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“A Negra de…” e a escravidão silenciosa

Por Chico Torres

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Um filme político, para fazer valer o seu esforço, precisa ser, acima de tudo, didático. Afastando-se de qualquer estado contemplativo ou de apelo emocional, deve indicar sistematicamente suas ideias e críticas, não poupando esforços para transmitir com precisão tudo o que almeja. Por outro lado, para progredir ainda mais em suas funções políticas, deve se propor a elaborar todo o seu arsenal ideológico sob o véu inocente de uma narrativa. Sendo assim, antes de se apresentar como tese ou documento histórico, um filme político irá funcionar plenamente se chegar ao patamar de obra de arte.

E “A negra de…” (La noire de…), de Ousmane Sembene, atinge esse propósito. Um filme objetivo, que possui apenas uma hora de duração, não trazendo consigo nenhuma superficialidade. Um filme pessimista e não condescendente sobre as mazelas do colonialismo francês na alma de uma jovem mulher senegalesa. Na obra, o artifício do trabalho é o elemento principal para se pensar criticamente essa questão. O trabalho faz evidenciar as diversas relações sutis sobre a alienação e suas camadas. Pois não é Diouana cada vez mais incentivada a alienar-se de sua cultura, dos aspectos de seu povo, para cultuar o progresso estrangeiro do colonizador, consumindo sua moda e procurando adotar às suas maneiras? Não é ela quem parte para a França, sonhando com um emprego digno que irá lhe proporcionar os avanços da vida civilizada? Todo o sonho ingênuo de Diouana é apagado quando a personagem descobre que seu trabalho não é cuidar das crianças do casal francês de classe média, mas ser sua empregada doméstica.

Vemos pouco a pouco as energias de Diouana serem sugadas. O acordo civilizado que garantia o seu sucesso como alguém que se liberta das condições limitadas de seu país, torna-se  escravidão, já que agora ela circula apenas entre as paredes do apartamento dos patrões. Estes, subjugam Diouana seja de forma sutil ou direta: vão dá exotização à humilhação sem o menor constrangimento. O ponto mais sensível da personagem é o modo como aquelas pessoas a enganaram, a rebaixando a um papel que ela não esperava cumprir. Revela-se assim o caráter ambíguo da personagem, já que alienado. O que é ferido em Diouana é, antes de mais nada, o seu orgulho.

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Portanto, o que vemos ao longo do filme é o crescente sofrimento psíquico da personagem, submetida a uma condição de isolamento completo. Ainda que as funções domésticas de Diouana sejam simples, o que a deprime não é a exaustão, mas a clausura, o modo injusto como se dá o seu trabalho e as constantes humilhações que sofre, sobretudo de sua patroa. Diouana vive fechada no apartamento, tendo que sofrer uma série de humilhações da mulher ociosa.

A Clausura é um dos elementos mais relevantes no filme. Não apenas no que se refere à claustrofobia provocada pela presença constante de Diouana no apartamento. Muitas das cenas que se passam em Dakar estão contaminadas pela presença do colonizador, como se o território africano pertencesse a ele, como se as trocas de cenários e ambientações não tivessem quase nenhuma demarcação, nos dando a sensação de que espaços tão distintos, na verdade, integram um único espaço dominado. O exemplo mais didático dessa questão é a cena em que negras se oferecem como mercadoria para serem empregadas pelos brancos. Elas ficam paradas nas calçadas, enquanto mulheres brancas as analisam como peças a serem compradas, referência explícita ao processo de compra de escravizados. Uma cena bastante funcional.

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Se em suas aspirações vemos uma Diouana alienada e fútil, é através de uma narração em off da própria personagem que percebemos suas angústias, coisa que contrasta com sua personalidade de jovem deslumbrada. A narração nos chega como um discurso de revolta, quase existencialista em suas reflexões, impondo à personagem um tipo de sobriedade que acaba por indicar muito mais os pontos de vista do diretor do que consonância com o caráter da personagem. Até o próprio suicídio de Diouana pode ser visto como a adição de uma mensagem política direta. Isso pode artificializar o universo particular da personagem, mas cumpre o papel denunciador do filme. O suicídio de Diouana é exemplar, à medida que revela o aspecto trágico que submerge de um cotidiano que esconde uma série de mazelas estruturais.

Sembene não ameniza em suas escolhas, o que evidencia o seu engajamento. A mensagem carregada de pessimismo surge sempre mais potente do que a narrativa, mas esta continua lá, se desenvolvendo através das pequenas misérias cotidianas, fazendo com que nos emocionemos com o sofrimento da jovem senegalesa.  O filme termina declarando orgulho e resistência, pois nem Diouana e nem sua mãe aceitam o dinheiro que o francês oferece para amenizar a sua culpa. A grande máscara africana que figurava na parede do apartamento do casal francês e que foi um presente de Diouana, volta para sua origem e, através de um menino africano, surge como símbolo fantasmagórico, como se a África e tudo o que ela pode representar, todo a beleza e o todo o horror, assombrassem aqueles que ousam invadir o seu território e retirar a sua liberdade.

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Duas cenas de pesca: Paulo Rocha e Roberto Rossellini

Por João Pedro Faro

Uma cena

HOLY MOTORS

Primeiro, vemos os contornos das costas de um pescador ao remar, registrado pela câmera que está dentro de um barco Furadouro em Mudar de Vida (1966). Agregando seu esforço individual ao esforço conjunto que movimenta o barco, o pescador é parte de um grupo de trabalhadores que une o máximo da capacidade física de cada um para um mesmo objetivo. O embate entre homem e natureza é colocado como princípio laboral, e a vitória desse enfrentamento tende a ser para os pescadores, que continuam constantemente brutos em sua movimentação. Após um plano geral que mostra o Furadouro quebrando ondas embalado por uma canção lusitana entoada pelos pescadores, voltamos para dentro do barco, acompanhando o pesar que recai sobre o rosto do protagonista Adelino (Geraldo Del Rey). Ele acaba de retornar à pesca, após um período afastado da vila que cresceu e dos companheiros de trabalho. Não há em seus movimentos a mesma organicidade característica aos que estão em sua volta. Cada remada o aproxima do esgotamento. Antes, cada descida dos remos parecia ditar uma montagem mais dinâmica à cena. Ao continuarmos com Adelino, os cortes diminuem e o esforço necessário aos movimentos aumentam. Não há corte que dê descanso ao personagem. Suas expressões são vacilantes e culminam em desmaio. Adelino larga os remos e cai dentre os membros do Furadouro, que continuam a jogar as redes na água e a remar contra as ondas como se dotados de uma força inesgotável. Não vemos mais o rosto de Adelino, apenas seu corpo desistente.

Essa sequência da pesca em Mudar de Vida marca alguns pontos essenciais a todo o filme. Sendo o segundo longa do realizador português Paulo Rocha, que tinha alcançado um espaço de relevância após Os Verdes Anos (1963), as recepções ao filme pareciam tomadas por uma certa “atmosfera neorrealista”, como disse o cineasta. Entorno do que o filme registra sobre o trabalho de pesca e a dificuldade de retorno a um espaço fadado às ruínas, ainda mais tendo uso de não-atores e uma proximidade com a ambígua rotulação de “documental” percebia-se mais o que estaria espelhado no cinema de Rocha e menos no que o próprio tentava buscar: “As pessoas viram o filme como um protesto contra a fome e o trabalho pesado. Mas o que eu tinha sobretudo era a admiração por aqueles homens que, sem terem onde copiar, tinham inventado uma complexa forma de trabalho coletivo, capaz de lutar contra a fúria do mar numa costa sem defesa (…) visivelmente era muito forte. Havia uma monumentalidade e uma dignidade trágica nas casas de madeira, nos barcos, nas cordas e nas redes cobrindo os areais a perder a vista”.

Portanto, quando o personagem Adelino não consegue voltar a trabalhar no Furadouro, quando se vê incapaz de continuar no barco e na pesca por não suportar o esforço necessário, ocorre a grande dissociação do protagonista com o espaço que, anteriormente, tinha como pilar. Nesse momento, Adelino se perde de si mesmo, a identidade está acabada. Não é na dureza do trabalho que reside qualquer ideal do filme contra as condições laborais de uma classe, e sim com a forma a qual Rocha coloca a personalidade do indivíduo, sua moral e seus princípios como intrínsecos à cultura de trabalho imposta em sua vida. Adelino não consegue trabalhar com os pescadores de sua vila natal como antes trabalhava, portanto se torna indigno de sua própria origem. Está aí a perda da identidade intrínseca ao processo de trabalho contra a natureza. O destino, tanto do espaço que nasceu quanto de si mesmo, é ser destruído pelas ondas que avançam do mar, que um dia já foi capaz de suportar.

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Outra cena

Vistos de longe, um grupo de pescadores lança redes ao mar e cantam em italiano. Seus rostos são indiscerníveis, o único rosto que vemos aproximado é o da protagonista Karin (Ingrid Bergman), recém-casada com um pescador e morando à beira de um vulcão na cidade de Stromboli, que dá nome ao filme de 1950, do cineasta Roberto Rossellini. A adaptação àquela vila costeira não está sendo nada fácil, e ver o trabalho da pesca pode ser uma possibilidade de se acostumar com o novo ambiente que veio morar. Ela observa os homens trabalhando com certa curiosidade. Até que, em um plano aproximadíssimo das águas, um cardume de atuns submerge, cortando a tela. O som torna-se mais caótico, nos movimentos violentos dos peixes que tentam fugir das mãos dos pescadores. Voltamos ao rosto de Karin, aterrorizada. As águas estão revoltas, os homens seguram os atuns e os puxam para si. Metem arpões em uns enquanto outros tentam escapar. O trabalho torna-se fúria. O registro não se interessa por seus corpos em si, apenas por seus membros, sua força braçal que agarra os atuns. Antes afastada, a câmera se aproxima apenas em detalhes de toda a pesca, intercalados violentamente pela montagem, que aumentam a dureza do embate entre os peixes e os pescadores. A força do trabalho daqueles homens assusta Karin de um jeito traumático, que só tira sua expressão de horror para o silêncio da cena seguinte. Seu marido, grande causador de suas dores pelo abuso já marcado no recente matrimônio, pergunta: “Gostou da pesca?”. Karin só responde, seca: “Não”.

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Quando Rossellini filmava Stromboli, seu nono longa-metragem e primeiro trabalho com Bergman, os percalços do pós-guerra já encontrava implicações diferentes do que havia feito em Alemanha, Ano Zero (1948). A locação de Stromboli tem um potencial tão apocalíptico quanto seu filme anterior que fechava a Trilogia da Guerra, porém a ameaça sai do âmbito puramente humano da guerra para manifestar-se em uma natureza à beira de explodir. Essa manifestação quase sobrenatural do natural, retomada na sequência final do vulcão, é marcada pela cena da pesca. Nela, os habitantes locais, através do trabalho rotineiro, dominam a natureza com as mãos. Para o olhar estrangeiro de Karin, amplificado pelo abuso doméstico, a identificação daquele espaço como um de normalização do brutal, onde uma cena daquelas que presenciou com tanto horror é algo diário, afasta ainda mais qualquer possibilidade de que ela consiga se estabelecer naquela vila. Torna-se sobre como o trabalho não consegue se dissociar da imagem total de uma determinada sociedade e, consequentemente, da identidade dos seus membros. No caso da vila costeira italiana, o contato com o destrutivo é totalmente insensibilizado.

As duas cenas

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Tanto a cena da pesca em Mudar de Vida quanto em Stromboli apresentam um desencontro difícil entre a identidade de um personagem que não consegue se estabelecer diante da identidade de um espaço que não pertence. O drama para Adelino, em Mudar de Vida, é perder o contato com as próprias origens. Para Karin, em Stromboli, é a solidão e o abandono ao perceber que não consegue se adaptar a um novo lugar que habita. Em ambas as sequências, e para ambos os cineastas, cabe ao trabalho (no caso, a um mesmo trabalho) estabelecer distâncias, ritos e pessoas.

Por mais que o gesto de encontro do trabalho dos pescadores com o mar seja retratado em Rocha e em Rossellini com toda a violência necessária aos homens, eles surgem como traço de um gesto inevitável aos que vivem às margens. Os pescadores de Stromboli e os pescadores do norte de Portugal são bases inevitáveis de cada um desses lugares, e, sendo cada um dos filmes sobre as próprias locações, base do que circunda cada um dos filmes. As classes dos trabalhadores braçais se encontram em um estado em que seus ritos laborais já apresentam certa antiguidade, traços próprios, personalidade inconfundível com o lugar que nasceram, cresceram e trabalham. O gesto do trabalho e seus traços pessoais aos coletivos de cada lugar, intrínsecos a quem são essas pessoas, são consequentemente parte do que ambos os filmes buscam encontrar em suas jornadas trágicas da solidão da figura forasteira. Cabe aos outros, sejam esses outros os protagonistas desencontrados, sejam os cineastas, a saber como se aproximar desses gestos através do que podem.

 

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Justine Triet, uma cineasta no século XXI

Por Lucas Saturnino

I.

Dado que “Sur place” (2006) e “Victoria” (2016) compartilham um ponto de partida dramatúrgico em comum, pode-se dizer que Justine Triet passou da videoarte à comédia romântica de modo absolutamente coerente. A francesa Justine Triet nasceu em Fécamp, na Normandia, em 1978. Formou-se em artes plásticas na Escola de Belas Artes de Paris. Seus primeiros trabalhos em vídeo (como “Sur place”) circularam majoritariamente em museus. Em uma década, suas narrativas audiovisuais foram do Centre Pompidou ao Varilux (que exibiu “Victoria” no Brasil) movidas por um mesmo motor: a precarização do trabalho e a mútua erosão das esferas pública e privada na sociedade francesa.

“Sur place” se baseia em filmagens de uma manifestação anti-CPE (“Contrat Première Embauche” = “Contrato do Primeiro Emprego”) em Paris, março de 2006. No início daquele ano, o primeiro-ministro francês Dominique de Villepin havia apresentado um projeto de lei para instituir um novo tipo de contrato laboral, o CPE, cujo objetivo seria combater os altos índices de desemprego na juventude – entre 20% e 25%, número que se mantém até hoje. O CPE seria destinado a menores de 26 anos e tornaria a demissão mais fácil, permitindo ao empregador demitir seu funcionário sem a necessidade de apresentar quaisquer justificativas durante um “período-teste” de 2 anos – duração máxima do contrato.

