos dera. Talvez o melhor sintoma disto esteja na última imagem do filme, imediatamente anterior ao crédito de encerramento, a ser estampado ironicamente numa contracapa de livro (já no início tivéramos o símbolo bastante banal que fazia o filme começar com o virar de uma página, como indicando algum tipo de fidelidade que na verdade seria ironizada e felizmente deturpada, a exemplo desta cena final). Na cena, Werther suicida-se num campo. Mas não o vemos. Tudo que Ophüls permite materializar na tela é um primeiro plano sobre o cavalo que conduziu Werther até ali.

No animal, a melhor representação do instinto que seu dono não conseguiu domar. Nele, a ausência do corpo vencido, da exaustão assumida por uma força que não condiz à imagem. O ocultar do cadáver, mais do que um decoro ético, vem responder a oração que Charlotte intercede no centro de uma escadaria (espaço central a todo o cinema de Ophüls). E se o diretor precisou abrir mão da materialidade da morte, o fez porque toda a súplica da mulher filmada precisava ser ouvida para além do silêncio de Deus. Em seus filmes, a decadência dos personagens, sempre conscientizada por uma câmera que não se cansa de lhes expor as mais íntimas fraquezas, raramente é acompanhada por algo maior que seus pecados; a idéia divina só se concretiza dentro de uma primeira noção de quadro, primitiva, contrária a qualquer comunhão com os corpos que ultrapasse a margem da tela. Deixá-los crer numa resposta pode ser a única esperança permitida por Ophüls, mas também sua derradeira crueldade, seu abandono. Em Ophüls, não há solução que exceda a imagem.

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