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O lamento nosso de cada dia: Tonsler Park

Por Pedro Tavares

Se eu tivesse escutado a minha mãe, estaria em casa agora.

David Perlov

HOLY MOTORS

Uma postura corriqueira na carreira de Kevin Jerome Everson: assumir a ambição de construir, pela observação, o diagnóstico geral de uma nação. Em oito de novembro de 2016, Everson registrou em closes o curso das eleições presidenciais em Charlottesville, Virginia. De certo que o olhar de Tonsler Park é dos seus mais frontais e diretos acerca do separatismo americano, até então mais silencioso que os dias atuais e utiliza do trabalho para este comentário incisivo.

Em entrevista ao Jornal do Brasil em março de 1993, o crítico Ismail Xavier comentou sobre como diagnósticos gerais abrem campo para o privilégio das alegorias e como este reducionismo é arriscado: “(…) permite condensar muitos aspectos da experiência em poucas figuras e situações”. O questionamento de Everson resvala nas bordas da afirmação de Xavier. O que se vê é, pela estrutura, na repetição de gestos do trabalho manual, como a esperança se esvai conforme a experiência torna-se mais intensa – quanto mais tarde fica e quão perto está o terror. Nos corpos negros que mantém a ordem para que a votação corra nos conformes, fica nestas poucas figuras, justamente, o desconforto da postura daqueles que votam e que levará a América a um novo rumo social e econômico.

HOLY MOTORS

Este pensamento de 80 minutos está sob molduras, o limitando a um período, como um recorte para o estudo do todo. Por outro lado, é um filme de transparências óbvias que sinaliza na reiteração da ordem o passado dos Estados Unidos. Cabe o pensamento de Hal Foster ao comentar o “erro” de O Estádio do Espelho de Lacan:

No entanto, esse sujeito blindado e agressivo não é simplesmente qualquer ser da história e da cultura: é o sujeito moderno na condição de paranoico e até fascista. Pairando nessa teoria está uma história contemporânea que tem no fascismo seu sintoma extremo: uma história de guerra mundial e mutilação militar, de disciplina industrial e fragmentação mecanicista, de assassinato mercenário e terror político. Perante esses acontecimentos o sujeito moderno se blinda contra a alteridade interior (…) e alteridade exterior (para o fascista isso pode significar judeus, os comunistas, os gays, as mulheres); todas essas figuras do corpo despedaçado, do corpo entregue ao fragmentário e ao fluido ressurgem. Esta reação fascista está de volta? Chegou a desaparecer?

Seguindo o protocolo da edição, chama atenção no pensamento de Foster, fora o óbvio manifesto, o do funcionamento industrial. De volta ao filme de Everson, o trabalho aqui está além dos gestos mecânicos: o olhar daquele que espera na fila é imperativo e para aquele que o acompanha desde o início do dia ganha um valor completamente distinto. É na simples troca de palavras que a força histórica se constrói, a pensar no resultado da eleição. Se para a equipe filmada seus gestos são puramente funcionais e protocolares a serviço da nação, é evidente que para Everson o caminho é oposto. Como pode a ordem manter-se no ápice dos gestos políticos?

HOLY MOTORS

George Orwell, em artigo escrito em 1940, vê Jonas, o personagem bíblico que é engolido por uma baleia como um homem moderno, inquieto, impolítico e que busca abrigo da realidade na barriga da baleia. Embora o voto nos Estados Unidos não seja obrigatório, o mecanismo que reside no ato registrado por Everson é latente:  carrega em si questões morais direcionadas ao sujeito em si e não ao país como unidade, ou seja, uma fuga da realidade. O “fazer sua parte” não está no campo da serventia à pátria e sim ao patrão, enquanto aqueles que controlam o espaço para que a moral seja exercida estão jogados ao contexto histórico a cada voto.

Tonsler Park, portanto, é a observação do não-ordinário costurado pela rotina: a eleição não acontece diariamente, mas a desigualdade de todos os dias segue estampada no quadro. Esta duplicidade carregada de lamento coloca o filme como o ápice de um movimento do dia-a-dia, tão inconsciente quanto acordar, levantar e trabalhar. E para isso Everson tem uma resposta mais certeira: “Este é o meu trabalho. Trabalho de 40 a 50 horas semanais fazendo filmes”.

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No coração do mundo: Contagem é o motherfucking Texas!

Por Kênia Freitas

“O trabalho é a essência do homem porra nenhuma” (Pichação) – Mais do que um resumo, esta frase é uma possível porta de entrada para No Coração do mundo (Gabriel Martins, Maurílio Martins, 2019). O filme se constrói a partir de duas espacialidades de natureza diferentes: a concretude da vizinhança do Laguna, na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte/MG; e o desejo por um novo lugar de plenitude da existência, o sonhado Coração do Mundo. Entre um e outro, os atravessadores das relações tornam-se o trabalho e o dinheiro.

E o trabalho aqui é entendido mais próximo de sua origem no latim, na palavra  “Tripallium”: um instrumento de tortura para fazer os escravos e pobres produzirem. As múltiplas dimensões do trabalho no filme passam pela sobrevivência, pela busca de emancipação (principalmente a feminina), por uma possibilidade de afirmação de si. Mas o trabalho das personagens constitui sobretudo um sistema brutalizante do cotidiano: das micro agressões (a dona da loja que ainda desconfia de Miro [Robert Frank], o seu empregado como vendedor há sete anos), até as macros (a passageira que fisicamente agride Ana [Kelly Crifer] por não possuir o troco para a passagem de ônibus). Em suas flexíveis e porosas reconfigurações no século XXI, as linhas são tênues e os corres são muitos – é salão e Uber ao mesmo tempo, inventando tempo ainda para o marido e os esquemas de encontrar o amante.“Meu nome é trabalho, meu sobrenome é dinheiro”, é como explica Rose (Bárbara Colen) a impossibilidade cotidiana de suas atividades. É também, ao mesmo tempo, vender foto na escola e planejar um assalto.

Nesse sentido, os corres direta ou indiretamente ligados ao crime (pequenos golpes, o empréstimo de uma arma, etc.) não estão desconectados dos trabalhos lícitos formais e informais. Mas, mesmo na porosidade, as fronteiras existem e parte do dilema do filme é nos confrontar com os pontos de não retorno. Na lógica do poder operante do neoliberalismo, sustentada na criação de máquinas de moer gente e os seus desejos, quem sobrevive (e às vezes até vive) são aquelas e aqueles com mais maleabilidade para driblar as engrenagens dentro das regras dos jogos aos quais se propõem ou se submetem – seja no capitalismo ou no crime. O que a vacilação de Beto (Renato Novaes) logo no início do filme deixa evidente é que não basta atirar, mas é necessário saber o momento certo e, sobretudo, acertar a boa. Lição que voltará para assombrar o trio Ana, Marquinhos (Leo Pyrata) e Selma (Grace Passô) em seu plano de assalto cheio de pontas soltas – não há perdão.

Na estrutura capitalista de exploração sem limites das forças vitais, dos desejos e das formas de vida, a violência dos pequenos e grandes golpes e dos assassinatos é assim, também, parte das fronteiras indefinidas do trabalho – mostrando uma faceta do seu potencial de extração e exploração máxima e direta. “Contagem é o motherfucking Texas!”, como anuncia a música do Mc Papo que abre o filme. A cena inicial já começa por trazer os entrecruzamentos desta porosidade de relações, conjugando no mesmo acontecimento e espacialidade: o trabalho de entrega de mensagens românticas presenciais de uma pequena empresa, a declaração de amor de Ana para Marquinhos em seu aniversário, e uma execução, na qual Beto usando a arma emprestada por Marquinhos mata a pessoa errada.

Marquinhos e Ana no ponto de não retorno

Fica evidente também as intersecções das relações de gênero com o trabalho. O filme opera quase sempre por contrastes pedagógicos na apresentação dessa dinâmica: a inércia de Marquinhos, tentando se virar com pequenos esquemas (como ajudando Selma no negócio das fotos para as escolas), em oposição à sua mãe, Dona Fia (Gláucia Vandeveld), que com persistência vende diariamente os seus produtos caseiros batendo de porta em porta e à irmã Fernanda (Malu Ramos), com 17 anos e já contribuindo nas contas da casa. Um contraste semelhante é mostrado entre os amantes Rose e Miro: enquanto ela articula-se para somar mais uma renda como motorista de Uber, ele permanece no mesmo emprego há sete anos. Em ambos os casos, para Fernanda e Rose, a autonomia financeira desdobra-se em uma emancipação sexual: Rose com segurança comanda Miro durante a cena de sexo, Fernanda tem a permissão e a cumplicidade da mãe para dormir na casa do namorado.

As amigas Rose e Selma falam da vida e tratam de negócios.

Em seus vários arranjos familiares, o filme ressalta a falência das figuras masculinas como referência de autoridade ou de compasso moral – e uma intrínseca relação entre esse deslocamento e as novas fontes de renda e trabalho das mulheres. Se ao final do filme, Brenda (Mc Carol), que está a caminho do novo trabalho arranjado pela a avó, dá a letra para Marquinhos, o seu amigo das antigas – “não dá mais pra ficar nessa vagabundagem” -, é o olhar de decepção para o filho de Dona Fia (enquanto empurra o seu carrinho cheio de garrafa pet) que termina por condená-lo.

As relações que compõem o trio Ana, Marquinhos e Selma no assalto do desfecho do filme se configuram de formas mais complexas. Selma é construída no filme também na linha mulher-emancipada-e-autoconsciente, como Fernanda e Rose, mas já em outra fase da vida. É ela que enuncia o desejo de partir para o Coração do mundo – o lugar em que se quer pisar, o lugar do desejo e da vida plena. Esta explicação para Marquinhos, desse desejo pulsante por recomeço, é o que constrói discursivamente o desfecho da narrativa. No entanto, há um evidente descompasso entre o desenvolvimento da personagem na trama e a sua importância enunciativa. Com as outras personagens centrais há um processo de mostrar as relações cotidianas familiares e amorosas em ato, mas de Selma nos aproximamos apenas por seu longo relato para Marquinhos (o mesmo que enuncia o Coração do mundo) e por algumas fotos vistas no celular. Por brilhante que seja a atuação de Grace Passô, a estratégia do filme acaba por criar mais uma desconfiança do que uma adesão ao conflito da trama. Selma, nesse sentido, funciona quase como um dispositivo narrativo para catalisar a ação do casal.

Selma explica o que é o Coração do Mundo, enquanto arruma o cenário para as fotos de escola.

Já entre o casal Ana e Marquinhos há um acordo implícito que se quebra quando ele a convida para participar da fita (por exigência de Selma). O não dito entre eles é falado pela primeira vez, e as fronteiras não delimitadas dos corres de Marquinhos ganham nome e demarcação. Não mais a porosidade entre pequenos delitos e trabalho precarizado, o novo arranjo com a concordância de Ana gera uma ruptura. É acertar a boa ou nada: “Agora não tem mais volta”, como Selma avisa minutos antes do assalto.

O desastre após a fita e a melancolia de Marquinhos e Ana seguindo com a sua rotina depois de cruzarem um ponto de não retorno acabam com qualquer expectativa de resolução da trama pela catarse ou pela fuga. Um pouco traído pelas promessas de um ritmo inicial vibrante do filme, ao espectador cabe lidar com o fato de que Contagem é o Texas, não Hollywood. E que, em se estabelecendo a trama sobre uma dinâmica de mundo estruturada em um sistema econômico, social e racial que é uma máquina de moer as forças vitais e os desejos, não há negociação possível com um final feliz – não importa o quanto a construção da narrativa tenha nos prometido outra coisa.

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Imagem-trabalho

Por Diogo Serafim

Ao compararmos a iconografia do cinema à da  pintura cristã, percebemos que lá o trabalhador  é visto como aquela mesma criatura rara, santa. O cinema mostra o trabalhador de  outras formas também, mas capta  principalmente o elemento referente ao trabalhador presente em outras formas de vida. Quando os filmes americanos falam de poder econômico ou dependência, eles costumam retratar isso usando o exemplo de bandidos, sejam pequenos ou grandes, preferindo essa   dinâmica ao cenário de trabalhadores e empregadores. Devido ao fato da máfia controlar alguns sindicatos dos EUA, a transição do filme trabalhista para o filme  gangster pode ser tranqüila. Concorrência, formações de trust, perda de independência,  destino de funcionários menores e exploração – todos são relegados ao submundo. O filme americano transferiu a luta pelo pão e o pagamento da fábrica para as salas de entrada  dos bancos. Embora os ocidentais freqüentemente lidem também com batalhas sociais, como as que ocorrem entre fazendeiros, elas raramente são travadas em pastagens ou campos, mas com mais freqüência nas ruas da  vila ou no saloon.

Harun Farocki

 

HOLY MOTORS

O trabalho na física está relacionado com o deslocamento de um corpo devido à atuação de uma força, consistindo assim em uma transferência de energia. Quando Farocki analisa a força que puxa os operários para longe da fábrica ao fim do turno diário, o diretor está se referindo a uma força concreta que faz com que aquele movimento acelerado resulte na saída uniformizada e coletiva dos operários de diversas fábricas no mundo no processo de se individualizarem. Uma força que aparentemente age contra um bloco de indivíduos se demonstra na realidade uma congregação de forças que agem em cada operário de acordo com as vidas próprias que cada um possui, vidas estas perdidas durante o turno de trabalho em uma lógica de alienação comunitária.

Aqui Farocki retoma como ensaio uma ideia que Kaurismaki já tinha trabalhado em Sombras no Paraíso (1986) como relato, a ideia de uma vida que é própria a um proletário mas que floresce apenas ao fim do turno diário. Usualmente vemos a saída da fábrica mais como uma extensão do trabalho em outra modulação do que propriamente uma fuga temporária, e devemos ao menos acreditar na possibilidade de um novo tipo de lógica laboral nessa inversão de rotina. Já que a ideia de comunidade não pode sobreviver fora do ambiente do trabalho, Farocki vê a saída dos operários como possível catalisador de uma articulação reformista. Mais que isso, vê o cinema como a possibilidade de propor a faísca necessária para que essa articulação ocorra.

