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MOSTRAR O CORPO PRA FALAR DO ESPÍRITO

Por Chico Torres 

Disse Paulo Emílio que o pior filme brasileiro ainda nos é melhor do que o mais genial dos filmes estrangeiros. Disse Walter Benjamin que era preciso construir uma arte bárbara, uma barbárie positiva no seio da modernidade, uma arte capaz de começar do zero, de fundar a sua própria tábula rasa. E disse Oswald coisas sobre a rítmica religiosa, sobre os transes, os transidos, as alucinações sob o sol escaldante do Brasil. 

Tudo isso está em Carlos Reichenbach, iluminando seus olhos de boca do lixo, olhos anarquistas para dentro dos preconceitos e das putarias do Brasil, e por isso não mais a subversão e sim a transgressão. Um cinema para além da política porque a política nunca foi suficiente para o cinema, porque politizar o cinema é o querer sério demais, sob o controle de diretrizes bem estabelecidas. E se um dia Reichenbach quis mudar o mundo através de um cinema político, logo percebeu que era mais útil pensar o mundo formulando uma carnavalização do Brasil. 

E a pornochanchada de Reichenbach, não totalmente anárquica, se leva a sério demais; o seu sexo é interlúdio para os “assuntos importantes”, e os seus personagens são tipos, retratos da pequenice e grandiosidade humanas. Em Império do Desejo todos são meio maldosos e frágeis, personagens que carregam as máculas da civilização em seus voos e pousos forçados. Tudo parece se resumir em crítica à moralidade, comentário político e elogio da loucura, uma tríade inevitavelmente explorada através do desejo. O sexo é o balizador de todas as relações que se dão sob a marca da propriedade. A preocupação política é disfarçada através da sensualidade das imagens. Enquanto os moralistas barganham suas perversões através da afirmação do poder pela propriedade, o casal hippie trepa da forma mais desinibida possível, se abrindo para uma utopia naturalista, porque Carlão é, antes de mais nada, um utopista. 

E mesmo que para eles o sexo tenha algo de inocente e puro, há ainda sobre suas cabeças a sombra funesta do ciúme e do desejo de posse. Nico, apesar de todo o sofrimento (ainda que reprimido) em ver sua amada nas mãos dos moralistas, se mantém fiel aos seus princípios libertários e a deixa livre para foder com quem ela quiser. Para o bem ou para o mal, um filme de princípios. No fim das contas é tudo sobre o Brasil, esse lugar do impossível e, por isso mesmo, cheio de realizações impossíveis: puritanismo via sexo anal; Ménage inaudito entre hippies e caretas; rituais e canibalismo feitos por um gigantesco homem branco que enlouqueceu por inadequação social. Reichenbach, um dos últimos socialistas utópicos (segundo ele mesmo) fazendo deboche da esquerda fundamentada na mentalidade pequeno-burguesa de intelectualidade sem praxis. E tudo soa ridículo, extremamente caricato, porque segundo o manifesto do cinema cafajeste, o que se quer é um cinema de comunicação direta.

Em Extremos do Prazer há a mesma tríade (moralismo, política e loucura), a mesma obsessão de Carlão, mas agora sob uma dimensão trágica. Tão atual nos é a representação de uma sociedade cindida: de um lado o intelectual frustrado, assombrado pela derrota pessoal e utópica, resquício da ditadura militar que não só torturou os corpos, mas destroçou as almas daqueles que restaram vivos. Do outro, a classe média em ascendência, os tecnocratas, os meritocratas, os que desejam a grana acima de tudo. Estupradores, misóginos, anti-intelectuais, figuras que brotaram do esgoto da história e que estão por aí, institucionalizados. 

Apesar desse esquema, os personagens mais fechados em sua caretice acabam sempre sucumbindo às almas mais libertárias. Carvalho, o advogado mercenário de Império do Desejo, abandona a sua família para propor ao casal hippie uma vida idílica em um sítio. E o filme termina de forma perturbadora, em falsa felicidade. Enquanto a exploração da propriedade continua, Nico e Lucinha seguem, alienados, a se amar na grama. Já Ricardo, o reaça de Extremos do Prazer, recalca a todo momento o seu desejo de se aproximar daquilo que lhe é estranho, mas que o fascina: socialismo, liberdade sexual, intelectualismo etc etc. Carlão parece jogar com ambivalências, o sexo pode alienar tanto quanto libertar: pode ser caminho para uma política libertária, assim como para um processo de escamoteamento das mazelas sociais. De todo modo, sempre o sexo, sempre o desejo: “a gente tem que tentar a utopia a partir de nossas relações familiares e eróticas”. 

Em sua utopia do artesanato, é como se Reichenbach não pudesse se decidir, e talvez essa indecisão seja um mérito. Há muita seriedade em seus filmes, mas não o suficiente para se evitar uma sacanagenzinha de vez em quando, porque a sacanagem quase sempre tem algo a dizer sobre o discurso que está sendo desenvolvido no filme. Assim agrada a gregos e troianos, aglutinando o melhor dos dois mundos, porque é vanguarda e é banal. Intelectuais e punheteiros se curvam às artinhas de Carlão, autor para ser visto com a mão no queixo e de pernas cruzadas num cinema sujo de um centro metropolitano qualquer.  Mostrar o corpo para falar do espírito, é assim o cinema de Reichenbach, do Carlão.

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Orlando, minha biografia política (Paul B. Preciado, 2023)

Por Geo Abreu

Paul B. Preciado, o conhecido filósofo e autor de Manifesto Contrassexual e Apartamento em Urano, dirige seu primeiro filme. Uma biografia multivocal, com diversos Orlandos interpretando a personagem do livro homônimo de Virginia Woolf, cuja história é utilizada pelo diretor como espelho, renovando assim o interesse por esse clássico da literatura.

Existe um meme correndo por aí que pode ajudar a entender a relação de Preciado com o cinema e a literatura: uma foto dele com a frase “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem” (tradução minha). Comentando sobre outro livro seu, Testo Junkie, o filósofo afirma ter produzido uma auto ficção, relatando a experiência com uso de testogel em sua transição, ao mesmo tempo em que elabora a ideia de regime farmacopornográfico, historicizando as mudanças tecnológicas e intervenções medicamentosas que vão sendo normalizadas e aplicadas em massa em nome da produção da sociedade heternormativa.   

A autoficção funciona então como experimentação, livro e filme como externalização dos relatos. Essa aparência muitas vezes pedagógica que Orlando assume me lembrou Vênus de Nyke (2021), filme dirigido por André Antônio. Nele, o personagem principal aparece em consultas com sua analista fazendo um inventário de seus desejos e pulsões, que de tão fortes, dominam boa parte de sua vida. Ao mesmo tempo, o filme da produtora Surto & Deslumbramento inventaria também livros, músicas, personagens e diretores gays, como Pier Paolo Pasolini e Kenneth Anger, por exemplo, deixando nos créditos uma lista de referências a quem porventura as esteja procurando.

Orlando/Preciado é econômico nesse sentido e usa apenas o texto de Woolf, adotando o romance como obra de referência queer, num gesto de tomada para si, de aproximação com a obra de uma autora notadamente identificada com a causa feminista. O talento de Woolf com as palavras, compartilhado com o diretor, também se transforma no mote para a criação de novos mundos, em que a existência de experiências trans é marcada numa linha do tempo bastante extensa.

Usar a ideia de poesia como alegoria para discurso é o que dá o tom político ao filme. No lugar de pôr os personagens para contar suas experiências em entrevistas clássicas, Preciado escolhe misturar os relatos pessoais de cada um com a ficção escrita por Woolf, embaralhando os limites entre “realidade” ou ficção. Em alguns momentos, os personagens trazem a tona essa ideia das pessoas trans como “poetas de gênero” – praticando esse exercício de nomear as coisas num mundo novo, em que suas existências são verificadas e historicizadas – e chegando ao limite do esforço empregado nesse ativismo: “somos poetas contra vontade.”, o que nos faz retomar o meme: “é muito importante a ficção, porque a realidade não tem relatos que te salvem”.

Vale dizer que nesse trabalho com as palavras, Preciado não escreve nem dirige filmes de forma rebuscada. O ritmo é sexy e empolgante. No trecho abaixo, retirado de uma resenha sobre Testo Junkie, algo de fundamental em sua obra ganha destaque:

“Diante disso, parece haver algo de novo na escrita do filósofo Paul B. Preciado: a experiência de ler seus textos filosóficos excita. Suas palavras incendeiam o corpo. Mostram a força do erotismo em sua versão não sublimada. Tesão, portanto, não é aqui apenas uma força de expressão.”[1]

Assim também Preciado dirige o filme, fazendo da auto ficção aquilo que nos move e incendeia, jogando para que nos tornemos aliadas, amantes, fãs. As imagens criadas por ele nos colocam em posição de combate a respeito da política de produção de corpos, da reprodução de um sistema binário que trata a diferença como desvio, ao mesmo tempo em que nos leva a pensar em outras possibilidade de acesso ao desejo, além da projeção de formas livres de estar vivo e criativo no mundo.

Nesse contexto, uma das frases mais românticas que vi em filmes ultimamente aparece na encenação do reconhecimento entre Orlando e Sasha:

“- Você percebeu que eu não sou homem, tampouco mulher?

– Sim. Você é diferente de todo mundo que eu já conheci”

Clichê ressignificado aqui. Viver o amor em tempos que ainda estamos inventando.


