A perda da inocência e do encanto: os contos de Perrault por Breillat

Por Camila Vieira

Se as narrativas dos contos de fadas expressam mitologias extraídas de uma tradição oral em que se canoniza a moral de uma época, de que modo é possível transfigurar tal legado por meio de um cinema que se inventa no presente? Ao usar como matéria-prima os contos de Charles Perrault para a realização dos longas-metragens Barba Azul (Barbe Bleu, 2009) e A Bela Adormecida (La Belle Endormie, 2010), Catherine Breillat não tem a pretensão de se manter fiel ao imaginário das fábulas originais. A busca da cineasta pelas fábulas orbita em torno da compreensão do que delas é possível extrair a favor de seu olhar cinematográfico para a descoberta da sexualidade da mulher e para a transformação de suas personagens pelo desejo – duas obsessões marcantes da própria filmografia da Breillat.

Tanto em Barba Azul quanto em A Bela Adormecida, a fábula é convocada menos pelo seu poder de crença, mas como artifício que escancara a perda da inocência. É interessante até mesmo pensar o gesto seco e direto de encenação da Breillat como contraponto ao gesto transbordante e ornamental de encenação que Jacques Demy propõe em Pele de Asno. Se Demy se entrega por completo à mística fabulosa de Perrault pelo que há de excessivo e encantatório, Breillat parece tomar a fábula pelo viés do desencanto. Seria a consciência bastante brutal de que, se o mundo já não é mais capaz de extasiar, a fábula precisa então ser desvelada como artifício narrativo.

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É por isso que Barba Azul propõe de saída uma metanarrativa: duas pequenas irmãs se deleitam no porão da casa com a leitura do conto de Perrault, mas é a menor que escapa da literaridade das palavras e propõe pequenas subversões à leitura. A história do conto parte do destino de duas irmãs, que estão de luto pela morte do pai e padecem na miséria. A mais velha, Catherine, se casa com o personagem do título, um homem rico, que mora em um castelo luxuoso e que é conhecido na região como alguém cruel com mulheres – ele se casa com meninas sem dote e, depois de um ano, elas desaparecem. No filme de Breillat, Barba Azul é um gigante glutão e taciturno, que parece confiar na nova esposa ao deixar as chaves com ela, antes de suas partidas misteriosas. Ele avisa ser um monstro à Catherine, que retruca: “Tenho mais medo da maldade invisível”.

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Mesmo com o corpo pequeno e frágil, Catherine não teme a presença imponente de Barba Azul. Muitas cenas enfatizam a escala de tamanho entre os corpos dos dois personagens. Ela exige um quarto pequeno só para ela. A coragem da menina é vista como orgulho pelo Barba Azul: “É preciso tomar cuidado para que o orgulho não se torne vaidade”. Barba Azul confia a ela uma chave de um quarto secreto, que ela jamais poderá abrir. Mas é a curiosidade que vai colocar em risco a vida de Catherine, tal como o mito de Eva. Ao abrir o quarto, ela encontra corpos de mulheres mortas e o chão empoçado de sangue. Da mesma forma que o conto, a menina consegue escapar da morte. Ou seja, a vontade de ver e a astúcia da personagem não são motivos para punição. Quem irá morrer não será a personagem do conto, mas aquela que escuta a história ser narrada pela irmã mais jovem,  que é a mais astuciosa, curiosa e ativa na leitura. A leitora passiva e inocente será relegada a cair e morrer.

Breillat coloca em prática seu desejo como leitora ativa, insubordinada, subversiva por excelência com A Bela Adormecida, que não se restringe apenas ao conto de Perrault, mas pavimenta uma mistura narrativa de diversas mitologias, desde a referência à princesa russa Anastásia até a fábula A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen. Enquanto a bela adormecida do conto tradicional é condenada a dormir por 100 anos por uma bruxa malvada, o filme de Breillat leva a heroína a adormecer dos 6 aos 16 anos. Tal peripécia permite a personagem a desdobrar sua infância como uma viagem por diferentes mundos fantásticos e escapar da realidade, percebida com desgosto pela própria personagem – uma tomboy que detesta o “mundo das pequenas garotas”.

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Relógios de tamanhos diferentes e verbetes do dicionário atraem a menina, que burla a temporalidade de sua experiência com saltos para múltiplas paisagens fabulosas. Uma gruta vigiada por um gigante com furúnculos, um pequeno vilarejo em que conhece Peter – o menino encantado pela rainha da neve –, um percurso de trem que a conduz a um reino de príncipes albinos anões, uma carroça saqueada por ciganos. Em cada uma das jornadas por espaços e tempos diversos, a menina descobre mais sobre seus próprios desejos em uma espécie de versão fabular do coming of age.

No momento que adentra mais na narrativa de A Rainha da Neve, o maravilhamento cede lugar à percepção cruel da vida, que só vale a pena ser experimentada com a lucidez do desencanto. “O que você chama de felicidade me impede de viver”, afirma Peter, que irá desaparecer e se tornará o fantasma amoroso da protagonista. Ao sucumbir à morte no mundo fantasioso, a menina acorda em seu castelo de outrora, mas no corpo de uma adolescente. Ela experimenta o prazer sexual com um jovem invasor de seu castelo e com uma jovem cigana que a salvou da morte.

Mas é necessário que a princesa fuja dos grilhões do castelo, onde o tempo pareceu se estagnar – personagens do passado agora são figuras estáticas. Ela pede para seu amante a oportunidade de conhecer a vida lá fora. O salto para o mundano fora do luxo do castelo é o contexto urbano da França no século XXI. O corte é seco, brusco, sem qualquer fusão. A menina está grávida e provavelmente o pai a abandonará. Não há suavidade na queda para o contemporâneo. A busca da menina pelo garoto ideal termina na ausência de qualquer desfecho romântico para a adolescente. É uma dor tão evidente quanto a frágil superfície rasgada da meia-calça da jovem em plano de detalhe e escolhida como última imagem do filme.