HOLY MOTORS

Mas como poderia o cinema, atividade intelectual, proporcionar uma mudança efetiva? Como se pode transformar a abstração da imagem e reduzi-la a uma práxis materialista? Farocki afirma que há de ser possível encontrar um substituto para a medição manual com o uso de fotografias. É perigoso estar fisicamente em algum lugar para mensurá-lo precisamente, tirar uma foto é um procedimento mais seguro. A primeira imagem de Auschwitz foi tirada a 7000 metros de altitude, mas sequer percebemos do que ela tratava efetivamente naquele momento. A questão que deve ser posta, sabendo que o olho pode manter uma distância segura do objeto e mesmo assim observá-lo, é saber se o olhar pode substituir a presença. O registro de uma imagem pode ser orientado como poesia, controle ou examinação, mas jamais como presença. A presença deve, então, ser intelectualizada.

Recentemente a imagem de uma criança morta em uma praia na Turquia foi catalisadora para uma nova política imigratória em toda a Europa. Uma imagem foi capaz de alterar o curso político de um continente inteiro por meses, feito que semanas de diplomacia não foram capazes de concretizar. Assim, felizmente, a intelectualização de uma imagem é espontânea. Sua dialetização não forçosamente, e é por isso que temos a combinação de imagens, o cinema, incumbido com tal tarefa.

O movimento repetitivo das ondas indo em direção à terra é o que provoca a ignição da reflexão. Na fábrica que inicia o filme Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1989), os pensamentos provenientes desse processo repetitivo, constante, culminam na reflexão. Uma piscina de ondas provocadas por um braço mecânico, um barco à deriva que na realidade tem um movimento programado. Tudo é controlado, tudo é utilitário. A produção em massa é uma produção de guerra. Assim, o estado fundamental econômico nosso é um estado de guerra.

O trabalho de Farocki está muito próximo do marxismo clássico. Guardando a imagem da fábrica como o ponto de inflexão entre o mundo privado e o público, propondo a alienação do espaço controlado de trabalho e a liberação do fim do turno diário, guarda também boa parte dos elementos exigidos pelo autor para o exercício dialético de natureza materialista. Sabendo que as dinâmicas de produção mudaram drasticamente mais de um século seguindo a escrita de O Capital de Marx, como encontrar paralelos entre a descrição proposta pelo autor da sociedade com a política do trabalho no mundo atual, mantendo o olhar crítico e a emergência para reforma social proposta pelo autor? A solução parece repousar próxima do traço de paralelos entre o mundo da segunda metade do século XIX com o mundo devastado pela guerra na primeira metade do século XX e da vigilância tecnológica da segunda metade do século XX. Sua obra consiste na busca por uma imagem que defina o processo de barbarização coletiva que continua para muito além da alienação proletária, para além do genocídio programado nazista, para além do controle estatal e empresarial. A fé de que a dialetização do registro possa ser uma chave emancipatória para o mundo.

HOLY MOTORS

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Editorial: O cinema e as formas do trabalho

Por Camila Vieira

Lumiere_saida de operarios

Como invenção da experiência moderna, o cinema desperta o olhar para o trabalho como atividade da vida cotidiana e, desde seu advento, intensifica a percepção da existência do dinamismo laboral para o desenvolvimento de uma região. Em 1895, os irmãos Lumière filmam a saída dos operários da fábrica da família em Lyon, na França. O registro em breves 45 segundos é marcado pela singularidade histórica de uma época: a passagem de mulheres e homens da classe operária, da clausura da fábrica para a rua, em pleno boom da industrialização nas grandes cidades europeias.

A proposta da nova edição da Multiplot é pensar a presença do trabalho ao longo da história do cinema, seja nos registros documentais, nas narrativas ficcionais ou mesmo nas configurações do experimental. O conjunto de textos apresentados nesta edição não pretende compor uma genealogia do trabalho no cinema, mas pensar filmes em que as formas do trabalho tornam-se relevantes para a construção de poéticas cinematográficas, que podem ser diversas de acordo com a criação de cada realizador.

O cinema pode ampliar a sensação de brutalidade e esgotamento da força de trabalho – Mudar de vida (1966), de Paulo Rocha; e Stromboli (1950), de Roberto Rosselini – e criticar a intensificação do poder laboral na exploração dos desejos e das formas de vida – No coração do mundo (2019), de  Gabriel Martins e Maurílio Martins. Ou explicitar o trabalho como instrumento de perpetuação das heranças do colonialismo e das marcas da escravidão, como em A negra de… (1966), de Ousmane Sembene.

Há filmes capazes de engendrar formas fílmicas que implodem a perpetuação do trabalho mecânico doméstico – Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman – e outros que exaltam a eficiência laboral e a industrialização no crescimento da malha urbana – Um homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov. Uma comunidade de camponeses no pós-guerra italiano e a reflexão sobre o trabalho produtivo e os usos da terra mobilizam Jean-Marie Straub e Danièle Huillet a realizar Operários, Camponeses (2001). O desequilíbrio entre patrões e empregados no ambiente da fábrica é o ponto de partida para Oito horas não fazem um dia (1972-1973), de Rainer Werner Fassbinder.

Se a história do cinema nos oferece um apanhado de imagens diversas de trabalhadores, será preciso então fazer um movimento de retorno ao filme dos Lumière, como faz o ensaio A saída dos operários da fábrica (1995), de Harun Farocki. Não é um retorno que se paralisa no passado, mas compreende o presente a partir dos gestos que perpetuam a organização do mundo do trabalho. A máquina da alienação proletária também movimenta a força dos operários para longe da fábrica ao fim do turno diário.

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Oito Horas não fazem um dia

Por Bernardo Moraes Chacur

HOLY MOTORS

Oito Horas não fazem um dia, série em cinco episódios transmitida entre 1972 e 1973, foi o primeiro trabalho de Rainer Werner Fassbinder para a TV alemã. Conforme anunciado pelos créditos iniciais, o programa era uma Familienserie, gênero popular na Alemanha Ocidental de então. Oito Horas, no entanto, fugia do padrão desse tipo de narrativa ao apresentar uma família operária no lugar tradicionalmente reservado ao “típico” lar de classe média. Mas apesar dessa escolha de personagens e temas, o seriado também rejeitou as convenções do cinema politicamente engajado, contrabandeando discussões políticas entre doses de otimismo e entretenimento. Como resultado, Fassbinder atraiu críticas de ambos os lados do espectro ideológico e a série foi cancelada antes da filmagem dos três últimos três capítulos, apesar do sucesso de audiência.

A trama gira em torno de dois membros da família Epp, Jochen (Gottfried John) e a Avó (Luise Ulrich). O primeiro é um jovem que trabalha em uma fábrica, onde é pressionado por metas crescentes de produtividade. A segunda é uma viúva obrigada a morar com a família por falta de recursos. Jochen se apaixona por Marion (Hanna Schygulla), que lhe ajudará a canalizar de forma produtiva o seu descontentamento com o trabalho. A Avó conhece outro viúvo (Werner Finck), com quem decide buscar independência e um novo lugar para viver. A partir dessas duas linhas de ação somos apresentados a outros membros da família, amigos e, especialmente, colegas de trabalho.

As dificuldades enfrentadas por esses personagens são vencidas de forma coletiva. No contexto da fábrica, contudo, cada vitória obtida por Jochen e seus colegas revela imediatamente um novo desafio, demonstrando a eficiência e ubiquidade daqueles mecanismos de exploração. A partir dessa estrutura, Fassbinder combina esperança e pragmatismo: as vitórias são possíveis, mas o brutal desequilíbrio de forças entre patrões e empregados está sempre presente.

Fassbinder dialogou com a Velha Hollywood ao longo de sua carreira e há momentos em Oito Horas calcados nas screwball comedies. Mas a ligação entre o seriado e o cinema americano dos anos 30-50 ultrapassa o nível superficial. Assim como nos roteiros clássicos, as questões econômicas e sociais são enquadradas em dramas pessoais e entretecidos na narrativa. Os problemas enfrentados pelos personagens são solucionáveis e as comunidades são retratadas como essencialmente boas, apesar das tensões internas. O desenrolar do enredo reforça valores positivos, por mais que os valores defendidos por Fassbinder destoem do tradicional ideário norte-americano. O resultado diverge tanto das preocupações anti-ilusionistas de Brecht quanto do frequente pessimismo do Realismo Social, para citar duas vertentes da arte de esquerda – embora valha mencionar que nos três episódios não filmados, a série daria uma guinada mais trágica e explicitamente política.

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Oito Horas foi filmado cerca de um século depois da publicação do Capital. Algumas situações e diálogos parecem alusões diretas a conceitos marxistas: trabalhares alienados do próprio trabalho; o controle exercido pelos detentores dos meios de produção. Alguns incidentes parecem extraídos do início da Segunda Revolução Industrial e os personagens parecem viver em um mundo no qual o Manifesto Comunista jamais foi publicado. Não há sindicatos a vista. Esses anacronismos podem parecer uma estratégia didática, mas vale lembrar das tentativas de apagamento e estigmatização sofridas pelos discursos anticapitalistas naquele país ao longo do século XX. Líderes trabalhistas alemães foram executados pelo nazismo e, no exílio, por Stalin. O Partido Comunista da Alemanha Ocidental foi banido em 1956 e refundado somente em 1968. Ideias de esquerda eram associadas ao Outro ameaçador, que espreitava do outro lado do Muro ou praticava atentados sob a forma do Grupo Baader-Meinhoff.

A transmissão do seriado coincidiu com os últimos anos da chamada Era de Ouro do Capitalismo (1945-73). O período foi marcado pela ausência de crises financeiras sérias, baixo desemprego e melhora sensível na distribuição de renda – pelo menos no Hemisfério Norte e para a população branca desses países. No intervalo, foram utilizadas políticas execradas pelos defensores da economia de mercado, como intervenção estatal na economia e restrições ao movimento de capitais.[1] O medo de alastramento do comunismo influía na concessão de benefícios e direitos. Em um contexto como esse, a insubordinação de Jochen e seus companheiros de fábrica parecia especialmente plausível.

A partir de 1973, uma série de crises estremeceram a economia global. A assistência social, a regulação econômica e os direitos trabalhistas foram reiteradamente apontados como origem de todos os males. Adotando o caminho oposto, as políticas das décadas seguintes permitiram um incremento cada vez mais acelerado da concentração de riqueza. Essas mudanças foram acompanhadas por um extraordinário esforço de propaganda. Em Oito Horas não fazem um dia os conformistas e conservadores não defendiam o status quo por acreditar que aquela sociedade era justa, mas por considerá-la imutável. Nos dias de hoje, as mesmas pessoas provavelmente falariam em empreendedorismo e estado mínimo para justificar que o capitalismo tardio é o melhor (e único) mundo possível.

Considerando a trajetória das últimas décadas, não é surpreendente o desespero e até derrotismo de tantas obras hoje classificadas como críticas sociais. Em contrapartida, o otimismo de Oito Horas poderia parecer ingênuo e contraproducente. Um dos grandes momentos da série é a festa de casamento de Jochen e Marion, uma longa sequência que reúne a maioria dos personagens, cada vez mais bêbados. Em outros filmes, seria fácil imaginar cenas parecidas redundando em conflitos. Ao invés disso, somente o cunhado conservador e um operário xenofóbico terminam isolados, enquanto entre os demais vence novamente a união e solidariedade. Por que Fassbinder, geralmente tão cáustico, teria adotado aqui esse tom positivo? Talvez por calcular que sem uma opção consciente pela esperança nenhuma mudança pode ser imaginada, postura essencial em um cenário cada vez mais adverso.

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[1] Boa parte dessa síntese foi retirada do seguinte artigo: https://www.newyorker.com/magazine/2018/05/14/is-capitalism-a-threat-to-democracy

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Estática e cinética, sistema e indivíduo: Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles

Por João Lucas Pedrosa

Discorrer sobre Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, envolve inevitavelmente discorrer sobre a permanência (e a derrocada) de um sistema que constitui os alicerces do filme. Um sistema, sobretudo, de trabalho. Segundo a Física, o trabalho existe quando uma força exercida sobre um corpo gera o seu deslocamento. A força exercida durante esse deslocamento é a que conhecemos por “cinética”, cuja raiz etimológica é a mesma de “cinema” (kinema, “movimento”; kinein, “mover, deslocar”). Tratar de cinema é, portanto, tratar do movimento, desse deslocamento cujo trabalho aparece como fundamento-motor, como a força que faz mover. Essa força pode tratar-se da vida mesma que passa pelo ser, coisa ou lugar captado pela lente, como pode também tratar-se da força mecânica da câmera que registra os efeitos da força misteriosa primeira, e a obra fílmica surge primordialmente como produto do choque entre essas duas forças.

Em filmes como Um Homem Com Uma Câmera (1929) pode ser estabelecido um preciso contraponto estrutural e histórico a Jeanne Dielman. Em meio à exaltação da industrialização soviética e da consequente articulação entre homem e máquina (como aponta o título de sua obra), Dziga Vertov desenha em cerca de uma hora o funcionamento do dia de uma cidade, guiado pelo percurso de um cinegrafista que registra cidadãos em trabalho e/ou atividades rotineiras, máquinas e construções. A montagem estabelece entre os componentes uma harmonia operacional, como células de um grande organismo, que é a metrópole. Quando os cidadãos repousam, toda a cidade o faz, e a grandiosa geometria dos edifícios reflete o repouso dos corpos dormentes na cama, nos bancos da rua. O despertar é igualmente compartilhado e, numa das sequências iniciais, o enquadramento da chegada de um trem é justaposto a planos-detalhe da agitação de uma moça na cama de sua casa, que eventualmente desperta com o balançar do plano anterior. Os dois eventos tomam lugar em diferentes espaços, mas a edição permite o agito contagiar um espaço indeterminadamente distante. A edição estabelece uma ligação metafísica entre homem e máquina. O que os une é a força do movimento, sendo o filme o campo dessa troca sinérgica.