[1] https://revistacult.uol.com.br/home/sobre-a-filosofia-paul-b-preciado/

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Monster (Hirokazu Kore-eda, 2023)

Por Pedro Tavares

Hirokazu Kore-eda consolidou seu trabalho ao longo dos anos com abordagens melodramáticas em conluio com tramas de temas diversos, mas com poucas mudanças de perspectiva quando se trata da posição do narrador – em comum, o ensejo de transparecer a consciência das emoções. Monster, seu novo filme, significa uma mudança importante neste método. Após uma trinca questionável com Shoplifters (2018), The Truth (2019) e Broker (2022), sendo estes dois últimos produzidos fora do Japão e que evidenciaram certo engessamento do trabalho, seu retorno ao país de origem traz novos desafios na construção das emoções além de elemento-suporte narrativo.

É pela montagem que Monster se estabiliza e é uma surpresa já que seus minutos iniciais apontam para um outro lugar. O filme deixa de ser um drama envolvendo o amor incondicional de uma mãe pelo filho e resolve, pela montagem, sufocar este fio narrativo e estilhaçar as emoções a partir do questionamento. Em diversas camadas, o filme de Kore-eda coloca as motivações e caráter de seus personagens em questão e aborta sua relação com o cotidiano tão tradicionais e que renderam filmes como Like Father, Like Son (2013), Our Little Sister (2015) e o próprio Shoplifters. Em nome do afeto e da dor, Monster oculta a linearidade para evidenciar os horrores da violência e seus desdobramentos.

Há golpes de vista bem interessantes no filme a notar que todas as camadas partem do mesmo princípio. Ou seja, seus personagens estão ligados diretamente e desta costura de sentimentos e traumas que passam pela culpa, amor, ausência e principalmente pela dor, construídos por Kore-eda em microcosmos e nos aproximando das raízes de cada atitude vista. Com o mesmo modus operandi há o seu contraponto, a relação direta com a segurança e como ela é instintiva. Com este extremo, Monster constrói uma relação intensa e devastadora tanto pela percepção infantil quanto pela vida adulta.

O novo filme de Kore-eda se estabelece como uma análise sobre a volatilidade de nossos julgamentos sobre o próximo e como nossa complexidade oferece saídas inesperadas. Em conluio com as mudanças de perspectiva, estas intenções são acentuadas e assim como Kurosawa e Hitchcock que passearam pelo mesmo intuito, colocam, em primeiro lugar, o espectador como grande conjecturador – e também como réu.  

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American Lightning (Kurtis Matthew Russell, 2023)

Nas últimas décadas o conceito de cinema independente, em especial o dos Estados Unidos, passou por grandes mudanças. Com a proliferação de câmeras portáteis e aparelhos de telefone celular e das redes sociais, o que estava ligado aos filmes feitos por pequenos grupos e essencialmente com baixo orçamento ganhou novas camadas. O último grande chamariz do cinema independente americano foi o mumblecore que como uma grande teia de amigos e artistas colocou nomes como os irmãos Duplass, Greta Gerwig e Joe Swanberg no mainstream. Nos últimos anos coletivos e movimentos espontâneos foram criados a exemplo do Folk Filmmaking criado pelo norte-americano Don Letz e que independentemente de onde o filme seja ou do seu estilo e gênero, o que caracteriza o filme “folk” é ele estar gratuitamente disponível na Internet. O mecanismo de distribuição, neste caso, é o principal baluarte para a criação de um coletivo. Outros sites e iniciativas como o No Budge que reúne filmes de realizadores independentes via streaming e o grupo Kinet, que conta com integrantes canadenses como Kurt Walker e Neil Bahadur, por exemplo, transparecem como as redes sociais e ferramentas de exibição fundem em como cineastas lidam com a internet para salientar suas produções independentes.

Vindo de Portland, Kurtis Matthew Russell dirigiu seu primeiro longa Silent Monologues e o disponibilizou online no primeiro semestre de 2023. O filme apresenta um drama familiar com a crueldade como sugestão para outros gêneros como a comédia e o film noir. A partir do uso da casa como um grande palco, Russell dialoga diretamente com a assertividade da imagem digital – naturalmente insuave e em certos momentos, violenta. Em American Lightning, seu novo filme, também lançado em 2023, Russell faz desta rota como melhor forma de abordagem. É da ironia que o diretor tira seus comentários sobre o mundo artístico e como a banalização de seus elementos externos podem acabar com qualquer experiência. O processo de produção, exibição e divulgação ganham contornos e labirintos existenciais que acabam por destituir o que é o artista.

Por se tratar de um filme essencialmente independente, o do it yourself deixa claras marcas no discurso sobre o comércio de obras artísticas, a presunção do público e camadas que iludem aqueles que fazem parte de microcosmos que permitem a dissociação do real a partir da falsa ideia de sucesso. E, suportado por uma entrevista com um artista em conflito que conta suas desventuras, Matthew Russell reconstituí estas histórias com acidez e deboche que curiosamente remetem a referências do cinema independente americano de outrora como Todd Solondz, Peter Bogdanovich e Kevin Smith.

O “raio” americano do título do filme é uma boa forma de alusão às sinapses de artistas dispostos a acertar um ponto e que na cruel prática da automanipulação – que é inerente ao ambiente de trabalho – almejam ser alguém para os outros, colocando assim a celebração à arte, e em especial o cinema americano como um grande objeto de estudo. Nele, Matthew Russell coloca em xeque a intenção de produções em cadeia, de autoria e, claro, do ego e talento dos realizadores.

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Tia Virgínia (Fabio Meira, 2023)

Por Pedro Tavares

Um corpo presente e um fantasma em forma de lembrança tomam o palco. Sim, o palco, pois Tia Virginia evoca a história familiar num jogo cruel de similaridades com o imaginário de muitas famílias brasileiras como uma peça teatral pelo trato com o espaço cênico. Os personagens vêm e vão, ganham seu cosmo de atenção e flutuam sempre entre o protagonismo e antagonismo com intensidade.

O trabalho de Fabio Meira em concatenar lembranças, mágoas e conflitos vai além de mediar ritmo e gestos destes corpos em constante verborragia. Nivelar rigorosamente as mudanças de tom dos assuntos como uma dicotomia equilíbrio-desiquilíbrio como retrato do cotidiano de uma família que encontra a pacificidade nas frivolidades e que tem Virginia como uma presença a mediar os espaços e tempo e quando e onde a falsa alegria durará.

Enquanto estes corpos passeiam pela casa o grande enigma está em como esta família possui um ideal de perfeição – cada um à sua maneira – e as melhores resoluções, mas sempre a ignorar o corpo presente. Dado este problema, entra a questão da função das imagens que desde sua origem nega-se a implementar a observação fixa e preza pelo dinamismo presumivelmente cinematográfico. Por mais que pareça encontrar um labirinto que necessita de uma fácil e rápida equação para a fuga em diversos momentos, o filme de Meira mantém pelo seu rigor o maior de seus efeitos: enquanto todos andam e falam, o grande estopim está estático, frio, a observar.

E como comentário à essa frieza, Tia Virgínia é um filme que possui certa barbaridade a saber que está a identificar diversos casos dentro de um escopo e que isto potencializa sua eficácia sem que entre em um lugar de fragilidade como discurso. Independente de como se constrói e se localiza este palco, o que está em evidência aqui é como Meira media os jogos de palavras e gestos e como eles podem representar a implosão familiar pela solidez de suas representações.

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Interview: Lewis Klahr

Pedro Tavares

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Since the 1970s, prolific American director Lewis Klahr has combined animation techniques with avant-garde cinema, which in recent years has helped to retell and reread modern American history. Owner of a unique work, Klahr walks through pillars of American pop culture such as comics, pulp fiction, film noir and has a close relationship with sound – or lack of it. I talked a little with Lewis about his work in general, and, mainly, about his relationship with silence, dyssynchrony, absence, noise, tracks, etc.

This issue of the magazine is about cinema and silence.

Hmmmmnnnn…… I think film silence is still a highly specific sound. For instance, I recently completed a soundtrack for a new film titled Thin Rain. Inspired by Film Noir, Thin Rain tells the story of an amnesiac protagonist who loses his memory after being hit in the back of his head by a gun handle. Before this attack, the soundtrack has symphonic music. Once the protagonist loses his memory the music ends and is replaced by the white noise sound of a blank analog 16mm optical track. We call this optical “blank” but it is full of sound: pops, scratches, and hisses!

Silence was something that caught my attention when I saw one of your films for the first time in a theater. I believe it was Sixty-Six.

I primarily use silence in Sixty-Six as a conventional separator of the individual films, a short duration (5-10 seconds) palate cleanser. But the film Ambrosia, which occurs in the latter part of Sixty-Six, is silent and required careful sequencing to get it effectively positioned because getting a silent film to effectively follow a sound film is an aesthetic challenge. The films in Sixty-Six that directly precede Ambrosia needed to gradually quiet down to provide a successful lead in. Whereas, the film that followed Ambrosia, and returned to sound, had much greater flexibility in terms of what its soundtrack could contain.

Sixty-Six.

 
I would like, if possible, if you could talk a little about the relationship of duplicity that your images involve and the path that I feel is emancipated
from the composition of the images by your use of sound.

I wouldn’t describe my relationship to sound and image as “duplicitous” but that’s an interesting thought. I’m not very clear about what you’re describing or asking but taking my best guess at what I suspect you mean– I am rarely interested in creating a “realistic” or full soundscape. Often my approach results in a limited or focused use of sound in which only some parts of the sound that an image may suggest are represented aurally. The parts of the image that are not represented remain silent and visual.

In your films there is usually a very consistent break in silence, like your most recent film The Blue Rose of Forgetfulness, which reminds me of a musical and is soon at the confluence of silence and a narrative in very strong codes.

In The Blue Rose of Forgetfulness I think the clearest example of what you are asking about occurs in the 4th film of the series— Blue Sun. This film uses as its source material images from a Secret Agent comic book from the late 1960’s. I’ve used a lightbox to illuminate both sides of the comic book page and reveal superimpositions. In my shooting I then seek to harvest the most interesting of these superimpositions.