Superfícies que se rasgam. Percepções inocentes que se rompem. Corpos que sofrem. Narrativas que perdem o encanto. Leituras que se tornam subversivas. O que esperar da conclusão da trilogia, que promete finalizar com uma versão de A Bela e a Fera? Para uma leitora insubordinada como Breillat, a fábula torna-se um lugar fértil para a desconstrução da moral tradicional do faz de conta. O melhor de tudo é que a ruptura não exige o abandono do jogo da ficção.

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EDITORIAL – A poética da fabulação

Por Camila Vieira

A relação entre cinema e fábula envolve de saída um impasse bastante recorrente e pertinente dentro de uma certa tradição teórica historiográfica. Nos anos 1920, o jovem Jean Epstein vaticinava em seu texto Bonjour Cinéma: “O cinema é verdade. Uma história é uma mentira”. Era como se a arte de narrar histórias estivesse restrita a um legado literário aristotélico (de orquestrações ordenadas de ações) e precisasse ser colocada em um lugar distinto, longe da desordem da vida que o cinema parecia buscar a partir da técnica com a câmera. “A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para um fim concreto, apenas situações abertas em todas as direções”, escreve Rancière na tentativa de compreender o gesto de Epstein. A arte cinematográfica deveria estar neste lugar de excelência da inversão da racionalidade da trama.

Mas Rancière acaba por reconhecer que a visão de Epstein é de um tempo distinto do nosso na contemporaneidade. É uma visão do cinema carregada de uma nostalgia por insistir na separação entre a presença íntima das coisas do mundo e o universo da fábula. Também é uma visão condescendente por compreender o cinema como arte a partir de um dispositivo técnico que poderia colocar em prática uma utopia estética, política e científica daquele contexto histórico. A partir da reflexão sobre tais limitações do texto de Epstein, Rancière procura afirmar a fábula como elemento constitutivo do cinema como experiência.

Mas o que seria do cinema de Epstein sem a fábula, que faz com que ainda possamos sonhar com esta imagem sobreposta do rosto de uma mulher com a selvageria das ondas do mar em Coeur Fidèle (1923)?
Mas o que seria do cinema de Epstein sem a fábula, que faz com que ainda possamos sonhar com esta imagem sobreposta do rosto de uma mulher com a selvageria das ondas do mar em Coeur Fidèle (1923)?

Nem a fábula se restringe à mera contação de tramas ordenadas, tampouco o cinema se restringe aos efeitos de real que podem aproximá-lo de uma certa autenticidade da vida. Para esta nova edição da Multiplot!, pouco interessa a velha distinção entre verdade e mentira, que parecia ser tão cara a Epstein. O que nos interessa como críticos na contemporaneidade é escapar das dicotomias que figuram cordas lançadas pelas teorias e que, muitas vezes, são capazes de sufocar elas mesmas. O gesto a ser feito é mergulhar nos procedimentos estéticos que determinados realizadores lançam mão a favor de dramaturgias em vizinhança com as potencialidades da fábula, aqui defendida em suas diferentes nuances e matizes do sonhar e do imaginar que já estão presentes desde o início do cinema. De que maneira o cinema ainda é capaz de apostar na crença da fabulação?

Pensamos aqui as vontades de alguns realizadores contemporâneos em construir narrativas com zonas de contato mais próximas de fábulas tradicionais, como os contos de Charles Perrault, ressignificados pela postura da leitura ativa de Catherine Breillat, em Barba Azul e A Bela Adormecida. Ou mesmo a peça infantil de Maeterlinck que se transfigura em uma artesania imagética pelo olhar de Maurice Tourneur em O Pássaro Azul.

Alguns cineastas buscam se ancorar na radicalidade da fábula para enfrentar mais diretamente os modos de produção da indústria cinematográfica hollywoodiana, como é o caso da trilogia do ridículo de Alex Cox, ou fazer uma crítica contundente ao status quo capitalista, por meio dos filmes de zumbi de George Romero.

Diretores representativos de movimentos cinematográficos abraçam curvas singulares em suas cinematografias, em grande parte devido à sedução pela fábula. Nelson Pereira dos Santos enfrenta as limitações realistas do paradigma cinemanovista com a ressignificação fabular da força mítica dos terreiros de candomblé e de umbanda em O Amuleto de Ogum. Roberto Rosselini também subverte os meandros neo-realistas com as fábulas indianas que compõem India: Matri Bhumi.

Valerie e sua semana de deslumbramentos, de Jaromil Jires, se alimenta de personagens fantásticos em que o despertar da sexualidade é uma debochada crítica às instituições patriarcais, enquanto L’Apollonide, de Bertrand Bonello, mergulha no nó fabular de cortesãs de uma casa de prostituição do século XIX que procuram burlar a melancolia que encarna seus lugares no jogo da história.

Outros cineastas são convocados ao longo desta edição da Multiplot!, em textos que não pretendem traçar uma linha temporal historiografia de produção entre os filmes. A virada se dá na aposta das intensidades. O intervalo de um texto a outro pretende friccionar olhares diversos, compondo uma grande tessitura de gestos fílmicos tocados pela poética da fabulação. O jogo está posto.

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Corpos que colidem, corpos que se atraem

Por Camila Vieira

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Uma sensação de letargia sobrevoa a atmosfera azulada de Crash – Estranhos Prazeres (Crash, 1996), de David Cronenberg. Personagens com olhares vagos e vozes sussurrantes habitam a cidade, à espreita de algo que lhes arranque do estado de suspensão. A primeira sequência do filme é uma panorâmica aérea de um hangar de aviões particulares. No hospital, a esposa de Ballard constata que “não há muita ação” naquele lugar. As demais camas da enfermaria estão vazias. Uma espécie de vagueza paira sobre os ambientes, mas o que reposiciona tais personagens face à inércia é o contato físico com outras superfícies (a pele, o couro sintético, o ferro) e o choque com a máquina (os acidentes).