Argumentava-se que, aos olhos dos empregadores, seria mais fácil contratar caso também fosse mais fácil demitir. Todavia, protestos de larga escala irromperam por todo o país, capitaneados por jovens, estudantes secundaristas e universitários. A enorme oposição ao CPE – 68 universidades públicas foram ocupadas, estima-se que até 3 milhões de pessoas possam ter saído às ruas, em meio a paralisações e ameaças de greve geral – sagrou-se vitoriosa quando o governo recuou, abandonando a proposta menos de um mês após o presidente Jacques Chirac assiná-la.

“Sur place” prenuncia duas décadas politicamente tumultuadas na França. Com efeito, os protestos estudantis de 2006 inauguraram uma nova era de insurreição social no país, junto à revolta que havia eclodido nas periferias francesas em 2005, após o assassinato de dois jovens de origem imigrante em decorrência de uma ação policial – e, no filme de Triet, veem-se muitos negros.

Contudo, nenhum contexto nos é dado: cabe ao espectador projetar nas imagens as razões que ele deseja para a revolta; assistir “Sur place” é uma experiência similar à de ter vivido a década de 2010, acompanhado o surgimento de grandes protestos por todo o planeta e as subsequentes tentativas de decifrar seus significados ou mesmo se apropriar da dor, revolta ou catarse dos outros (ou deslegitimar tudo isso) – da Primavera Árabe ao Chile e Hong Kong, de junho de 2013 no Brasil aos coletes amarelos na própria França.

Triet enquadra a Praça – espaço-símbolo de tantas dentre essas manifestações – e o guião é prontamente reconhecível: o protesto se encaminha ao fim e os participantes se agrupam – ou são agrupados (pelas câmeras da cineasta, mas também pelas da mídia em cena) – em um canto, e a tensão aumenta à medida que se instala a estranha calmaria que precederá a previsível tempestade a ser incitada pela ação da polícia.

“Sur place” contrapõe o niilismo dos jovens manifestantes, dispostos a encarar a repressão, ao niilismo dos patrões, confortavelmente fora de quadro, propensos a bancar a violência que explodirá no espaço diegético. O confronto entre manifestantes e policiais é o choque entre um movimento caótico e outro mecanizado – os policiais, afinal, já foram absorvidos pelo mercado de trabalho. A ambiguidade/transitoriedade das narrativas que buscamos impingir discursivamente nas imagens é reforçada pela presença de policiais à paisana, os quais parecem ser manifestantes constantemente virando a casaca.

O vídeo “Sur place” pertence à Colecção Berardo, além de integrar a coleção new media do Centre Pompidou, em Paris. A Colecção Berardo leva o nome de José “Joe” Berardo, empresário madeirense que fez fortuna explorando ouro na África do Sul, e conta com obras de artistas como Picasso, Bacon, Miró, Duchamp, Warhol, Basquiat e etc.

Em 2006, um comodato (empréstimo gratuito a prazo) de 862 obras entre Berardo e o Estado português deu origem a um museu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Em 2016, o acordo foi renovado até 2022. Como “Sur place” não está entre as 862 obras inicialmente inventariadas pelo Estado, é de se supor que sua aquisição tenha ocorrido entre 2007 e 2008, quando novas peças foram compradas.

O acordo previa a ampliação anual da coleção: o Ministério da Cultura e Berardo contribuiriam com 500 mil euros cada e formar-se-ia a Coleção Estado-Berardo, a qual poderia ser vendida ou adquirida por uma das partes ao fim do comodato. Compraram-se 214 obras antes de Berardo e do Estado português desistirem da iniciativa em 2008. E, assim, “Sur place” foi parar num museu em Lisboa.

Em 2019, Berardo tornou-se pivô de um escândalo em Portugal: ele deve cerca de 980 milhões de euros a bancos portugueses (inclusive públicos), que desejam aceder à coleção para cobrar a dívida. Convocado a prestar esclarecimentos no parlamento, riu-se ao ser confrontado pelos deputados sobre as suas dívidas. Segundo Pedro Lapa, antigo diretor artístico do Museu Berardo, a Coleção Estado-Berardo teria sido formada de maneira “pouco precisa, pouco estruturada, numa perspetiva museológica e nacional” e as 214 peças (“Sur place” inclusa) adquiridas em conjunto por Berardo e pelo Estado teriam um futuro incerto.

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II.

Triet filmou duas eleições presidenciais francesas seguidas: 2007 e 2012. Em ambas, dirigiu-se à Rue Solférino, em Paris, onde fica a sede do Partido Socialista francês. Em 2007, realizou um documentário de média-metragem, “Solférino” (2009), que registrava a decepção (compartilhada por ela) dos presentes com a derrota de Ségolène Royal frente à Nicolas Sarkozy. Cinco anos depois, retornou ao local para incorporar a ocasião na ficção. Em “La bataille de Solférino” (2013), seu primeiro longa, Laetitia Dosch encarna uma jornalista cobrindo o dia eleitoral enquanto o ex-marido briga com ela para poder ver as filhas dos dois – em suma, ela falha em manter a vida pessoal afastada da profissional.

Ao fim do dia, após serem conhecidos os resultados, tumultos (igualmente descontextualizados) emergem nas ruas e se pressente o enfrentamento com a polícia –momento em que a tensão racial é evidente. A personagem de Dosch funciona como uma extensão das pequenas massas de fotógrafos e jornalistas que víamos cobrindo os protestos em “Sur place”. Ao ex-marido, ela se jacta de ser uma formadora de opinião, alguém a quem o público recorre para construir um ponto de vista.

No entanto, a própria estrutura do filme realça a futilidade de se emitir julgamentos com base em recortes arbitrários e seletivos. Quem se atreve a ser categórico a respeito dos personagens? Por um lado, os ex-cônjuges comportam-se de maneira que corrobora as acusações de um em relação ao outro – a mãe a praticar alienação parental e o pai a ser violento. Por outro, presenciamos uma situação-limite e não sabemos de mais nada sobre os dois – ambos são narradores não-confiáveis; falta-nos, justamente, informação.

No instante da vitória de Hollande, a reação da jornalista à História desenrolando-se à sua volta é de indiferença e, sobretudo, desorientação. Ela se encolhe na massa; e o documentário sufoca a ficção. Triet achava que Sarkozy iria ganhar, de modo que o estado de penúria da personagem seria compartilhado pela multidão. Faltou combinar com os russos, já dizia Garrincha. Mexer com o real pode ser assim imprevisível. Dosch teria até sido confundida com uma verdadeira repórter, sendo cobrada pelo seu posicionamento.

Na obra de Triet, a deterioração das esferas pública e privada é um processo que se intensifica conjuntamente. As relações entre pais e filhos se encontram judicializadas: é o Estado quem define quem estará com quem e quando, organizando os elementos em cena. A luta do pai em “La bataille de Solférino” é para poder permanecer no espaço diegético – e ele o faz exibindo uma decisão judicial.

As protagonistas de “La bataille de Solférino” (uma repórter) e “Victoria” (uma advogada) têm muito comum: o emprego das duas pressupõe uma dose de performatividade pública (manter uma imagem: a maquiagem e o figurino mudam drasticamente quando elas não estão trabalhando) e ambas lidam diretamente com o aparelho estatal. Elas representam canais de comunicação entre o povo e o Estado; nenhuma, porém, está dando conta.

A repórter passa o filme segurando o choro, à sombra da “festa da democracia”, e tentando manter o autocontrole em frente às câmeras, o qual inexiste, na vida privada da formadora de opinião pública, a partir do momento em que ela sai do ar. A advogada também trabalha performando – diante dos representantes do Estado (e os julgamentos são razoavelmente ridículos; representação sintonizada com a crise de confiança na aptidão da democracia).

No início de “Victoria”, a personagem-título surge discursando diante de uma câmera: trata-se de uma mensagem de felicitações a um amigo que está se casando. Ela erra e repete várias vezes. “Mais natural”, diz quem está a filmá-la. “Seja mais natural”. Fora do trabalho, Victoria se mostra extremamente desconfortável em performar. Perdeu o jeito.

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III.

“La bataille de Solférino” é uma ficção imersa no real. “Victoria” também; embora não tenha um “pano de fundo documental”, à exemplo das eleições no filme anterior. Assim como em “Sur place”, o estado das relações trabalhistas na França impulsiona a ação dramática no filme – uma comédia romântica cujo romance só ocorre devido ao desemprego. Em outras palavras, a ficção resulta da teatralização de tensões político-econômicas e sociais. À título de comparação, um movimento semelhante ao realizado em “Les Neiges du Kilimandjaro” (2011) e “La Villa” (2017), dois filmes de Robert Guédiguian que, por sua vez, versam sobre os efeitos da desindustrialização no sul da França.

“Victoria” aborda as relações de Victoria – uma advogada, mãe de duas filhas pequenas – com três homens diferentes: seu ex-marido, um amigo que ela aceita defender em um processo de assédio e um antigo cliente que passou a trabalhar de babá para ela.

No casamento de um conhecido em comum, Victoria reencontra Samuel (Vincent Lacoste), um ex-traficante a quem havia defendido. Ele parou de traficar (ou seja, deixou o mercado informal) e precisa de um emprego; então, tenta convencê-la a aceita-lo como seu assistente pessoal: afinal, ela precisa de uma babá e ele está disposto a tudo; assim, os dois podem unir o útil ao agradável – ou o burnout ao desemprego.

Samuel explica-a que poderia ser útil como uma espécie de faz-tudo, um “homem nas sombras” (a subalternização implica em invisibilidade, à exemplo do que diz o guarda-costas encarregado de proteger Victoria durante o julgamento: “Eu sei como manter certa distância”) capaz de resolver os problemas dela, além de estar disponível a qualquer horário, pois até dormirá – por necessidade dele – no trabalho (i.e., a casa dela).

Ele propõe-na um teste: passará uma semana dormindo no sofá dela e trabalhará de graça em troca de uma oportunidade. Sua saída para se reinserir mercado de trabalho é a sujeição absoluta – direitos trabalhistas inexistem e mesmo o salário, em meio a estágios não-renumerados e jobs por visibilidade, torna-se um luxo, quase um favor do patrão.

A influente youtuber Nathalia Arcuri (dona do que afirma ser o maior canal sobre finanças no YouTube do mundo, e apresentadora do programa “Me Poup!” na Band) recomenda uma conduta semelhante ao desempregado: oferecer-se para trabalhar de graça durante 4 horas por dia em um período de 2 semanas, com a finalidade de poder demonstrar o seu valor e se fazer “presente e insubstituível”.

Samuel se desvaloriza para mostrar que ele – um jovem sem experiência profissional – tem consciência de que, segundo a lógica do contratante, não vale nada até se provar meritocraticamente. Tal figura do jovem psicologicamente e economicamente à deriva entre o desemprego e o subemprego é uma constante no cinema francês contemporâneo e encontrou sua expressão mais marcante em “Jeune femme”, de Léonor Serraille.

Note-se que a vitória de Hollande não serviu para muita coisa, o que ajuda a explicar o colapso da centro-esquerda em países como a França e a Alemanha. “Nada mudou”, declarou Triet um ano após a estreia de “La bataille de Solférino”, atentando para a ironia dos cartazes excessivamente esperançosos com o candidato socialista, os quais logo adquiriram um aspecto de comicidade e cinismo. Diferentemente de quando Miterrand foi eleito nos anos 1980, ela alega que a maioria dos apoiadores de Hollande tinha consciência de que nada mudaria e de que a grande vitória era a derrota de Sarkozy.

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IV.

Se considerarmos que o papel mais famoso do Melvil Poupaud é em “Conte d’été” e que neste filme ele bem poderia estar interpretando a mesma pessoa 20 anos depois, “Victoria” é um filme no qual a protagonista tenta salvar um personagem do Rohmer de uma acusação de assédio sob o argumento de que “Sim, ele é um babaca, um grande merdinha, todos sabemos, mas, afinal e a rigor, isso não é crime”.

O personagem de Poupaud não tem mulher nem filhos. Então, a estratégia para que o júri veja-o como um “cidadão de bem” é focar no trabalho, encenando-o como alguém respeitável mediante suas responsabilidades profissionais – a essência do homem. “As pessoas não veem homens bonitos como assassinos. E pessoas bonitas ganham mais que pessoas feias”, explicam-no – imagem é autoridade é dinheiro é sexo é imagem.

Outra linha narrativa trata da apropriação que o ex-marido de Victoria (um aspirante a escritor) faz da história de sua vida – ele pode, é o homem, o autor, cheio de status e hubris –, criando uma personagem inspirada nela, a qual, informam-nos, ganhou o direito de explorar inclusive no cinema. Ora, mas já estamos vendo um filme!

A história de Victoria, tal qual contada por Triet, inclui o fato de que um homem tentou tomar sua biografia de assalto – e conseguiu. A cineasta se reapropria dessa apropriação; porém, sem omitir as difamações do ex-marido, sejam verdadeiras ou não, muitas das quais até podem ser – Victoria admite ter transado com juízes, por exemplo. Pois Triet afirma não desejar que suas personagens femininas sejam meramente vítimas.

Triet sabe que o modo mais justo de se amar alguém é amando-o de maneira que abarque também os seus defeitos – quanto mais em uma economia regida pela performatividade social. A imperfeição da personagem humaniza-a e engrandece-a; suas falhas não são rebeldia ou pose, mas vulnerabilidade e desorientação: ela, uma advogada bem-sucedida, porém esgotada psicologicamente, é a personificação da sociedade do cansaço e do quão insuficiente e insatisfatório é mesmo o “sucesso” burguês no capitalismo tardio.

Simbólico que o personagem de Lacoste seja um traficante – ocupação-chave da vida contemporânea – e que seja o traficante a virar o apoio psicológico dela. Só cheirando ela se põe de pé para a última missão. A vida à base de fármacos – medicinais ou recreativos.

Igualmente emblemático que Victoria tenha comprado um celular inquebrável, que pode ser arremessado no chão ou contra a parede porque foi “feito para militares” (vide Les combattants, de Thomas Cailley, em que a personagem de Adèle Haenel busca se militarizar para sobreviver ao apocalipse vindouro). O celular toca a todo momento com questões de trabalho – até quando ela está transando. Ele põe-na acessível o tempo todo, pulverizando a noção de expediente e tornando-a refém de sua disponibilidade.