Blue Sun’s soundtrack has 3 different sections with the first being the playing in reverse of Sibelius’ The Swan of Tuonella. After 8 minutes the piece concludes and this lush orchestral music gives way to an ultra mundane streetscape I recorded of birds chirping and cars passing that lasts for approximately 5 minutes. After this, for only the last 30 seconds of imagery, there is silence which creates a kind of hush, or an absence, like the air escaping a balloon. Full viewer attention is now  briefly given to the images. All 3 approaches to sound significantly alter the way the viewer experiences the image. This shifting of viewer engagements throughout all my films is a major part of their aesthetic engagement and structuring.

I agree I can be described as making “musicals”. On the most obvious level when I use pop songs as my soundtracks the lyrics usually tell a story and often act the way dialogue or voice over narration would in a narrative film. But just as in narrative filmmaking where the script is not the film, the lyrics are not the film here either. My images alter, contradict and also support the lyrics. For example, in my 2010 film Nimbus Smile I use the iconic Velvet Underground song Pale Blue Eyes as the soundtrack. However, the comic book female I’m using as my protagonist very clearly has black eyes not blue eyes. This raises questions about whether she’s the woman being sung about. Simultaneously the mise en scene is filled with images that contain different shades of blue. I hope the audience will notice and question why this color displacement of blue from the female protagonist’s eyes in the lyrics to the décor is occurring and what it might express.

The Blue Rose of Forgetfulness

In Circumstantial Pleasures it is not a change to silence that happens but a large change that occurs in a different way through the train trip and the sounds of warning announcements and the engine itself. How do you think about this type of composition?

Circumstantial Pleasures differs from most of my other features in that it is concerned with describing the contemporary world and only the very recent past. High Rise, the train film you refer to above, is the only film in the entire series that doesn’t use music for its soundtrack. It is a live action film shot on my phone in China during the summer of 2016 on a high speed train traveling to Beijing. Filmed in one continuous, nearly two minute shot are the passing towers of a massive apartment complex that is under construction. This apartment complex has no audible sound. The sync sound heard in High Rise is of the offscreen space of the train tracks and the interior train car in which I am traveling. This film provides a strong contrast from the other films that have preceded it in the series since none of them are live action and all use single framed, collage imagery. But a funny thing happens– the buildings under construction are so cartoon like in appearance that various audience members have asked me what exactly they are seeing—whether High Rise is also an animation and not a live action film. 

What fascinates me about your films is that there is this kind of sound displacement, but at the same time there is a very strong connection with a specific time frame such as Film Noir.  Your soundtracks reinforce a journey into the past, but what you do with silence is a work that is based on contemporaneity in my view, especially when we talk about experimental filmmakers. Do you think there’s any sense in that?

I do, it’s an interesting perception. Being an associational thinker and montagist I very much aim to create experiences that can be understood simultaneously in a number of different ways, even if they may appear to be contradictory or paradoxical. I also include visual anomalies in my films of present day imagery to make it clear that my films despite being historically descriptive are being made in the present.

Circumstantial Pleasures

Does sound in experimental cinema have any influence on your work?

Yes, of course. The most obvious influence being my use of music, both pop songs and classical. I am especially indebted to the films of Kenneth Anger, Bruce Conner, Jack Smith, Ken Jacobs and Harry Smith. The way all of the above filmmakers used music as a collage source material and also as an essential element of their montage was seminal for me as a developing filmmaker.

However, I think it’s worth noting that when I decided to make my film soundtracks as music-centric as they’ve been for the last 30 years, this was considered a very unacceptable choice by the experimental film world. There was this idea (less predominant now but still existing) that being music-centric was outmoded, and too easy an approach (like it was cheating LOL). That being music-centric was something experimental film had outgrown and left behind, rather than being a genre choice with a rich and fertile tradition and history of its own with very high standards of effectiveness just like any other genre. 

Logically, your films are intrinsic to the experience of reading comics alongside the projection that can be composed of a soundtrack or not.

My characters often speak in the word balloons of comic books. Sometimes what they speak is not meant to be understood which is why words are crossed out or sentences are interrupted. These speech bubbles are merely meant to indicate that speech is occurring (there are many similar moments in narrative films where dialogue is inaudible). Also, sometimes I cut out a comic book character and I leave attached some words they are speaking in the story they from which they were taken. These words rarely relate to the story my film is telling. However, these word remnants do clearly suggest the history of my appropriated characters. I want the audience to think about this history of the original context my characters existed in.

My characters speaking in comic book word bubbles rarely speak in voices heard on the soundtrack. I really enjoy this kind of displacement of having sound appear visually. The specificity of this visualization I try to make as precise as possible. For instance, there is a moment in Alcestis, another film from The Blue Rose of Forgetfulness, where the title character has an orgasm and she says “Oh, Oh, Oh”. This is handwritten in pen whereas normally, when Alcestis speaks, it appears as typed words in speech bubbles. The handwriting conveys both the intimacy and individuality of this sexual moment.

And I would like to know how much you want to control the spectator’s interpretation of your film’s meaning and whether this is a consideration for you during the process of creation?

Yes, I do consider the reception of the spectator while making my films. For example, the description of the dialogue in Alcestis I’ve just given above might or might not be understood by an audience. I’m often telling myself a story in my aesthetic choices that I know will only be partially understood by most of my viewers. Through long experience of working this way I’ve learned that each individual spectator will assemble the images to the idiosyncratic specifics of their interests, experience and subjectivity. In effect they often make up their own version of the story that has little to do with the one I’m trying to convey. I am comfortable with this openness of interpretation and consider it a strength of my storytelling.

Speaking of The Blue Rose of Forgetfulness specifically, how did you come up with the soundtrack for the film and how was working with these songs as a dramatic device? There is a very interesting use of de-sync in it.

As I created the sequence for The Blue Rose of Forgetfulness I found the flow of the music and sound became the priority for how the films would allow me to sequence them. I was shocked by how specific this flow was. It is probably the strongest sequencing of my films sonically that I have ever created. I’m especially pleased with the flow of the first 4 films—Monogram; Swollen Kisses; Capitulation’s Promise; Blue Sun. This is not something I intentionally set out to accomplish but discovered as an essence/aspect of these films as I attempted to sequence them. It was very surprising to me– I never would have thought to sequence them the way I have. For instance, I imagined that Capitulations Promise, the film with the Lana Del Rey song, could never follow Swollen Kisses the film with the Julie London songs. I thought they would need to be separated because of their similarity of feeling and mood. Instead, I discovered the effectiveness of their proximity intuitively through an arduous process of trial and error which required multiple viewings of different trial sequences. There was an editorial ruthlessness and honesty required to get it right. Very hard work!

As for what you’re calling de-sync (I have not heard this term before and like it very much!) I hold the bar very high in terms of having reasons to use a particular piece of music, especially pop songs. It is often important that the image moves in and out of sync with the music’s beat to create a contrast and counterpoint rhythmically. As I’ve stated I am very interested in changing a viewer’s engagement of the image as a film progresses– so moving from music to silence or sound effects, often produces a significant change that alters the way the images are absorbed and understood by a viewer. I also often edit images to be very active and rapid against a brief silent pause in the music itself. My edits are continuing the rhythm and creating a silent sound that fills that aural gap visually.

Speaking more of de-sync, how do you make it an option in your films?

Swollen Kisses is a good example of how I work with what you are calling de-sync. I created a mash-up of Julie London songs where she is literally singing with herself. I had the idea to do this because I was attentive to Julie London’s phrasing and the distinctly excessive length of time she pauses in between lines of the lyrics. This silent pause was lengthy enough to allow another lyric from a different song of London’s to be sung. The resultant juxtaposition of the lyrics of 2 romantic ballads then creates a new, alternate version of both songs. There is a narrative, poetic openness offered by this approach that encourages viewer interpretation– a new third stream that contains continuities and discontinuities just as my images do.

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CINEBH: Dias 5 e 6

Por João Pedro Faro

Anhell 69

Anhell69 (2022), de Theo Montoya, construção ensaística de amizades e convivências urbanas em busca de um resultado fílmico desregrado. Percorre-se Medellin pelo fio da assimilação da memória. É um desfile de conceitos e proposições, sobre a constância de um cinema interrompido, o que se propaga quando um filme não consegue existir. Nisso, conjuga todo tipo de cena, tentando agarrar-se em algo que permaneça.

As maiores intimidades são fortes, a relação constante com a morte e o sexo exposta no processo de “casting”, a fixação de um diretor por um ator, a propulsão da cidade em enterrar tudo que se desdobra em sua terra. O texto em voice over é ingrato, são palavras reiterativas e pouco desviantes que tornam a narração bem menos complexa do que sua empreitada de montagem deve sugerir. A sucessão de cenas que tratam dos mesmos temas gera alguma consideração notável sobre a violência sem descanso, a destruição da juventude como forma de organização de uma rotina urbana, como planejamento de cidade.

Esse efeito não permanece tanto, vai se diluindo dentro dessa ideia de filme “sem fronteiras” (o tipo de premissa que tem, por consequência, a geração das fronteiras mais visíveis). Não é que sua estruturação seja tão misteriosa, mas há o desejo por uma confusão material, ainda que acabe controlada por um início, meio e fim bem demarcados. É possível perceber o custo daquela realidade ficcionalizada, recontada, o impulso de fazer história de si mesmo e de quem está ao seu lado por perceber a facilidade do desaparecimento das coisas. Porém, os limites ainda são muito claros, a fluidez está por trás das demarcações. A única certeza é que a cidade vai engolir tudo até o fim.