James Ballard (James Spader) está distraído quando acontecem os primeiros acidentes automobilísticos. Há o olhar para objetos: o script de um filme, a luva da dra. Helen Remington (Helen Hunt). O impacto da colisão no trânsito amplifica o despertar do prazer no produtor de cinema, que lida com a criação de imagens. Crash é também um filme em torno da atração por imagens do espetáculo, pelos grandes acidentes fatais com celebridades do cinema (James Dean, Jayne Mansfield). A reconstituição destes acidentes por Vaughan (Elias Koteas) produz uma vizinhança com o que Hal Foster chama de realismo traumático, em “O retorno do real”, ao tratar do interesse da pop art de Andy Warhol pela reprodução de imagens de acidente e de mortes trágicas de ícones do cinema.

Subjetividades em choque se produzem na repetição dos eventos traumáticos, seja pela reconstituição do acidente – Vaughan também é seduzido pela fidelidade aos detalhes noticiados – seja pela reprodução técnica da televisão (os vídeos de simulação de colisões de automóveis) e da máquina fotográfica (as imagens de carros destroçados e corpos suturados). Foster entende que a obsessão pela imagem do trauma não reivindica controle sobre ele, mas sua explicação psicanalítica de base lacaniana acaba sendo limitadora, pois coloca a repetição do traumático sob uma sombra protetora. Não há tentativas de proteção aos corpos de Crash. Eles se permitem ao risco do acidente – basta lembrar a sequência em que Ballard tira o cinto de segurança, como se estivesse sufocado pelo dispositivo; ou quando Vaughan enfatiza para a plateia que não vai usar capacete, nem cinto, nem qualquer artefato de segurança no momento em que tenta reviver o acidente de James Dean.

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Vaughan é o personagem que mais provoca as colisões, por enxergar nelas a produção de acontecimentos que não são destrutivos, mas catalisadores de novas formas de prazer. Ele é o profeta do acidente e do momento. Sua intencionalidade é permeada pela proliferação de metanarrativas, que mudam a cada encontro. Seu projeto é um work in progress que vislumbra o futuro: de início, fala do interesse pela reformulação do corpo humano pela tecnologia moderna; em seguida, da busca de potenciais parceiros em psicopatologia dispostos a experimentar diferentes intensidades. Vaughan é o corpo que se infiltra nos lugares, multiplicando funções: ele entra no hospital vestido de médico para fotografar corpos necrosados, forja ser especialista em sistemas internacionais de tráfego, torna-se o apresentador das reconstituições dos acidentes.

Os demais personagens orbitam em torno de Vaughan, como um companheiro de jornada, sem ter a certeza do que virá, mas apostando na força da colisão. Suas peles são marcadas por cicatrizes. Alguns corpos são acoplados a próteses. A cicatriz é o vestígio da lesão, do corte e da recomposição da carne. A junção com a prótese opera outra configuração do corpo humano, ainda que, na narrativa do filme, o acoplamento com a máquina seja no limite do externo e do visível – a simbiose entre o orgânico e o maquínico ganha contornos mais complexos no contemporâneo, com integrações internas e quase imperceptíveis, como as nanotecnologias, que multiplicam as capacidades expressivas e de afecção do corpo.

Há um paralelo entre o aumento do fluxo de carros nas avenidas e as zonas de intensidade dos encontros que se sucedem. Ao mesmo tempo em que a colisão e o toque excitam, é incessante o jogo com a escopofilia: em alguns momentos, o olhar para o prazer do outro; em outros, o olhar para o desfigurado e para a morte (os carros com aço retorcido e vidros estilhaçados; as imagens dos cadáveres nos acidentes históricos). Diferentes gozos colocam em movimento subjetividades heterogêneas, que se permitem viver em rotas que se cruzam e se chocam.

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INTRODUÇÃO AO SLOW CINEMA

Em seu percurso histórico, a crítica de cinema constantemente se depara com filmes realizados em períodos próximos com proposições estéticas semelhantes ou convergentes, apesar das singularidades de cada realização. Como estratégia de mapeamento de certas configurações do cinema, novos termos são criados por críticos e/ou pesquisadores, sem a intenção de fundar algo programático – como apontar movimentos cinematográficos estabelecidos – e com o esforço de estabelecer conceitos ainda que à revelia dos cineastas.

Nos anos 2000, o termo “slow cinema” desponta como conceito recorrente em textos de críticos que se dedicaram a pensar determinado conjunto de filmes realizados na contemporaneidade. A nova edição da Multiplot! propõe uma reflexão sobre o “slow cinema”, desde apresentar como o termo se desenvolveu em um debate complexo entre críticos e pesquisadores até indicar de que modo o cinema contemporâneo reverbera tal designação.

Primeiras aproximações

Dentro da crítica de cinema, o conceito de “slow cinema” começa a ser configurado a partir do uso da noção de “slowness” (“lentidão”). Em 2003, o crítico francês Michel Ciment usa a expressão “cinema of slowness” (“cinema da lentidão”) para pensar filmes que se posicionam como contraponto ao modelo de curta duração dos planos do cinema recente hollywoodiano e da televisão. Em texto escrito para o 46º Festival Internacional de Cinema de São Francisco, Ciment argumenta: “Ao se tornarem impacientes com o bombardeamento de som e imagem em que eram submetidos como espectadores de TV e de cinema, alguns diretores reagiram com um cinema da lentidão, da contemplação, como se quisessem viver novamente a experiência sensorial de um momento revelado em sua autenticidade”*. Béla Tarr, Tsai Ming-liang, Abbas Kiarostami, Theo Angelopoulos, Nuri Bilge Ceylan e Sharunas Barthas são alguns dos cineastas citados por Ciment dentro desta designação do “cinema da lentidão”.