Victoria não para de pensar em trabalho nem mesmo durante o sexo. Os homens que ela conhece na internet chegam à sua casa nos horários combinados, mas sua mente ainda não está no mesmo lugar que o corpo. Ela não consegue se fazer presente e estar ali para o outro. A relação dela com o tempo das coisas é esquizofrênica: no trabalho, está pensando no terapeuta; no terapeuta, em sexo; no sexo, em trabalho.

Após ser suspensa da advocacia por alguns meses, uma montagem sua “aproveitando o tempo” com as filhas mostra-nos o quão desconectada ela está de tudo: sem trabalhar, fica vazia, não consegue recanalizar as energias, não sabe tirar prazer de mais nada, sua vida entra numa pausa. O trabalho colonizou o modo dela estar no mundo: “Eu preciso do meu trabalho, não posso viver assim, preciso me reconectar com as pessoas”, ela diz – a vida profissional substituiu outras formas de sociabilidade.

O cenário doméstico possui um aspecto caótico: o quadro preenchido ao máximo, não há espaço, brinquedos e coisas estão por toda a parte. As crianças representam o real (em ambos os longas, interpretadas uma pela filha dela e a outra pela de sua melhor amiga), uma vez que, explica Triet, eram crianças tão pequenas que os atores é que tinham de se adaptar a elas e não o contrário. As crianças – o real – embaralhavam o set, dando origem a uma tensão crua e genuína e gerando a necessidade dos atores efetivamente virarem babás das pequenas (cf: “Poto and Cabengo”, de Jean-Pierre Gorin).

As babás nos filmes de Triet são sempre homens, invertendo a divisão sexual do trabalho clássica, que delega as tarefas domésticas às mulheres, enquanto os maridos passam o dia fora de casa no emprego. Victoria, divorciada, cria as filhas sozinha, mas não tem tempo para elas por causa do trabalho, o qual, porém, paga as despesas de criá-las. O dinheiro que ela ganha trabalhando permite-a contratar ajuda para suprir sua ausência enquanto ela trabalha para ganhar o dinheiro que suprirá sua ausência.

E o pai? Nada. É uma figura infantil, que ademais não paga pensão alimentícia há 7 meses. Já Victoria é uma mulher que triunfou no mercado de trabalho. E do que chama-a o ex-marido? “Mulher fálica”, de “sexualidade cerebral” – como se o trabalho a tivesse masculinizado. Ela afirma que seu ex-marido nasceu em uma família burguesa e não possui preocupações financeiras, tendo tempo para bancar o moralista. Por outro lado, ela não teria tido escolha exceto cometer muitos erros. Questão de classe. No capitalismo neoliberal, ascender socialmente requer certa dose de amoralidade.

Da vidente ao psicólogo, sua conduta é errante mesmo na busca por ajuda. Ela não sabe o que quer e abre-se a tudo. O flerte com o esoterismo revela uma dupla desconfiança: a ajuda não virá nem dos homens nem dos deuses; então, ela procura o oculto, um que a informe de um futuro já escrito, sobre o qual ela nada poderá fazer – os infortúnios serão obra do destino, não é culpa dela, e, bem ou mal, isso é uma espécie de conforto.

Victoria não teve tempo – essa commodity – para se perceber apaixonada e descobrir que existe outra vida além da profissional. E o que se pode oferecer à pessoa amada no capitalismo tardio? Ela declara o seu amor oferecendo ajuda para capacitá-lo profissionalmente – e apresentá-lo a todos os advogados de Paris, pois, como alertam os gurus das finanças, networking é o mais importante….

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A ética do trabalho infinito em Holy Motors

Por Gabriel Papaléo

“Nos dias de hoje, uma das igrejas de Tlön sustentam platonicamente que tal dor, que tal matiz esverdeado do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. (…) Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare, são William Shakespeare.”

                                        Jorge Luís Borges, Ficções.

 

Como se define a ética de um trabalho infinito, se o que legitima os limites do labor é o tempo? Em Holy Motors, Oscar parte da mansão onde dormiu para um dia de trabalho na sua limusine branca de rico economista (ou bancário, ou chefe no mercado financeiro, ou outra coisa), já fazendo ligações profissionais no caminho até o centro de Paris, e a partir daí serão muitas as profissões do protagonista, sempre partindo dos mistérios; de possível excêntrico milionário a encontrar vidas menos luxuosas a confirmado ator do destino invisível de uma corporação nunca vista. O único lugar onde Oscar reflete sobre o que faz é no trânsito, onde podemos acessar mais de suas ambições, frustrações e desejos; o único lugar onde vemos alguém acordar em casa é no prólogo com o despertar do diretor Leos Carax, a entrar num cinema cuja plateia dorme. O artista só reflete sobre seu tempo infinito quando acorda e quando se desloca. Pés em solo firme e consciência recuperada, é tempo de intuição, sentimentos, e sobretudo ação.

Dos elementos que mais estrutura Holy Motors como um travelogue por Paris, pelo imaginário do Cinema, pelas vidas muitas de Oscar, pelo iconográfico de personagens burgueses no Ocidente, é o ludismo no qual encara a atuação. A cada nova troca de cenários, pessoas e memórias, o mistério paira pela superfície digital que só permite sonhos em glitch. Carax nos convida a vagarosamente reconfigurar nossas expectativas, colocando contexto e personagens com simplicidade para imergir na ação e buscar rapidamente empatia diante daquelas novas vidas. Estariam essas vidas em conflito? Falta algo ao ator das muitas vidas?

HOLY MOTORS

O passeio pelos gêneros, portanto, também configura as disparidades sociais nele embutidas, como uma carta ao potencial plural de fissão e guerra da narrativa. O filme começa com um banqueiro, mas no meio Oscar assassina a si mesmo para pontuar a disparidade. Em dado momento, os violinos graves sobem para adornar o drama burguês do velho que morre; pouco antes, um pai ausente busca a filha adolescente numa festa onde era preterida, em seu carro modesto e roupas simples, na situação de drama social que passeia por um subúrbio de pedras inconciliável com os vastos jardins da mansão do primeiro Oscar. O que lhe espera é sempre a limusine, a certeza do trânsito, a companhia via relação de trabalho com Édith Scob, os olhos sem rosto que aqui são o traço de harmonia mais próximo do protagonista.

Claro que por conter passeios tão breves Holy Motors abraça a disposição a personagens arquetípicos, e na hora de satirizar comportamentos Carax mira onde lhe é mais caro, enquanto francês. O fotógrafo esteta que fala inglês entra em cena como caricatura barata, difuso nas metáforas, ridículo nos encantamentos. Grita histriônico a Merde, o mendigo comedor de flores que Oscar vive na invasão ao cemitério, e explora sua miséria quando lhe parece devido. Esses holofotes da fama e do glamour que a arte emana nesse trecho do ensaio fotográfico é usado em contrapartida ao isolamento do estúdio, da relação animalesca entre ator e atriz no motion capture, do ritual de aproximação que gera o gesto computadorizado – que também é cena, também é toque -, e encontra paralelo nos silêncios entre Merde e a modelo vivida por Eva Mendes, recriando seu desfile particular na caverna, sua Pietà farsesca diante do homem que caminha na linha da veneração e objetificação. (não que sejam coisas distintas, mas enfim.)

HOLY MOTORS

Onde está o espectador diante de câmeras agora tão pequenas?, pergunta Oscar, em uma de suas muitas ranhetices sempre respondidas com sabedoria por Céline, a motorista da limusine, que parece não se importar com essa insegurança emocional do ego da atuação; uma câmera está nela o tempo todo, afinal. Essa preocupação com a imagem que retrata, discussão direta por razões óbvias do filme, aparece sobretudo no shopping abandonado que Oscar visita com Eva Grace para uma última canção. O fóssil abandonado de uma antiga civilização comercial, com seus manequins jogados, representam menos o bobo pensamento de uma sociedade de consumo afetada por contemporaneidades, por padrões de beleza, e todos os tipos de crítica mais enfadonhas ao ser retratadas nesses símbolos fáceis, e entram mais como corpos físicos de fantasmas que ali passaram, efeitos do tempo de um passado não tão glorioso, mas que deve ser lembrado de alguma forma, porque é cidade. E a reação com o maravilhamento do trivial na cidade (que Céline ressalta a Oscar mais de uma vez) age como respiro ético diante da insensatez infinita do trabalho, diferente da cidade-bolha de estúdio da limusine de Cosmópolis, por exemplo, na qual o trabalho se estendia à rua das formas mais violentas.

Como homem que passeia, tão ou mais que homem que atua, Oscar aparece como o flaneur de Baudelaire, na cidade que contém muitas historias de Benjamin. É um diálogo sem dúvida antigo o da dedicação ao olhar da pluralidade de fantasias da cidade, suas histórias múltiplas que transcorrem e se perdem no dia-a-dia, mas é raro percebe-la sob essa empolgação imaginativa como no filme de Carax. Paris é fotografada como uma cidade de sonhos terrenos, de vidas cotidianas a se cruzar, prestes a ter tramas desbaratadas e quadros dissolvidos a qualquer momento. Nesse sentido, Holy Motors caminha como um filme que parece sempre ter existido, pela forma que a familiaridade com os temas e fluxos de seu protagonista existem no imaginário cinematográfico do espectador, em algum nível que seja. Não que seja uma construção narrativa de referências e reverências, nem que busque um perigoso e tão empostado universalismo estético, mas que use do Cinema para palcos diversos de jogos cênicos – que revelam mais sobre a política dos corpos nessa Paris, suas memórias e fantasmas, e como o presente guarda tanto.

HOLY MOTORS

A magia desse cotidiano, da trivialidade, é encarada sob a ótica do trânsito, e não necessariamente da reflexão teórica, acadêmica. É ingênuo pensar na vida exercendo sua beleza do gesto, mas aqui o pêndulo do vento parece colocar Oscar onde as histórias precisam dele, e através dela revela-se violências estruturais que passam batidas por nossas vivências porque, como Oscar, não temos tempo para a cidade. As demandas até aparecem como contratos da empresa simbólica na qual Oscar trabalha – da qual nesse texto não entrarei em detalhes, uma vez que acredito nela como ferramenta narrativa de ligação de cenas, mera âncora dramática, não interessando tanto à leitura articulada aqui -, mas as histórias parecem geradas à esmo, como contos reunidos num livro, buscando sentido entre elas através da concisão temática que une todo o filme, na pulsão maníaca e francamente divertida de tentar criar imagens poderosas e efêmeras o suficiente para narrativas que se desafiam e se confundam entre si.

A explosão social do súbito arroubo de violência contra o banqueiro, em praça pública, é um desses exemplos de violência estrutural – e de curto-circuito narrativo que não é esclarecido, e tampouco inspira a resoluções; a Carax, interessa o mistério. Todos os homens, como na citação de Borges, agem e respondem a seus respectivos papeis e sofrem suas consequências, por vezes conflitantes, seja teórica ou socialmente, em tempos simultâneos ou distantes, em legado ou em corpo. O fato da memória de Oscar pouco importar para sua vida, e em nada importar para o trabalho, fala sobre esse tempo suspenso onde o presente é o único que existe, e diante do futuro incerto e oculto, o passado parece apenas obstáculo que complexifica os papeis de seguirem o planejado pelo acaso; a piada do destino, como for.

O trabalho infinito entra como antítese de uma vivência de experiências que duram. O que é fugidio, geralmente o que constroi momentos duradouros e sentimentos sempre interpretados e nunca reproduzidos, acaba sendo vivido, superado, e portanto eclipsado. Os dramas pessoais de Oscar passam sempre pela prisão da convivência artística, seus amores passados distantes pelo fluxo da profissão, seus amores futuros como promessas de um dia atuar novamente. O musical como aceno a um passado de insuficiências, o drama burguês como forma de enganar a morte através da promessa.

HOLY MOTORS

Viver e morrer tantas vezes na cidade de recomeços, nesse filme moderno (e não necessariamente contemporâneo) nas vivências múltiplas do urbano, no qual as historias acontecem, o trabalho corrompe e faz o trânsito acontecer. A beleza do gesto se mantém mesmo que as câmeras tenham sumido, e esse existencialismo de frustração com as motivações úteis do trabalho parece o tipo de vislumbre contemporâneo que Holy Motors toca ocasionalmente para discutir sobre a experiência como commodity, saber que o trabalho está a serviço de alguém invisível e intocável, mas continua sendo feito porque a paixão pelo corpo e pelo movimento existem. “Pelo mesmo motivo que comecei: a beleza do gesto”, Oscar lembra a Michel Piccoli, para que não haja dúvidas.

Essa fina linha entre o desapaixonado e o encantamento pela imagem que fazem o filme de Carax tão especial no olhar para a historia das imagens – e o que os espectadores podem devolver a elas, sendo representados nas muitas historias possíveis dessa Paris utópica, sendo representados no eterno serventilismo do agir diante dos outros; seja para fins profissionais, ou emocionais. Na cidade moderna, até os carros são dotados de sentimentos e elucubrações; não é de se espantar que quem mais trabalha ao infinito sejam as máquinas que dormem juntas, e portanto tem a possibilidade de se organizar para existir além das performances demandadas pela cidade e suas luzes.

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Mar calmo não faz bom marinheiro: O Farol (Robert Eggers, 2019)

Por João Pedro Faro

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Algo começou a dar errado a partir da quinta temporada de Bob Esponja (1999-). O criador do desenho, Stephen Hillenburg, deixou o time de roteiristas da série, que pareceu desandar completamente em seus rumos criativos. O que antes era uma das maiores inovações televisivas da época, marcada por personagens originais e um humor único, tornou-se cada vez mais um bizarro exploitation escatológico no pior sentido possível, apelando para episódios onde a única comédia parecia surgir das quão nojentas e violentas eram as situações que a turma da Fenda do Biquíni tinha que enfrentar. Juntando esse mesmo sentimento de uma escatologia pouco recompensadora com as tendências do cinema de horror dessa década, nos aproximamos da experiência de O Farol, segundo longa de Robert Eggers.