Anhell 69

Vieja Viejo (2022), de Ignacio Perez, exercício de performance entre dois jovens atores (Nicolás Zárate e Paulina Moreno) interpretando um casal de idosos. A câmera se contenta em acompanhar seus passos e dar o espaço necessário para que eles façam seu trabalho de incorporação. A rotina é entrecortada por vídeos de celular caseiros, em vertical, que não servem grande propósito ao experimento para além de reforçar o questionamento central sobre percepções de idade, limites físicos e corporificações desconjuntadas.

Seu conceito inicial parece ser suficiente para que o filme não busque caminhos muito drásticos, desenrola-se um drama comum de envelhecimento cotidiano entre os dois que deixa a discussão temática num ponto morto. Não há grande novidade no que busca dizer ou questionar, sua aproximação cinematográfica da proposta conceitual é de poucos esforços, mas o casal de atores é consideravelmente denso. 

Vieja Viejo

El Grosor del Polvo (2023), de Jonathan Hernandez, engana. Começa como um drama materno sem grandes variações, daqueles filmes que mantém o monótono narrativo como assimilação da experiência de sua protagonista (Giovanna Zacarías). Enquanto ela sofre pelo desaparecimento da filha, espalhando cartazes pela cidade, somos lentamente instruídos a imaginar a construção de um suspense, com direito ao aparecimento de um revólver. Somos apresentados a um suspeito, a uma sequência de acasos narrativos de tom fabricado (em contraste com seu procedimento de realismo) e o efeito é o da expectativa crescente.

O filme não se desgruda do subjetivo de sua atriz, e ela carrega o peso de todos os enquadramentos. Quando nos aproximamos de algo propriamente tenso, quando a escalada para o confronto é determinada, o filme acaba. Esse efeito já conhecemos, dos suspenses de encerramento ambíguo, mas geralmente é acompanhado de uma ou outra imagem um pouco mais forte.

Aqui o vazio é claro, e não há interesse ou possibilidade de confronto. Percebe-se, portanto, que o filme nunca saiu de seu ponto inicial: fazer com que a experiência de suspense esteja em pé de igualdade com a subjetividade da protagonista. Não há valor cinematográfico nisso, não mais do que o terapêutico, e saímos com alguma lição sobre sofrimento que simplesmente não nos pertence. E a busca continua…

El Grosor del Polvo
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CINEBH: Dias 3 e 4

Por João Pedro Faro

Propriedade

Las preñadas (2022), de Pedro Wallace, lembra a moda dos romenos. Um Doutor Lazarescu sem grandes humores ou uma antítese semântica de 4 Meses, 3 semanas e 2 dias, com uma aparência geral de novelão. O esforço é estabilizar uma abordagem do real através de tragédias reconhecíveis, populares.  São intensas crises de maternidade que perpassam um dia na vida de duas grávidas (Ailín Salas e Marina Merlino), ali na fronteira entre Brasil e Argentina.  Em sua curta duração, os dramas sociais não são interesses individuais, não sustentam particularidade. O marido alcóolatra, as crianças deixadas sozinhas em casa ou o atendimento precário dos hospitais públicos surgem mais como obstáculos aventurescos do que efetivos estágios dramatúrgicos. O miolo é a parte mais efetiva: a câmera estabiliza, filma detalhes das paisagens que a dupla de grávidas atravessa, ouvimos suas reclamações em monólogo, seus corpos ficam reduzidos no quadro. No resto do filme, a câmera instável tem papel impositivo, seu movimento de aproximação com os atores parece preceder ideias mais articuladas de composição. São boas atrizes, colocadas em situações costumeiramente “latinizantes” (essa imagem da mulher grávida, sofrida, cheia de filhos num barraco de madeira) que entregam, em algum nível, o peso de realidade que o filme sugere buscar. Acaba sendo exemplar como um sintoma curatorial (um comentário banal de se fazer, claro, mas que aqui ganha uma boa justificativa para ser feito): esses filmes bem produzidos, “assistíveis”, com a causa social bem declarada e os gastos públicos justificados, presos num campo inócuo, incapaz de perturbar qualquer gosto. Ao fim da projeção, quase tudo parece resolvido, e talvez esse seja o grande vazio. 

Las Prenãdas

Moto (2022) de Gastón Sahajdacny, filme de processos contemporâneos comuns, encontra seu espaço próprio de existência. O “docficção” (sera que poderíamos, em conjunto, encontrar novas palavras para esses filmes?), a cidade como personagem, os tangenciamentos políticos, os motoqueiros (personagens centrais do novo cinema), a dilatação do drama… Tudo que é comum pode ser relevado pelo romance, nos momentos entre os protagonistas Mariano e Constanza, quando enquadrados conjuntamente. Juntos, vivem os dois travellings mais notáveis do longa, um no topo de um morro, com a cidade iluminada em segundo plano, outro ao final, acelerando a motocicleta por uma avenida diurna.  Para um filme com esse título, vale perceber seu movimento de lentidão. Até quando filma Mariano em movimento, a sensação é de uma estabilidade prisioneira, uma vivência urbana demarcada pela impossibilidade de progresso. Córdoba existe como terreno irregular. Por vezes, a cidade integra os personagens, no canto ou no centro dos quadros. Outras vezes, parece vazia, em quadros de paisagem quase aleatórios, desocupados de registros memoráveis.  Entrecortando os momentos de encenação, estão filmagens em minidv de natureza caseira. São as cenas de efeito sentimental efetivo, parte pela trilha lo-fi, mas majoritamente pelo aparecimento dos grãos da imagem (vale questionar porque tão poucos cineastas utilizam extensivamente os efeitos dessas câmeras, já que todos parecem conhecer suas capacidades). Uma das sequências finais com a filmadora caseira, quando o romance já está efetivado, mostra o casal se gravando em um parque, percebendo os arredores com proximidade, o granulado texturizando toda emoção. As variações de luz ganham dimensão justa, os espaços escuros ficam bem preenchidos de movimento, com os ruídos da tela abastecendo qualquer lacuna dramática que poderia distanciar o projeto de variações substancias. No fim é isso, acolhe-se o romance em tela, quando já não há mais o que fazer. O conforto é um problema grave, será possível mantê-lo continuamente como valor de produção?

Moto

O Estranho (2023), de Flora Dias e Juruna Mallon, é aula. O projeto, ao ser descrito, consegue perpassar todos os termos de uso disponíveis no mundo curatorial: territorialidade, ancestralidade, colonialidade, identidade, esse tipo de coisa. Não há mal intrínseco a isso, imagino, já que o cinema consegue existir apesar de sua departamentalização. Durante sua primeira metade, somos apresentados a uma tese um bocado objetiva, compreendemos seu lugar de ocupação e como o filme pretende se mover diante de seu conceito central. Uma câmera precisa dá ritmo ao discurso, somos apresentados a uma cadeia de personagens e percebemos, com fluidez e clareza, suas razões dentro desse cinema.  Quando a projeção avança, sua cadência inicial vai sendo cada vez mais apagada, até desaparecer completamente. A partir de dado momento (uma cena específica de dança, de uma consciência de classe culpada e improdutiva, infértil) e de maneira bruta, o longa vai construindo uma sequência de cenas imperdoáveis, onde o conceito inicial (que já estava óbvio em sua abertura, antes mesmo do título aparecer) vai encontrando novos jeitos de ser explicado ao público, com direito a cinco “talking heads” documentais. Olhando ao redor da sala durante a sessão, dava para confirmar que estávamos todos entre adultos, o que torna ainda mais difícil a compreensão dessa decisão maçante, mercadológica, de escolher fazer um filme que acaba pela metade e resolve, pelo resto da duração, explicar o que acabávamos de assistir, para não deixar nenhuma ponta de dúvida sobre suas boas intenções. A sensação principal é de que as diretoras resolveram encenar algo como uma reunião de financiamento, filmar os pitchings do projeto ao invés de seu roteiro (e faz questionar se há ainda alguma diferença entre essas duas coisas). Se o terror dessas últimas décadas é mesmo o abismo do mercado de cinema internacional, O Estranho entra como a figura mais conforme, reconhecível. Da distância entre a Europa e Brasil, das construções malditas em território nacional, resta uma ponte, um caminho único a ser trilhado, sempre dando cada passo com o máximo de cuidado para não ferir qualquer conexão comercial.

O Estranho

Propriedade (2022), de Daniel Bandeira, é um thriller desconjuntado e imperfeito, com grande carga de entretenimento. Habitamos a terra do gênero cinematográfico como irreconciliador de classes, o que parece natural e condizente com as correntezas contemporâneas. Não chega a ser um filme de cerco, já que seus grandes efeitos não são resultado de uma espacialização muito cuidadosa. Também não acredito que o conflito de classe, gerado pela revolta dos trabalhadores de uma fazenda contra seus patrões, seja o motor de suas construções. Creio em uma terceira opção, mais condizente com o que acontece em tela: o encontro de um equilíbrio perturbador de terrores, onde trabalhador e patrão se encontram igualmente animalizados, amorais, movimentados por uma ocasião odiosa que só abre espaço para a matança. Diferente de outros filmes similares, não há êxtase em toda a sua violência, não há prazer na vingança do oprimido contra o opressor. O que se desdobra é um movimento contínuo, imparável, de horrores situacionais, onde os personagens caminham de acordo com a pulsão de morte. Dentre o extenso grupo de atores que protagonizam a revolta na fazenda, não há grandes personagens a serem lembrados, não há grandes personalidades, isso não parece interessar ao filme. O que prevalece é um movimento conjuntivo e relativamente ambíguo de força, uma série de infortúnios cabulosos, construídos por cima de arquétipos de classe, um furor por violência que não é tão dependente de seu verniz social quanto pode aparentar. Fosse o caso, a construção dos personagens seria outra, o engajamento por suas motivações viria de outro lugar. É um filme “de roteiro”, carregado pelo interesse em seus absurdos acontecimentos sucessivos (uma violência que vai sendo cada vez mais despersonalizada, o que é comum a esses projetos). Não é um thriller de grande elegância, não é um filme de conflitos entre enquadramentos, sua tensão e seu entretenimento são carregados por essa força grosseira e inconclusiva, capaz de pensar em diversas imagens sem necessariamente transformá-las numa ideia fílmica encenada, elas ficam acontecendo por entre essas associações consecutivas de brutalidade. Sobrevive, ao fim da projeção, esse sentimento de horror, um astral negativo, um lugar sem heróis ou idealizações de povo. Está aí um elogio possível, dado todo o enfrentamento necessário para encarar Propriedade.

