Por Camila Vieira
Se as narrativas dos contos de fadas expressam mitologias extraídas de uma tradição oral em que se canoniza a moral de uma época, de que modo é possível transfigurar tal legado por meio de um cinema que se inventa no presente? Ao usar como matéria-prima os contos de Charles Perrault para a realização dos longas-metragens Barba Azul (Barbe Bleu, 2009) e A Bela Adormecida (La Belle Endormie, 2010), Catherine Breillat não tem a pretensão de se manter fiel ao imaginário das fábulas originais. A busca da cineasta pelas fábulas orbita em torno da compreensão do que delas é possível extrair a favor de seu olhar cinematográfico para a descoberta da sexualidade da mulher e para a transformação de suas personagens pelo desejo – duas obsessões marcantes da própria filmografia da Breillat.
Tanto em Barba Azul quanto em A Bela Adormecida, a fábula é convocada menos pelo seu poder de crença, mas como artifício que escancara a perda da inocência. É interessante até mesmo pensar o gesto seco e direto de encenação da Breillat como contraponto ao gesto transbordante e ornamental de encenação que Jacques Demy propõe em Pele de Asno. Se Demy se entrega por completo à mística fabulosa de Perrault pelo que há de excessivo e encantatório, Breillat parece tomar a fábula pelo viés do desencanto. Seria a consciência bastante brutal de que, se o mundo já não é mais capaz de extasiar, a fábula precisa então ser desvelada como artifício narrativo.
É por isso que Barba Azul propõe de saída uma metanarrativa: duas pequenas irmãs se deleitam no porão da casa com a leitura do conto de Perrault, mas é a menor que escapa da literaridade das palavras e propõe pequenas subversões à leitura. A história do conto parte do destino de duas irmãs, que estão de luto pela morte do pai e padecem na miséria. A mais velha, Catherine, se casa com o personagem do título, um homem rico, que mora em um castelo luxuoso e que é conhecido na região como alguém cruel com mulheres – ele se casa com meninas sem dote e, depois de um ano, elas desaparecem. No filme de Breillat, Barba Azul é um gigante glutão e taciturno, que parece confiar na nova esposa ao deixar as chaves com ela, antes de suas partidas misteriosas. Ele avisa ser um monstro à Catherine, que retruca: “Tenho mais medo da maldade invisível”.
Mesmo com o corpo pequeno e frágil, Catherine não teme a presença imponente de Barba Azul. Muitas cenas enfatizam a escala de tamanho entre os corpos dos dois personagens. Ela exige um quarto pequeno só para ela. A coragem da menina é vista como orgulho pelo Barba Azul: “É preciso tomar cuidado para que o orgulho não se torne vaidade”. Barba Azul confia a ela uma chave de um quarto secreto, que ela jamais poderá abrir. Mas é a curiosidade que vai colocar em risco a vida de Catherine, tal como o mito de Eva. Ao abrir o quarto, ela encontra corpos de mulheres mortas e o chão empoçado de sangue. Da mesma forma que o conto, a menina consegue escapar da morte. Ou seja, a vontade de ver e a astúcia da personagem não são motivos para punição. Quem irá morrer não será a personagem do conto, mas aquela que escuta a história ser narrada pela irmã mais jovem, que é a mais astuciosa, curiosa e ativa na leitura. A leitora passiva e inocente será relegada a cair e morrer.
Breillat coloca em prática seu desejo como leitora ativa, insubordinada, subversiva por excelência com A Bela Adormecida, que não se restringe apenas ao conto de Perrault, mas pavimenta uma mistura narrativa de diversas mitologias, desde a referência à princesa russa Anastásia até a fábula A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen. Enquanto a bela adormecida do conto tradicional é condenada a dormir por 100 anos por uma bruxa malvada, o filme de Breillat leva a heroína a adormecer dos 6 aos 16 anos. Tal peripécia permite a personagem a desdobrar sua infância como uma viagem por diferentes mundos fantásticos e escapar da realidade, percebida com desgosto pela própria personagem – uma tomboy que detesta o “mundo das pequenas garotas”.
Relógios de tamanhos diferentes e verbetes do dicionário atraem a menina, que burla a temporalidade de sua experiência com saltos para múltiplas paisagens fabulosas. Uma gruta vigiada por um gigante com furúnculos, um pequeno vilarejo em que conhece Peter – o menino encantado pela rainha da neve –, um percurso de trem que a conduz a um reino de príncipes albinos anões, uma carroça saqueada por ciganos. Em cada uma das jornadas por espaços e tempos diversos, a menina descobre mais sobre seus próprios desejos em uma espécie de versão fabular do coming of age.
No momento que adentra mais na narrativa de A Rainha da Neve, o maravilhamento cede lugar à percepção cruel da vida, que só vale a pena ser experimentada com a lucidez do desencanto. “O que você chama de felicidade me impede de viver”, afirma Peter, que irá desaparecer e se tornará o fantasma amoroso da protagonista. Ao sucumbir à morte no mundo fantasioso, a menina acorda em seu castelo de outrora, mas no corpo de uma adolescente. Ela experimenta o prazer sexual com um jovem invasor de seu castelo e com uma jovem cigana que a salvou da morte.
Mas é necessário que a princesa fuja dos grilhões do castelo, onde o tempo pareceu se estagnar – personagens do passado agora são figuras estáticas. Ela pede para seu amante a oportunidade de conhecer a vida lá fora. O salto para o mundano fora do luxo do castelo é o contexto urbano da França no século XXI. O corte é seco, brusco, sem qualquer fusão. A menina está grávida e provavelmente o pai a abandonará. Não há suavidade na queda para o contemporâneo. A busca da menina pelo garoto ideal termina na ausência de qualquer desfecho romântico para a adolescente. É uma dor tão evidente quanto a frágil superfície rasgada da meia-calça da jovem em plano de detalhe e escolhida como última imagem do filme.
Superfícies que se rasgam. Percepções inocentes que se rompem. Corpos que sofrem. Narrativas que perdem o encanto. Leituras que se tornam subversivas. O que esperar da conclusão da trilogia, que promete finalizar com uma versão de A Bela e a Fera? Para uma leitora insubordinada como Breillat, a fábula torna-se um lugar fértil para a desconstrução da moral tradicional do faz de conta. O melhor de tudo é que a ruptura não exige o abandono do jogo da ficção.