As semelhanças do filme de Eggers com as temporadas tardias de Bob Esponja não ficam apenas na tendência pontual pelo gore e pela mitologia marítima: ambos compartilham um mesmo apreço pelo enfadonho. O conto alucinógeno de dois zeladores de um farol numa ilha remota, interpretados por Willem Dafoe e Robert Pattinson, insiste em uma curiosa construção do gênero de horror onde o que prevalece é a exaustão. Tudo começa quando as barrinhas laterais da tela vão se aproximando para formar um reduzidíssimo aspect ratio que, aliado ao preto e branco, emulam algo de um cinema “de outra época”. Não é muito claro, nem para o próprio diretor, o que está por trás desse efeito tão rígido, porque o cinema visto em O Farol é o mais contemporâneo possível, dos movimentos de câmera que acompanham os personagens em seus mínimos gestos até os raccords que colam sequências por movimentos de grua rebuscados. Se essa estética deveria apontar para Lang, Dreyer, Murnau, ou até mesmo, em uma escala ainda mais pop, os mais baratos seriados americanos de terror dos anos 50, ela fracassa e apenas reforça um sentimento de irritação. Sentimento esse que piora toda vez que a genérica trilha sonora transforma algumas cenas possivelmente interessantes em momentos típicos de qualquer teaser trailer.

O jovem faroleiro interpretado por Pattinson é a maior vítima do filme, tanto na narrativa quanto no próprio formalismo rasteiro de Eggers. Seu personagem passa quase duas horas entre vômitos, diarreias, masturbações e possíveis criaturas monstruosas. Pattinson é genial, sempre foi, e seu nível de disposição ao ridículo oferece ao ator momentos fortíssimos em praticamente todo papel que maneja. Aqui não é diferente, consegue bater de cabeça com o Dafoe e ainda ser a melhor presença do filme inteiro. O problema é que o formato 1.19 esmaga parte de seu brilhantismo. Não há espaço para o que Pattinson e Dafoe tem a oferecer, restritos a alguns momentos genuinamente hilários e entregues a outros essencialmente vazios.

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Esse vazio em O Farol não é por sua despreocupação temática, algo que, em princípio, não há problema algum. Por mais que algumas leituras impositivas tenham buscado encontrar qualquer comentário que seja sobre a tal “masculinidade tóxica”, não há nada em O Farol que não reforce seu prazer pelo desprezível (parece não ser mais possível que alguém faça filmes sobre pessoas tenebrosas sem a cobrança de que ocorra um julgamento quase jurídico de seus personagens). Talvez esse total descompromisso com qualquer coisa além do próprio filme seja o fator mais reverenciável de Eggers, Farol tem um financiamento justo pelo já arcaico prazer da narrativa e do absurdo.

O que cai por terra é como Eggers não tem muito interesse em se aprofundar cinematograficamente em suas jornadas de direção até aqui. Assim como em seu primeiro filme, A Bruxa (2015), o diretor trata arquétipos do gênero como teses de conclusão de curso. Para Eggers, o mistério, tão crucial a qualquer incursão pelo horror, é tratado como mero academicismo. Seus títulos já parecem evidenciar uma linha de personas do terror devidamente teorizadas: temos a bruxa, o capeta, o farol, o marinheiro, o cavaleiro… Esse clima de ensaio sobre o que já esperamos de cada uma dessas mitologias vai se confirmando à medida que Eggers vai listando esses arquétipos em cada cena (a sereia, os tentáculos, a maldição, as gaivotas, o navio fantasma) sem uma entrega própria acerca do que joga em tela.

Passando por cima do que O Farol não consegue oferecer, a dupla principal segura o instigante surto cartunesco que o filme converge em ser. Perseguições destrambelhadas, brigas ébrias e escatologia declarada não apenas retornam ao Bob Esponja como também a excelente animação As Trapalhadas de Flapjack (2008-2010). Flapjack, assim como Farol, aposta na perturbação típica da mitologia do marinheiro sujo e no clima de madeira podre de um cais, com incursões hipnóticas que garantem momentos verdadeiramente tenebrosos que duram pouquíssimos segundos mas deixam imagens marcantes (mais tenebrosos em Flapjack do que em Farol, mas tenebrosos de qualquer forma).  A maior surpresa do filme é que Eggers, na tentativa de fazer um revival expressionista, acabou montando um episódio de desenho animado. Por bem ou por mal, isso é ocasionalmente divertido de assistir.

Todas as principais escolhas formais e narrativas de O Farol evidenciam seus próprios limites. No melhor dos casos, é um encontro raro entre dois atores que graciosamente tentam se engolir em cena e escapar dos cantos de seus enquadramentos. No pior, fica apenas como um experimento acadêmico desesperado em deixar sua grife no mundo, não oferecendo muita coisa além de algumas esboçadas e um sentimento de escorbuto no céu da boca.

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Espelho na bacia das almas: Ad Astra (James Gray, 2019)

Por Pedro Tavares

Todo os estudiosos e viajantes são invariavelmente tomados de admiração por uma certa característica das formas de pensamento primitivo, completamente incompreensível para o ser humano habituado a pensar por meio das categorias correntes da lógica.

Sergei M. Eisenstein

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Há em Ad Astra um serviço muito singelo sobre o conceito de justaposição de aparências: eis um homem só transformado em discurso visual. O filme de James Gray se assume como metáfora já no trauma de um nascimento, também passível de interpretações sobre o re-nascimento e assim pavimenta conversas sobre enunciados.

O espaço sem fronteiras como antro de uma crise existencial inevitável – caberia igualmente num deserto ou numa floresta – serve como um método literário de transformar suas escolhas alegóricas, incluindo as mais simplistas, como um denso sinal de uma existência rompida. Nos resquícios dos processos mentais como o stream of consciousness e no embate direto com o exterior, Roy McBride (Brad Pitt) revisita o caminho feito em Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979) ou olha atentamente o apocalipse de Lessons of Darkness (Werner Herzog, 1992) como organicidade de seu próprio caos; organicidade esta que não escapará da visita ao espelho como forma de encontro com o divã.

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Ad Astra se costura com base nesta pedagogia de representações e como a psicologia toma proporções diferentes mesmo como um pilar intacto visto à distância. Desta maneira cria-se um embate de poder entre protagonista e sua própria noção de existência. Dois espectros, um homem, um espelho. Como redoma, a crença imutável que é o córrego mais impactante como associação aos dados antropológicos, de camadas que são passíveis do incomodo por seu perfil caricato ou morno, como a clássica associação dos closes à densidade dramática. Mas…como circular ou reelaborar um filme, ou melhor, um homem, como reflexo industrial da história?

Mediar este homem através dos cortes como um processo social ou apenas um justo lamento da solidão coloca Gray na antiga posição de Deus que o cinema emula discutida com veemência no início do século passado. Este Deus que não julga antes do tempo correto para tal e dedica-se à proteção da cria como se a sobrevivência e encantamento flutuassem com objetivos análogos, de tal maneira que a ressurreição de Roy, um homem de largos tentáculos no andar do tempo e nos avanços tecnológicos, porém, sem controle emocional, seja colocada em cheque – pelo Deus-câmera e pelo próprio astronauta.

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Desta forma, o domínio que se vê indo aos ares é o eixo de concessão de Gray para examinar de maneira mais frontal seu personagem/matéria-prima: são os pensamentos primitivos (citados por Eisenstein) a respeito da família e de um sentido de plenitude que lhe é tomado pelo seu próprio suporte de vida; a estrutura de vida que foi roubada através do tempo o faz desejar um retorno imediato no qual Gray usufrui de detalhes paralelos como reforços filosóficos e não menos visuais – a exemplo da forte presença de um primata em uma sequência. Arranjos como este levam Ad Astra a um  método específico de pensamento, que transformará o âmago de Roy em uma estrutura e não no caminho explicitamente sensorial, como a exclusiva jornada de auto-descobrimento de um astronauta.

Por esta definição que o espelho torna-se considerável ao conflito arredio de um homem que obtém a alcunha de herói e vilão concomitantemente a cada corte ou close. Do conforto à destruição, Gray possui o suporte primário da autoanálise independente da rota que a Terra tomou. No reflexo, o homem há de se analisar e enfrentar-se além de seus pensamentos primitivos.

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Singularidades de uma assassina loura: Anna (Luc Besson, 2019)

Por Felipe Leal

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É simultaneamente anedótico e “conceitual”, pedra lapidada de um estilo para que o posado revele certa dimensão do espírito, que Robert Bresson tenha preferido modelos para compactuar na composição de seus elencos. Que tenha chamado seus atores de modelos e os posto numa práxis de tamanha mecanicidade disfarçada, que aquilo de autômato chega a exibir mais vida que a própria pele que acusa a carne. Mas não precisamos da máxima de Valéry – aquela diz da pele que este é o órgão mais profundo – para chegar a conhecer as fissuras e engodos inevitáveis ao corpo como um todo, pois ainda que haja atores e haja modelos separadamente, para além de suas fusões, é também sabido que a cada um serve de ferramenta valiosa certo empréstimo das técnicas físicas do outro: àquele posando para uma objetiva ou enfileirado num catwalk excessivamente assistido, é útil que saiba absorver dons de transformista, que aceite incorporações; ao sujeito em cena, mostra-se frutífero que entenda da pose, de congelamentos, das variações corporais para um enamoramento com as lentes. “A câmera ama você”, ouvimos entre os disparos que desejam que nunca fique exaurida a fotogenia de algumas relíquias da moda. Mas dentre as múltiplas singularidades que os diferenciam, aquela que melhor risca uma transversal no ofício do corpo é a sapiência do “saber-se visto”, a consciência erótica de emular, na pele, a devolução do olho que sabem que os observa. Na filmografia de Luc Besson, pois, Anna – O Perigo Tem Nome (Anna, 2019) representa esta transversal de desvio.

Besson filmou Natalie Portman, Bridget Fonda e Scarlett Johansson, evidentes “estrelas”, mas não havia ainda captado de uma modelo propriamente dita esse estojo dúplice de ferramentas de uma mulher que não apenas estourou grifes a nível Chanel e Versace, como fez de seu caminhar de dançarina com leveza de vento e postura de imperatriz a imagem de uma das modelos mais bem pagas do mundo. Que seu regente tenha duplicado o tema é apenas uma ignição sorrindo às escondidas. Anna (Sasha Luss) oscila entre a miséria mal cicatrizada da subserviência aos homens e acidentes e a coreografia inflamada de uma percepção que lhe faz o cheiro das ofensivas anteceder a própria visão das dezenas de seguranças e chefões que assassina. Nenhum objeto é im-passível, digamos, de lhe servir como arma para uma chacina, assim como nenhum homem será capaz de devolver-lhe uma liberdade que aliás nunca esteve entre as mãos. Besson arquiteta um grã-fino restaurante russo como a cenografia mais propícia a um terceiro olho cujas investidas são os círculos, a frontalidade e as costas que multiplicam o inesperado, os pontos da arena de batalha: pratos se partem em discos dentados, suportes cilíndricos de balcões de bar perfuram troncos como lanças, garfos e extintores amassam a guarda protetora como a carne que são, como se às suas mulheres extraordinárias as habilidades mais perniciosas fossem a antecipação e a adversidade. Para essas vidas a que só resta o próprio corpo-máquina, a subtração ensina.

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Mas antes mesmo que a escultura angelical retire os casacos para liberar um demônio ágil, a sagacidade do metteur-en-scène transmuta um dos recursos mais vomitados e possivelmente detestáveis “do” cinema em espirais cuja semelhança com o próprio dispositivo cinematográfico é um contínuo – e, aqui, hilário – lance numa mesa já disposta e na qual sentam, de um lado, aquilo que não se viu, e do outro, aquilo que ainda não podia ser visto. O truque simples do flashback irrompe a partir de cortes sob a lei do “previamente…”, em que a mulher é repassada entre os pontos de vista das disputas políticas, e o filme incessantemente retornará meses, às vezes anos atrás, com o aditivo da cena re-completa para duplicar uma quase-liberdade sempre adiada pelo que a assassina guarda de valioso: é bela ao ponto do magnetismo, é mortífera na medida da falha impossível, e portanto lhe restarão sempre duas opções com as quais, mais tarde, terá de romper: morrer de vez, e de certo modo estar liberta, ou oferecer seus serviços após negociações velozes – e mais uma vez ter a liberdade empurrada e falsificada em nome das pátrias e dos homens.

Ora, o que é automático que se sinta perante a técnica do retorno ao passado? X em Y textos (e bocas) dirão que ele, o recuo, é atormentado pelo didatismo, e bem sabemos que a primeira incógnita chega a quase tocar a segunda. Uma rápida mudança de temas explicitaria melhor o problema, posto que a um professor ou a um cientista, na maioria dos casos, vem a ser menos simplista do que profícuo se lhe apraz ter exercitado isto que se chama de “didática”. A questão não seria, portanto, antes a qualidade dessa instrução? Retornemos à Anna, pois se os rodopios dos flashbacks inserem detalhes, microcâmeras, contextos de miséria, observadores em apartamentos circunvizinhos, não é tanto para que os twists expliquem, confirmem ou sedimentem os eixos de passagem da uma arma nacional em forma de bailarina, mas antes para emprestar ao último deles um sabor de um aprendizado que só a partilha extensa entre personagem e espectadores pode elevar ao grau descaradamente familiar que ele carrega. Anna aprende a arte da burla, da ultrapassagem, como uma primogênita que saboreou desde cedo cada milimétrica jogada no teatro repulsivo dos barões. Seu único passe é também sua tragédia: ser uma mulher tão bela que o único ponto de infiltração nos quartos dos economistas e traficantes é também sua prostituição.

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Trata-se, aliás, de uma questão tão teatral quanto cinematográfica, sendo precisamente aqui o espelhamento escandaloso de que a obra se serve para ressuscitar e escancarar aquilo que as bordas do visível mais velam sobre os passes de mágica. Onde as câmeras de hotéis não podem captar a vigilância dos espiões, há êxitos, bem como armadilhas. Mas também: o contexto cênico no qual a continuidade se fratura, e neste último Besson isto se fará abusadamente, a negociação sobre a(s) vida(s) é uma economia dos ensinos da antecipação ardilosa. À clara exceção daqueles para os quais a exposição do aparato é útil, costuma ser interdito ao cinema que se desvelem as condições da feitura de sua “naturalidade”. Regime de transparência, como já o chamou Ismail Xavier, não fosse o caso, aqui, precisamente outro: não tão-somente uma potência do falso: junto a ela se arrasta, sorrateira, a invasão à surdina do detalhe. Um close, um objeto caído por displicência, o corte de uma faca à maneira característica da KGB, e o caracol de cuidados, trapaças e falsas promessas arrisca se dobrar mais uma vez. A subjetividade da mulher por vezes ingênua, por vezes angustiada e distante, corriqueiramente opaca, toma o corte entre cenas como um impulso para que o ofício de atriz/modelo rebata a perspectiva do corpo em direção ao mundo que o compõe conjuntamente a ele. Seu aprendizado não é uma ciência da adaptação biológica tanto quanto uma chave que singulariza a loura pelo “esporte” cerebral no qual ela é imbatível.