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A metalinguagem é muito presente em Um Homem Com Uma Câmera e associa o trabalho cinematográfico-criativo aos demais: o filmar e o editar não são diferentes do dirigir caminhões, do lavar roupas ou do costurar (ação, esta, justaposta com o “cerzir” da montadora). O fazer cinema faz parte do fazer a cidade,

faz parte da atividade coletiva que constitui a metrópole mesma. As máquinas trabalham para as pessoas que para elas trabalham (por isso as cadeiras do teatro abrem-se sozinhas para a acomodação dos espectadores que chegam na abertura do filme) e daí se dá o funcionamento coletivo do organismo comunitário soviético. O trabalho funciona aqui como cinética combustível do mundo, como energia vital de um espaço do operariado, que funciona pela e para a operação laboral. Eis a construção da União Soviética como um grande corpo-nação, em que o labor é a entidade que rege o mundo.

Se a obra prima de Akerman e a obra prima de Vertov funcionam como exemplares opostos, é principalmente por serem oriundos de momentos e motivações histórico-estéticas diametralmente diferentes. Na União Soviética de 1929, Vertov procurava desenvolver um cinema independente das demais artes, livre do roteiro e da noção de narrativa. Seu projeto envolvia registrar principalmente acontecimentos ao invés de encenações (salvo exceções como a moça acordando), e ressaltar, dentro da obra, o artifício cinematográfico, lembrando todo o tempo que estamos assistindo a fragmentos deliberadamente ligados, ao que registrou uma câmera, (articulando a emancipação da sétima arte a ambos o entusiasmo construtivista da época e a exaltação operarial da URSS leninista). Já Akerman, na Bélgica de 1975, influenciada pelo movimento feminista e por um crescente ideário da emancipação individual da mulher, trata não do sistema coletivo de trabalho, mas de um microcosmo laboral invisibilizado por séculos de costume: o doméstico, ao qual associará a escravização do corpo feminino. Ela se apropriará dos acontecimentos para criar uma diegese narrativa profundamente imersiva, reduzindo as ações ao mais bruto e banal pela duração quase absoluta do filme.

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles acompanha três dias na vida da protagonista que dá nome ao filme, quase todo passado dentro da casa cujo endereço também constitui o título (mulher e casa são nele cooptados como homem e câmera em Vertov). Os dias são preenchidos por atividades domésticas: fazer a cama, cozinhar as batatas, botar a mesa, servir a janta, tirar a mesa, fazer a cama do filho. As ações são registradas em tomadas estáticas, geométricas, com profundidade de campo e na integralidade de sua duração, intervaladas por espaços vazios que precedem e sucedem a entrada, ação e saída de Jeanne em cena. Ela se prostitui a um homem por dia, ação que é elipsada: o enquadramento corta seu rosto do queixo para cima, ela pega o casaco do cliente na sala e o pendura na parede, acompanha-o até seu quarto no fundo do corredor e fecha a porta. Um jump cut que baixa as luzes do cenário sugere um lapso temporal no qual teria acontecido o programa. Mesmo as elipses são posicionadas estrategicamente no intuito de manter a sensação estagnada da rotina da personagem ao preservar a duração integral de cada atividade doméstica. Ivone Margulies, em seu capítulo sobre o filme no livro “Nada Acontece”, associa essa escolha estética a uma descrição cumulativa

inspirada na literatura hiperrealista: a dinâmica dos cortes entre longos blocos de ação funcionam como conjunções aditivas, em que ações são enumeradas e empilhadas, e delas é bloqueada qualquer dimensão simbólica ou evasão metafísica. O aqui e agora da rotina de Jeanne é tudo o que há em seu amontoado alienante de tarefas.

Segundo também ressalta Marguiles, é muito caro a Akerman o movimento do cinema estrutural nos EUA dos anos 1960 e seu projeto de centralizar a forma do filme, no qual a narrativa tem importância marginal. Neles, um objetivo formal específico guia a obra (em exemplos mais claros, como em Wavelength (1967) um lento zoom in de mais de 40 minutos, ou em Back and Forth (1969) o movimento de ida e volta da câmera, ambos de Michael Snow), de forma que a encenação narrativa surge de modo fragmentário, no momento em que a câmera, no meio de seu obstinado dispositivo, acabou captando. Voltamos à dupla do início do texto: a força da vida que move o evento prefílmico e a força mecânica que move a câmera que o registra. No cinema estrutural, cada uma tem seu movimento independente friccionado, e o filme, como faísca, surge dos seus atritos e esbarrões.

Em Jeanne Dielman, entretanto, Akerman inspira-se nesse movimento para criar um corpo fílmico que ande em paridade com a narrativa e cause um impacto dual no espectador, construindo tanto uma harmonia sensorial que o embala quanto uma distensão temporal da ação que permite a reflexão sobre ela enquanto acontece. A rígida execução do sistema formal é necessária para que, na metade do filme, ele seja totalmente corrompido. Na noite do segundo dia, Jeanne queima as batatas da janta de seu filho após um programa que demorou um pouco demais, afetando as convenções de seu deslocamento pela casa (num momento de ansiedade e confusão, ela leva a panela de batatas queimadas ao banheiro) e, em consequência, o sistema formal que o rege. A retórica do filme sempre girou em torno do deslocamento (a cinética) de Jeanne pelo espaço, pois são seus passos que preenchem os vazios entre as ações domésticas dentro do plano, seja entre o ato de pegar o café do armário e botá-lo no moedor, seja nos espaços vazios entre os blocos de ação, quando aparecem em extracampo. Desde o início, esse movimento atrita com a estagnação do dispositivo linguístico que a registra. Jeanne desloca-se constantemente, num labor higiênico obsessivo (que Margulies associa à tentativa de limpar os vestígios de sua profissão, “obscena” moral e cenicamente). Uma inquietude estrutural habita as profundidades de seu ser, uma inquietude que era apenas domada pela rotina. Com o queimar das batatas, essa energia não tem mais direção. Ela esparrama-se pelos cantos e causa rachaduras no que estava cimentado pela utilidade. Apenas o acaso que invade essas fendas poderia quebrar o automatismo da rotina de Jeanne e abrir caminho para sua subjetividade como agente das ações. A força primeira (vida) ataca a força segunda (mecânica) e empurra a protagonista em direção à sua emancipação.

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Naturalmente, a quebra desse sistema de contenção existencial envolve o caminho inverso da cooptação homem-aparato de Vertov, à medida que os objetos domésticos passam a recusá-la, a cair das mãos da protagonista (a escova que usa para engraxar os sapatos de seu filho, a colher que acabou de secar e precisa lavar novamente). O rompimento entre Jeanne e sua rotina doméstica se reflete nesse trabalho opositivo ao seu, realizado tanto pelos elementos pontuais desse mundo (os utensílios) quanto pelo mundo em si (no terceiro dia, ela chega à padaria ainda fechada pois acorda uma hora mais cedo). A dinâmica individual é uma, a do trabalho e da cidade é outra. Cada pequeno descompasso que consuma essa cisão indivíduo-sistema gera uma suspensão, gera a antecipação de algo mais extremo à frente. A imersão no fluxo bem sucedido das ações é tão intensa, que os seus transvios tornam-se a chave do drama, ainda que haja um arco narrativo proeminente (que Margulies identifica como tipicamente melodramático). É na dimensão material da narrativa que o drama do filme toma forma.

Para o sucesso dessa empreitada estrutural, Akerman construiu uma série de acontecimentos em benefício de uma experiência diegética fortificada. Como indica Margulies, quando Jeanne/Delphine “descasca as batatas e lava os pratos, as batatas ficam descascadas e os pratos ficam limpos”. Esse pacto de aceitabilidade pelo espectador em relação à consumação real do evento prefílmico cria o choque do desfecho trágico encenado. Ao longo do terceiro dia, Jeanne tem uma hora sobrando (ela acordou muito cedo) e desliga-se totalmente de sua rotina, saindo para procurar um botão que seja o mesmo do tipo que caiu do seu casaco canadense (não encontraria, o fim é sempre o movimento). Quando chega, abre o presente de sua irmã que chegou do correio (mais uma camada para o título?) e é pega desprevenida quando chega o cliente do dia. A câmera agora entra no quarto com ela e vemos num longo take estático o cliente deitado sobre Jeanne, movendo-se muito pouco. Ela se incomoda, agita-se na cama e, em determinado momento, tem um orgasmo, do qual se envergonha. No plano seguinte, sentada de frente para o espelho da penteadeira, ela veste a blusa, pega a tesoura, com a qual tinha aberto a encomenda, e mata o homem deitado em sua cama. São as únicas vezes em que uma ação passa de acontecimento para encenação no filme, mas são ainda homogeneizadas na estrutura do filme (conectadas cumulativamente): Jeanne fez café e abriu o presente de sua irmã e recebeu o cliente e gozou e o matou com uma tesoura no pescoço. Todas as ações são atos de emancipação de Jeanne ao indicarem a ativação de seu corpo como agente de si, e cada ato antecipava o outro pela eficácia da rigidez estrutural do filme e dos seus respectivos glitches. Foi tecida uma rede de subversões que remonta à dinâmica foucaultiana da microfísica do poder, em que um pequeno evento leva a uma teia de outros eventos que desembocam na grande mudança estrutural. A estrutura do filme, assim, faz com que o pequeno evento estopim dessa rede de alterações não seja um motivo psicológico (uma relação edipiana com o filho, presente no filme: ele não suporta pensar nela com outro homem), mas um erro material que descompassaria a estrutura de trabalho doméstico por definitivo, levando ao grande contra ataque de Jeanne ao patriarcado que a construiu. Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles precisar valer-se da precisa construção de um sistema formal e laboral para ser um filme anti-sistêmico por excelência.

O último plano do filme tem sete minutos corridos de Jeanne sentada à mesa da sala, repousando com as mãos ensanguentadas. A queda dos utensílios das mãos de Jeanne, suas hesitações, seus devaneios silenciosos e suas ações-digressões da rotina eram os bloqueios gradativamente mais agressivos do fluxo cinético laboral que se consuma quando seus desejos tomam conta das decisões de seu corpo. A estagnação do último plano não mais briga com Jeanne, mas com ela descansa, na ação mais subversiva possível num sistema do movimento compulsório: o repouso.

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“A Negra de…” e a escravidão silenciosa

Por Chico Torres

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Um filme político, para fazer valer o seu esforço, precisa ser, acima de tudo, didático. Afastando-se de qualquer estado contemplativo ou de apelo emocional, deve indicar sistematicamente suas ideias e críticas, não poupando esforços para transmitir com precisão tudo o que almeja. Por outro lado, para progredir ainda mais em suas funções políticas, deve se propor a elaborar todo o seu arsenal ideológico sob o véu inocente de uma narrativa. Sendo assim, antes de se apresentar como tese ou documento histórico, um filme político irá funcionar plenamente se chegar ao patamar de obra de arte.

E “A negra de…” (La noire de…), de Ousmane Sembene, atinge esse propósito. Um filme objetivo, que possui apenas uma hora de duração, não trazendo consigo nenhuma superficialidade. Um filme pessimista e não condescendente sobre as mazelas do colonialismo francês na alma de uma jovem mulher senegalesa. Na obra, o artifício do trabalho é o elemento principal para se pensar criticamente essa questão. O trabalho faz evidenciar as diversas relações sutis sobre a alienação e suas camadas. Pois não é Diouana cada vez mais incentivada a alienar-se de sua cultura, dos aspectos de seu povo, para cultuar o progresso estrangeiro do colonizador, consumindo sua moda e procurando adotar às suas maneiras? Não é ela quem parte para a França, sonhando com um emprego digno que irá lhe proporcionar os avanços da vida civilizada? Todo o sonho ingênuo de Diouana é apagado quando a personagem descobre que seu trabalho não é cuidar das crianças do casal francês de classe média, mas ser sua empregada doméstica.

Vemos pouco a pouco as energias de Diouana serem sugadas. O acordo civilizado que garantia o seu sucesso como alguém que se liberta das condições limitadas de seu país, torna-se  escravidão, já que agora ela circula apenas entre as paredes do apartamento dos patrões. Estes, subjugam Diouana seja de forma sutil ou direta: vão dá exotização à humilhação sem o menor constrangimento. O ponto mais sensível da personagem é o modo como aquelas pessoas a enganaram, a rebaixando a um papel que ela não esperava cumprir. Revela-se assim o caráter ambíguo da personagem, já que alienado. O que é ferido em Diouana é, antes de mais nada, o seu orgulho.

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Portanto, o que vemos ao longo do filme é o crescente sofrimento psíquico da personagem, submetida a uma condição de isolamento completo. Ainda que as funções domésticas de Diouana sejam simples, o que a deprime não é a exaustão, mas a clausura, o modo injusto como se dá o seu trabalho e as constantes humilhações que sofre, sobretudo de sua patroa. Diouana vive fechada no apartamento, tendo que sofrer uma série de humilhações da mulher ociosa.

A Clausura é um dos elementos mais relevantes no filme. Não apenas no que se refere à claustrofobia provocada pela presença constante de Diouana no apartamento. Muitas das cenas que se passam em Dakar estão contaminadas pela presença do colonizador, como se o território africano pertencesse a ele, como se as trocas de cenários e ambientações não tivessem quase nenhuma demarcação, nos dando a sensação de que espaços tão distintos, na verdade, integram um único espaço dominado. O exemplo mais didático dessa questão é a cena em que negras se oferecem como mercadoria para serem empregadas pelos brancos. Elas ficam paradas nas calçadas, enquanto mulheres brancas as analisam como peças a serem compradas, referência explícita ao processo de compra de escravizados. Uma cena bastante funcional.

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Se em suas aspirações vemos uma Diouana alienada e fútil, é através de uma narração em off da própria personagem que percebemos suas angústias, coisa que contrasta com sua personalidade de jovem deslumbrada. A narração nos chega como um discurso de revolta, quase existencialista em suas reflexões, impondo à personagem um tipo de sobriedade que acaba por indicar muito mais os pontos de vista do diretor do que consonância com o caráter da personagem. Até o próprio suicídio de Diouana pode ser visto como a adição de uma mensagem política direta. Isso pode artificializar o universo particular da personagem, mas cumpre o papel denunciador do filme. O suicídio de Diouana é exemplar, à medida que revela o aspecto trágico que submerge de um cotidiano que esconde uma série de mazelas estruturais.