Em 2008, o pesquisador Matthew Flanagan se apropria da expressão de Ciment e desenvolve o uso teórico do termo no artigo “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. Ele aponta como características formais compartilhadas por alguns cineastas: “o emprego (muitas vezes, em extremo) de longos planos, modos descentrados e discretos de narrar e uma ênfase acentuada na quietude e no cotidiano”**. Flanagan considera que já não seria suficiente empregar a noção abstrata de “lentidão” para compreender o cinema feito por tais realizadores, mas reposicioná-los em um projeto formal que ele nomeia de “estética do slow”.

O conceito de “slow cinema” só irá ganhar popularidade entre críticos e cinéfilos anglo-saxões, a partir de 2010 com uma série de textos da revista britânica Sight & Sound, em especial o editorial escrito por Nick James que questionou o efeito político dos “slow films”. A partir daí, o debate se polariza entre críticos e pesquisadores de cinema: alguns celebram o “slow cinema”, enquanto outros rechaçam. Nos Estados Unidos, Steven Shaviro (2010) considerou o “slow cinema” como esteticamente retrógrado, enquanto Manohla Dargis e A. O. Scott (2011) se posicionaram em defesa do conceito em artigo no jornal New York Times.

Possíveis origens

Alguns pesquisadores (como o próprio Matthew Flanagan) situam a origem do slow cinema no cinema moderno do pós-guerra, procurando traçar uma genealogia que inclui filmografias tão distintas quanto as de Michelangelo Antonioni, Yasujiro Ozu, Carl Theodor Dreyer e Robert Bresson. Outros preferem restringir o slow cinema como fenômeno específico do cinema contemporâneo, em um contexto global e intercultural que busca resgatar por meio da estética fílmica uma temporalidade mais dilatada em contraposição ao tempo acelerado do capitalismo tardio.

Apesar do debate bastante controverso em torno do “slow cinema”, o conceito não se diluiu ou perdeu força. Ele passou a ser o foco de pesquisas acadêmicas, como as teses de doutorado de Matthew Flanagan (2012) e Nadin Mai (2015). A partir do estudo da obra de Lav Diaz, Nadin Mai criou o blog The Art of Slow Cinema e uma distribuidora de filmes com o perfil, a tao films. Em 2014, três livros importantes foram lançados como referências para o estudo do “slow cinema”: Tsai Ming-liang and a Cinema of Slowness, de Song Hwee Lim; Slow Movies: Countering the Cinema of Action, de Ira Jaffe, e On Slowness: Toward an Aesthetic of the Contemporary, de Lutz Koepnick. Há dois anos, Tiago de Luca e Nuno Barradas Jorge organizaram o livro Slow Cinema, que reúne um conjunto de artigos escritos por diferentes autores que pensam o conceito.

De modo geral, críticos e pesquisadores caracterizam o slow cinema como filmes que investem no prolongamento da duração, na experiência da contemplação, na manutenção da espera, na permanência do olhar. Seria menos a exploração do longo take, mas sobretudo uma reelaboração da mise-en-scène a favor dos pequenos acontecimentos. Song Hwee Lim (2014) acrescenta outros parâmetros do slow cinema, como a ênfase nos silêncios, na quietude, na contenção do plano. Lucia Nagib (2016) explica que a defesa do slow cinema pressupõe “a existência de um cinema rápido, contra o qual ele se posiciona como alternativa vantajosa. Em uma época em que a mercantilização da velocidade está obliterando impiedosamente a fruição dos nossos prazeres mais básicos, de comer a desfrutar de uma bela paisagem, parece realmente prudente defender a lentidão como antídoto contra o consumismo insensato”*** .

Apesar das características gerais acima mencionadas, é arriscado enquadrar o slow cinema em padrões completamente definidos ou fórmulas rigidamente pré-estabelecidas. As estratégias fílmicas mudam de acordo com a proposta de cada realizador. No lugar de responder o que seria o slow cinema por um pressuposto unívoco e essencialista, a atual edição da Multiplot! é um convite para pensar como o conceito se desdobra em filmes particulares ou como se materializa na filmografia de determinados cineastas contemporâneos.

  • CIMENT, Michel. “The State of Cinema”. Unspoken Cinema, 2003. Disponível em: <http://unspokencinema.blogspot.com/2006/10/state-of-cinema-m-ciment.html>.
  • FLANAGAN, Matthew. “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. 16:9, nov. 2008. Disponível em: <http://www.16-9.dk/2008-11/side11_inenglish.htm>.
  • NAGIB, Lucia. “The Politics of Slowness and the Traps of Modernity”. In.: LUCA, Tiago de; JORGE, Nuno Barradas (orgs). Slow Cinema. Edingburgh: Edingburgh University Press, 2016. . 26
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Festival de Brasília: O Nó do Diabo

A origem do mal

Por Camila Vieira

A estrutura narrativa do longa-metragem O Nó do Diabo (2016), de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, é dividida em cinco capítulos, que são separados e nomeados por anos específicos, seguindo uma cronologia decrescente do futuro até o passado. A estratégia procura pensar uma dramaturgia em que cada capítulo seguinte encadeia eventos trágicos que, de algum modo, estão conectados ao que já foi apresentado no capítulo anterior. Parece existir uma componente genealógica dentro deste esforço de alinhavar as diferentes tramas, de modo a compor uma grande narrativa em torno das relações de poder e de dominação entre brancos e negros. O espaço é uma fazenda canavieira e o tempo é o intervalo de dois séculos, em que uma espiral de acontecimentos se desdobra em torno da escravidão, do racismo e da propriedade.

Ao desenvolver os conflitos em cada um dos capítulos pela chave do oponente a ser eliminado ou exterminado, O Nó do Diabo parte da construção de dois polos dentro da dinâmica de quem ameaça e de quem se sente ameaçado. De um lado, Vieira é o branco latifundiário, que detém os títulos de propriedade da terra e a força de exploração. Ele é o único personagem presente em todos os capítulos; sua premissa é de uma entidade eterna, como um vampiro que cruza diferentes tempos. Do outro lado, os personagens negros são transitórios de um capítulo a outro, mas eles são convocados a uma força de resistência contínua que passa de geração em geração.