É através do xadrez, nesse tabuleiro de projeções sobre o lance do Outro e de si, nessa disputa enquadrada que requer uma totalização (semi)impossível do olho-acima-do-espaço, como acontece por detrás das linhas de um tableau, que Anna articula o joguete capaz de fazer de Besson quase um comediante sutilizado dentro da ação. Num café de praça, espaço típico dos rendez-vous parisienses, reduz os dois agentes especializados e, por que não dizê-lo, tolamente enamorados, à condição de fantoches sobrelotados dos próprios fios que vêm à exposição. América e Rússia dividindo um espresso e endividados com uma órfã. Das promessas e abusos, tornam-se contornos assustados na iminência do embaralho absoluto daquilo que é da ordem da missão patriótica e daquilo que os faz cachorros apaixonados por um dono impossível, como se não só o aprendiz tivesse superado o mestre, mas também o feito de bobo por sua suposta maestria acumulada. É este o seu logro: imprensar as adversidades num mesmo espaço para saltar dele como os volumes e mais volumes de uma boneca russa.

Não espanta que à beira de sua dúbia liberdade ela consiga repuxar uma penúltima boneca justamente onde parecia ter restado a mais minúscula de todas. O artefato icônico comporta sua titulação, justifica por fins e meios que o último lance grafe seu nome de uma vez por todas e no paradoxo de um arquivo deletado: ela não existe mais, precisou se apagar por um dos elementos que mais singularizam isto que dizem ser uma mulher para soçobrar ainda mais imortal que nunca. Heroína conquistada, ou os dois países de estrutura continental vêm à baixo. Saltamos ao outro lado da mesa, ou ainda tomamos a posição do lustre, da sombra abaixo dela, das árvores que a contornam. É o preço da sua negociação ser esquecida para que o mundo não entre em colapso. Megalomania tipicamente americana de tomar as proporções do planeta como a medida de distinção do herói. Gracejo russo de multiplicar a pintura e compactá-la até que a última surpresa seja quase igual a primeira. Assim diríamos, se a paixão de Anna pelo que é livre fosse tão facilmente redutível ao dúplice – e porque uma modelo sempre sabe que é assistida. Cabe-lhe tomar a posição da câmera e esbofetear o fotógrafo: eis seu último desfile sangrento antes da liberdade.

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Bacurau: desequilíbrios e assimetrias

Por Kênia Freitas

Antes

Uma das bases das discussões racializadas contemporâneas sobre os gêneros narrativos – em campos como o afrofuturismo e o horror noire (ou terror negro) – é a ideia de que gêneros como a ficção científica e o terror se fundam na projeção do medo branco da vingança dos povos e etnias historicamente escravizados, subjugados, desumanizados e colonizados. Invertendo de forma perversa a flecha da violência na produção simbólica, os filmes e livros de gênero tornam as pessoas brancas vítimas resistentes às opressões, perseguições e ocupações. Ataques vindos de um Outro imaginário/mágico/fantástico (as invasões alienígenas, os zumbis comedores de gente, os fantasmas e toda uma fauna de monstros). E também de um Outro localizado nos povos fora da codificação civilizatória branca – os bárbaros, os selvagens. O surgimento do western no cinema hollywoodiano realiza um processo semelhante de inversão histórica, colocando os povos indígenas como os selvagens/malvados dos seus primeiros filmes.

            Em Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a narrativa de gênero (entre o western, o terror e a ficção especulativa de futuro próximo) é retomada agora em consonância com uma visão histórica de mundo pós-colonial: que localiza no colonizador branco, no caso o europeu-estadunidense, a figura do invasor violento. Desse ponto de vista, o filme é pedagogicamente literal e maniqueísta. Os personagens brancos são maus. São os vilões. Os invasores. Eles perturbam o curso da existência e da narrativa sobre o pequeno vilarejo de Bacurau. Seu signo principal e a justificativa de suas ações se forjam a partir de um discurso de subjugação racializada hierarquizante – em que os moradores de Bacurau estão aquém do estatuto de humano e alguns brancos são mais brancos do que os outros.

            Ao mesmo tempo (e essa sincronicidade de perspectiva é fundamental), dentro da tradição dos gêneros narrativos cinematográficos aos quais se filia, Bacurau é um filme que subverte o lugar do medo branco como premissa. Há na composição enunciativa do filme ao mesmo tempo uma literalidade da representação histórica pós-colonial e uma subversão da perversão das localização dos gêneros do cinema normativo.

            Desequilibrio e assimetria[1]

Essas são palavras importantes para se pensar Bacurau em sua construção interna de tempo e de encenação. O desenvolvimento fílmico do vilarejo e dos seus moradores parte de uma ideia de profundidade, de uma densidade da imagem e de histórias. À Bacurau não se chega com facilidade, é preciso estar no caminhão pipa com Teresa e Erivaldo, percorrer a via acidentada com caixões, sacolejar na estrada de terra. Há a projeção de uma vida, de relações familiares e de comunidade, de arcos e trajetórias pessoais em pleno curso: como seguirá o curso da vida comunitária sem Dona Carmelita?  Por que Teresa regressou? Acácio conseguirá de fato deixar de ser Pacote? Lunga e o seu bando sobreviverão à perseguição policial? Com essas aberturas de enredo, o início do filme demora-se então não apenas em nos apresentar e contextualizar a cidadezinha, mas também em criar essa atmosfera de densidade.

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            Aos poucos essa espessura narrativa será atacada por imagens e sons de outra natureza – não mais da profundidade, mas da superfície: a caravana do prefeito Tony Jr com o seu jingle eleitoral chiclete, as imagens do drone/disco voador ou os sintetizadores roubados dos filmes de John Carpenter. Uma composição planificada que começa a se sobrepor como uma ameaça de compressão a espessura da encenação até então constituída, e que anuncia a chegada do elemento desestabilizador definitivo: o grupo de estrangeiros invasores brancos.

            Se para chegarmos à Bacurau vamos de caminhão pipa, até o acampamento dos gringos chega-se de drone. Sem sutileza, sem tempo de apresentação, sem arco, sem espessura. O grupo é acima de tudo uma imagem clichê: uma matriz pré-moldada na iconografia do cinema para reprodução, um amálgama das representações de homens e mulheres brancos, estadunidenses fascinados por armas, pelo extermínio, pela destruição de tudo o que não é espelho (e, às vezes, do espelho também).

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            Da superfície à densidade, o filme engendra uma série de formas e regimes de representação e encenação: das atuações de atores não profissionais, passando pelas relações comunais, matutas e codificadas encenadas pelo núcleo de Bacurau à corporificação da imagem videogame dos gringos. Entre esses lugares, ficam personagens como o prefeito Tony Jr e o casal de forasteiros paulista-carioca. A chegada do casal ao bunker gringo marca um dos momentos de choque entre os universos (antes do confronto final). Em um mesmo espaço estão os dois, a senhora moradora local que serve ao grupo e os gringos. Cada um desses conjuntos existe e atua em regimes de representação diversos e as comunicações mostram-se truncadas, imprecisas. O gesto da senhora para oferecer água, a tentativa do casal de justificar as suas ações e o estabelecimento da hierarquia racial pelos gringos: nada disso está dado como consenso mínimo entre os conjuntos. Há um abismo de humanidades intransponível na diferença entre “people we pay” e “local contractors”. As formas de apreender e comunicar entre essas humanidades são diversas e, como o final da sequência nos mostra, não passíveis de sintetização.

            O ataque é então o encontro final da espessura densa da representação e tramas de Bacurau e da imagem de superfície dos invasores brancos. A estratégia de guerrilha da comunidade para não ser aniquilada passa justamente por saber desaparecer, esconder-se, retrair-se para dentro de si (para dentro da espessura). A comunidade retira-se do terreno de confronto aberto, faz com que os invasores esperem – tomando conta da temporalidade da ação.

            Para fora

            “A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, que arrasou completamente os sistemas de referências da economia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada se engolfar nas cidades interditas. Fazer explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desmanchar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se vão abrir vias de passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou expulsá-la do território” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, p. 30).

            Frantz Fanon ao tratar dos territórios colonizados fala de uma configuração espacial de um mundo cindido em dois: o do colono e o do colonizado. Duas zonas geográficas de existência não compartilháveis. O processo de descolonização não passa pela ideia de integração ou síntese de mundos, mas de destruição violenta do colonizador e da sua zona. Enterrá-la profundamente no solo…

            Bacurau é um filme sobre a violência e com imagens violentas. Um posicionamento ético diante dessas imagens passa por se perguntar como a violência se estrutura, quais as suas origens,  os seus agentes e os seus pesos: na fúria do facão de Lunga? No tiro certeiro de Damiano? No assassinato de uma criança? Na eliminação de testemunhas? Na morte por interferência do jogo? Na chacina da fazenda? Na chegada dos brancos assassinos? No sequestro de Ângela pelo prefeito e sua trupe? Na retirada do mapa de um território? Na distribuição feita pelo Estado de mantimentos vencidos? Na criação de barreiras para interromper o fluxo do rio e tornar a água inacessível? Na tentativa de destruir as barreiras? Na perseguição do estado-policial do Brasil do Sul? Nas execuções em massa no Anhangabaú? Na transmissão em tempo real das execuções em massa no Anhangabaú?

bacurau-lungaTodas ações violentas. Porém, não simétricas.

  Ao final de tudo, vencido, cansado, Michael vê a comunidade de Bacurau reunida na frente da calçada da igreja que expõe as cabeças decepadas de seu grupo. Com desprezo e desaprovação, ele diz: So much violence. Há uma força que explode a diegese quando esse corpo de um homem branco, europeu, em tudo normativo, mesmo derrotado se sente capaz de enunciar um juízo de valor, que desautoriza a violência fora dos seus termos e do seu jogo.

Tanta violência.

Bacurau_micSoma

            Em sua junção de mundos, de formas de encenar, de perspectivas, de densidades rasas e profundas de imagens e sons, Bacurau resulta desequilibrado, incompleto, com tramas sobrepostas e outras interrompidas. Há um estranhamento diante de um filme que não é fragmentado, mas que também não se totaliza.

Mais do que uma suspensão ou esvaziamento da narrativa, nessa forma de se compor, o filme assume o corte abrupto diante do choque de perspectivas, de formas de invenção e fruição de mundo. Corte seco de um regime de encenação sobre o outro, da violência racializada, das desigualdades entre as partes, da fricção da invasão colonizadora com a resistência comunal. Assume-se sem síntese, sem neutralidade estabilizadora do encontro assimétrico. Os seus diretores produzem então, nesse desequilíbrio, um desdobramento ético e estético do filme que criam.

[1] Agradecemos ao texto da Carol Almeida pela invocação da ideia de assimetria no filme: https://foradequadro.com/2019/09/10/bacurau-de-kleber-mendonca-filho-e-juliano-dornelles/

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A Meretriz-Ciborgue de Daehak-ro: Os Limites da Violência Ética e a Exigência do Não Cegado

Por Diogo Serafim

 

Esse dualismo estruturou a disputa entre o materialismo e o idealismo, a qual foi resolvida por um rebento dialético que foi chamado, dependendo do gosto, de espírito ou de história. Mas, basicamente, nessa perspectiva, as máquinas não eram vistas como tendo movimento próprio, como se autoconstruindo, como sendo autônomas. Elas não podiam realizar o sonho do homem; só podiam arremedá-lo. Elas não eram o homem, um autor para si próprio, mas apenas uma caricatura daquele sonho reprodutivo masculinista. Pensar que elas podiam ser outra coisa era uma paranoia. Agora já não estamos assim tão seguros. As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes.

Donna Haraway, O Manifesto Ciborgue

 

Reside na configuração ontológica da máquina um princípio fundador que abala nossas concepções de sujeito, comando e controle. O mito do ciborgue parte de uma apostasia heterodoxa que constantemente escapa das nossas definições imediatas que decorrem da sua imagem, uma lógica de comunicação que é desestabilizada pela noção de inteligência, exigindo uma repartição radical na sua configuração subjetiva. A linguagem do ciborgue trata não de uma linguagem do comum, mas de uma herética heteroglossia, como a própria Donna Haraway indica: a cultura ciborgue é definida mais em termos de densidades dentro de fluxos, um circuito que encontra pontos de inflexão nos seus percursos, uma profusão que converge na mesma medida que diverge na sua abundância. Em primeira instância temos a afluência de intensidades para encontrarmos em uma dimensão subsidiária a esta a sua constituição de corpos e vontades. Não é a consciência que dá lugar ao que está fora desta, e sim o encontro de consciências que permite a realidade tal como ela é, uma rede difusa de forças, campos e vetores postos em associação por um materialismo fundador, sempre se interseccionando e frequentemente colidindo.

De onde surgem nossos prazeres? Seriam eles ontologia ou cultura? A primeira conclusão essencial na compreensão de uma possível cultura ciborgue decorre diretamente do imperativo da construção, nada aqui é absoluto, é tudo programado. Se a ontologia fundadora do ciborgue é em si uma ontologia construída, submetida às relações de poder que a formataram, é sempre importante frisar que essa ontologia pode ser constantemente aperfeiçoada, é inclusive da sua natureza que ela seja constatemente otimizada com a cinesia insaciável da cultura e da política, sempre sendo redesenhada, reconstruída, reconfigurada.