Propriedade
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CINEBH: Dias 1 e 2

Por João Pedro Faro

Prata Palomar

Anotações dos filmes vistos em 26 e 27 de setembro.

Zé (2023) de Rafael Conde é um trabalho consistente, apesar de ingênuo. Encontra-se algumas qualidades em sua aparência. A grande maioria dos planos acontece da mesma forma, com a imagem estática encenando diálogos no quadro, um número reduzido de personagens se conhecendo ou se reencontrando, enquanto o extracampo tenta sugerir um contexto histórico maior para densificar esses encontros.

O clima geral é de uma biografia santificadora. Nesse sentido, a realidade parece custosa ao filme, já que seu posicionamento é o da celebração da memória, de algum tipo de verdade possível, mesmo que afundada no sentimentalismo. A história da vida clandestina de um militante durante a ditadura (interpretado pelo Caio Horowicz) é o tipo de premissa propícia a essas operações, quando se estabelece que a própria conjugação dessa memória já ocupa o espaço das expectativas sentimentais que circundam o desejo de fazer “história”. Ou seja, sua jornada fílmica é circular, começa e termina em um mesmo lugar de percepções onde a realização do cinema cumpre um papel mediador, não criador. Isso é especialmente esclarecido pelo texto, que carrega o efeito de todas as cenas do filme.

Mesmo quando bem localizados no quadro, os atores expressam esse tom de ingenuidade que perpassa todo o projeto: Suas palavras são projeções, espectros, de suas personas, reafirmações cacofônicas do que espera-se de cada personagem. Se o filme parece desejar que sua grande afetação esteja na profundidade dramática, há de se perceber uma distância entre as palavras que são ditas e a teatralidade de suas performances. Enquanto o texto carregado, que não permite tempos de silêncio, didatiza e reitera suas temáticas a ponto de nos questionarmos sobre a confiança do realizador no poder de assimilação do público, o trabalho dos atores é de uma pontuação detalhada, transparece cada sinal de direção em reverberações emotivas. O resultado é uma espécie de anulação dos esforços.

Interessa em Zé perceber um trabalho de rigidez estrutural, superficialmente lustrado por um nível de controle. Caso fosse um drama mais comum, menos inflado de auto importância, esse interesse poderia ser bem maior. Porém, o que sobressai é o seu miolo, sua falência política, uma insistência permanente pelo caminho dos pensamentos curtos, contra a complexidade, pela indiferença às possibilidades radicais de um discurso.

El reino de Dios (2022), de Claudia Sainte-Luce, é um filme simples, daqueles que apostam sua subjetividade no carisma infantil. Acompanhamos a rotina do pequeno mexicano Neimar (Diego Lara Lagunes) e sua vida no campo, cuidando de porcos e cavalos, passando tempo com a avó e aguardando sua primeira comunhão.

A câmera é daquelas que acompanham as andanças e gestos dos personagens em cena, pontuada por breves momentos de estabilidade. Há algumas paisagens de interesse, em especial a carcaça de um avião abandonado, onde Neimar brinca com uma coleguinha. A casa onde mora com a avó e a mãe também é notável, bem iluminada, onde acontecem as cenas mais engajadoras do filme, circundada por momentos de maior desprendimento. Dá para dizer que algumas temáticas tangenciam o filme sem que realmente abarquem sua realização. Pelo título, fica sugestionado que um tipo de crise metafísica ou existencial vá atravessar o jovem Neimar. Isso até acontece nos momentos finais, com alguma rapidez, mas não parece que o filme realmente deseja integrar grandes questões ao seu procedimento. É um trabalho de rotina, daqueles carregados pelo humor e pela “fofurice”, a ponto de que o conflito final (duas mortes sucedidas) parece alienígena ou simplesmente insuficiente para deslocar o sentimento para um espaço de contraste, sendo mais marcante na simplicidade típica desses projetos. Um trabalho familiar, em diversos sentidos, que não tira tanto proveito de variações emocionais quanto de seus procedimentos mais comuns.

El Reino de Dios

Prata Palomar (1972), de André Faria, filme psicodélico e sangrento, deixado às margens da filmografia nacional, integra parte da homenagem a Zé Celso (que co-roteirizou o longa). Descobrir esse tipo de produção em uma grade de festival contemporâneo gera algum tipo de saudosismo diabólico, nostalgia das imaginações latino-americanas mais grosseiras, sempre infladas de ambição, cheias de ideias absurdas.

Mesmo que carregado por algumas imagens comuns da obsoleta “vanguarda” cinematográfica (quem no mundo ainda pensa nesses termos?), como guerrilheiros barbudos, santas violadas (e violentas!), líderes engravatados protegidos por fardados, entre outras passagens reconhecíveis, o longa parece inclassificável. Entre a enxaqueca do cinemanovismo e as fricções dos cinema-de-invenção que surgiam violentamente, entre momentos mais psicodélicos de Nelson Pereira dos Santos e personagens de Elyseu Visconti, Prata Palomar sobrevive de berros e destruições. Proveitosamente apropriando-se das geografias alucinógenas oferecidas pelo século das utopias, o filme atravessa espaços de conflito, da mata fechada à igreja, do terreiro de macumba ao palácio governamental. O ritmo é especial nessas andanças, sendo a primeira parte particularmente veloz e assustadora, cada cena apresentando uma ideia nova, alternando entre imagens alegóricas mais ou menos decifráveis (atenção especial ao espaço secreto que eles adentram no porão da igreja, com as paredes cheias de recortes de revista e pichações apocalípticas). Tudo encaixado na janela quadrada, sempre atenta à composição mesmo em seus momentos mais sísmicos.

Surpreende a constância agressiva do filme (alguns trechos parecem saídos do cinema de terror feito naquela mesma década em alguns extremos da Europa). Os protagonistas passam a projeção inteira brigando, lambuzados de tinta vermelha, de um sangue vívido, muito bonito, enquanto tudo ao redor sugere um mesmo nível de fatalidade. Descamba num terceiro ato realmente carnívoro, preenchido por todo tipo de operação cabulosa e cheio de prazeres no processo. Tudo corre pela tela com voracidade, demonstrando todo o esforço de sujeitos famintos por realizações fantásticas.

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EDITORIAL – CINEMA E SILÊNCIO

Por Chico Torres

O cinema nasceu mudo, mas ainda não havia o silêncio. Este seria uma conquista do próprio cinema, um desdobramento significativo de sua linguagem. Portanto, é possível dizer que o silêncio tem uma história no cinema e é também uma história do cinema.

 Uma de suas possíveis origens: as lágrimas de Joana d´Arc, de Dreyer, nos instantes que antecedem a sua morte pelas mãos da inquisição. A câmera, por alguns segundos, interrompe o fio narrativo para mostrar o rosto molhado e o olhar vago da personagem, deixando que o tempo passe e que seja possível visar mais detidamente aquela composição, é aí que o silêncio começa a ganhar os primeiros contornos como linguagem cinematográfica própria.

Na presente edição da Multiplot!, o silêncio se apresenta, como aponta Eni Orlandi em seu livro As Formas do Silêncio, como sentido: não o negativo, a sobra da linguagem, mas como o ativo, com capacidade de significar. Um significar que pode ser o da errância, do vazio, das interrupções, enfim, da vasta capacidade de sentido incompleto dentro da linguagem incerta do silêncio. 

Chantal Akerman, cineasta que se dedicou ao silêncio de forma especial em suas obras, aparece em dois textos desta edição, ambos em diálogo com outras obras: em seu comentário sobre Days, Gabriel Moraes procura mostrar como Tsai Ming-Liang toma distância de Chantal, apesar de uma aproximação formal na utilização de planos longos e silenciosos, para construir uma obra fundamentalmente melancólica e de fisicalidade sensória. Já Gabriel Papaléo, aproximando Chantal de Peter Hutton, nos apresenta formas de quebrar o silêncio ao experimentar a adição de música a filmes que se fundamentam na ausência do som. 

Ainda segundo Orlandi, o silenciamento surge como o lado negativo do silêncio, já que advém da ideologia que deseja “pôr em silêncio”. Pensar nos efeitos das diversas censuras impostas pela ideologia: recalques, proibições morais e políticas, atravancamentos diversos em consequência dessas repressões. No texto de Ana Júlia Silvino sobre La Noire De,temos o silenciamento enquanto instrumento colonizador, causando a desilusão material e espiritual de uma mulher que se encontra em uma situação de exploração e deslocamento. Bernardo Moraes Chacur, em seu comentário sobre Near Death, documentário de Frederick Wiseman, nos mostra os entraves comunicacionais existentes em situações de tensão entre pacientes, médicos e familiares dentro de uma UTI de Boston. 

Talvez como contraponto ao silenciamento colonizador, Georgiane Abreu traz uma perspectiva de um silêncio reverente e cuidadoso em seu texto sobre o documentário etnográfico Reassemblage – from the firelight to the screen. Penso que esse silêncio que se constitui como um se debruçar paciente em função de uma alteridade, também está presente em meu comentário sobre Mato seco em chamas

E há outros textos que trazem uma diversidade desses silêncios do cinema: silêncio e ruína, silêncio e mito, silêncio e sua relação com os outros sentidos que não a audição, silêncio e palavra. São diversas as formas do silêncio: atravessando as palavras e imagens ou entre elas; ocultando aquilo que é mais importante de ser dito; indicando que o sentido pode ser outro. Todos esses silêncios significantes fazem parte no desenvolvimento da linguagem do cinema, das múltiplas formas em que o cinema, em silêncio, faz a sua história. 