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Enquanto Vieira é o corpo que se mantém intacto e impermeável ao tempo, os corpos dos negros que se revoltam estão transmutados, metamorfoseados como figuras monstruosas, que carregam um mal original, o tal nó do diabo. Ao se deixar seduzir pelos códigos do gênero de horror, em especial pela construção do fantástico que apela para a iconologia da monstruosidade (os mortos-vivos, os fantasmas de olhos vermelhos, a jovem incendiária), a insurgência parece se identificar menos com uma problemática de fundo histórico e mais com uma justificativa de gênese do mal. “A terra come tudo. A alma não descansa nunca”, diz o mentor do escravo fugitivo no penúltimo capítulo.

Há eficácia no modo como é explorada a linguagem do cinema de gênero de horror, como o uso do zoom para provocar um efeito, a música com graves que enfatizam a tensão da cena, o sangue gráfico do gore. De um capítulo a outro, os mesmos códigos são pontuados, mas a necessidade de se servir deles apenas aponta para a harmonização de um todo, que não gera dissonâncias capazes de surpreender. A subversão no próprio caráter de estranhamento das figuras monstruosas parece estar inserida no mesmo grau de importância entre tantos outros elementos que o filme abarca.

Mas se existe um embotamento da subjetividade dos personagens insurgentes pelas forças do mal que eles carregam, a existência deles não está separada do tom excessivo e espetacular da perpetuação da violência em O Nó do Diabo. A eliminação do outro e o derramamento de sangue são apenas instrumentos que contribuem para o bom funcionamento e para a eficiência dos códigos do horror na economia narrativa e de mise-en-scène do filme.

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Festival de Brasília: Por Trás da Linha de Escudos

Ambição e ingenuidade

Por Camila Vieira

Por Trás da Linha de Escudos, de Marcelo Pedroso, é o fracasso de um projeto que ambicionou ser maior do que realmente é. Ao fazer um documentário dentro do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, o grande desafio era encontrar uma maneira de escutar os policiais, pelo gesto de se posicionar do outro lado do front de batalha, já não mais dos manifestantes que protestam nas ruas. Se, para Jean-Louis Comolli, filmar o inimigo é de alguma forma se colocar do lado dele e compartilhar a mesma cena, Pedroso parte da mesma premissa e toma a decisão espinhosa de não partir para o confronto.

No entanto, a postura de não confrontar precisa caminhar junto com a necessidade de desmontar o inimigo em sua própria história e conseguir descrevê-lo com suas contradições para que possa aparecer como tal. Ao longo do filme, Pedroso indaga os policiais, procurando compreender suas motivações dentro da dinâmica de trabalho, enquanto acompanha os diversos treinamentos da tropa e operações habituais do exercício da função. As perguntas jamais são colocadas em tom de ataque, mas de curiosidade em relação a como funciona o efetivo. A fragilidade do filme não repousa na opção pelo não confronto, mas em não conseguir encontrar estratégias que apontem para a complexidade de ser um policial militar dentro do atual contexto histórico do Brasil.

O dispositivo de escuta de Pedroso em Por Trás da Linha de Escudos leva a dois caminhos igualmente problemáticos: a repetição exaustiva dos argumentos dos policiais dentro do discurso oficial (eles sempre respondem que estão cumprindo normas e leis, como braços do Estado, e que não existe espaço para emoção) e a observação do modus operandi dentro do batalhão na linha da aprendizagem de como se tornar um bom policial. O que se obtém nas filmagens parece seguir uma abordagem institucional ou não escapa de perguntas que a própria polícia já se acostumou a ouvir (não é a toa que o primeiro coronel entrevistado não consegue distinguir a equipe de cinema de uma equipe de imprensa qualquer).

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Se ao lado do batalhão não se produz nada além do oficialesco e do institucional, resta forçar uma pretensão crítica em outro lugar: intercalar com os registros do confronto da polícia com os manifestantes no Movimento Ocupe Estelita em 2014 e com imagens icônicas a serviço de uma certa leitura simbólica do país (a bandeira do Brasil repleta de carrapatos, bonequinhos de manifestantes e polícia em um jogo tabuleiro, o céu da bandeira que se torna escudo com a faixa de “ordem e progresso”). No entanto, o esforço de crítica é acomodado em uma sucessão de imagens que não provocam qualquer ruído no que já foi dito.

Mesmo nos trechos em que se acena um contraponto, como é o caso da sequência em que Pedroso está na ilha de edição e coloca lado a lado a foto de um manifestante sangrando e outra de uma mulher sorridente com os policiais, o olhar é apenas de ingenuidade. Parece que é aí que o cinema abdica da crença em sua capacidade de produzir desvio. O reforço da pose do diretor ingênuo e em crise com o material que tem em mãos é agravado pela arrogância de acreditar que está compreendendo o lado humano do batalhão de choque. Um dos policiais se enxerga como um cidadão comum que também sofre. Mas se o filme não se interessa em investigar isso e se limita a ouvir o policial e não a pessoa para além de sua missão profissional, a busca pelo humano fica só no discurso.

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Festival de Brasília: Construindo Pontes

Diferenças conciliáveis

Por Camila Vieira

Em determinado momento do longa-metragem Construindo Pontes, a diretora Heloísa Passos esclarece que seu documentário partiu do interesse de filmar um lugar de conflito e de convivência. A partir da relação com seu pai, a realizadora não se furta em expor as diferenças entre os dois, tanto de visões particulares de mundo quanto do pensamento sobre a política do Brasil. O pressuposto parece ser um abismo que existe entre Heloísa e Alberto, engenheiro que trabalhou em várias obras de infraestrutura durante o período da ditadura militar.