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É impressionante como Teenage Hooker Becomes Killing Machine in Daehak-ro (2000) é um filme sensorial, não apenas visualmente, mas também na sua trilha sonora. Se Évora, Veloso e Sakamoto entoam inicialmente uma atmosfera misteriosa e um sentimento irrebatável de isolamento urbano, logo Sun Ra e Huckle Berry Finn levam o filme para o domínio do deboche. Em seguida somos tomados por uma espécie de ascetismo perturbador com Saint-Saens, um desespero desestabilizador com Mozart e um estoicismo renitente com Fauré. Massive Attack denota uma esperança surgente e a curva final necessária para entrarmos em definitivo em uma estética mais propriamente próxima do cyberpunk, Gypsy Kings reforça uma ambiência misteriosa com um desvio para uma atmosfera de filme noir, enquanto Rutter é a tão aguardada emancipação. Primal Scream consegue finalmente concatenar toda a esquizofrenia narrativa, sensorial e formal em um tom conclusivo.

Uma jovem prostituta engravida do seu professor sadista em Daehak-ro. A lua é quem sela o pacto dessa concepção. A jovem menina, aparentemente desprovida de vontade própria e individualidade, carrega no seu utilitarismo empreendedor já uma figura de ciborgue servil, uma submissão voluntária à figura do seu mestre, quem a programou de acordo com os desejos e vontades próprias. Ela é o ciborgue reprodutor, ele é o ciborgue cuja função é controla-la de acordo com sua libido. Um é proprietário, o outro é comoditizado. Agora a mulher obediente, carregando uma criança no seu ventre que é fruto dessa relação hedionda com o pai autoritário, é violentamente assassinada.

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Após ser reformada, a versão evoluída da prostituta enfrenta o seu criador com a única resposta possível, tendo que a base estrutural dessa relação é a violência. Agora em um corpo sem coração é capaz de reparar a violência a qual foi submetida com uma resposta binária. Colide na figura da mãe do professor, aquela que encapsula o egoísmo pleno, a aniquilação da força reprodutiva do filho criador, o filho deformado, o patriarcado reduzido na imagem de um monstro, a sua subsequente humilhação e uma nova ordem de dominação que é estabelecida com esse ato de vingança. Nos limites da violência ética, reside ali algum ímpeto asceta provido de toda a repugnância que nos foi exposta anteriormente, mas que de alguma maneira ainda nos é repulsivo, independente das suas possíveis justificativas compensatórias. Só podemos ter uma reflexão ética sobre a humanidade alheia no momento em que suspendemos o nosso juízo – talvez para aniquilar a injustiça deva-se aniquilar assim também a humanidade.

É como Adorno afirma em Minima Moralia: “O humilhado e o rejeitado apercebe-se de algo, tão cruamente quanto a luz que dores intensas lançam sobre o próprio corpo. Ele se dá conta de que no mais íntimo do amor cego, que nada sabe disso nem pode saber, vive a exigência do não cegado. Fizeram-lhe injustiça; disso ele deriva a demanda do direito e no mesmo passo é obrigado a abrir mão dela, pois o que deseja só pode provir da liberdade. Nesse infortúnio o rejeitado torna-se humano”. Poderia tornar-se humano o ciborgue, mesmo que partindo do abominável para tal?

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O grande dilema é como construir uma cultura ciborgue que finalmente nos faça pensar a partir do nosso circuito, e não de seus capacitores desenergizados (ou excessivamente energizados, dependendo de como se queira estabelecer a metáfora). A solução é a violenta retirada desses capacitores ou há uma forma de também os reconstituir? Existe algo de irreversível no nosso processo civilizatório que nos impeça de pensar para além da violência, rumo a uma reparação plenamente ética? Há de existir alguma maneira de reestabelecer a humanidade a partir da humilhação do Eu, do confronto direto com a nossa pequenez deve surgir a nossa grandiosidade. Em busca de uma subjetividade sem sujeito, de uma heteronomia sem sujeição, em eterna reconstrução, sempre se aprimorando, sempre se aproximando do Uno.

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Corpo e Máquina

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MÁQUINAS DE MONITORAMENTO, VIGILÂNCIA E CAPTURA
Camila Vieira

UMA ESPÉCIE DE COMPUTADOR – NOTAS SOBRE TÉCNICA E ESTILO NO CINEMA
Bernardo Oliveira

COMO VIVE O CORPO VIRTUAL – A PRESENÇA FÍSICA EM “O SEGUNDO ROSTO”
Gabriel Papaléo

UM HOMEM É UMA CÂMERA
João Pedro Faro

GHOST IN THE SHELL E A HUMANIDADE NEGOCIADA
Isabel Wittman

A TRILOGIA JOHN WICK E O EPÍLOGO DO HOMEM-RESPOSTA
Pedro Tavares

A MERETRIZ-CIBORGUE DE DAEHAK-RO: OS LIMITES DA VIOLÊNCIA ÉTICA E A EXIGÊNCIA DO NÃO CEGADO
Diogo Serafim

A RELAÇÃO CORPO-MÁQUINA: DE METRÓPOLIS A MATRIX
Natália Alonso

TETSUO E O NIILISMO REVOLUCIONÁRIO
Chico Torres

TRAGAM-ME A CABEÇA DE CARMEN M. – ENTREVISTA COM FELIPE BRAGANÇA E CATARINA WALLENSTEIN
Pedro Tavares

DIVINO AMOR: ENQUADRAMENTOS E EXCLUSÕES DE UM FUTURO PRÓXIMO
Kênia Torres

A SINCRONICIDADE DAS SOMBRAS
Felipe Leal
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Máquinas de monitoramento, vigilância e captura

Por Camila Vieira

Uma sala com uma cadeira vazia. Um homem prepara uma câmera fotográfica no canto direito do quadro. Dois policiais trazem uma mulher, que é obrigada a se sentar na cadeira. Aos olhos vigilantes dos três sujeitos, ela retira o casaco, o chapéu e arruma o cabelo. O fotógrafo faz os últimos retoques em sua roupa e depois aciona a câmera. Ela vira o rosto em outra direção. Os policiais seguram à força seus braços e sua cabeça, para que ela fique imóvel e com o rosto em frente à câmera. Enquanto permanece imobilizada, ela faz caretas. O enquadramento fica mais próximo do rosto da mulher que continua a contorcer o rosto, até chorar em desespero. A cena aqui descrita de A Subject for the Rogue’s Gallery (1904), de A.E.Weed, é uma alusão a um acontecimento bastante comum nos departamentos de polícia do final do século XIX: o modo como os presos resistiam ser identificados pelos bancos de fotografias dos procurados pela polícia (os chamados rogue’s galleries).

Logo após sua invenção, a fotografia é imediatamente usada para fins criminológicos e para alimentar coleções de retratos de suspeitos e criminosos. Era uma prática comum incentivar a exibição pública de tais imagens. A tarefa policial passa a depender do reconhecimento dos sujeitos mediante as fotografias, mesmo que ainda sem organização e procedimentos muito claros. Como a técnica fotográfica àquela época ainda necessitava de um tempo maior de exposição, as pessoas a serem retratadas logo encontraram uma tática de resistência à captura violenta de suas imagens: contorcer as expressões faciais para impedir uma fotografia nítida do rosto.

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Se o advento do dispositivo fotográfico atrela-se ao poder de quem produz imagens e ao modo como o corpo do outro será controlado, a violência da captura perpetua-se simbolicamente em outros aparatos técnicos que marcam a modernidade. Em 1878, o fisiologista francês Étienne Jules-Marey desenvolve o fuzil cronofotográfico – um tambor forrado com uma chapa fotográfica circular, que produzia 12 frames por segundo. A técnica deste curioso invento ótico foi pensada com o intuito de capturar as fases consecutivas de um movimento, mas está radicalmente associada ao gesto de apontar e disparar.

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No contexto contemporâneo, o disparo na captura das imagens parece ceder lugar a uma forma de controle silencioso e de monitoramento dos corpos: o reconhecimento facial. Em julho de 2019, imagens de rostos envelhecidos povoaram as redes sociais em uma espécie de nova febre que viralizou em poucos dias. O uso massivo do aplicativo FaceApp reacendeu o debate em torno da privacidade na internet e do uso de dados pessoais para manutenção de um grande banco de reconhecimento facial. Com o avanço da inteligência artificial e de softwares de mapeamento de rostos em seus diversos ângulos e expressões, o reconhecimento facial é uma ferramenta tecnológica que vem sendo usada a serviço de uma hipervigilância que se normalizou. É um mercado que movimenta bilhões de dólares, sem regulamentação clara e fiscalização. Academias de ginástica, bancos, companhias aéreas e empresas de telefonia usam a ferramenta. Smartphones são desbloqueados com a imagem dos rostos de seus donos.

O reconhecimento facial vem sendo usado em larga escala nas grandes cidades como tática para identificação e reconhecimento de suspeitos de crime, terroristas, foragidos e indivíduos com mandado de prisão, que são rapidamente capturados pela polícia. Aqui no Brasil, o governo da Bahia e do Rio de Janeiro implementaram uma ostensiva prática de vigilância por câmeras com reconhecimento facial para auxiliar o trabalho de agentes de segurança pública. Tais programas são criticados pelas imprecisões dos algoritmos com falhas de identificação que levaram a prisões de pessoas inocentes. Nos próximos três anos, o metrô de São Paulo será equipado com um número maior de câmeras com tal tecnologia. Em outros países, manifestantes já estão usando estratégias de contra vigilância. Em Hong Kong, protestos recentes envolveram bloqueios da visão das câmeras por meio de lanternas laser e destruição de torres de reconhecimento facial.

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Em Imagens da Prisão (2000), Harun Farocki já anunciava como a economia das políticas de vigilância está presente em instituições que operam por táticas de controle: as prisões, os asilos, os internatos, as fábricas, os supermercados. O filme é um grande apanhado de imagens restritas ao espaço institucional (os circuitos internos das câmeras de vigilância e os aparatos digitais de monitoramento) e articuladas com trechos de filmes da história do cinema. Farocki reflete sobre dois tipos de enquadramento na produção das imagens de vigilância: a fila ordenada e o retrato do indivíduo ou do grupo. “Nos rostos, busca-se algo para o qual não há uma definição. Isto é o que a câmera atrai”, diz o narrador. Se o próprio rosto transgride o gesto de captura, novas ferramentas intensificarão as formas de fiscalização dos corpos. No mesmo filme, aparecem os aparelhos biométricos para controle de acesso, como a identificação pela íris. O mapeamento dos clientes no supermercado torna os corpos dos consumidores meros pontos que circulam na tela do computador, com códigos que registram a lista de compras.

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A quem interessa a produção em massa de tais dispositivos de controle e vigilância? Quem gira a grande máquina do capital? Empresas de desenvolvimento de softwares de reconhecimento facial cada vez mais sofisticados lucram a serviço da segurança pública. Além de produzir imagens sem autorização e consentimento de quem está sendo filmado, as falhas nos dispositivos apontam para uma base de dados discriminatória. Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Stanford e o Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), três grandes sistemas de reconhecimento facial no mundo – IBM Watson, Microsoft Cognitive Services e o Face++ – apresentaram diferenças gritantes de erros de identificação de acordo com o gênero e a raça. Com homens brancos, as falhas não chegam a ultrapassar 0,8%. Com mulheres negras, o índice de erro alcança 34%. São instrumentos criados para cercear a liberdade de quem já é historicamente apartado dela e se configuram como uma ameaça permanente aos direitos civis.

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Uma espécie de computador – Notas sobre técnica e estilo no Cinema

Por Bernardo Oliveira

Gance La Roue

1.

Em reportagem para a Folha de São Paulo, em 27 de agosto de 1995, o jornalista Alcino Leite Neto perguntou a Julio Bressane e Rogério Sganzerla: — Por que fazer Cinema? E, afinal, o que é o Cinema? Entre as diversas respostas disparadas respectivamente pelo “enfant terrible” e pelo “enfant gâté“, Sganzerla declara que um filme como “O Parque dos Dinossauros”, de Steven Spielberg, apesar de muito bem filmado, não demonstra qualquer preocupação com a “mise en scène”, isto é, com a forma do filme: “o que falta hoje em dia é a ausência de ornamentação, a essencialização da forma que se vê, por exemplo, em Robert Bresson […] o importante é que os filmes tenham uma forma. O filme é uma espécie de computador. Nós não temos ainda esse registro do pensamento humano que poderia ser comparado à definição do Abel Gance. Quer dizer: a música da luz, mas que poderia ser a música da luz e do som— e da fúria”.

2.

Há décadas, essa formulação me intriga: “O filme é uma espécie de computador”. Nada nas frases que envolvem essa sentença nos auxilia a tratá-la como um enigma passível de tradução — pois, a rigor, o que faz o enigma é sua perene insolubilidade a reivindicar respostas variadas, conforme as tendências e desvios de época. 

3.

Duas ideias em particular parecem saltar no entorno da sentença-enigma, sem lançar luzes ou explicá-la propriamente: a primeira afirma que, em algumas obras específicas, a mise en scène e a “essencialização da forma” corresponderiam a um mesmo movimento interno ao filme — e, para sublinhar essa característica, Sganzerla evoca Robert Bresson, deslocando o problema não para o campo do “Cinema” — o teatro filmado, litero-centrado, mais focado na manutenção do drama do que na sensorialidade da experiência —, mas para o Cinematógrafo, com as suas características e potenciais próprios, capaz de organizar a matéria sensorial de maneira irredutível aos primados da linguagem literária ou teatral. Trabalhar a forma dos filmes, em seus registros constitutivos, para fugir às representações mediadoras das outras artes e buscar a especificidade do Cinematógrafo — Bresson observa que “o Cinematógrafo é uma escrita com imagens em movimentos e sons”, cuja força “se dirige a dois sentidos de maneira regulável”. Ausência de ornamentação, quer dizer ausência de artifícios pré-concebidos; ou, nas palavras de Eduardo Coutinho, “refresco visual”, a utilização automática do clichê.

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4.

A segunda ideia se relaciona com uma noção célebre, enunciada pelo cineasta francês Abel Gance, segundo a qual o cinema corresponderia à “música da luz”. Essa ideia pode ser interpretada tanto do ponto de vista de sua realidade técnica — pois, afinal de contas, a luz incide sobre o acetato que, além de assimilá-la, em sua composição físico-química, ainda a mantém “organizada”, tornando-a passível de ser reproduzida —, como em seus aspectos sensoriais e cognitivos, pois o que o Cinema faz não é exatamente reproduzir ou mesmo representar o real, mas sintetizar blocos sensoriais capazes de embaralhar cadeias causais que, habitualmente, forneciam as coordenadas para a construção das artes tradicionais e até mesmo do Conhecimento, transformando-as em um outro tipo de registro — “um registro do pensamento humano” que, segundo Sganzerla, “ainda não temos”.