Boa leitura.

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MAL TROPICAL: O RASTRO DO RASTRO

Por Luiz Soares Jr.

Wittgenstein, creio eu, falava que há experiências infensas ao conceito e impossíveis de serem submetidas ao cravo da mediação: a prece, a música, a arte em geral não significam nada, pois não pretendem ser cooptadas pela teia espessa e irisada de significantes da semântica. Elas antes nos mostram coisas, mundos, sentidos, corpos, devires; elas dão a ver. Portanto, há um bruit de fonds imarcescível de silêncio contra o qual se contrapõe ressonante de glória o primeiro plano da aparição destas supracitadas ‘criaturas’ em Mal tropical, obra-prima de Apichatpong Weerasethakul. É uma mulher com rabo de bicho que nos introduz neste cosmo mimético primordial da segunda parte em que homens ainda compartilhavam com animais pedaços de corpo e de ditirambo para contar ainda a mesma história.  A história do mesmo? Da natura imemorial?

É aquela que mais absolutamente fala de nosso segredo, do nosso logos primevo, que é a plenitude e condensação por analogia porque prescinde do signo. Godard dizia que “se eu tivesse a força, eu me calaria”; e o que é a força senão a integridade (não estilhaçada pela separação da mediação, impoluta e irredutível à queda da significação) que os condena de forma bem-aventurada ao mutismo do logos originário?

A arte sempre alcançou as profundezas sem precisar nomeá-las, e se Godard lamenta a sua perda é porque antes de tudo é um artista tardio, aquele que tem por objeto propriamente o trabalho da linguagem. A queda, de fato, consiste na necessidade de recorrer ao signo para poder ser; mostrando-nos um mundo que escapou ao fórceps da significação pela boca humana, o artista dos primórdios profere de boca fechada um litígio inelutável, aquele que separa sem chance de remissão aquilo que é daquilo que é dito; Mal tropical é um dos filmes mais sérios feitos sobre esta impossível sutura: só existimos mais plenamente na boca da noite e da floresta mágica, quando nossa figura, nossos gestos linguísticos estão esmaecidos, esgarçados o suficiente para a emergência de uma força das origens, que dizima e aniquila tudo o que de ulterior nos empenhamos em dizer: o plano sequência, a profundidade de campo e locação resgatados pelo cinema moderno ao primitivismo das origens , seja em Feuillade, Griffith da Biograph, Pastrone, ou Thomas H. Ince, além dos nórdicos servem para Apichatpong como um ponto de partida sem volta, mediúnico e rapsódico, para lidar com este mundo subterrâneo e silente que aflora à superfície do plano cada vez que um corpo inerme se move na floresta intumescida de escuridão.

A prova material de que o silêncio devorou a carne do filme e abriu sua embocadura para uma alteridade infensa à cooptação pela significação é a retomada em um cinema tardio que “ultrapassou mantendo” os dados do cinema moderno – som direto, locação, plano sequência. Uma característica que assistiu à autora do cinema e que é retomada em seu crepúsculo: o intertítulo que nos conta o conto que servirá de fora de campo para o conto entoado pelo filme Mal dos trópicos, aquele contexto fecundo sem o qual o texto do filme permanecerá silente: o xamã e sua encarnação no tigre são os princípios de taumaturgia narrativa, deste conto imemorial que precede e possivelmente vai sobreviver ao filme em questão e a todos nós. O silêncio de que o intertítulo é o representante excelso de escritura é o estigma da nossa finitude. Sua cicatriz insuturável: antes de falar ou sermos falados (pelas obras, pela música, que aliás entretém com o silêncio uma relação privilegiada), somos ex-votos do silêncio. A entrada do silêncio na cena amorosa e rapsódica de Mal dos trópicos instaura de chofre uma profundeza abissal, que nenhuma narrativa com raccord diretivo causal teleológico, no esquema campo e contracampo, jamais vai conseguir instalar.

A grandeza do filme de Apichatpong consiste antes de tudo em nos assegurar um lugar na narrativa, retomando os dados do cinema moderno que permitiam, ao mesmo tempo, um lugar identificatório no mundo e a sua distância em uma clareira vidente: na ‘primeira parte’, somos apresentados à família dos personagens, o espaço-tempo de seu trabalho, namoros casuais, cotidiano hebdomadário, mas tudo de sopetão epifânico, como os filmes do Rossellini ou Bergman nos ensinaram a ver em sua cartilha hierofântica: uma viração de existência, o trecho de um corpo, o encontro inaudito entre estes dois dados, um tanto de tempo em estado puro, as coordenadas de um espaço comezinho. Depois, o corte abrupto, a ruptura fatal, que os vai projetar no horizonte do mito, que vai espessar e escurecer as figuras mostradas até aqui segundo o diapasão de um nomos e um logos obscuramente táctil, aquele mesmo primevo que assistiu à nossa chegada ao mundo e será testemunho de nosso fim.

 Até aqui, o encontro decisivo com a floresta como o contexto iniciático e a clareira maiêutica da experiência fabulosa só nos aparecera como fresta, quando o rapaz que corta gelo se demorara incisiva, mas fortuitamente a olhar para a floresta, que parecia, segundo a aura benjaminiana, lhe virar o olhar de volta. Mal dos trópicos é destas obras prenhes de aura que sempre vão nos levar a voltar o olhar para trás e para dentro, segundo o paradigma de anamneses que nasce platônica e que permanece baliza de nosso autoconhecimento, agora sob os auspícios do cinema tailandês.

Buscamos, talvez em vão, mas isto nada prova em contrário da fecundidade de nossa investigação, pelas pistas, pelos olhares e pelos rastros que melhor nos poderiam assegurar um lugar no filme, e isto porque o homem ocidental será sempre esta errata pensante credora de significação. A grandeza de Mal dos trópicos reside antes de tudo em saber que a verdade, de que é debitaria toda arte, é o lugar de uma revelação, mas para que haja revelação, é necessário que seja dada a condição de possibilidade do velamento. A  segunda parte é o lugar do corpo, do silêncio, da paisagem que agora nos contempla: a primeira, sob o verniz digressivo do cinema moderno, é o véu de Maia cuja revelação nos será permitida efetivar na segunda parte, e reciprocamente se implicam numa diacronia miraculosa; esta estrutura, cuja chave de fá consiste no arremate circular com que o filme se inicia (a descoberta do corpo do soldado apaixonado), é um corpo ressoante de analogia que unicamente ao espectador cabe fazer pulsar, arrematar, levar à plenitude, como em toda experiência hermenêutica poética (e quem há de negar que a essência de toda arte consiste na poesia?).

Se a primeira parte, vigente sob a narrativa ‘moderna’ é aquela que nos permite ter acesso à figuração e estruturas enquanto tais do filme, a segunda parte, sob a égide metafísica do silêncio, nos permite uma abordagem transcendental. O rastro do rastro, aquilo que permite que a primeira metade seja vista com a devida transparência seja usufruída como um assombroso espécime de cinema moderno, mas a Mal dos trópicos, tal como Plataforma, Le monde vivant, Quei loro incontri, não basta robustecer o atalho do caminho moderno, mas estabelecer, sobre os fundamentos deste caminho já traçado, uma rota idiossincrática, não original, mas originária, dada a infraestrutura de um cinema moderno de tudo, o grund da primeira metade. Aqui, este será o lugar do velamento daquilo que só será desvelado a partir do desaparecimento do rapaz, que nos introduz a um filme literalmente pós-moderno, entendendo-se aqui a pós-modernidade não como um arsenal retórico de gosto duvidoso sob a égide de iniquidades como significante flutuante, etc. não: é pós-moderno porque vem depois da primeira parte, sendo esta um experimento digno de Stromboli ou Jaguar, mas não permanece nesta. A complementa e atualiza sob o horizonte que deve preceder e inspirar a tudo o mais – a saber, o substrato de fundamento do filme: a dimensão mimética, inscrita nos corpos fabulosos humanos, da hierarquia mítica dos deuses, tudo, na segunda metade, se plenifica, universaliza e poetiza, porque, bem treinados pelo experimento moderno – plano sequência, som direto, raccord diretivo – somos introduzidos no reino do divino, de que o trágico moderno Hölderlin nos deu descrições tão apofânticas de fábula poética.

 O gênio do filme consiste em que jamais Apichatpong literatize a metáfora em Mal dos trópicos, fazendo poesia e erigindo uma mitologia e jamais abandone o hic et nunc deste mundo:  somos introduzidos em uma percepção vidente sem jamais deixar para trás a “evi-dência” destes rastros atropelados de poeira e palmas, floresta adentro. Os corpos humanos emulam os dos deuses, mas em instante nenhum deixam de sangrar, amar e morrer.