De início, Heloísa procura entender no passado as raízes do abismo com seu pai. Seu ponto de partida visual é a cachoeira de Sete Quedas, por meio de imagens registradas em Super-8 e dadas de presente pelo pai. A queda d’água desapareceu com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, uma das obras erguidas durante a ditadura, no final dos anos 70. Alberto não foi o engenheiro responsável pela construção da hidrelétrica, mas Heloísa toma o projeto como exemplo de um contexto histórico por meio do qual seu pai coordenou em 15 anos a criação de 22 obras espalhadas pelo Brasil que, segundo o olhar dele, se inserem dentro do único projeto político e econômico que trouxe benefícios para o país.

Enquanto Heloísa pede para Alberto traçar no mapa do Brasil a extensão das obras que participou e exibe imagens de arquivo com fotos da época, os conflitos entre ela e o pai vão surgindo, ainda que ela deixe claro que “a família é o não dito”. Ao tratar da situação política atual do Brasil, ela questiona a arbitrariedade de “um país sem lei”. Durante uma conversa em torno do mandato de condução coercitiva do ex-presidente Lula, Alberto insiste que ela “não se envolva emocionalmente” e reafirma que a ditatura tinha limites de corrupção, com regras rígidas de modernização a favor do sistema econômico.

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Na disputa de discursos entre pai e filha, Alberto aparenta impassividade e Heloísa mantém a postura de enfrentamento. Mas os desacordos entre os dois jamais são aprofundados e permanecem apenas na lógica do desequilíbrio perceptível de uso das palavras: “Ele fala moça. Eu falo presidenta. Ele fala revolução. Eu falo ditadura”. No momento em que Heloísa narra a história de sua saída de casa aos 22 anos, quando o pai descobriu que ela namorava uma menina, o filme parece apontar para uma ferida não conciliável entre ambos. No entanto, a presença da nova companheira, Tina, dentro da casa durante as filmagens é apenas periférica, sem resquício algum de que aquele acontecimento do passado ainda provoque qualquer incômodo ou dissenso.

Se mesmo a forma como Alberto quer interferir no filme não passa de sugestões como “ter um propósito” ou chegar a “uma concepção final”, as divergências entre ambos são sempre colocadas como exposição de pontos de vistas distintos, que jamais transbordam na constituição da cena. O propósito é a “boa sincronização” do lugar de conflito que até então tinha sido tomado como pressuposto do filme, mas que é inviabilizado pela felicidade estampada nas fotos do álbum de família e pela constatação do  “deixem que eu decida a minha vida” na voz de Belchior.

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Festival de Brasília: Pendular

Oscilar e mudar

Por Camila Vieira

Usado como instrumento para estudar o tempo e o movimento, o pêndulo é composto por dois elementos mecânicos: uma superfície imóvel e uma linha que oscila. Talvez uma forma de aproximação inicial para pensar o longa-metragem Pendular (2017), de Julia Murat, é perceber as diferentes forças que emergem de um ponto fixo. A situação já posta é a relação de um jovem casal e será desta aparente estabilidade determinada que algo irá se modificar, oscilar e produzir movimento. Os personagens sem nome já trazem em si e no próprio ofício a dinâmica do tensionamento pendular: o homem é escultor e trabalha com objetos pesados, grandes, sólidos e rígidos; a mulher é dançarina e dispõe seu corpo ao movimento, à instabilidade, à leveza.

Dentro da existência de uma desigualdade que já está colocada como base da constituição dos dois protagonistas, há um espaço que necessita ser ocupado: o galpão abandonado de uma estamparia. Para estar junto e conseguir trabalhar, o casal necessita estabelecer regras de ocupação a partir da delimitação do território por uma faixa laranja que divide o espaço. É a partir daí que a narrativa de Pendular irá se desenvolver em quatro partes, que estruturam o roteiro (escrito em parceria com Matias Mariani, marido de Murat): A Chegada de Alice, O Ímpeto, A Ação e A Contra-Ação.

Na primeira parte, a relação entre os dois parece ser iluminada e solar. Esta sensação se materializa formalmente nas cenas iniciais pela incidência de luz branca nos rostos dos dois, enquanto estão juntos na cama. Cada um é instigado pela curiosidade de observar o trabalho criativo do outro: ela o vê suspender um objeto pesado de madeira e segue a linha de aço que sai do galpão até o poste de luz. Ele diz para os amigos que não colocou uma lona para dividir o espaço, porque “a graça é poder ver ela”. A cumplicidade faz parte do jogo de olhar e ser olhado.

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O segundo momento já inicia com a redistribuição do espaço: ela precisa ceder uma parte para que ele possa ampliar seu trabalho, com o argumento de que aquele pequeno território negociado “não vai fazer falta” para ela. Enquanto fica evidente em Pendular que a estratégia de etiquetação é “passível de renovação segundo o bom comportamento”, a invasão do espaço aponta não só para quem tem o poder de ocupar em prol da sobrevalorização do próprio trabalho – o homem deseja renovar suas bases criativas, ainda que não saiba direito o que está fazendo –, mas também incide sobre quem pode dominar o corpo do outro – ele quer ter filhos e ela não quer.

Julia Murat preenche seu filme de momentos intensos da relação do corpo com o espaço (as coreografias das danças performadas por Raquel Karro), do corpo com os objetos (as vibrações sonoras no contato com objetos metálicos, o barulho de máquinas de ar e ventiladores) e dos corpos com outros corpos (as cenas de sexo). É na ênfase do próprio corpo que se coloca a questão do que fazer diante do desequilíbrio de poder e da dominação na relação a dois. A terceira parte do filme já começa com as inseguranças de cada um ao ouvir as críticas negativas de seus trabalhos artísticos. A crise criativa se mistura à ocultação de segredos, em que ele parece querer desvelar a todo custo e ela esconde para tomar decisão por conta própria. O embate irá se prolongar na última parte de Pendular e, mesmo com a tentativa de querer compreender a subjetividade do outro, há algo que se transformou pela intensidade do que foi vivido. A ruptura da estabilidade entre os dois acena para um enigma do que poderá acontecer.