5.

Retenho aqui ambos os raciocínios para concluir, ainda que provisoriamente, que, para Sganzerla, o Cinema exprime um “registro do pensamento humano” irredutível às Artes, às “Linguagens”, até mesmo ao Conhecimento  — tal como o compreendemos na Modernidade. Em oposição à noção de Verdade, tradicionalmente instalada no real, o Cinema propõe uma experiência construtivista essencialmente criativa, articulando som e imagem em uma sequência de situações, captações e composições. Dialética não há, pois não há negatividade: tudo no Cinema encaminha o pensamento para uma experiência positiva com as sensações, tanto do ponto de vista daquele que compõe as forças, como também daquele que assimila seus clichês, deslocamentos e modulações. O Cinema, portanto, como um registro do pensamento, pode ser aprofundado por contínuas práticas de experimentação tecno-sensorial cujo resultado depende do estilo de cada “Autor” — e aqui vale ressaltar que entendo a autoria como uma categoria complexa que não atende somente a uma subjetividade encerrada sobre si mesma, mas à complexidade das interações que encaminham um processo de filmagem e captação.

6.

Para o mecanólogo francês Gilbert Simondon, os objetos técnicos possuem dois aspectos centrais: a) uma função consolidada pelo uso corrente, prescrito em manuais; e b) outra, chamada “margem de indeterminação”, que opera como uma força premente de inovação: “O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que, poderíamos dizer, eleva o grau de tecnicidade, corresponde não a um aumento do automatismo; mas, ao contrário, ao fato de o funcionamento de uma máquina guardar certa margem de indeterminação. É essa margem que permite à máquina ser sensível a uma informação exterior. É por essa sensibilidade das máquinas à informação que um conjunto técnico pode se realizar, muito mais do que por um aumento do automatismo. Uma máquina puramente automática, completamente fechada sobre si mesma, num funcionamento pré-determinado, não poderia oferecer mais do que resultados sumários. A máquina dotada de alta tecnicidade é aberta; e o conjunto das máquinas abertas supõe o Homem como ‘organizador permanente’, como intérprete vivo das máquinas umas com relação às outras”.

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7.

Um computador é uma máquina que, como qualquer objeto técnico, possui funções consolidadas e potenciais de renovação. Esse potencial aumenta e diminui conforme o usuário também aumenta ou diminui o grau de interação como o objeto em sua totalidade — no caso, não apenas a operacionalidade entre os softwares, como também a possibilidade de compreender o hardware e manipulá-lo. Sendo assim, as máquinas operariam sempre no limite entre a sua função consolidada e aquelas ainda desconhecidas, recalcadas pelo hábito. A própria história da técnica se dá como uma sucessão de tensionamentos entre a lógica escravocrata do uso consolidado e as sucessivas insurgências que a interação humana pode vir a provocar. “Novos seres técnicos” aparecem quando novos usos transformam os antigos. Em ambos os casos, tanto no “filme-cinema” como no “filme-computador”, trata-se de ampliar a margem de indeterminação para que se amplie, igualmente, o espaço de invenção.

8.

Na mesma entrevista, Bressane afirma que “o Cinema é um organismo intelectual demasiadamente sensível”, pois é capaz de assimilar, incorporar ou, até mesmo, recusar as informações e interações externas, permitindo que elas ingressem no seu sistema e reinventem as dinâmicas internas, reconfigurando usos e potenciais. Como os demais objetos técnicos, um computador é um ser sensível à informação externa. Que pode ampliar seus usos consolidados através da inclusão de novos procedimentos e informações. Em suma: é a margem de indeterminação, o elemento desconhecido, que mantém o ser técnico “vivo”. Ou seja, rico em potenciais renovadores. É a margem de indeterminação que confere ao objeto técnico uma “situação” de diferença, pois provisória e em estado de gestação e movimento. Transpondo esse raciocínio para o Cinema, percebemos que a relação transformadora entre a informação e o filme obedece às relações internas, não exatamente regras, mas a uma axiomática mínima que se opera entre duas coordenadas: o ver e o ouvir.

9.

Em uma de suas “Extemporâneas”, Nietzsche afirma que “Cultura é, antes de tudo, Unidade de Estilo em todas as expressões da vida de um povo”. Tomada como “Unidade de Estilo” — seja de um grupamento humano , seja de um indivíduo — a Cultura encarna as tensões entre subjetividade e coletividade, operando, portanto, em uma “margem de indeterminação” que jamais fixa o sentido absoluto da extensão de sua expressão, senão que a estende até as fronteiras da afirmação ou da dissolução. Em todo caso, o Estilo se confunde com a própria noção de Cultura, na medida em que são atravessadas pela estranha ideia de “Grandeza”. Portanto, para que haja Estilo (Cultura), é necessário que haja Grandeza. Em “Reflexões sobre a História Universal”, no capítulo chamado “Indivíduo e Coletividade (Grandeza Histórica)”, de 1870, o historiador suíço Jacob Burckhardt afirma que “Grandeza é a soma global da personalidade de um indivíduo que nos parece grande, que continua a exercer sua influência mágica sobre nós, através dos séculos e dos povos, muito além das fronteiras da simples tradição (…). Um grande homem é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto, porque determinadas grandes ações só poderiam ser possíveis por ele, no interior do seu tempo e ambiente, sendo inconcebíveis sem ele. Ele está, fundamentalmente, ligado ao grande fluxo central das causas e efeitos. Há um provérbio que diz  que “Nenhum homem é indispensável’. Mas, justamente os poucos que o são, são grandes”.

10.

E isso é de tal forma que as características da Grandeza também acabam por se confundir com as características do Estilo, construindo uma correlação que se exprime nos seguintes termos : uma Cultura — seja expressa por um indivíduo ou coletividade — encarna tanto mais a Grandeza quanto mais consegue distinguir-se pelo Estilo, isto é, pelos traços de inovação, influência; em suma, por suas ações irredutíveis a quaisquer outros registros da atividade humana, que possuem o estranho poder de evocar tanto o tempo presente (“o interior de seu tempo”), como ultrapassá-lo. Por se manifestar como Grandeza, a ação do Estilo — ou melhor, o Estilo como uma atividade — perdura e sustenta sucessivas renovações do campo expressivo, absorvendo e repelindo simultaneamente as tendências de época. 

11.

Ao que parece, Sganzerla não se referia ao “filme” enquanto suporte (película), mas ao Cinema como um sistema complexo e suas obras. Cada uma trazendo sua própria sistematização interna, geralmente fechada dentro de protocolos da Arte e da Técnica Cinematográficas. Um computador é uma máquina. E, talvez, a frase de Sganzerla queira simplesmente indicar que o Cinema é o produto estético, em si mesmo original, que emerge da originalidade da associação entre dois objetos técnicos: o cinematógrafo e a ilha de montagem. Por ser capaz de sintetizar imagens, sons e sensações, através desses dois dispositivos, o Cinema possibilitaria uma experiência estética mais completa do que, por exemplo, a Música ou a Literatura. Um computador que produz blocos sensoriais, ora ajustados às representações correntes (“clichês”), ora banhado por uma formalização extremamente variável, que se altera conforme o estilo da mise en scène e as estratégias de filmagem e captação.

12.

Nesse sentido, o filme seria um computador na medida em que opera como um dispositivo técnico apto a captar e organizar dados de ordem física (a luz), técnica (a captação, a projeção) e estética (os blocos sensoriais, o raccord). Como registro da percepção, registro cognitivo e criativo, o Cinema é capaz de organizar essas informações tal como em um banco de dados. Capaz, inclusive, de permitir que certas perspectivas e sensações sejam criadas através do entrecruzamento e a convergência desses dados. Nesse ponto, os dados que o Cinema opera indicam a força imanente das possibilidades abertas pelo Estilo, o que não ocorre sem que o “Autor” e sua equipe interajam de forma distinta com os objetos técnicos e as operações estéticas. Se o Cinema permanece no imaginário como uma arte ambígua — a “arte sem futuro”, prestes a morrer, mas que permanece instalada, há mais de um século, em nossos hábitos —, essa ambiguidade se deve às suas engrenagens maquínicas e seus potenciais de renovação.

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Como vive o corpo virtual – a presença física em O Segundo Rosto.

Por Gabriel Papaléo

 

“Long live the new flesh.”

Max Renn, vivido por James Woods em Videodrome (1983, dir. David Cronenberg).

 

Onde exatamente experimentamos algo “real”? Qual o paradigma que lhe é concedido para explorar essa realidade? Para John Frankenheimer, a virtualidade faz parte (se não é o motor) da experiência real, e em O Segundo Rosto o diretor coloca o protagonista Arthur Hamilton para questionar a natureza visual do real, o que significa sua liberdade, ou como concilia desejos distintos, pulsões discrepantes, tempos e gerações opostos nas aspirações de destruição um do outro.

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Os créditos iniciais concebidos por Saul Bass concentram desde já a disposição ao rigor que Frankenheimer prega sobretudo de texturas e superfícies falhas do psicológico e do material mostrando a fragilidade da imagem que temos (e construímos) do nosso corpo, das projeções dos ambientes ao redor nos quais intuímos uma vida. O subúrbio em teoria é um lugar de porto seguro para o protagonista Arthur, onde mora com sua esposa, mas esse iconográfico carregado da cultura americana – especialmente na projeção estética que carrega para si nos filmes – é sufocado pela estilização da câmera do fotógrafo James Wong Howe. Aquele é um lugar de confronto velado, não conforto, e a estação de metrô que abre o filme é mapeada na tradição do suspense de paranoia; a câmera colada ao rosto de Arthur, seu suor, o homem que o persegue com uma maleta, os chapéus e sobretudos que andam sem identidade pelo lugar – tudo é informação e paranoia, porque existe algo escondido nessa falsa harmonia social mecânica.

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Tratar desse corpo disperso pela imagem é das soluções mais elegantes de Frankenheimer e Wong Howe na dramaturgia cheia de camadas de O Segundo Rosto; ao evitar que o filme se torne apenas um tratado psicológico, estudo de personagem focado em texto e informação, a câmera do filme cola seu corpo no corpo do protagonista e distorce a realidade ao redor para deixar dúvidas sobre ela. As cenas de drama aqui são registradas em lentes abertas que distorcem o rosto de John Randolph antes de sua transformação em Rock Hudson, ou teleobjetivas que ressaltam o quanto o banco no qual Arthur trabalha é apenas um borrão em sua atenção. A encenação pesada, minimalista, reforça esse dispositivo quase lúdico de fotografia, como se desafiasse aquele ambientes corriqueiros a se tornarem misteriosos, seja o subúrbio vazio, seja o escritório comum de empresa da corporação do filme que vira algo soturno nos mínimos detalhes. Para Frankenheimer, a pulsão da mudança passa também pela mente, mas se origina sobretudo em um movimento corporal – se é que aqui exista alguma diferença entre eles. A chantagem feita com Arthur é feita num momento de descontrole corporal, de quase possessão, e inconscientemente talvez seja ali que ele perceba que a casa onde sua mente mora é um catalisador da mudança, dos desejos, do qual não controla inteiramente – e isso precisa mudar.

A vida anterior à transformação, ligada aos bancos, ao sonho da casa de veraneio, ao barco de cobiça, ao sonho americano afinal, tem uma estrutura definida e desapaixonada que se revela o principal motivo para a insatisfação de Arthur. O pulo do gato do diabo corporativo que o tenta com promessas é uma tradução capciosa de inconsciente. cravando que o desejo de Arthur é a mudança, e eles enquanto empresa oferecem esse serviço. A promessa é da falta de responsabilidades. “Você vai estar na sua própria dimensão”, diz um dos muitos empregados que acompanham o protagonista pelas transformações.

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E que dimensão é essa, propriamente? A vida nova de Arthur, agora Antiochus (ou Tony, pra facilitar), ligada às artes, hedonista e de contato maior com a natureza vasta, com o coletivo. A arquitetura modernista da casa nova, construída como provocação à casa do subúrbio, o clima ameno e praiano da California, as roupas mais personalizadas, a jaqueta de couro branca que entra no lugar do terno e gravata impessoais. A reunião quase religiosa hippie para fazer vinho, exemplo da sexualidade e da liberdade de expressão que Arthur procurava em sua vida anterior. O mar como fuga do subúrbio, um horizonte de possibilidades utópicas (sei que O Segundo Rosto não é um filme brasileiro, mas esse texto é, então portanto nossas utopias aqui estão também). A leveza do vento no primeiro encontro na praia com Nora, aquele lugar vazio diante do mar, habitado apenas por aquelas duas almas, como numa cena egressa de A Noite ou A Aventura. A forma que esse contexto todo contrasta violentamente com os chapéus noir da estação de metrô e o subúrbio serve de imersão insuspeita na violência do arco de Arthur/Tony, que posteriormente é revelado na primeira aparição “pública” de Tony, na primeira vez que o protagonista está diante de pessoas, do coletivo.

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E é por conta desse medo público que Tony se torna indisposto com sua nova identidade. O medo de viver em coletivo permanece a lamúria da jornada do heroi individualista americano, e aqui isso é questionado. O roteiro de Lewis John Carlino parte do conto moral muito simples e direto (homem em crise de meia-idade despreza seu cotidiano e é oferecida a ele a chance de mudar), cheio de armadilhas moralistas especialmente num contexto americanizado, e no entanto abraça ambiguidades em ambos os lados da moeda porque sabe que o motivo pelos quais os estudos exatos e os estudos humanos andam tão separados, tão díspares em utilidade, é por conta de um calculado corporativismo capitalista.

Essa disputa geracional do Arthur diretamente de um cotidiano anos 50 para Tony, cujos signos conversam mais com seu presente de anos 60, busca no isolamento um lastro do que a sociedade americana construiu pra si – e o como essa situação é insustentável, porque leva ao eterno desejo insaciável, à eterna insatisfação que é o motor capitalista do conformismo estrutural. O que Tony experimenta dolorosamente é que a promessa de mudança sem uma reeducação do olhar apenas se molda em experiência corporativa efêmera e finita; é como se O Segundo Rosto falasse que é impossível conciliar o pensamento americano individual com os novos exemplos de sociedade mais coletivista que pelo mundo surgem. Tony espera ter liberdade de pensamento e falta de comprometimentos prévios, mas quando percebe que o preço que pagou para isso é um constante estado de vigilância e paranoia, volta ao porto seguro que lhe foi imposto.