Falei no início deste texto da prece como de uma linguagem consanguínea ao silêncio por excelência. De fato, se observarmos com atenção analítica, os versículos da Bíblia só nos revelam a Verdade sob a égide da tautologia, do “Eu sou Aquele que é”. Correlata à tautologia sublime da prece, nós temos a figuração do ícone, que em sua frontalidade expositiva sempre foi encarregada de revelar o Dom de Deus. No final de Mal tropical, comparecem na imagem pergaminhos de linho puro onde se inscrevem os ícones a que se dirigem as preces laicas do soldado: “Pelas nossas memórias”, a infinidade da memória da fuga do Egito ou da estrela guia que coordenou os passos dos pastores até a manjedoura do menino Jesus, ou ainda as ressoantes de númen palavras de Buda. Mnêmosis (Memória) foi a musa das musas para os gregos, e não por acaso: é lembrando que o homem entoa sua prece primordial, é lembrando que ele transcende absolutamente a imanência de suas misérias para se alçar a um parentesco com a divindade; ao lembrar, por intercessão da imago-mater do tigre xamã, dos seus amores com Tong, o soldado Keng presentifica na figura espavorida do tigre os contornos figurativos de seu amado projeta e vivifica o seu dorso caricioso: “eu me lembro”, sussurra  com o vento da noite aquele cuja figura agora se associou indelevelmente ao animismo do ser.

 Neste lento e suntuoso trabalho de campo e contracampo com que o soldado, ajoelhado, dedica uma prece untuosa ao seu amor de sempre, Apichatpong reivindica o sagrado da prece, do confronto sobrenatural entre aquele que crê (no poder do amor) e aquele a quem se dirige esta unção para falar de unio mystica em um contexto de rapsódia tailandesa. Um desperdício de númen, uma configuração estelar onde a finitude e a infinitude contraem núpcias na noite transfigurada deste enleio. Poucas vezes o cinema (sobretudo o contemporâneo), arte laica da encarnação de Deus e, portanto, de certa forma de sua decadência num corpo qualquer, soube como entoar um canto de amor silente, dueto concertante, entente miraculosa onde a mística, o mito e o homem souberam novamente ser um só.

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DO SILÊNCIO ÀS PALAVRAS DOS OLHOS – Disintegration Loops 1.1

Por Pedro Tavares

(…) pela primeira vez, a imagem das coisas é também a da sua duração. 

(André Bazin)

Em 11 de setembro de 2001 enquanto os destroços das torres do World Trade Center expurgavam fumaça por horas e horas a fio, William Basinski usou sua câmera ao cair do dia para, em seu terraço no Brooklyn, Nova Iorque, fazer de Disintegration Loops 1.1 a antecipação da duração em arquivo. Ao filmar a decomposição do mundo, os cineastas mostram sua reconstituição num universo de arquivo, de modo que a dimensão mortífera transmuda-se em análise, mas também em fórmula conjuratória e rito de passagem (MICHAUD, 2014) e, para Basinski é nítida a dimensão mortífera e o rito de passagem da maneira que o diretor compõe o som do filme. 

Se o simbólico cortejo dos corpos a subirem ao céu como fumaça naturalmente viria do luto, interromper o silêncio seria um ultraje, então Basisnki subverte a falta de expressividade da observação em um uma marcha fúnebre própria, repetitiva e principalmente dolorida. Philipp-Alain Michaud também aborda estes temas quando discorre sobre o trabalho de Francis Dubreuil:

A monotonia, a repetição e a falta de expressividade são as vias que conduzem ao conhecimento do objeto. A filmagem dessas imagens repousa num processo de apagamento generalizado, tanto do cinegrafista diante do que ele filma quanto do objeto filmado em seu ambiente, onde ele fica camuflado: nunca oferecido na visibilidade plena que define o espaço figurativo, ele se mantém num retraimento que garante a realidade de seu comparecimento. É assim que se produzem eventos visuais puros, que são esvaziados de qualquer antropomorfismo. 

O apagamento generalizado neste momento está em um campo difundido e a definição de Basinski do espaço está ao vencer o contracampo e desaparecer nele enquanto todo o Mundo olhava para este mesmo ponto em diversos planos e distâncias. Para Benjamin, a câmera, à maneira de instrumento cirúrgico, penetra na textura das coisas. Disintegration Loops 1.1. é um filme que conjectura com a noção de loop como o próprio título entrega, mas cria suas camadas de textura e dor. Estamos diante de uma partida sem fim, de diálogo direto entre o lamento e a fumaça que se esvai dos destroços como uma sintaxe narrativa da dor na mesma medida em que coloca em crise a perspectiva de um realizador-testemunha que está em completo silêncio. Reside aqui a duplicidade da epígrafe de Bazin e a duração das coisas e a ilusão de um efeito de salvaguarda que também atesta um processo de apagamento generalizado a citar novamente Michaud. 

Estes pequenos apontamentos são para dialogar com a dicotomia da força dos planos e como a música também composta por Basisnki se emancipa do plano como maneira de colocar a imagem em si como uma imagem – em movimento –  silênciosa, enlutada, dura, mortífera. Sua marcha fúnebre pode ser um complemento, mas funciona como um elemento móvel ao horror. O que está na superfície da tela ganha per si o significado de uma ideia de duração, de contexto histórico, de arquivo. Enquanto Basinski faz deste fim de tarde que lentamente apaga a fumaça por conta da escuridão de uma cidade que invariavelmente está sem luz, num mundo de aparência, vale colocar que o cinema se faz metáfora do mundo (MICHAUD, 2014). 

O deslocamento se justifica justamente por não ser um espetáculo diário como se estivéssemos vendo uma pessoa andando na rua com uma música artificial de fundo e sem questionar, acreditamos que ela está ali para embalar o apagamento do cinegrafista, da montagem etc. Disintegration Loops 1.1. é, antes de tudo, sobre a imparidade do cotidiano, o contato literal como fogo e a morte que revela ao apagar das luzes de um dia ensolarado um outro mundo que Basisnki conlui na disparidade que sua marcha faz com um lamento silencioso que as imagens oferecem. A sintaxe da tragédia se dá na dicotomia silêncio-som e câmera-cinegrafista. Um filme de repetições de um lento movimento, mas de complexidades nas camadas da construção política, humana e cinematográfica. 

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DÉPAYSEMENT: SILÊNCIO E RECUSA EM La Noire De

Por Ana Júlia Silvino

A importância da transmissão oral no continente africano, segundo Amadou Hampâté Bâ, etnólogo e escritor malinês, se dá porque as heranças culturais e as memórias coletivas transmitidas pela fala são concebidas nestes territórios como sagradas. Para o autor, a performance oral pode ser entendida como um testemunho daquilo que é o indivíduo. Ao falar, o sujeito torna-se a palavra que profere. Ousmane Sembène se dedicou, fundamentalmente, em preservar a tradição oral através da criação de um método próprio. Na estética sembèniana a língua é concebida como um fator primordial para a representação do cotidiano e, com exceção dos três primeiros filmes do diretor senegalês: Borom Sarret (1963), Niaye (1964) e La noire de… (1966), todos os outros são em línguas nativas como o wolof e não em francês.

Em La noire de (Ousmane Sembène, 1966), a protagonista Diouana é uma babá que se muda de Dacar para Antibes, na França, para trabalhar em uma casa de família. Entretanto, em território francês, Diouana quase não se pronuncia, o espectador só constrói um imaginário acerca das opiniões dela devido a uma concepção formal de voice-over.  Diouana não dialoga com os patrões, mas seus monólogos interiores, onde se questiona sobre a sua vida na metrópole, são todos em francês. A protagonista entende a língua do colonizador, mas escolhe não a reproduzir. Enredando-se numa fala que só diz respeito a si mesma, Diouana constrói entre a voz e o silêncio, um entre-lugar. Paradoxalmente encontra no ato de imaginação da língua francesa, mas não na reprodução dessa linguagem, um espaço possível de pertencimento. 

A primeira manifestação do voice-over é logo na sequência inicial quando Diouana, usando um vestido de grife dado de presente pela patroa em Dacar e uma peruca, desembarca em Antibes e se pergunta, em monólogo interior, se alguém a veio esperar. Ela encontra o seu patrão e no percurso até o apartamento, onde irá viver e trabalhar, Diouana tem o primeiro e único vislumbre romantizado da metrópole. No carro, o patrão diz que a França é um bom país, e a protagonista responde com a única frase que sabe pronunciar em francês: Oui, monsieur (sim, senhor). Quando Diouana chega a seu novo local de trabalho e é introduzida às suas funções, o clima da história muda completamente. As atividades domésticas que ela exerce são muitas e aos seis minutos de filme, com o auxílio do voice-over para representar os pensamentos e a insatisfação da personagem com a rotina, o espectador tem conhecimento de que as funções que ela exerce não correspondem à promessa de trabalho. 

O monólogo é apresentado ao mesmo tempo em que a personagem trabalha de forma silenciosa. A sua vocalidade ocorre apenas na representação formal dos seus pensamentos, como acontece predominantemente no filme. Entre reflexões interiores da personagem acerca da França e dos muitos lugares que ela gostaria de visitar, há uma sequência de suma importância. Na cena, Diouana limpa o chão da sala usando uma variação do traje que vestiu para desembarcar em território francês: um vestido de gala, sapatos altos e uma peruca. A patroa reclama da vestimenta dela e, em um plano americano, a batiza com um avental. Daí em diante, a rotina exaustiva só se intensifica. Diouana gradualmente vai deixando de ser um sujeito para se tornar uma ferramenta de trabalho cuja única função é manter a casa limpa.

Em um momento de catarse após repetições arraigadas na rotina metódica, Diouana transforma a sua postura silenciosa em ação e se tranca no banheiro. Pressionando o próprio corpo contra a porta, a personagem escolhe quebrar o fluxo mecânico da rotina. A voz off é inexistente. Diouana não pensa em nada; só age. O banheiro, apresentado pela primeira vez no filme, é o cenário de um momento de suspensão, uma vez que ali a personagem encontra uma saída, um espaço para além da cozinha e da sala de jantar, que vale a pena ser ocupado. Enquanto a patroa bate incessantemente nessa porta, o corpo de Diouana, que como uma máquina nunca para de trabalhar, permanece imóvel pela primeira vez. Silencioso por completo. A câmera, que antes prioriza filmar as mãos que lavavam os pratos e cozinhavam o arroz, agora foca no seu rosto, a humaniza. 