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Festival de Brasília: Não Devore Meu Coração!

Dosar o estilo

Por Camila Vieira

Há dois pólos claramente definidos e distintos em Não Devore Meu Coração! (2017), de Felipe Bragança: os brasileiros e os indígenas paraguaios. Do lado dos brasileiros, há o predomínio da força patriarcal, marcada pela ocupação de território e pelo exercício da virilidade masculina. Do lado dos paraguaios, um povo que resiste às ameaças e valoriza mulheres como líderes guerreiras. O subtexto histórico é a memória da Guerra do Paraguai que, dentro da trama do filme, encontra reverberações nos conflitos às margens do rio Apa. Ao estabelecer diferenças radicalmente opostas entre os dois universos, a dramaturgia do filme está ancorada em uma alegoria mítica em que há uma disputa permanente entre partes que desde já são inconciliáveis.

Existe uma vontade de que algum laço seja possível entre Joca, o garoto brasileiro de 13 anos, e Basano, a menina indígena paraguaia de 14 anos. A pequena guerreira é quem rouba o coração do menino, que se apaixona e passa a procurá-la. Colocando como base o encontro entre os dois já mediado pelo fantástico, a estrutura dramática de Não Devore Meu Coração! assume uma narrativa em capítulos, onde cada desdobramento se reveste de tratamento poético grandioso. Algo já explorado desde A Fuga da Mulher Gorila (2009), primeiro longa de Bragança, em co-direção com Marina Meliande (que, neste novo filme, assina a produção), mas agora com encadeamentos que seguem uma linha menos fragmentada de narrar, procurando alinhavar os contos de Joca Reiners Terron, nos quais o filme se inspira.

Mesmo que busque uma ancoragem dramatúrgica mais tradicional e clássica, o filme é seduzido por determinados vícios formais que, se por um lado evidenciam a autoria de quem dirige, por outro acabam cristalizando intencionalidades enrijecidas. Ainda permanecem a reapropriação do gênero atravessada pelo acúmulo de referências cinematográficas (o encantatório de Apichatpong, os confrontos de faroeste, o clima de aventura de filmes juvenis dos anos 80, a iconografia dos super-heróis), a necessidade de trazer a fábula para o cotidiano, o predomínio da palavra, as atuações impostadas. Os usos de zoom in e zoom out e as ralentações das cenas são exemplos mais evidentes do esforço grandiloquente de demarcar o estilo da direção.

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No entanto, há intervalos de respiro em que algo se transborda na cena e que parece ser de difícil controle. Os momentos de maior força de encenação pairam durante as reuniões do grupo de motoqueiros da Gangue do Calendário e o confronto com os adversários da República Guarani. Talvez as melhores cenas são construídas a partir do embate entre a índia Lucia e o brasileiro Fernando (a presença de Cauã Reymond parece sempre crescer nestes pequenos trechos). Em outras situações de confronto, há pouca envergadura emocional: os conselhos brutos de Fernando ao irmão Joca ou mesmo a conversa do agroboy com o pai não passam de frases prontas e ditas no automático, as distâncias e as aproximações de Joca e Basano carecem de vitalidade cinematográfica, ainda que sejam cuidadosamente construídas.

Diferente dos longas anteriores de Felipe Bragança da trilogia Coração no Fogo (A Fuga da Mulher Gorila, Desassossego e A Alegria – todos eles em parceria com Marina Meliande), é perceptível uma tentativa de construção cênica em Não Devore Meu Coração! que possa encontrar escapes às imposições do estilo de um autor. No entanto, a direção está longe de se libertar dos excessos de pretensão, que criam e acumulam estratégias formais engessadas, a ponto de apontar mais para a necessidade de marcar o filme com uma assinatura do que para contribuir na densidade do que está sendo narrado.

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O encontro pelo erotismo: desejo e pulsão de morte no cinema contemporâneo

Por Camila Vieira

“Digamos, sem esperar mais, que a violência e a morte que ela significa possuem um duplo sentido: por um lado, o horror não afastado, ligado ao apego que a vida inspira; por outro, um elemento solene, ao mesmo tempo, aterrador, fascina-os e provoca, uma perturbação soberana”. (Georges Bataille, O Erotismo)

“A ambiguidade e a bipartição caracterizam, de um modo mais típico, o problema do erotismo quando, mais do que qualquer outro, ele parece resistir às definições, flutuando entre o físico e o espiritual”. (Lou Andreas-Salomé, O Erotismo)

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Em uma sequência de The Addiction (1995), de Abel Ferrara, a estudante de filosofia Kathleen Conklin toma consciência de sua própria transformação, dias após o ataque inesperado de uma mulher desconhecida que sugou seu sangue. Neste súbito de lucidez às sombras do vampirismo, a protagonista esclarece que, não importa o que aconteça, é a violência da sua vontade contra a dos outros. O encontro aqui implica uma violação de fundo, que está na base do jogo erótico. Trata-se do desejo incontrolável e perturbador de aniquilação do outro. Se, de acordo com o pensamento de Bataille, o erotismo é uma aprovação da vida até na morte, como compreender no filme de Ferrara, o encontro dos corpos a partir da intensidade da violência que chega ao limite da morte? Mais ainda: junto com The Addiction, a questão segue uma linha de entrecruzamentos com outros dois filmes contemporâneos – em especial, Trouble Every Day (2001), de Claire Denis; e Dans Ma Peau (2002), de Marina de Van –, que, apesar das singularidades perceptíveis de seus desdobramentos, também cotejam encontros em que o desejo escapa ao controle e a relação com o outro envolve a pulsão de morte.