Sembene não ameniza em suas escolhas, o que evidencia o seu engajamento. A mensagem carregada de pessimismo surge sempre mais potente do que a narrativa, mas esta continua lá, se desenvolvendo através das pequenas misérias cotidianas, fazendo com que nos emocionemos com o sofrimento da jovem senegalesa.  O filme termina declarando orgulho e resistência, pois nem Diouana e nem sua mãe aceitam o dinheiro que o francês oferece para amenizar a sua culpa. A grande máscara africana que figurava na parede do apartamento do casal francês e que foi um presente de Diouana, volta para sua origem e, através de um menino africano, surge como símbolo fantasmagórico, como se a África e tudo o que ela pode representar, todo a beleza e o todo o horror, assombrassem aqueles que ousam invadir o seu território e retirar a sua liberdade.

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Duas cenas de pesca: Paulo Rocha e Roberto Rossellini

Por João Pedro Faro

Uma cena

HOLY MOTORS

Primeiro, vemos os contornos das costas de um pescador ao remar, registrado pela câmera que está dentro de um barco Furadouro em Mudar de Vida (1966). Agregando seu esforço individual ao esforço conjunto que movimenta o barco, o pescador é parte de um grupo de trabalhadores que une o máximo da capacidade física de cada um para um mesmo objetivo. O embate entre homem e natureza é colocado como princípio laboral, e a vitória desse enfrentamento tende a ser para os pescadores, que continuam constantemente brutos em sua movimentação. Após um plano geral que mostra o Furadouro quebrando ondas embalado por uma canção lusitana entoada pelos pescadores, voltamos para dentro do barco, acompanhando o pesar que recai sobre o rosto do protagonista Adelino (Geraldo Del Rey). Ele acaba de retornar à pesca, após um período afastado da vila que cresceu e dos companheiros de trabalho. Não há em seus movimentos a mesma organicidade característica aos que estão em sua volta. Cada remada o aproxima do esgotamento. Antes, cada descida dos remos parecia ditar uma montagem mais dinâmica à cena. Ao continuarmos com Adelino, os cortes diminuem e o esforço necessário aos movimentos aumentam. Não há corte que dê descanso ao personagem. Suas expressões são vacilantes e culminam em desmaio. Adelino larga os remos e cai dentre os membros do Furadouro, que continuam a jogar as redes na água e a remar contra as ondas como se dotados de uma força inesgotável. Não vemos mais o rosto de Adelino, apenas seu corpo desistente.

Essa sequência da pesca em Mudar de Vida marca alguns pontos essenciais a todo o filme. Sendo o segundo longa do realizador português Paulo Rocha, que tinha alcançado um espaço de relevância após Os Verdes Anos (1963), as recepções ao filme pareciam tomadas por uma certa “atmosfera neorrealista”, como disse o cineasta. Entorno do que o filme registra sobre o trabalho de pesca e a dificuldade de retorno a um espaço fadado às ruínas, ainda mais tendo uso de não-atores e uma proximidade com a ambígua rotulação de “documental” percebia-se mais o que estaria espelhado no cinema de Rocha e menos no que o próprio tentava buscar: “As pessoas viram o filme como um protesto contra a fome e o trabalho pesado. Mas o que eu tinha sobretudo era a admiração por aqueles homens que, sem terem onde copiar, tinham inventado uma complexa forma de trabalho coletivo, capaz de lutar contra a fúria do mar numa costa sem defesa (…) visivelmente era muito forte. Havia uma monumentalidade e uma dignidade trágica nas casas de madeira, nos barcos, nas cordas e nas redes cobrindo os areais a perder a vista”.

Portanto, quando o personagem Adelino não consegue voltar a trabalhar no Furadouro, quando se vê incapaz de continuar no barco e na pesca por não suportar o esforço necessário, ocorre a grande dissociação do protagonista com o espaço que, anteriormente, tinha como pilar. Nesse momento, Adelino se perde de si mesmo, a identidade está acabada. Não é na dureza do trabalho que reside qualquer ideal do filme contra as condições laborais de uma classe, e sim com a forma a qual Rocha coloca a personalidade do indivíduo, sua moral e seus princípios como intrínsecos à cultura de trabalho imposta em sua vida. Adelino não consegue trabalhar com os pescadores de sua vila natal como antes trabalhava, portanto se torna indigno de sua própria origem. Está aí a perda da identidade intrínseca ao processo de trabalho contra a natureza. O destino, tanto do espaço que nasceu quanto de si mesmo, é ser destruído pelas ondas que avançam do mar, que um dia já foi capaz de suportar.

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Outra cena

Vistos de longe, um grupo de pescadores lança redes ao mar e cantam em italiano. Seus rostos são indiscerníveis, o único rosto que vemos aproximado é o da protagonista Karin (Ingrid Bergman), recém-casada com um pescador e morando à beira de um vulcão na cidade de Stromboli, que dá nome ao filme de 1950, do cineasta Roberto Rossellini. A adaptação àquela vila costeira não está sendo nada fácil, e ver o trabalho da pesca pode ser uma possibilidade de se acostumar com o novo ambiente que veio morar. Ela observa os homens trabalhando com certa curiosidade. Até que, em um plano aproximadíssimo das águas, um cardume de atuns submerge, cortando a tela. O som torna-se mais caótico, nos movimentos violentos dos peixes que tentam fugir das mãos dos pescadores. Voltamos ao rosto de Karin, aterrorizada. As águas estão revoltas, os homens seguram os atuns e os puxam para si. Metem arpões em uns enquanto outros tentam escapar. O trabalho torna-se fúria. O registro não se interessa por seus corpos em si, apenas por seus membros, sua força braçal que agarra os atuns. Antes afastada, a câmera se aproxima apenas em detalhes de toda a pesca, intercalados violentamente pela montagem, que aumentam a dureza do embate entre os peixes e os pescadores. A força do trabalho daqueles homens assusta Karin de um jeito traumático, que só tira sua expressão de horror para o silêncio da cena seguinte. Seu marido, grande causador de suas dores pelo abuso já marcado no recente matrimônio, pergunta: “Gostou da pesca?”. Karin só responde, seca: “Não”.

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Quando Rossellini filmava Stromboli, seu nono longa-metragem e primeiro trabalho com Bergman, os percalços do pós-guerra já encontrava implicações diferentes do que havia feito em Alemanha, Ano Zero (1948). A locação de Stromboli tem um potencial tão apocalíptico quanto seu filme anterior que fechava a Trilogia da Guerra, porém a ameaça sai do âmbito puramente humano da guerra para manifestar-se em uma natureza à beira de explodir. Essa manifestação quase sobrenatural do natural, retomada na sequência final do vulcão, é marcada pela cena da pesca. Nela, os habitantes locais, através do trabalho rotineiro, dominam a natureza com as mãos. Para o olhar estrangeiro de Karin, amplificado pelo abuso doméstico, a identificação daquele espaço como um de normalização do brutal, onde uma cena daquelas que presenciou com tanto horror é algo diário, afasta ainda mais qualquer possibilidade de que ela consiga se estabelecer naquela vila. Torna-se sobre como o trabalho não consegue se dissociar da imagem total de uma determinada sociedade e, consequentemente, da identidade dos seus membros. No caso da vila costeira italiana, o contato com o destrutivo é totalmente insensibilizado.

As duas cenas

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Tanto a cena da pesca em Mudar de Vida quanto em Stromboli apresentam um desencontro difícil entre a identidade de um personagem que não consegue se estabelecer diante da identidade de um espaço que não pertence. O drama para Adelino, em Mudar de Vida, é perder o contato com as próprias origens. Para Karin, em Stromboli, é a solidão e o abandono ao perceber que não consegue se adaptar a um novo lugar que habita. Em ambas as sequências, e para ambos os cineastas, cabe ao trabalho (no caso, a um mesmo trabalho) estabelecer distâncias, ritos e pessoas.

Por mais que o gesto de encontro do trabalho dos pescadores com o mar seja retratado em Rocha e em Rossellini com toda a violência necessária aos homens, eles surgem como traço de um gesto inevitável aos que vivem às margens. Os pescadores de Stromboli e os pescadores do norte de Portugal são bases inevitáveis de cada um desses lugares, e, sendo cada um dos filmes sobre as próprias locações, base do que circunda cada um dos filmes. As classes dos trabalhadores braçais se encontram em um estado em que seus ritos laborais já apresentam certa antiguidade, traços próprios, personalidade inconfundível com o lugar que nasceram, cresceram e trabalham. O gesto do trabalho e seus traços pessoais aos coletivos de cada lugar, intrínsecos a quem são essas pessoas, são consequentemente parte do que ambos os filmes buscam encontrar em suas jornadas trágicas da solidão da figura forasteira. Cabe aos outros, sejam esses outros os protagonistas desencontrados, sejam os cineastas, a saber como se aproximar desses gestos através do que podem.

 

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Justine Triet, uma cineasta no século XXI

Por Lucas Saturnino

I.

Dado que “Sur place” (2006) e “Victoria” (2016) compartilham um ponto de partida dramatúrgico em comum, pode-se dizer que Justine Triet passou da videoarte à comédia romântica de modo absolutamente coerente. A francesa Justine Triet nasceu em Fécamp, na Normandia, em 1978. Formou-se em artes plásticas na Escola de Belas Artes de Paris. Seus primeiros trabalhos em vídeo (como “Sur place”) circularam majoritariamente em museus. Em uma década, suas narrativas audiovisuais foram do Centre Pompidou ao Varilux (que exibiu “Victoria” no Brasil) movidas por um mesmo motor: a precarização do trabalho e a mútua erosão das esferas pública e privada na sociedade francesa.

“Sur place” se baseia em filmagens de uma manifestação anti-CPE (“Contrat Première Embauche” = “Contrato do Primeiro Emprego”) em Paris, março de 2006. No início daquele ano, o primeiro-ministro francês Dominique de Villepin havia apresentado um projeto de lei para instituir um novo tipo de contrato laboral, o CPE, cujo objetivo seria combater os altos índices de desemprego na juventude – entre 20% e 25%, número que se mantém até hoje. O CPE seria destinado a menores de 26 anos e tornaria a demissão mais fácil, permitindo ao empregador demitir seu funcionário sem a necessidade de apresentar quaisquer justificativas durante um “período-teste” de 2 anos – duração máxima do contrato.

Argumentava-se que, aos olhos dos empregadores, seria mais fácil contratar caso também fosse mais fácil demitir. Todavia, protestos de larga escala irromperam por todo o país, capitaneados por jovens, estudantes secundaristas e universitários. A enorme oposição ao CPE – 68 universidades públicas foram ocupadas, estima-se que até 3 milhões de pessoas possam ter saído às ruas, em meio a paralisações e ameaças de greve geral – sagrou-se vitoriosa quando o governo recuou, abandonando a proposta menos de um mês após o presidente Jacques Chirac assiná-la.

“Sur place” prenuncia duas décadas politicamente tumultuadas na França. Com efeito, os protestos estudantis de 2006 inauguraram uma nova era de insurreição social no país, junto à revolta que havia eclodido nas periferias francesas em 2005, após o assassinato de dois jovens de origem imigrante em decorrência de uma ação policial – e, no filme de Triet, veem-se muitos negros.

Contudo, nenhum contexto nos é dado: cabe ao espectador projetar nas imagens as razões que ele deseja para a revolta; assistir “Sur place” é uma experiência similar à de ter vivido a década de 2010, acompanhado o surgimento de grandes protestos por todo o planeta e as subsequentes tentativas de decifrar seus significados ou mesmo se apropriar da dor, revolta ou catarse dos outros (ou deslegitimar tudo isso) – da Primavera Árabe ao Chile e Hong Kong, de junho de 2013 no Brasil aos coletes amarelos na própria França.

Triet enquadra a Praça – espaço-símbolo de tantas dentre essas manifestações – e o guião é prontamente reconhecível: o protesto se encaminha ao fim e os participantes se agrupam – ou são agrupados (pelas câmeras da cineasta, mas também pelas da mídia em cena) – em um canto, e a tensão aumenta à medida que se instala a estranha calmaria que precederá a previsível tempestade a ser incitada pela ação da polícia.

“Sur place” contrapõe o niilismo dos jovens manifestantes, dispostos a encarar a repressão, ao niilismo dos patrões, confortavelmente fora de quadro, propensos a bancar a violência que explodirá no espaço diegético. O confronto entre manifestantes e policiais é o choque entre um movimento caótico e outro mecanizado – os policiais, afinal, já foram absorvidos pelo mercado de trabalho. A ambiguidade/transitoriedade das narrativas que buscamos impingir discursivamente nas imagens é reforçada pela presença de policiais à paisana, os quais parecem ser manifestantes constantemente virando a casaca.

O vídeo “Sur place” pertence à Colecção Berardo, além de integrar a coleção new media do Centre Pompidou, em Paris. A Colecção Berardo leva o nome de José “Joe” Berardo, empresário madeirense que fez fortuna explorando ouro na África do Sul, e conta com obras de artistas como Picasso, Bacon, Miró, Duchamp, Warhol, Basquiat e etc.

Em 2006, um comodato (empréstimo gratuito a prazo) de 862 obras entre Berardo e o Estado português deu origem a um museu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Em 2016, o acordo foi renovado até 2022. Como “Sur place” não está entre as 862 obras inicialmente inventariadas pelo Estado, é de se supor que sua aquisição tenha ocorrido entre 2007 e 2008, quando novas peças foram compradas.

O acordo previa a ampliação anual da coleção: o Ministério da Cultura e Berardo contribuiriam com 500 mil euros cada e formar-se-ia a Coleção Estado-Berardo, a qual poderia ser vendida ou adquirida por uma das partes ao fim do comodato. Compraram-se 214 obras antes de Berardo e do Estado português desistirem da iniciativa em 2008. E, assim, “Sur place” foi parar num museu em Lisboa.

Em 2019, Berardo tornou-se pivô de um escândalo em Portugal: ele deve cerca de 980 milhões de euros a bancos portugueses (inclusive públicos), que desejam aceder à coleção para cobrar a dívida. Convocado a prestar esclarecimentos no parlamento, riu-se ao ser confrontado pelos deputados sobre as suas dívidas. Segundo Pedro Lapa, antigo diretor artístico do Museu Berardo, a Coleção Estado-Berardo teria sido formada de maneira “pouco precisa, pouco estruturada, numa perspetiva museológica e nacional” e as 214 peças (“Sur place” inclusa) adquiridas em conjunto por Berardo e pelo Estado teriam um futuro incerto.