Esse dispositivo de tomada de consciência é semelhante ao utilizado no filme Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1976). A narrativa, assim como a desenvolvida em La noire de, acompanha com rigor a rotina metódica das tarefas domésticas. Jeanne, uma dona de casa viúva, levanta sempre no mesmo horário, arruma a casa, acorda o filho e prepara o seu café da manhã. Sai para fazer compras, prepara a comida, arruma a casa novamente e vai dormir. No dia seguinte realiza exatamente as mesmas funções. A quebra do fluxo narrativo está no fato de que Jeanne faz sempre as mesmas coisas, até que, certo dia, acorda mais cedo e decide se sentar por alguns minutos no sofá de sua própria casa. Esse momento de suspensão, onde esse corpo deixa de trabalhar, causa um desequilíbrio na rotina e, a partir daí todas as tarefas que colocavam Jeanne como objeto mantenedor da ordem familiar começam a dar errado.  

La noire de possui o mesmo gesto. No entanto, diferente de Jeanne Dielman, os usos do voice-over ilustram uma trajetória de tomada de consciência que ocorre na mente da personagem. A vivência de Diouana na Riviera Francesa tem consonância com a experiência do negro estrangeiro. A linguagem, nesse caso, se configura em mais uma armadilha colonial. Segundo Frantz Fanon “Falar é ser capaz de empregar determinada sintaxe, é se apossar da morfologia de uma outra língua, mas é acima de tudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”.

Depois da cena no banheiro, Diouana se recusa a seguir a mesma rotina de antes. Não veste mais a peruca e nem usa avental. Posteriormente, escapa das condições de trabalho análogas à escravidão no mesmo banheiro, encerrando um ciclo de auto-percepção com uma reflexão profunda sobre a ex-metrópole e as pessoas que deixou em Dacar. Silenciosamente, ela faz as malas como se estivesse se preparando para retornar para a África e as posiciona do lado da banheira. Submersa na água, o silêncio de Diouana aponta para um grito de emancipação no único lugar onde se sente livre na França. Sembène utiliza o voice-over como recurso estilístico para permitir que Diouana se aposse da morfologia da língua francesa em seus pensamentos. Entretanto, não permite que a personagem assuma essa cultura – neste caso, o lugar do colonizador – através da palavra.

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NOTAS SOBRE QUEBRAR O SILÊNCIO – Assistindo Hotel Monterey e Three Landscapes

Por Gabriel Papaléo

Nunca houve ‘cinema mudo’, aliás, apenas um cinema surdo ao tumulto que se produzia no interior do espectador, no seu próprio corpo, quando este se tornava a câmera de ecoar as imagens; as do vento, por exemplo.

(Serge Daney, Cinemetereologia, 1982).

Um elevador à espera, seus passageiros entram e saem e preenchem e esvaziam o quadro, num fluxo cotidiano retesado, uma espécie de abandono construído através de uma imagem supostamente banal. Num dos planos mais marcantes de Hotel Monterey, o primeiro longa-metragem de Chantal Akerman, observamos a passividade do comportamento daqueles habitantes temporários do hotel do título, transitórios por natureza, solitários por contexto imagético, fantasmas pela circunstância. A disposição da diretora belga em mapear espacial e sensorialmente aquele hotel qualquer em Nova York parte de uma essência quase de exercício estruturalista para então alcançar uma cidade em transformação, vista por janelas e terraços, intuída, mas não necessariamente vista.

Na solidão dos corredores, a vocação retratista do imenso trabalho de Akerman já aparece viva, mas diferente do som ambiente da cidade em Notícias de Casa, sua obra-prima realizada três anos depois na mesma (não exatamente a mesma) Nova York, aqui não existe som algum; o filme é intencionalmente construído com ausência de banda sonora. Nos travellings austeros do corredor vazio mirando a janela, esse silêncio cria uma tensão claustrofóbica, como se aquele movimento fosse revelar algo que não está de fato lá; encenação criada através de ar rarefeito. Já no plano estático do elevado, a falta de som revela um mundo alienígena, sem contato com a realidade e estilizado justamente pela ausência dos diálogos e ruídos da cidade – não ouvimos o que se espera, o movimento sem contraparte, esgarçando ainda mais o tempo, um passo em falso. Mesmo a libertação espacial do final, ao acessarmos o terraço, soa sob retenção, uma visão descontínua de uma cidade que mesmo das alturas ainda soaria barulhenta.

Se em Hotel Monterey a ausência de som é angustiante pela falta da tapeçaria sonora rica da cidade e dos habitantes que entram e saem do saguão, dos quartos, dos corredores do hotel, em Three Landscapes, de Peter Hutton, o vazio é outro: estamos diante de paisagens majestosas da natureza, com poucos traços humanos, e que estão igualmente sem som.

Por mais que ambos tenham uma tenacidade especial em conjurar drama através do que é concreto e bruto, seja uma paisagem enigmática de um rio ou de Skagafjordur ou o rosto humano calejado de Delphine Seyrig ou Stenislas Merhar, a arquitetura da obra do diretor americano é bastante distinta de Akerman em um ponto específico, uma vez que suas operações foram através da ausência de banda sonora por toda a sua carreira; o silêncio total é sua contraparte visual por definição.

Three Landscapes tem no grão do 16mm dos maiores responsáveis por esse procedimento de tornar o espaço palpável, bitola essa usada por Akerman e Babette Mangolte em Hotel Monterey também; a difusão da luz e a textura da película dando um caráter documental aos dois supostos documentários. No entanto, no que Akerman é crua e concreta em registro de espaço, Hutton é místico e etéreo. Ambos lacunares, ambos misteriosos, mas uma através da aproximação sangrada do que entendemos por realidade, o outro através das distâncias secretas entre mundos – em a ausência de som em Three Landscapes realça também essa distância, porque por paisagens entendemos um som, intuímos ruídos distante, sons se propagando ao infinito, mas ainda presentes, um murmurar dos tempos.

O que acontece quando se propõe um som a essas duas obras tão aterradas no silêncio? Vamos às breves profanações: assisti novamente ambos os filmes ouvindo dois dos meus álbuns favoritos: comentando Hotel Monterey, ouvi Ravedeath, 1972, de Tim Hecker; comentando Three Landscapes, ouvi F#A#Infinity, do Godspeed You! Black Emperor.

O álbum de Hecker, gravado em 21 de julho de 2010 numa igreja na Islândia e lançado em 2011, parte de melodias esparsas tocadas no piano se proliferando pelo espaço, como reminiscências que se esgarçam até esbarrar no noise e no drone, um conjunto ambient melancólico sobre a decadência e destruição de um lugar desconhecido. Combinado com os corredores vazios de Akerman, a sensação de abandono ganha uma ressonância diferente, como se o algo à espreita sugerido pela diretora ganhasse uma ameaça, sem sublinhar suas articulações.

Na longa sequência do elevador, o plano fixo da câmera estacionada no fundo observa o saguão, depois a porta fechada, depois os corredores pouco iluminados, volta para o saguão, volta para os corredores, e todo esse trânsito constante de pessoas e lugares coincide com o segundo movimento de In the Fog, cujos ruídos em loop sujando a melodia do piano abafado tornam a repetição dos padrões da viagem ainda mais soturnos, a duração inquieta dos planos de Akerman tornando-se quase ansiosa. James Benning contou em alguma entrevista que fazia seus filmes de paisagem, extremamente pacientes e com ações comedidas, como contraponto e antídoto justamente de sua ansiedade natural; na guitarra que rasga os loops ambient do álbum de Hecker parece que acessamos uma ansiedade de Akerman, mais sublinhada e pontuada, menos sutil, tão agressiva quanto.

Já na combinação entre Hutton e GY!BE, o abandono social articulado pacientemente pelas imagens do filme ganham contornos de puro horror. O senso de estranheza espacial da paisagem é provocado tanto por imagem quanto som, e a banda canadense transforma a calma insidiosa do diretor em suspense contínuo, tensão em combustão crescente. Num dos planos mais impressionantes, três trabalhadores realizam alguma atividade em cordas suspensas, numa altura absurda e perigosa; a visão mais próxima com as lentes teleobjetivas se concentram no caminho da ação, nos homens a trabalhar; a visão mais distante com as lentes abertas ressaltam o perigo do trabalho e a vastidão majestosa do céu que os engole, ocupando o quadro e trazendo uma dimensão ainda maior para aquele trabalho aparentemente trivial.

F#A#Infinity é pontuado por gravações de vozes como se em transmissões piratas de uma rádio no pós-apocalipse, com depoimentos sobre destruição e sobre o fim do mundo. E enquanto se tem essa imagem dos homens, a voz no álbum fala: “this is the perfect place to get jumped”. O tipo de diálogo de sombras involuntário, como uma batida de portas na sessão de cinema na qual assisti ao filme acordar um dos rostos que dormia na tela no Sua Face de Tsai Ming-liang, que enriquece tanto a experiência de assistir algo que não era para ter conexão tão imediata.

Ambos os exercícios são reimaginações e interpretações livres dos filmes; não evoco a ideia de uma pureza de obra na forma que foi concebida pelos diretores, até porque assistir a esses filmes 16mm em 720p não deixa de ser também uma profanação enorme. No entanto, ressalto que são filmes afônicos por essência, e é fundamental que sejam apreciados também como tais. Filmes em um silêncio específico, com o espírito aberto da descoberta e da ventura que Chantal Akerman e Peter Hutton tanto encorajaram com seus filmes; o som de uma sala de cinema viva respirando, ou de um quarto aonde assistimos filmes, na nossa casa, com a cidade insistindo em entrar pelas frestas e comentar involuntária, e crucialmente, essas duas obras do silêncio nunca total.

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