Nos três longas-metragens, os personagens estão envoltos em situações iniciais e temporárias de aparente equilíbrio e ordem com os códigos sociais. Eles se inserem na dinâmica do trabalho (a rotina de estudos na faculdade por Kathleen, em The Addiction; a dedicação aos prazos no mundo dos negócios por Esther, em Dans Ma Peau) ou se submetem a interdições (o cativeiro de Coré não está distante do aprisionamento instaurado pelo casamento de Shane, em Trouble Every Day). Esta normalidade será perturbada por um ponto de ruptura, catalisado pelo contágio com algo externo – o ataque noturno da mulher na calçada em The Addiction, o acidente com os ferros no canteiro de obras em Dans Ma Peau, a experiência científica com humanos em Trouble Every Day. Tais imprevistos violentos no cotidiano irão provocar mudanças no curso dos acontecimentos e liberar forças inesperadas no âmbito do desejo.

A vertigem e a euforia reposicionam o erotismo dos corpos para algo de sinistro, que irá desencadear perturbações e incômodos dentro da normalidade cotidiana. Na noite em que é atacada, Kathleen se sente mal, é acometida por náuseas e suores frios, enquanto seu pescoço jorra sangue. Depois de ter a perna dilacerada, Esther vê fragmentos desfocados dos lugares em que passa (os planos pontos de vista de Dans Ma Peau provocam a sensação de que tudo está girando ao redor dela). Shane é perturbado por imagens oníricas (ou seriam lembranças?) do corpo da sua esposa banhado de sangue. Tais indícios alucinatórios são prévias de transformações no modo como os personagens irão interagir com o mundo. Kathleen começa a abordar os drogados marginalizados nas ruas, para quem ela não dava atenção. Coré seduz caminhoneiros na beira da estrada para atacá-los em terrenos abandonados, enquanto Shane persegue os passos da camareira de um hotel. Esther passa a ter uma percepção mais intensa do seu próprio corpo e se fascina pela superfície de sua pele como uma estranha alteridade radical.

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Por mais que busquem suprimir o abismo profundo que existe entre eles e o mundo, os personagens dos três filmes são seres descontínuos que vislumbram no contato com o outro a possibilidade de atingir uma continuidade desde já perdida. Na tentativa de dar um salto no abismo, eles se deixam conduzir pelo descontrole de seus desejos que os levam a sensações tortuosas. Kathleen vislumbra que existe um terrível precipício entre as pessoas, mas a alegoria do vício no filme de Ferrara está para além do salto. “Há uma diferença entre saltar e ser empurrado. Chega uma hora em que se deve satisfazer as necessidades e você é pego pelo fato de não poder acabar com aquela situação”, diz Kathleen. É preciso manter Coré presa em casa com grades e portas de ferro para que ninguém esteja sob o risco de sua força erótica, mas ainda assim a interdição será transposta por dois garotos que conseguem invadir o território proibido. Esther escuta constantes e duras repreensões do marido, que jamais são suficientes para impedi-la de continuar cortando sua pele.

Na constante procura por um objeto fora do desejo, há um desequilíbrio que põe o sujeito em lugar de incessante questionamento, posto que ele se perde diante do próprio desejo. O movimento do erotismo excede os limites, a ponto de permitir uma esquiva do entendimento e colocar o outro à frente da violência. Pela necessidade física do contato com o outro em sua materialidade – que não acontece geralmente pela chave do prazer sexual –, algo extravasa nesta relação, pondo a vida em risco. Em The Addiction, o descontrole do desejo explica inclusive os massacres que se repetem na História e acumulam cadáveres (imagens dos corpos dizimados nas guerras pontuam o filme). Não há como controlar o que os humanos fazem, porque eles são escravos de suas próprias forças. Se, em alguma medida, Abel Ferrara aponta sua alegoria do vampirismo para um comentário verborrágico sobre o mal da humanidade por meio do vício e do pecado, Claire Denis subverte a conotação moral em Trouble Every Day e, por meio do silêncio e da proximidade dos corpos, acompanha com leve torpor a força canibal de Coré e Shane.

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Diferente dos filmes de Ferrara e Denis, Dans Ma Peau desloca o problema da relação entre o eu e o outro para a implicação do erotismo no limite de uma desordem violenta com o próprio corpo. Esther não é capaz de sentir o dilaceramento de sua pele. A superfície epidérmica é o estranho que desencadeia a curiosidade de Esther, dentro de um jogo erótico que irá dissolver formas constituídas – a centralidade de si como uma mulher de negócios bem sucedida e que precisa cumprir um papel social regular esperado por todos ao seu redor. É emblemática a sequência do filme de Marina de Van em que, em meio a um jantar com executivos, Esther enxerga seu braço deslocado do resto do corpo, funcionando como um membro mecânico que ganha vida própria. O estranhamento com o corpo desperta em Esther a vontade de perscrutar sua pele com objetos de ferro pontiagudos, a ponto de atingir o ápice quando performa (a diretora é também a atriz do filme) o ato de se retalhar, diante de um espelho e registrar em fotografias. Mas aqui o auge da excitação erótica não condena a vida a desaparecer, ao contrário do banquete final de The Addiction que leva ao massacre dos convidados (parecido com a intensidade do clímax de Ms. 45, filme anterior de Ferrara) ou o encontro de Shane com Coré que implica na morte inevitável dela, em Trouble Every Day.

Seja na realização da morte ou na aproximação dela, a vida é colocada em questão nos três filmes, a partir do excesso que se engendra no encontro pelo erotismo. É uma experiência que se dá no real pelo que há de inesperado nele e, desde já, ela é plena de violência, na medida em que assume um potencial de transbordamento dos limites possíveis. Trata-se de uma perturbação ainda sem nome. “Você não é nada”, insiste o mestre vampiro de The Addiction em uma conversa no galpão sombrio com Kathleen. Existe um mistério que cerca o experimento científico pelo qual Coré e Shane foram cobaias, em Trouble Every Day. Não há explicações que consigam dar conta da vontade de Esther em retalhar sua pele, em Dans Ma Peau. A passagem da normalidade ao desejo erótico pressupõe uma desconstrução das causas e uma abertura aos movimentos violentos que desestabilizam.

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