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II.

Triet filmou duas eleições presidenciais francesas seguidas: 2007 e 2012. Em ambas, dirigiu-se à Rue Solférino, em Paris, onde fica a sede do Partido Socialista francês. Em 2007, realizou um documentário de média-metragem, “Solférino” (2009), que registrava a decepção (compartilhada por ela) dos presentes com a derrota de Ségolène Royal frente à Nicolas Sarkozy. Cinco anos depois, retornou ao local para incorporar a ocasião na ficção. Em “La bataille de Solférino” (2013), seu primeiro longa, Laetitia Dosch encarna uma jornalista cobrindo o dia eleitoral enquanto o ex-marido briga com ela para poder ver as filhas dos dois – em suma, ela falha em manter a vida pessoal afastada da profissional.

Ao fim do dia, após serem conhecidos os resultados, tumultos (igualmente descontextualizados) emergem nas ruas e se pressente o enfrentamento com a polícia –momento em que a tensão racial é evidente. A personagem de Dosch funciona como uma extensão das pequenas massas de fotógrafos e jornalistas que víamos cobrindo os protestos em “Sur place”. Ao ex-marido, ela se jacta de ser uma formadora de opinião, alguém a quem o público recorre para construir um ponto de vista.

No entanto, a própria estrutura do filme realça a futilidade de se emitir julgamentos com base em recortes arbitrários e seletivos. Quem se atreve a ser categórico a respeito dos personagens? Por um lado, os ex-cônjuges comportam-se de maneira que corrobora as acusações de um em relação ao outro – a mãe a praticar alienação parental e o pai a ser violento. Por outro, presenciamos uma situação-limite e não sabemos de mais nada sobre os dois – ambos são narradores não-confiáveis; falta-nos, justamente, informação.

No instante da vitória de Hollande, a reação da jornalista à História desenrolando-se à sua volta é de indiferença e, sobretudo, desorientação. Ela se encolhe na massa; e o documentário sufoca a ficção. Triet achava que Sarkozy iria ganhar, de modo que o estado de penúria da personagem seria compartilhado pela multidão. Faltou combinar com os russos, já dizia Garrincha. Mexer com o real pode ser assim imprevisível. Dosch teria até sido confundida com uma verdadeira repórter, sendo cobrada pelo seu posicionamento.

Na obra de Triet, a deterioração das esferas pública e privada é um processo que se intensifica conjuntamente. As relações entre pais e filhos se encontram judicializadas: é o Estado quem define quem estará com quem e quando, organizando os elementos em cena. A luta do pai em “La bataille de Solférino” é para poder permanecer no espaço diegético – e ele o faz exibindo uma decisão judicial.

As protagonistas de “La bataille de Solférino” (uma repórter) e “Victoria” (uma advogada) têm muito comum: o emprego das duas pressupõe uma dose de performatividade pública (manter uma imagem: a maquiagem e o figurino mudam drasticamente quando elas não estão trabalhando) e ambas lidam diretamente com o aparelho estatal. Elas representam canais de comunicação entre o povo e o Estado; nenhuma, porém, está dando conta.

A repórter passa o filme segurando o choro, à sombra da “festa da democracia”, e tentando manter o autocontrole em frente às câmeras, o qual inexiste, na vida privada da formadora de opinião pública, a partir do momento em que ela sai do ar. A advogada também trabalha performando – diante dos representantes do Estado (e os julgamentos são razoavelmente ridículos; representação sintonizada com a crise de confiança na aptidão da democracia).

No início de “Victoria”, a personagem-título surge discursando diante de uma câmera: trata-se de uma mensagem de felicitações a um amigo que está se casando. Ela erra e repete várias vezes. “Mais natural”, diz quem está a filmá-la. “Seja mais natural”. Fora do trabalho, Victoria se mostra extremamente desconfortável em performar. Perdeu o jeito.

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III.

“La bataille de Solférino” é uma ficção imersa no real. “Victoria” também; embora não tenha um “pano de fundo documental”, à exemplo das eleições no filme anterior. Assim como em “Sur place”, o estado das relações trabalhistas na França impulsiona a ação dramática no filme – uma comédia romântica cujo romance só ocorre devido ao desemprego. Em outras palavras, a ficção resulta da teatralização de tensões político-econômicas e sociais. À título de comparação, um movimento semelhante ao realizado em “Les Neiges du Kilimandjaro” (2011) e “La Villa” (2017), dois filmes de Robert Guédiguian que, por sua vez, versam sobre os efeitos da desindustrialização no sul da França.

“Victoria” aborda as relações de Victoria – uma advogada, mãe de duas filhas pequenas – com três homens diferentes: seu ex-marido, um amigo que ela aceita defender em um processo de assédio e um antigo cliente que passou a trabalhar de babá para ela.

No casamento de um conhecido em comum, Victoria reencontra Samuel (Vincent Lacoste), um ex-traficante a quem havia defendido. Ele parou de traficar (ou seja, deixou o mercado informal) e precisa de um emprego; então, tenta convencê-la a aceita-lo como seu assistente pessoal: afinal, ela precisa de uma babá e ele está disposto a tudo; assim, os dois podem unir o útil ao agradável – ou o burnout ao desemprego.

Samuel explica-a que poderia ser útil como uma espécie de faz-tudo, um “homem nas sombras” (a subalternização implica em invisibilidade, à exemplo do que diz o guarda-costas encarregado de proteger Victoria durante o julgamento: “Eu sei como manter certa distância”) capaz de resolver os problemas dela, além de estar disponível a qualquer horário, pois até dormirá – por necessidade dele – no trabalho (i.e., a casa dela).

Ele propõe-na um teste: passará uma semana dormindo no sofá dela e trabalhará de graça em troca de uma oportunidade. Sua saída para se reinserir mercado de trabalho é a sujeição absoluta – direitos trabalhistas inexistem e mesmo o salário, em meio a estágios não-renumerados e jobs por visibilidade, torna-se um luxo, quase um favor do patrão.

A influente youtuber Nathalia Arcuri (dona do que afirma ser o maior canal sobre finanças no YouTube do mundo, e apresentadora do programa “Me Poup!” na Band) recomenda uma conduta semelhante ao desempregado: oferecer-se para trabalhar de graça durante 4 horas por dia em um período de 2 semanas, com a finalidade de poder demonstrar o seu valor e se fazer “presente e insubstituível”.

Samuel se desvaloriza para mostrar que ele – um jovem sem experiência profissional – tem consciência de que, segundo a lógica do contratante, não vale nada até se provar meritocraticamente. Tal figura do jovem psicologicamente e economicamente à deriva entre o desemprego e o subemprego é uma constante no cinema francês contemporâneo e encontrou sua expressão mais marcante em “Jeune femme”, de Léonor Serraille.

Note-se que a vitória de Hollande não serviu para muita coisa, o que ajuda a explicar o colapso da centro-esquerda em países como a França e a Alemanha. “Nada mudou”, declarou Triet um ano após a estreia de “La bataille de Solférino”, atentando para a ironia dos cartazes excessivamente esperançosos com o candidato socialista, os quais logo adquiriram um aspecto de comicidade e cinismo. Diferentemente de quando Miterrand foi eleito nos anos 1980, ela alega que a maioria dos apoiadores de Hollande tinha consciência de que nada mudaria e de que a grande vitória era a derrota de Sarkozy.

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IV.

Se considerarmos que o papel mais famoso do Melvil Poupaud é em “Conte d’été” e que neste filme ele bem poderia estar interpretando a mesma pessoa 20 anos depois, “Victoria” é um filme no qual a protagonista tenta salvar um personagem do Rohmer de uma acusação de assédio sob o argumento de que “Sim, ele é um babaca, um grande merdinha, todos sabemos, mas, afinal e a rigor, isso não é crime”.

O personagem de Poupaud não tem mulher nem filhos. Então, a estratégia para que o júri veja-o como um “cidadão de bem” é focar no trabalho, encenando-o como alguém respeitável mediante suas responsabilidades profissionais – a essência do homem. “As pessoas não veem homens bonitos como assassinos. E pessoas bonitas ganham mais que pessoas feias”, explicam-no – imagem é autoridade é dinheiro é sexo é imagem.

Outra linha narrativa trata da apropriação que o ex-marido de Victoria (um aspirante a escritor) faz da história de sua vida – ele pode, é o homem, o autor, cheio de status e hubris –, criando uma personagem inspirada nela, a qual, informam-nos, ganhou o direito de explorar inclusive no cinema. Ora, mas já estamos vendo um filme!

A história de Victoria, tal qual contada por Triet, inclui o fato de que um homem tentou tomar sua biografia de assalto – e conseguiu. A cineasta se reapropria dessa apropriação; porém, sem omitir as difamações do ex-marido, sejam verdadeiras ou não, muitas das quais até podem ser – Victoria admite ter transado com juízes, por exemplo. Pois Triet afirma não desejar que suas personagens femininas sejam meramente vítimas.

Triet sabe que o modo mais justo de se amar alguém é amando-o de maneira que abarque também os seus defeitos – quanto mais em uma economia regida pela performatividade social. A imperfeição da personagem humaniza-a e engrandece-a; suas falhas não são rebeldia ou pose, mas vulnerabilidade e desorientação: ela, uma advogada bem-sucedida, porém esgotada psicologicamente, é a personificação da sociedade do cansaço e do quão insuficiente e insatisfatório é mesmo o “sucesso” burguês no capitalismo tardio.

Simbólico que o personagem de Lacoste seja um traficante – ocupação-chave da vida contemporânea – e que seja o traficante a virar o apoio psicológico dela. Só cheirando ela se põe de pé para a última missão. A vida à base de fármacos – medicinais ou recreativos.

Igualmente emblemático que Victoria tenha comprado um celular inquebrável, que pode ser arremessado no chão ou contra a parede porque foi “feito para militares” (vide Les combattants, de Thomas Cailley, em que a personagem de Adèle Haenel busca se militarizar para sobreviver ao apocalipse vindouro). O celular toca a todo momento com questões de trabalho – até quando ela está transando. Ele põe-na acessível o tempo todo, pulverizando a noção de expediente e tornando-a refém de sua disponibilidade.

Victoria não para de pensar em trabalho nem mesmo durante o sexo. Os homens que ela conhece na internet chegam à sua casa nos horários combinados, mas sua mente ainda não está no mesmo lugar que o corpo. Ela não consegue se fazer presente e estar ali para o outro. A relação dela com o tempo das coisas é esquizofrênica: no trabalho, está pensando no terapeuta; no terapeuta, em sexo; no sexo, em trabalho.

Após ser suspensa da advocacia por alguns meses, uma montagem sua “aproveitando o tempo” com as filhas mostra-nos o quão desconectada ela está de tudo: sem trabalhar, fica vazia, não consegue recanalizar as energias, não sabe tirar prazer de mais nada, sua vida entra numa pausa. O trabalho colonizou o modo dela estar no mundo: “Eu preciso do meu trabalho, não posso viver assim, preciso me reconectar com as pessoas”, ela diz – a vida profissional substituiu outras formas de sociabilidade.

O cenário doméstico possui um aspecto caótico: o quadro preenchido ao máximo, não há espaço, brinquedos e coisas estão por toda a parte. As crianças representam o real (em ambos os longas, interpretadas uma pela filha dela e a outra pela de sua melhor amiga), uma vez que, explica Triet, eram crianças tão pequenas que os atores é que tinham de se adaptar a elas e não o contrário. As crianças – o real – embaralhavam o set, dando origem a uma tensão crua e genuína e gerando a necessidade dos atores efetivamente virarem babás das pequenas (cf: “Poto and Cabengo”, de Jean-Pierre Gorin).

As babás nos filmes de Triet são sempre homens, invertendo a divisão sexual do trabalho clássica, que delega as tarefas domésticas às mulheres, enquanto os maridos passam o dia fora de casa no emprego. Victoria, divorciada, cria as filhas sozinha, mas não tem tempo para elas por causa do trabalho, o qual, porém, paga as despesas de criá-las. O dinheiro que ela ganha trabalhando permite-a contratar ajuda para suprir sua ausência enquanto ela trabalha para ganhar o dinheiro que suprirá sua ausência.

E o pai? Nada. É uma figura infantil, que ademais não paga pensão alimentícia há 7 meses. Já Victoria é uma mulher que triunfou no mercado de trabalho. E do que chama-a o ex-marido? “Mulher fálica”, de “sexualidade cerebral” – como se o trabalho a tivesse masculinizado. Ela afirma que seu ex-marido nasceu em uma família burguesa e não possui preocupações financeiras, tendo tempo para bancar o moralista. Por outro lado, ela não teria tido escolha exceto cometer muitos erros. Questão de classe. No capitalismo neoliberal, ascender socialmente requer certa dose de amoralidade.

Da vidente ao psicólogo, sua conduta é errante mesmo na busca por ajuda. Ela não sabe o que quer e abre-se a tudo. O flerte com o esoterismo revela uma dupla desconfiança: a ajuda não virá nem dos homens nem dos deuses; então, ela procura o oculto, um que a informe de um futuro já escrito, sobre o qual ela nada poderá fazer – os infortúnios serão obra do destino, não é culpa dela, e, bem ou mal, isso é uma espécie de conforto.

Victoria não teve tempo – essa commodity – para se perceber apaixonada e descobrir que existe outra vida além da profissional. E o que se pode oferecer à pessoa amada no capitalismo tardio? Ela declara o seu amor oferecendo ajuda para capacitá-lo profissionalmente – e apresentá-lo a todos os advogados de Paris, pois, como alertam os gurus das finanças, networking é o mais importante….

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A ética do trabalho infinito em Holy Motors

Por Gabriel Papaléo

“Nos dias de hoje, uma das igrejas de Tlön sustentam platonicamente que tal dor, que tal matiz esverdeado do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. (…) Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare, são William Shakespeare.”

                                        Jorge Luís Borges, Ficções.