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O cotidiano se torna imaterial quando planejado, quando cercado por questões pré-estabelecidas, e é isso que impede a apreciação do presente que Tony buscava. Em determinado momento, Nora fala com Tony que “as boas coisas sempre acontecem com a chuva”, e parece que o único encantamento que nos é disposto sem a contaminação da utilidade é o que vem da natureza, e que vem do acaso.

Quando volta à sua casa original, com novo rosto, Tony recebe a notícia de que as aquarelas de Arthur foram destruídas. É como se a única expressão artística do seu antigo eu perdesse o valor no presente utilitarista, algo que nem mesmo sua família se importou em guardar. O que se mantém, no entanto, é um troféu esportista, medidor de qualidade.

O arrependimento portanto parece culminação de toda a encenação da paranoia de ter sua vida dividida em estágios, em salas organizadas, que Frankenheimer e Wong Howe promovem. O retorno à empresa para mudar novamente de identidade vira calvário do mecanismo kafkiano da corporação capitalista, vidas a serem regurgitadas em prol do mercado, um doloroso flashback involuntário de Tony voltando à sala na qual entrou por acidente quando ainda era ainda Arthur, mas agora com motivo definido: uma eterna espera. Seu corpo é dispensável sob os olhos poderosos, e como tal pode ser reaproveitado se isso for lucro. A sua liberdade, no entanto, permanece um sonho intocado por quem silenciosamente já ditava seu cotidiano desde o princípio.

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As imagens distorcidas que abrem e fecham o filme, sinais de uma vida prestes a ruir sempre que os desejos são maiores que a necessidade de se conformar com o ambiente no qual fomos designados. O contrato com o diabo cuja máquina funciona sem percalços porque sabe que o indivíduo sempre terá a pulsão da mudança e do trânsito quando a harmonia com o ambiente não está acontecendo. O exílio de Antiochus é numa casa de luxo, sozinho diante do mar, mas como alguém que só encontra felicidade no coletivo delirante comungando, estar solitário diante daquela realidade forjada é o maior sinal de que o real é virtual, e como tal simulacro não existe além do plano artificial, imaterial, e portanto extracorpóreo.

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A relação corpo-máquina: de Metropolis a Matrix

Por Natália Alonso

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Metrópolis (Fritz Lang, 1927)

Em 1927, Fritz Lang presenteou o cinema com a então obra retrô-futurista pioneira do cinema. Metropolis é, até hoje, uma das primeiras referências quando se pensa em Steampunk1. Começava, de forma categórica, e nada tímida, – muito embora ainda solitária –, a relação corpo-máquina no cinema.

Metropolis é um grande centro que utiliza um sistema organizacional trabalhista influenciado pelo capitalismo, um evidente cenário pós-Revolução Industrial. O funcionamento da metrópole engloba altos níveis tecnológicos e estilo artístico. O filme é ambientado no ano de 2026 e mostra a cidade futurista ideal (cenários deslumbrantes, avanços tecnológicos inimagináveis para a época), onde aviões circulam entre edifícios gigantes, no auge da urbanização, uma verdadeira obra-prima do engenho humano. Mas a sua ambientação excêntrica e detalhista não é a única coisa que a trama intenta mostrar: a crítica social ao maniqueísmo e à oligarquia – que está enraizada na sociedade capitalista até hoje – são pontos fortes a serem analisados. O contexto sócio-político também é relatado com destreza e com toque surrealista, característica muito marcante em diversas obras retrô-futuristas.

            A relação corpo-máquina, enfim, se fortaleceu nos anos 80, em películas como Blade Runner (1982), Videodrome (1983) O Exterminador do Futuro (1984) e Robocop (1987), que também influenciaram a criação de jogos com cenário Steampunk e exploração da onda tecnológica em situações surreais ou absurdas. Na contemporaneidade, observam-se games extremamente acurados, com gráficos e cenários que evocam os filmes dos quais sofreram grande influxo. Um exemplo é Fallout. O jogo, inclusive, em especial na sua versão de número 4, faz referência ao filme que consagrou Schwarzenegger de diversas formas, a começar pela caracterização dos personagens (jogadores).

            Na maioria dos filmes, a tecnologia surge como uma importante aliada ao homem, mas acaba por causar catástrofes, com a dominação pelas máquinas e a inversão de papéis: a máquina controla o homem e não mais o oposto (destaque para O Exterminador do Futuro 3 – A Rebelião das Máquinas, de 2003). A ideia de que a máquina poderia atingir inteligência suficiente e autonomia para fazer escolhas sem precisar do homem sempre transpassou os filmes de ficção científica. Pior ainda: a máquina seria capaz de alcançar uma inteligência sobre-humana, tomando conta da humanidade. O corpo humano, antes visto como instrumento de inteligência e de criação, dentro da gama sci-fi, apresenta vertentes, nas quais alcança sua capacidade máxima, tem força e poderes que não seriam passíveis na existência humana comum. Os androides, que até o século XX eram tratados como realidade em um futuro quase sempre ambientado no século XXI, são protótipos criados a partir do corpo humano (O Homem Bicentenário (1999), A.I. – Inteligência Artificial (2001), Ex-Machina (2014)). No entanto, o homem, na ânsia de aperfeiçoar seu próprio eu, cria alter egos com atributos dos quais ele não poderia desfrutar fora de um enredo de ficção científica. A inteligência artificial, derivada da humana, em diversas tramas, fornece às máquinas, ainda, a capacidade de ter sentimentos humanos, como empatia e amor.

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Matrix (Wachowski Sisters, 1999)

Mas, é em Matrix (1999), que a relação corpo-máquina atinge seu ápice nas telas. A história do hacker Neo (inesquecível, interpretado por Keanu Reeves) que é o “escolhido” na luta contra a dominação dos humanos pelas máquinas, não só tem todos os elementos clássicos sci-fi, como uma síntese conspiratória. Na Matrix, a raça humana foi dominada por inteligências artificiais. Neo descobre que esteve “dormindo” o tempo todo, conectado a um programa de computador, sem poder desfrutar sequer da própria força, sendo utilizado apenas como fonte de energia. Assim como o sempre atual Metropolis, há crítica sócio-política em relação a regimes ditatoriais e totalitários embutida no enredo, que se relaciona com problemáticas contemporâneas. Essa distopia pode ser vista em diversos filmes do gênero.

Apesar de os filmes do gênero serem reconhecidos pela saturação de efeitos especiais, também prezam pela teia bem construída, geralmente fomentando críticas construtivas e gerando reflexões mais profundas em relação à submissão da sociedade à tecnologia e a dominação pelas máquinas (na maioria das vezes em analogia à própria sociedade real). Ao longo do tempo, contudo, os efeitos foram aperfeiçoados, enquanto que a mensagem a ser passada estagnou: afinal, sempre esteve um passo à frente. Metropolis era atual em 1927 e é atual hoje.

Glossário

Steampunk: O Steampunk é um subgênero da Ficção Científica passado em uma realidade alternativa, cuja proposta estética remete ao Século XIX, como se a Era Vitoriana, por exemplo, tivesse sido de tal forma bem-sucedida que seus costumes, tecnologia e cultura tivessem perdurado por muito mais do que de fato perduraram.

 

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Tetsuo e o Niilismo Revolucionário

Por Chico Torres

TETSUO (ABERTURA)

Desde a segunda metade do século XIX e, sobretudo, início do século XX, a tecnicização da vida nas grandes cidades passou por um processo de aceleração nunca antes imaginado. Desenvolvimento do capitalismo, crescimento populacional, distribuição de mercadorias em massa, tráfego urbano, meios de transporte e comunicação, tudo isso entra em conjunção com a inserção da tecnologia na vida cotidiana. Um contexto que, desde o seu surgimento, gerou uma perspectiva dúbia em relação àquele novo mundo: a cidade apresentava, ao mesmo tempo, o sonho e pesadelo humanos.

Ao mesmo tempo que os indivíduos usufruíam do conforto e da praticidade ocasionados pela inserção da técnica no cotidiano, surgiam constantemente novas demandas psíquicas e físicas que se impunham e precisavam ser absorvidas. A máquina em toda a sua força e velocidade não só gerava medo, mas uma série de novos estímulos. Diante disso é que a modernidade fora compreendida por pensadores como Simmel, Krakauer e Benjamin em um sentido neurológico: tal condição, ao desenvolver hiperestímulos, proporcionou um novo tipo de experiência subjetiva. A vida, pela primeira vez, estava marcada por choques físicos e perceptivos sem precedentes.

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“Cidade de Nova York. Ela vale a pena?” Life, 1909.

É partindo dessa perspectiva histórica que quero pensar em Tetsuo: o homem de ferro (1989), de Shinya Tsukamoto, filme cultuado por sua subversão e ligação com a denominada cultura cyberpunk. Para além da sedução fácil de pensar a obra em seus adjetivos mais evidentes, reduzindo-a a uma caricatura, quero propor uma análise que aproxima Tetsuo desse olhar ambíguo que recai sobre o papel da técnica na vida moderna. No filme, a presença constante do pessimismo e do conflito através da relação descontrolada entre corpo e máquina, pode ser compreendida também como uma reação ao ideal de progresso, emergindo como crítica à modernidade através da maximização simbólica dos barbarismos a partir de tal relação.

Tetsuo retrata uma máquina guiada pelo seguinte propósito: habitar o corpo humano e o mundo como um parasita. Uma invasão que não se explica, que não possuí uma lógica interna (como, por exemplo, em Blade Runner e Matrix, filmes onde a máquina possui um plano “lúcido” e que depende da vida humana para se concretizar), mas que apenas perturba a integridade física e mental das personagens. Constantemente a obra afirma, por um simbolismo que sempre tem como ferramenta um tipo de fisicalidade extrema, que a humanidade não soube se utilizar da técnica, voltando a um estado de barbárie e incompreensão irremediáveis.

TETSUO V

O que se vê é uma série de imagens, ainda que agarradas a fios narrativos muito frágeis, que expressam sempre situações-limite, integrando prazer sensual e dor física sob o imperativo do vírus-máquina. Como meio de maximização dessas situações, e uma possível aproximação com questões psicanalíticas, diversas interações sexuais se desenvolvem, todas elas sob o estigma da perversão. Objetos fálicos surgem dos corpos e se personificam, afirmando, violentamente, o poder fálico e patriarcal, sendo causa e consequência daquele mundo apocalíptico.

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As técnicas audiovisuais utilizadas por Tsukamoto também buscam explorar gráfica e sonoramente uma perspectiva acelerada e desordenada que rementem a esse mundo absorvido pelo processo industrial. A montagem descontínua; a câmera na mão (uma personagem à parte que explora a falta de objetividade inerente ao filme) e as alterações nos recursos fotográficos; muitas imagens em stop motion, picotadas e aceleradas; a trilha sonora que reproduz sons maquinais, todos esses elementos revelam o desejo de construir um filme que se  mantêm à distância das formas contemplativas, com o nítido objetivo de desorientar pelo excesso e de ser um documento experimental que, sob a máscara de pesadelo distópico, se revela como uma pungente crítica à tradição, ao humanismo e ao progresso.

Nesse sentido, podemos alinhar Tetsuo ao dadaísmo e principalmente ao surrealismo, vanguardas que, na ótica de Walter Benjamin, possuíam forças revolucionárias justamente por se fundamentarem na pobreza experiencial do mundo moderno, que pelo próprio esfacelamento dos valores tradicionais da obra de arte se torna   um novo motivo artístico. Quando Benjamin escreveu o seu ensaio sobre o surrealismo, afirmou que era preciso organizar o pessimismo, sintoma característico do século XX. O filósofo alemão, interessado no poder revolucionário das vanguardas europeias, viu nesses movimentos, sobretudo no surrealismo e no dadaísmo, manifestações que explodiam os valores burgueses expressos, em arte, pela contemplação e manutenção de um humanismo que paralisavam as forças revolucionárias surgidas através do desencantamento do mundo. Ainda segundo Benjamin, a técnica surge, diante dessa   perspectiva, como elemento político fundamental do exercício artístico, sendo a política, agora, um aspecto que deve ser absorvido pela arte. Diante dessa nova perspectiva, exige-se, portanto, uma tomada de posição. É nesse sentido que Benjamin dirá que é preciso não estetizar a política (como fez o nazismo), mas politizar a arte.

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As vanguardas teriam a capacidade de se utilizar do inconsciente e do sonho (surrealismo), dos elementos industriais deslocados de sua funcionalidade, surgidos em recortes aleatórios (dadaísmo) e da ruína prematura das cidades modernas para, dialeticamente, propor uma “iluminação profana” que recairia sobre a relação ambígua advinda da modernidade, ou seja, a técnica como libertação e escravização. É assim que Benjamin, pensando na atitude surrealista, irá pensam em um “niilismo revolucionário”, postura pessimista e de consciência crítica da perda irremediável da experiência coletiva, mas que vê na própria pobreza experiencial possibilidades estético-políticas apenas possíveis nesse contexto desolador.

Penso que Tetsuo se alinha a todas essas imagens benjaminianas; que muito antes de ser apenas um filme experimental, horror cyberpunk, ou algo feito para proporcionar o mero escândalo, é uma obra consciente das limitações da tradição e, ao mesmo tempo, do poder político do fragmento, do sonho e da ruína, do surrealismo e do dadaísmo. Em Tetsuo, a ruína surge através da exploração dos espaços vazios, do maquinário abandonado e destruído (muito raramente uma máquina surge em seu estado natural de funcionamento), o que demonstra as intenções de Tsukamoto em exibir essa máquina como elemento atmosférico e, portanto, surrealista. A ruína do mundo revela o fracasso histórico do ideal de progresso, surgindo, em sentido redentor, como reelaboração estética daquilo que só pode surgir como alegoria da tragédia humana. A única possibilidade de redenção, portanto, é a exploração surrealista desses objetos degradados, buscando não uma restauração daquilo que está irremediavelmente perdido, mas um novo caminho em toda a sua radicalidade imagética. Sim, o pessimismo de Tetsuo é, antes de tudo, um posicionamento político.

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