 

Como se define a ética de um trabalho infinito, se o que legitima os limites do labor é o tempo? Em Holy Motors, Oscar parte da mansão onde dormiu para um dia de trabalho na sua limusine branca de rico economista (ou bancário, ou chefe no mercado financeiro, ou outra coisa), já fazendo ligações profissionais no caminho até o centro de Paris, e a partir daí serão muitas as profissões do protagonista, sempre partindo dos mistérios; de possível excêntrico milionário a encontrar vidas menos luxuosas a confirmado ator do destino invisível de uma corporação nunca vista. O único lugar onde Oscar reflete sobre o que faz é no trânsito, onde podemos acessar mais de suas ambições, frustrações e desejos; o único lugar onde vemos alguém acordar em casa é no prólogo com o despertar do diretor Leos Carax, a entrar num cinema cuja plateia dorme. O artista só reflete sobre seu tempo infinito quando acorda e quando se desloca. Pés em solo firme e consciência recuperada, é tempo de intuição, sentimentos, e sobretudo ação.

Dos elementos que mais estrutura Holy Motors como um travelogue por Paris, pelo imaginário do Cinema, pelas vidas muitas de Oscar, pelo iconográfico de personagens burgueses no Ocidente, é o ludismo no qual encara a atuação. A cada nova troca de cenários, pessoas e memórias, o mistério paira pela superfície digital que só permite sonhos em glitch. Carax nos convida a vagarosamente reconfigurar nossas expectativas, colocando contexto e personagens com simplicidade para imergir na ação e buscar rapidamente empatia diante daquelas novas vidas. Estariam essas vidas em conflito? Falta algo ao ator das muitas vidas?

HOLY MOTORS

O passeio pelos gêneros, portanto, também configura as disparidades sociais nele embutidas, como uma carta ao potencial plural de fissão e guerra da narrativa. O filme começa com um banqueiro, mas no meio Oscar assassina a si mesmo para pontuar a disparidade. Em dado momento, os violinos graves sobem para adornar o drama burguês do velho que morre; pouco antes, um pai ausente busca a filha adolescente numa festa onde era preterida, em seu carro modesto e roupas simples, na situação de drama social que passeia por um subúrbio de pedras inconciliável com os vastos jardins da mansão do primeiro Oscar. O que lhe espera é sempre a limusine, a certeza do trânsito, a companhia via relação de trabalho com Édith Scob, os olhos sem rosto que aqui são o traço de harmonia mais próximo do protagonista.

Claro que por conter passeios tão breves Holy Motors abraça a disposição a personagens arquetípicos, e na hora de satirizar comportamentos Carax mira onde lhe é mais caro, enquanto francês. O fotógrafo esteta que fala inglês entra em cena como caricatura barata, difuso nas metáforas, ridículo nos encantamentos. Grita histriônico a Merde, o mendigo comedor de flores que Oscar vive na invasão ao cemitério, e explora sua miséria quando lhe parece devido. Esses holofotes da fama e do glamour que a arte emana nesse trecho do ensaio fotográfico é usado em contrapartida ao isolamento do estúdio, da relação animalesca entre ator e atriz no motion capture, do ritual de aproximação que gera o gesto computadorizado – que também é cena, também é toque -, e encontra paralelo nos silêncios entre Merde e a modelo vivida por Eva Mendes, recriando seu desfile particular na caverna, sua Pietà farsesca diante do homem que caminha na linha da veneração e objetificação. (não que sejam coisas distintas, mas enfim.)

HOLY MOTORS

Onde está o espectador diante de câmeras agora tão pequenas?, pergunta Oscar, em uma de suas muitas ranhetices sempre respondidas com sabedoria por Céline, a motorista da limusine, que parece não se importar com essa insegurança emocional do ego da atuação; uma câmera está nela o tempo todo, afinal. Essa preocupação com a imagem que retrata, discussão direta por razões óbvias do filme, aparece sobretudo no shopping abandonado que Oscar visita com Eva Grace para uma última canção. O fóssil abandonado de uma antiga civilização comercial, com seus manequins jogados, representam menos o bobo pensamento de uma sociedade de consumo afetada por contemporaneidades, por padrões de beleza, e todos os tipos de crítica mais enfadonhas ao ser retratadas nesses símbolos fáceis, e entram mais como corpos físicos de fantasmas que ali passaram, efeitos do tempo de um passado não tão glorioso, mas que deve ser lembrado de alguma forma, porque é cidade. E a reação com o maravilhamento do trivial na cidade (que Céline ressalta a Oscar mais de uma vez) age como respiro ético diante da insensatez infinita do trabalho, diferente da cidade-bolha de estúdio da limusine de Cosmópolis, por exemplo, na qual o trabalho se estendia à rua das formas mais violentas.

Como homem que passeia, tão ou mais que homem que atua, Oscar aparece como o flaneur de Baudelaire, na cidade que contém muitas historias de Benjamin. É um diálogo sem dúvida antigo o da dedicação ao olhar da pluralidade de fantasias da cidade, suas histórias múltiplas que transcorrem e se perdem no dia-a-dia, mas é raro percebe-la sob essa empolgação imaginativa como no filme de Carax. Paris é fotografada como uma cidade de sonhos terrenos, de vidas cotidianas a se cruzar, prestes a ter tramas desbaratadas e quadros dissolvidos a qualquer momento. Nesse sentido, Holy Motors caminha como um filme que parece sempre ter existido, pela forma que a familiaridade com os temas e fluxos de seu protagonista existem no imaginário cinematográfico do espectador, em algum nível que seja. Não que seja uma construção narrativa de referências e reverências, nem que busque um perigoso e tão empostado universalismo estético, mas que use do Cinema para palcos diversos de jogos cênicos – que revelam mais sobre a política dos corpos nessa Paris, suas memórias e fantasmas, e como o presente guarda tanto.

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A magia desse cotidiano, da trivialidade, é encarada sob a ótica do trânsito, e não necessariamente da reflexão teórica, acadêmica. É ingênuo pensar na vida exercendo sua beleza do gesto, mas aqui o pêndulo do vento parece colocar Oscar onde as histórias precisam dele, e através dela revela-se violências estruturais que passam batidas por nossas vivências porque, como Oscar, não temos tempo para a cidade. As demandas até aparecem como contratos da empresa simbólica na qual Oscar trabalha – da qual nesse texto não entrarei em detalhes, uma vez que acredito nela como ferramenta narrativa de ligação de cenas, mera âncora dramática, não interessando tanto à leitura articulada aqui -, mas as histórias parecem geradas à esmo, como contos reunidos num livro, buscando sentido entre elas através da concisão temática que une todo o filme, na pulsão maníaca e francamente divertida de tentar criar imagens poderosas e efêmeras o suficiente para narrativas que se desafiam e se confundam entre si.

A explosão social do súbito arroubo de violência contra o banqueiro, em praça pública, é um desses exemplos de violência estrutural – e de curto-circuito narrativo que não é esclarecido, e tampouco inspira a resoluções; a Carax, interessa o mistério. Todos os homens, como na citação de Borges, agem e respondem a seus respectivos papeis e sofrem suas consequências, por vezes conflitantes, seja teórica ou socialmente, em tempos simultâneos ou distantes, em legado ou em corpo. O fato da memória de Oscar pouco importar para sua vida, e em nada importar para o trabalho, fala sobre esse tempo suspenso onde o presente é o único que existe, e diante do futuro incerto e oculto, o passado parece apenas obstáculo que complexifica os papeis de seguirem o planejado pelo acaso; a piada do destino, como for.

O trabalho infinito entra como antítese de uma vivência de experiências que duram. O que é fugidio, geralmente o que constroi momentos duradouros e sentimentos sempre interpretados e nunca reproduzidos, acaba sendo vivido, superado, e portanto eclipsado. Os dramas pessoais de Oscar passam sempre pela prisão da convivência artística, seus amores passados distantes pelo fluxo da profissão, seus amores futuros como promessas de um dia atuar novamente. O musical como aceno a um passado de insuficiências, o drama burguês como forma de enganar a morte através da promessa.

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Viver e morrer tantas vezes na cidade de recomeços, nesse filme moderno (e não necessariamente contemporâneo) nas vivências múltiplas do urbano, no qual as historias acontecem, o trabalho corrompe e faz o trânsito acontecer. A beleza do gesto se mantém mesmo que as câmeras tenham sumido, e esse existencialismo de frustração com as motivações úteis do trabalho parece o tipo de vislumbre contemporâneo que Holy Motors toca ocasionalmente para discutir sobre a experiência como commodity, saber que o trabalho está a serviço de alguém invisível e intocável, mas continua sendo feito porque a paixão pelo corpo e pelo movimento existem. “Pelo mesmo motivo que comecei: a beleza do gesto”, Oscar lembra a Michel Piccoli, para que não haja dúvidas.

Essa fina linha entre o desapaixonado e o encantamento pela imagem que fazem o filme de Carax tão especial no olhar para a historia das imagens – e o que os espectadores podem devolver a elas, sendo representados nas muitas historias possíveis dessa Paris utópica, sendo representados no eterno serventilismo do agir diante dos outros; seja para fins profissionais, ou emocionais. Na cidade moderna, até os carros são dotados de sentimentos e elucubrações; não é de se espantar que quem mais trabalha ao infinito sejam as máquinas que dormem juntas, e portanto tem a possibilidade de se organizar para existir além das performances demandadas pela cidade e suas luzes.

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Mar calmo não faz bom marinheiro: O Farol (Robert Eggers, 2019)

Por João Pedro Faro

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Algo começou a dar errado a partir da quinta temporada de Bob Esponja (1999-). O criador do desenho, Stephen Hillenburg, deixou o time de roteiristas da série, que pareceu desandar completamente em seus rumos criativos. O que antes era uma das maiores inovações televisivas da época, marcada por personagens originais e um humor único, tornou-se cada vez mais um bizarro exploitation escatológico no pior sentido possível, apelando para episódios onde a única comédia parecia surgir das quão nojentas e violentas eram as situações que a turma da Fenda do Biquíni tinha que enfrentar. Juntando esse mesmo sentimento de uma escatologia pouco recompensadora com as tendências do cinema de horror dessa década, nos aproximamos da experiência de O Farol, segundo longa de Robert Eggers.

As semelhanças do filme de Eggers com as temporadas tardias de Bob Esponja não ficam apenas na tendência pontual pelo gore e pela mitologia marítima: ambos compartilham um mesmo apreço pelo enfadonho. O conto alucinógeno de dois zeladores de um farol numa ilha remota, interpretados por Willem Dafoe e Robert Pattinson, insiste em uma curiosa construção do gênero de horror onde o que prevalece é a exaustão. Tudo começa quando as barrinhas laterais da tela vão se aproximando para formar um reduzidíssimo aspect ratio que, aliado ao preto e branco, emulam algo de um cinema “de outra época”. Não é muito claro, nem para o próprio diretor, o que está por trás desse efeito tão rígido, porque o cinema visto em O Farol é o mais contemporâneo possível, dos movimentos de câmera que acompanham os personagens em seus mínimos gestos até os raccords que colam sequências por movimentos de grua rebuscados. Se essa estética deveria apontar para Lang, Dreyer, Murnau, ou até mesmo, em uma escala ainda mais pop, os mais baratos seriados americanos de terror dos anos 50, ela fracassa e apenas reforça um sentimento de irritação. Sentimento esse que piora toda vez que a genérica trilha sonora transforma algumas cenas possivelmente interessantes em momentos típicos de qualquer teaser trailer.

O jovem faroleiro interpretado por Pattinson é a maior vítima do filme, tanto na narrativa quanto no próprio formalismo rasteiro de Eggers. Seu personagem passa quase duas horas entre vômitos, diarreias, masturbações e possíveis criaturas monstruosas. Pattinson é genial, sempre foi, e seu nível de disposição ao ridículo oferece ao ator momentos fortíssimos em praticamente todo papel que maneja. Aqui não é diferente, consegue bater de cabeça com o Dafoe e ainda ser a melhor presença do filme inteiro. O problema é que o formato 1.19 esmaga parte de seu brilhantismo. Não há espaço para o que Pattinson e Dafoe tem a oferecer, restritos a alguns momentos genuinamente hilários e entregues a outros essencialmente vazios.

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Esse vazio em O Farol não é por sua despreocupação temática, algo que, em princípio, não há problema algum. Por mais que algumas leituras impositivas tenham buscado encontrar qualquer comentário que seja sobre a tal “masculinidade tóxica”, não há nada em O Farol que não reforce seu prazer pelo desprezível (parece não ser mais possível que alguém faça filmes sobre pessoas tenebrosas sem a cobrança de que ocorra um julgamento quase jurídico de seus personagens). Talvez esse total descompromisso com qualquer coisa além do próprio filme seja o fator mais reverenciável de Eggers, Farol tem um financiamento justo pelo já arcaico prazer da narrativa e do absurdo.

O que cai por terra é como Eggers não tem muito interesse em se aprofundar cinematograficamente em suas jornadas de direção até aqui. Assim como em seu primeiro filme, A Bruxa (2015), o diretor trata arquétipos do gênero como teses de conclusão de curso. Para Eggers, o mistério, tão crucial a qualquer incursão pelo horror, é tratado como mero academicismo. Seus títulos já parecem evidenciar uma linha de personas do terror devidamente teorizadas: temos a bruxa, o capeta, o farol, o marinheiro, o cavaleiro… Esse clima de ensaio sobre o que já esperamos de cada uma dessas mitologias vai se confirmando à medida que Eggers vai listando esses arquétipos em cada cena (a sereia, os tentáculos, a maldição, as gaivotas, o navio fantasma) sem uma entrega própria acerca do que joga em tela.

Passando por cima do que O Farol não consegue oferecer, a dupla principal segura o instigante surto cartunesco que o filme converge em ser. Perseguições destrambelhadas, brigas ébrias e escatologia declarada não apenas retornam ao Bob Esponja como também a excelente animação As Trapalhadas de Flapjack (2008-2010). Flapjack, assim como Farol, aposta na perturbação típica da mitologia do marinheiro sujo e no clima de madeira podre de um cais, com incursões hipnóticas que garantem momentos verdadeiramente tenebrosos que duram pouquíssimos segundos mas deixam imagens marcantes (mais tenebrosos em Flapjack do que em Farol, mas tenebrosos de qualquer forma).  A maior surpresa do filme é que Eggers, na tentativa de fazer um revival expressionista, acabou montando um episódio de desenho animado. Por bem ou por mal, isso é ocasionalmente divertido de assistir.

Todas as principais escolhas formais e narrativas de O Farol evidenciam seus próprios limites. No melhor dos casos, é um encontro raro entre dois atores que graciosamente tentam se engolir em cena e escapar dos cantos de seus enquadramentos. No pior, fica apenas como um experimento acadêmico desesperado em deixar sua grife no mundo, não oferecendo muita coisa além de algumas esboçadas e um sentimento de escorbuto no céu da boca.

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Espelho na bacia das almas: Ad Astra (James Gray, 2019)

Por Pedro Tavares

Todo os estudiosos e viajantes são invariavelmente tomados de admiração por uma certa característica das formas de pensamento primitivo, completamente incompreensível para o ser humano habituado a pensar por meio das categorias correntes da lógica.

Sergei M. Eisenstein

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Há em Ad Astra um serviço muito singelo sobre o conceito de justaposição de aparências: eis um homem só transformado em discurso visual. O filme de James Gray se assume como metáfora já no trauma de um nascimento, também passível de interpretações sobre o re-nascimento e assim pavimenta conversas sobre enunciados.

O espaço sem fronteiras como antro de uma crise existencial inevitável – caberia igualmente num deserto ou numa floresta – serve como um método literário de transformar suas escolhas alegóricas, incluindo as mais simplistas, como um denso sinal de uma existência rompida. Nos resquícios dos processos mentais como o stream of consciousness e no embate direto com o exterior, Roy McBride (Brad Pitt) revisita o caminho feito em Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979) ou olha atentamente o apocalipse de Lessons of Darkness (Werner Herzog, 1992) como organicidade de seu próprio caos; organicidade esta que não escapará da visita ao espelho como forma de encontro com o divã.

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Ad Astra se costura com base nesta pedagogia de representações e como a psicologia toma proporções diferentes mesmo como um pilar intacto visto à distância. Desta maneira cria-se um embate de poder entre protagonista e sua própria noção de existência. Dois espectros, um homem, um espelho. Como redoma, a crença imutável que é o córrego mais impactante como associação aos dados antropológicos, de camadas que são passíveis do incomodo por seu perfil caricato ou morno, como a clássica associação dos closes à densidade dramática. Mas…como circular ou reelaborar um filme, ou melhor, um homem, como reflexo industrial da história?

Mediar este homem através dos cortes como um processo social ou apenas um justo lamento da solidão coloca Gray na antiga posição de Deus que o cinema emula discutida com veemência no início do século passado. Este Deus que não julga antes do tempo correto para tal e dedica-se à proteção da cria como se a sobrevivência e encantamento flutuassem com objetivos análogos, de tal maneira que a ressurreição de Roy, um homem de largos tentáculos no andar do tempo e nos avanços tecnológicos, porém, sem controle emocional, seja colocada em cheque – pelo Deus-câmera e pelo próprio astronauta.

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Desta forma, o domínio que se vê indo aos ares é o eixo de concessão de Gray para examinar de maneira mais frontal seu personagem/matéria-prima: são os pensamentos primitivos (citados por Eisenstein) a respeito da família e de um sentido de plenitude que lhe é tomado pelo seu próprio suporte de vida; a estrutura de vida que foi roubada através do tempo o faz desejar um retorno imediato no qual Gray usufrui de detalhes paralelos como reforços filosóficos e não menos visuais – a exemplo da forte presença de um primata em uma sequência. Arranjos como este levam Ad Astra a um  método específico de pensamento, que transformará o âmago de Roy em uma estrutura e não no caminho explicitamente sensorial, como a exclusiva jornada de auto-descobrimento de um astronauta.

Por esta definição que o espelho torna-se considerável ao conflito arredio de um homem que obtém a alcunha de herói e vilão concomitantemente a cada corte ou close. Do conforto à destruição, Gray possui o suporte primário da autoanálise independente da rota que a Terra tomou. No reflexo, o homem há de se analisar e enfrentar-se além de seus pensamentos primitivos.

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Singularidades de uma assassina loura: Anna (Luc Besson, 2019)

Por Felipe Leal

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É simultaneamente anedótico e “conceitual”, pedra lapidada de um estilo para que o posado revele certa dimensão do espírito, que Robert Bresson tenha preferido modelos para compactuar na composição de seus elencos. Que tenha chamado seus atores de modelos e os posto numa práxis de tamanha mecanicidade disfarçada, que aquilo de autômato chega a exibir mais vida que a própria pele que acusa a carne. Mas não precisamos da máxima de Valéry – aquela diz da pele que este é o órgão mais profundo – para chegar a conhecer as fissuras e engodos inevitáveis ao corpo como um todo, pois ainda que haja atores e haja modelos separadamente, para além de suas fusões, é também sabido que a cada um serve de ferramenta valiosa certo empréstimo das técnicas físicas do outro: àquele posando para uma objetiva ou enfileirado num catwalk excessivamente assistido, é útil que saiba absorver dons de transformista, que aceite incorporações; ao sujeito em cena, mostra-se frutífero que entenda da pose, de congelamentos, das variações corporais para um enamoramento com as lentes. “A câmera ama você”, ouvimos entre os disparos que desejam que nunca fique exaurida a fotogenia de algumas relíquias da moda. Mas dentre as múltiplas singularidades que os diferenciam, aquela que melhor risca uma transversal no ofício do corpo é a sapiência do “saber-se visto”, a consciência erótica de emular, na pele, a devolução do olho que sabem que os observa. Na filmografia de Luc Besson, pois, Anna – O Perigo Tem Nome (Anna, 2019) representa esta transversal de desvio.

Besson filmou Natalie Portman, Bridget Fonda e Scarlett Johansson, evidentes “estrelas”, mas não havia ainda captado de uma modelo propriamente dita esse estojo dúplice de ferramentas de uma mulher que não apenas estourou grifes a nível Chanel e Versace, como fez de seu caminhar de dançarina com leveza de vento e postura de imperatriz a imagem de uma das modelos mais bem pagas do mundo. Que seu regente tenha duplicado o tema é apenas uma ignição sorrindo às escondidas. Anna (Sasha Luss) oscila entre a miséria mal cicatrizada da subserviência aos homens e acidentes e a coreografia inflamada de uma percepção que lhe faz o cheiro das ofensivas anteceder a própria visão das dezenas de seguranças e chefões que assassina. Nenhum objeto é im-passível, digamos, de lhe servir como arma para uma chacina, assim como nenhum homem será capaz de devolver-lhe uma liberdade que aliás nunca esteve entre as mãos. Besson arquiteta um grã-fino restaurante russo como a cenografia mais propícia a um terceiro olho cujas investidas são os círculos, a frontalidade e as costas que multiplicam o inesperado, os pontos da arena de batalha: pratos se partem em discos dentados, suportes cilíndricos de balcões de bar perfuram troncos como lanças, garfos e extintores amassam a guarda protetora como a carne que são, como se às suas mulheres extraordinárias as habilidades mais perniciosas fossem a antecipação e a adversidade. Para essas vidas a que só resta o próprio corpo-máquina, a subtração ensina.

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Mas antes mesmo que a escultura angelical retire os casacos para liberar um demônio ágil, a sagacidade do metteur-en-scène transmuta um dos recursos mais vomitados e possivelmente detestáveis “do” cinema em espirais cuja semelhança com o próprio dispositivo cinematográfico é um contínuo – e, aqui, hilário – lance numa mesa já disposta e na qual sentam, de um lado, aquilo que não se viu, e do outro, aquilo que ainda não podia ser visto. O truque simples do flashback irrompe a partir de cortes sob a lei do “previamente…”, em que a mulher é repassada entre os pontos de vista das disputas políticas, e o filme incessantemente retornará meses, às vezes anos atrás, com o aditivo da cena re-completa para duplicar uma quase-liberdade sempre adiada pelo que a assassina guarda de valioso: é bela ao ponto do magnetismo, é mortífera na medida da falha impossível, e portanto lhe restarão sempre duas opções com as quais, mais tarde, terá de romper: morrer de vez, e de certo modo estar liberta, ou oferecer seus serviços após negociações velozes – e mais uma vez ter a liberdade empurrada e falsificada em nome das pátrias e dos homens.

Ora, o que é automático que se sinta perante a técnica do retorno ao passado? X em Y textos (e bocas) dirão que ele, o recuo, é atormentado pelo didatismo, e bem sabemos que a primeira incógnita chega a quase tocar a segunda. Uma rápida mudança de temas explicitaria melhor o problema, posto que a um professor ou a um cientista, na maioria dos casos, vem a ser menos simplista do que profícuo se lhe apraz ter exercitado isto que se chama de “didática”. A questão não seria, portanto, antes a qualidade dessa instrução? Retornemos à Anna, pois se os rodopios dos flashbacks inserem detalhes, microcâmeras, contextos de miséria, observadores em apartamentos circunvizinhos, não é tanto para que os twists expliquem, confirmem ou sedimentem os eixos de passagem da uma arma nacional em forma de bailarina, mas antes para emprestar ao último deles um sabor de um aprendizado que só a partilha extensa entre personagem e espectadores pode elevar ao grau descaradamente familiar que ele carrega. Anna aprende a arte da burla, da ultrapassagem, como uma primogênita que saboreou desde cedo cada milimétrica jogada no teatro repulsivo dos barões. Seu único passe é também sua tragédia: ser uma mulher tão bela que o único ponto de infiltração nos quartos dos economistas e traficantes é também sua prostituição.

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Trata-se, aliás, de uma questão tão teatral quanto cinematográfica, sendo precisamente aqui o espelhamento escandaloso de que a obra se serve para ressuscitar e escancarar aquilo que as bordas do visível mais velam sobre os passes de mágica. Onde as câmeras de hotéis não podem captar a vigilância dos espiões, há êxitos, bem como armadilhas. Mas também: o contexto cênico no qual a continuidade se fratura, e neste último Besson isto se fará abusadamente, a negociação sobre a(s) vida(s) é uma economia dos ensinos da antecipação ardilosa. À clara exceção daqueles para os quais a exposição do aparato é útil, costuma ser interdito ao cinema que se desvelem as condições da feitura de sua “naturalidade”. Regime de transparência, como já o chamou Ismail Xavier, não fosse o caso, aqui, precisamente outro: não tão-somente uma potência do falso: junto a ela se arrasta, sorrateira, a invasão à surdina do detalhe. Um close, um objeto caído por displicência, o corte de uma faca à maneira característica da KGB, e o caracol de cuidados, trapaças e falsas promessas arrisca se dobrar mais uma vez. A subjetividade da mulher por vezes ingênua, por vezes angustiada e distante, corriqueiramente opaca, toma o corte entre cenas como um impulso para que o ofício de atriz/modelo rebata a perspectiva do corpo em direção ao mundo que o compõe conjuntamente a ele. Seu aprendizado não é uma ciência da adaptação biológica tanto quanto uma chave que singulariza a loura pelo “esporte” cerebral no qual ela é imbatível.

É através do xadrez, nesse tabuleiro de projeções sobre o lance do Outro e de si, nessa disputa enquadrada que requer uma totalização (semi)impossível do olho-acima-do-espaço, como acontece por detrás das linhas de um tableau, que Anna articula o joguete capaz de fazer de Besson quase um comediante sutilizado dentro da ação. Num café de praça, espaço típico dos rendez-vous parisienses, reduz os dois agentes especializados e, por que não dizê-lo, tolamente enamorados, à condição de fantoches sobrelotados dos próprios fios que vêm à exposição. América e Rússia dividindo um espresso e endividados com uma órfã. Das promessas e abusos, tornam-se contornos assustados na iminência do embaralho absoluto daquilo que é da ordem da missão patriótica e daquilo que os faz cachorros apaixonados por um dono impossível, como se não só o aprendiz tivesse superado o mestre, mas também o feito de bobo por sua suposta maestria acumulada. É este o seu logro: imprensar as adversidades num mesmo espaço para saltar dele como os volumes e mais volumes de uma boneca russa.

Não espanta que à beira de sua dúbia liberdade ela consiga repuxar uma penúltima boneca justamente onde parecia ter restado a mais minúscula de todas. O artefato icônico comporta sua titulação, justifica por fins e meios que o último lance grafe seu nome de uma vez por todas e no paradoxo de um arquivo deletado: ela não existe mais, precisou se apagar por um dos elementos que mais singularizam isto que dizem ser uma mulher para soçobrar ainda mais imortal que nunca. Heroína conquistada, ou os dois países de estrutura continental vêm à baixo. Saltamos ao outro lado da mesa, ou ainda tomamos a posição do lustre, da sombra abaixo dela, das árvores que a contornam. É o preço da sua negociação ser esquecida para que o mundo não entre em colapso. Megalomania tipicamente americana de tomar as proporções do planeta como a medida de distinção do herói. Gracejo russo de multiplicar a pintura e compactá-la até que a última surpresa seja quase igual a primeira. Assim diríamos, se a paixão de Anna pelo que é livre fosse tão facilmente redutível ao dúplice – e porque uma modelo sempre sabe que é assistida. Cabe-lhe tomar a posição da câmera e esbofetear o fotógrafo: eis seu último desfile sangrento antes da liberdade.

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Bacurau: desequilíbrios e assimetrias

Por Kênia Freitas

Antes

Uma das bases das discussões racializadas contemporâneas sobre os gêneros narrativos – em campos como o afrofuturismo e o horror noire (ou terror negro) – é a ideia de que gêneros como a ficção científica e o terror se fundam na projeção do medo branco da vingança dos povos e etnias historicamente escravizados, subjugados, desumanizados e colonizados. Invertendo de forma perversa a flecha da violência na produção simbólica, os filmes e livros de gênero tornam as pessoas brancas vítimas resistentes às opressões, perseguições e ocupações. Ataques vindos de um Outro imaginário/mágico/fantástico (as invasões alienígenas, os zumbis comedores de gente, os fantasmas e toda uma fauna de monstros). E também de um Outro localizado nos povos fora da codificação civilizatória branca – os bárbaros, os selvagens. O surgimento do western no cinema hollywoodiano realiza um processo semelhante de inversão histórica, colocando os povos indígenas como os selvagens/malvados dos seus primeiros filmes.

            Em Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a narrativa de gênero (entre o western, o terror e a ficção especulativa de futuro próximo) é retomada agora em consonância com uma visão histórica de mundo pós-colonial: que localiza no colonizador branco, no caso o europeu-estadunidense, a figura do invasor violento. Desse ponto de vista, o filme é pedagogicamente literal e maniqueísta. Os personagens brancos são maus. São os vilões. Os invasores. Eles perturbam o curso da existência e da narrativa sobre o pequeno vilarejo de Bacurau. Seu signo principal e a justificativa de suas ações se forjam a partir de um discurso de subjugação racializada hierarquizante – em que os moradores de Bacurau estão aquém do estatuto de humano e alguns brancos são mais brancos do que os outros.

            Ao mesmo tempo (e essa sincronicidade de perspectiva é fundamental), dentro da tradição dos gêneros narrativos cinematográficos aos quais se filia, Bacurau é um filme que subverte o lugar do medo branco como premissa. Há na composição enunciativa do filme ao mesmo tempo uma literalidade da representação histórica pós-colonial e uma subversão da perversão das localização dos gêneros do cinema normativo.

            Desequilibrio e assimetria[1]

Essas são palavras importantes para se pensar Bacurau em sua construção interna de tempo e de encenação. O desenvolvimento fílmico do vilarejo e dos seus moradores parte de uma ideia de profundidade, de uma densidade da imagem e de histórias. À Bacurau não se chega com facilidade, é preciso estar no caminhão pipa com Teresa e Erivaldo, percorrer a via acidentada com caixões, sacolejar na estrada de terra. Há a projeção de uma vida, de relações familiares e de comunidade, de arcos e trajetórias pessoais em pleno curso: como seguirá o curso da vida comunitária sem Dona Carmelita?  Por que Teresa regressou? Acácio conseguirá de fato deixar de ser Pacote? Lunga e o seu bando sobreviverão à perseguição policial? Com essas aberturas de enredo, o início do filme demora-se então não apenas em nos apresentar e contextualizar a cidadezinha, mas também em criar essa atmosfera de densidade.

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            Aos poucos essa espessura narrativa será atacada por imagens e sons de outra natureza – não mais da profundidade, mas da superfície: a caravana do prefeito Tony Jr com o seu jingle eleitoral chiclete, as imagens do drone/disco voador ou os sintetizadores roubados dos filmes de John Carpenter. Uma composição planificada que começa a se sobrepor como uma ameaça de compressão a espessura da encenação até então constituída, e que anuncia a chegada do elemento desestabilizador definitivo: o grupo de estrangeiros invasores brancos.

            Se para chegarmos à Bacurau vamos de caminhão pipa, até o acampamento dos gringos chega-se de drone. Sem sutileza, sem tempo de apresentação, sem arco, sem espessura. O grupo é acima de tudo uma imagem clichê: uma matriz pré-moldada na iconografia do cinema para reprodução, um amálgama das representações de homens e mulheres brancos, estadunidenses fascinados por armas, pelo extermínio, pela destruição de tudo o que não é espelho (e, às vezes, do espelho também).

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            Da superfície à densidade, o filme engendra uma série de formas e regimes de representação e encenação: das atuações de atores não profissionais, passando pelas relações comunais, matutas e codificadas encenadas pelo núcleo de Bacurau à corporificação da imagem videogame dos gringos. Entre esses lugares, ficam personagens como o prefeito Tony Jr e o casal de forasteiros paulista-carioca. A chegada do casal ao bunker gringo marca um dos momentos de choque entre os universos (antes do confronto final). Em um mesmo espaço estão os dois, a senhora moradora local que serve ao grupo e os gringos. Cada um desses conjuntos existe e atua em regimes de representação diversos e as comunicações mostram-se truncadas, imprecisas. O gesto da senhora para oferecer água, a tentativa do casal de justificar as suas ações e o estabelecimento da hierarquia racial pelos gringos: nada disso está dado como consenso mínimo entre os conjuntos. Há um abismo de humanidades intransponível na diferença entre “people we pay” e “local contractors”. As formas de apreender e comunicar entre essas humanidades são diversas e, como o final da sequência nos mostra, não passíveis de sintetização.

            O ataque é então o encontro final da espessura densa da representação e tramas de Bacurau e da imagem de superfície dos invasores brancos. A estratégia de guerrilha da comunidade para não ser aniquilada passa justamente por saber desaparecer, esconder-se, retrair-se para dentro de si (para dentro da espessura). A comunidade retira-se do terreno de confronto aberto, faz com que os invasores esperem – tomando conta da temporalidade da ação.

            Para fora

            “A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, que arrasou completamente os sistemas de referências da economia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada se engolfar nas cidades interditas. Fazer explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desmanchar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se vão abrir vias de passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou expulsá-la do território” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, p. 30).

            Frantz Fanon ao tratar dos territórios colonizados fala de uma configuração espacial de um mundo cindido em dois: o do colono e o do colonizado. Duas zonas geográficas de existência não compartilháveis. O processo de descolonização não passa pela ideia de integração ou síntese de mundos, mas de destruição violenta do colonizador e da sua zona. Enterrá-la profundamente no solo…

            Bacurau é um filme sobre a violência e com imagens violentas. Um posicionamento ético diante dessas imagens passa por se perguntar como a violência se estrutura, quais as suas origens,  os seus agentes e os seus pesos: na fúria do facão de Lunga? No tiro certeiro de Damiano? No assassinato de uma criança? Na eliminação de testemunhas? Na morte por interferência do jogo? Na chacina da fazenda? Na chegada dos brancos assassinos? No sequestro de Ângela pelo prefeito e sua trupe? Na retirada do mapa de um território? Na distribuição feita pelo Estado de mantimentos vencidos? Na criação de barreiras para interromper o fluxo do rio e tornar a água inacessível? Na tentativa de destruir as barreiras? Na perseguição do estado-policial do Brasil do Sul? Nas execuções em massa no Anhangabaú? Na transmissão em tempo real das execuções em massa no Anhangabaú?

bacurau-lungaTodas ações violentas. Porém, não simétricas.

  Ao final de tudo, vencido, cansado, Michael vê a comunidade de Bacurau reunida na frente da calçada da igreja que expõe as cabeças decepadas de seu grupo. Com desprezo e desaprovação, ele diz: So much violence. Há uma força que explode a diegese quando esse corpo de um homem branco, europeu, em tudo normativo, mesmo derrotado se sente capaz de enunciar um juízo de valor, que desautoriza a violência fora dos seus termos e do seu jogo.

Tanta violência.

Bacurau_micSoma

            Em sua junção de mundos, de formas de encenar, de perspectivas, de densidades rasas e profundas de imagens e sons, Bacurau resulta desequilibrado, incompleto, com tramas sobrepostas e outras interrompidas. Há um estranhamento diante de um filme que não é fragmentado, mas que também não se totaliza.

Mais do que uma suspensão ou esvaziamento da narrativa, nessa forma de se compor, o filme assume o corte abrupto diante do choque de perspectivas, de formas de invenção e fruição de mundo. Corte seco de um regime de encenação sobre o outro, da violência racializada, das desigualdades entre as partes, da fricção da invasão colonizadora com a resistência comunal. Assume-se sem síntese, sem neutralidade estabilizadora do encontro assimétrico. Os seus diretores produzem então, nesse desequilíbrio, um desdobramento ético e estético do filme que criam.

[1] Agradecemos ao texto da Carol Almeida pela invocação da ideia de assimetria no filme: https://foradequadro.com/2019/09/10/bacurau-de-kleber-mendonca-filho-e-juliano-dornelles/

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A Meretriz-Ciborgue de Daehak-ro: Os Limites da Violência Ética e a Exigência do Não Cegado

Por Diogo Serafim

 

Esse dualismo estruturou a disputa entre o materialismo e o idealismo, a qual foi resolvida por um rebento dialético que foi chamado, dependendo do gosto, de espírito ou de história. Mas, basicamente, nessa perspectiva, as máquinas não eram vistas como tendo movimento próprio, como se autoconstruindo, como sendo autônomas. Elas não podiam realizar o sonho do homem; só podiam arremedá-lo. Elas não eram o homem, um autor para si próprio, mas apenas uma caricatura daquele sonho reprodutivo masculinista. Pensar que elas podiam ser outra coisa era uma paranoia. Agora já não estamos assim tão seguros. As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes.

Donna Haraway, O Manifesto Ciborgue

 

Reside na configuração ontológica da máquina um princípio fundador que abala nossas concepções de sujeito, comando e controle. O mito do ciborgue parte de uma apostasia heterodoxa que constantemente escapa das nossas definições imediatas que decorrem da sua imagem, uma lógica de comunicação que é desestabilizada pela noção de inteligência, exigindo uma repartição radical na sua configuração subjetiva. A linguagem do ciborgue trata não de uma linguagem do comum, mas de uma herética heteroglossia, como a própria Donna Haraway indica: a cultura ciborgue é definida mais em termos de densidades dentro de fluxos, um circuito que encontra pontos de inflexão nos seus percursos, uma profusão que converge na mesma medida que diverge na sua abundância. Em primeira instância temos a afluência de intensidades para encontrarmos em uma dimensão subsidiária a esta a sua constituição de corpos e vontades. Não é a consciência que dá lugar ao que está fora desta, e sim o encontro de consciências que permite a realidade tal como ela é, uma rede difusa de forças, campos e vetores postos em associação por um materialismo fundador, sempre se interseccionando e frequentemente colidindo.

De onde surgem nossos prazeres? Seriam eles ontologia ou cultura? A primeira conclusão essencial na compreensão de uma possível cultura ciborgue decorre diretamente do imperativo da construção, nada aqui é absoluto, é tudo programado. Se a ontologia fundadora do ciborgue é em si uma ontologia construída, submetida às relações de poder que a formataram, é sempre importante frisar que essa ontologia pode ser constantemente aperfeiçoada, é inclusive da sua natureza que ela seja constatemente otimizada com a cinesia insaciável da cultura e da política, sempre sendo redesenhada, reconstruída, reconfigurada.

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É impressionante como Teenage Hooker Becomes Killing Machine in Daehak-ro (2000) é um filme sensorial, não apenas visualmente, mas também na sua trilha sonora. Se Évora, Veloso e Sakamoto entoam inicialmente uma atmosfera misteriosa e um sentimento irrebatável de isolamento urbano, logo Sun Ra e Huckle Berry Finn levam o filme para o domínio do deboche. Em seguida somos tomados por uma espécie de ascetismo perturbador com Saint-Saens, um desespero desestabilizador com Mozart e um estoicismo renitente com Fauré. Massive Attack denota uma esperança surgente e a curva final necessária para entrarmos em definitivo em uma estética mais propriamente próxima do cyberpunk, Gypsy Kings reforça uma ambiência misteriosa com um desvio para uma atmosfera de filme noir, enquanto Rutter é a tão aguardada emancipação. Primal Scream consegue finalmente concatenar toda a esquizofrenia narrativa, sensorial e formal em um tom conclusivo.

Uma jovem prostituta engravida do seu professor sadista em Daehak-ro. A lua é quem sela o pacto dessa concepção. A jovem menina, aparentemente desprovida de vontade própria e individualidade, carrega no seu utilitarismo empreendedor já uma figura de ciborgue servil, uma submissão voluntária à figura do seu mestre, quem a programou de acordo com os desejos e vontades próprias. Ela é o ciborgue reprodutor, ele é o ciborgue cuja função é controla-la de acordo com sua libido. Um é proprietário, o outro é comoditizado. Agora a mulher obediente, carregando uma criança no seu ventre que é fruto dessa relação hedionda com o pai autoritário, é violentamente assassinada.

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Após ser reformada, a versão evoluída da prostituta enfrenta o seu criador com a única resposta possível, tendo que a base estrutural dessa relação é a violência. Agora em um corpo sem coração é capaz de reparar a violência a qual foi submetida com uma resposta binária. Colide na figura da mãe do professor, aquela que encapsula o egoísmo pleno, a aniquilação da força reprodutiva do filho criador, o filho deformado, o patriarcado reduzido na imagem de um monstro, a sua subsequente humilhação e uma nova ordem de dominação que é estabelecida com esse ato de vingança. Nos limites da violência ética, reside ali algum ímpeto asceta provido de toda a repugnância que nos foi exposta anteriormente, mas que de alguma maneira ainda nos é repulsivo, independente das suas possíveis justificativas compensatórias. Só podemos ter uma reflexão ética sobre a humanidade alheia no momento em que suspendemos o nosso juízo – talvez para aniquilar a injustiça deva-se aniquilar assim também a humanidade.

É como Adorno afirma em Minima Moralia: “O humilhado e o rejeitado apercebe-se de algo, tão cruamente quanto a luz que dores intensas lançam sobre o próprio corpo. Ele se dá conta de que no mais íntimo do amor cego, que nada sabe disso nem pode saber, vive a exigência do não cegado. Fizeram-lhe injustiça; disso ele deriva a demanda do direito e no mesmo passo é obrigado a abrir mão dela, pois o que deseja só pode provir da liberdade. Nesse infortúnio o rejeitado torna-se humano”. Poderia tornar-se humano o ciborgue, mesmo que partindo do abominável para tal?

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O grande dilema é como construir uma cultura ciborgue que finalmente nos faça pensar a partir do nosso circuito, e não de seus capacitores desenergizados (ou excessivamente energizados, dependendo de como se queira estabelecer a metáfora). A solução é a violenta retirada desses capacitores ou há uma forma de também os reconstituir? Existe algo de irreversível no nosso processo civilizatório que nos impeça de pensar para além da violência, rumo a uma reparação plenamente ética? Há de existir alguma maneira de reestabelecer a humanidade a partir da humilhação do Eu, do confronto direto com a nossa pequenez deve surgir a nossa grandiosidade. Em busca de uma subjetividade sem sujeito, de uma heteronomia sem sujeição, em eterna reconstrução, sempre se aprimorando, sempre se aproximando do Uno.

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