O Lodo (Helvécio Ratton, 2020)

Por João Pedro Faro

o lodo

Um despertador toca, fade in. Vemos um homem de meia-idade acordar, emburrado, seguindo para sua rotina desgastada no tão temido mundo corporativo. Esse tipo de premissa para representar qualquer personagem masculino “cansado desse mundo” já parece ter se tornado um pressuposto automático desde meados do século passado, inclusive com a mesma sucessão de gestos. A primeira meia hora de O Lodo, novo filme de Helvécio Ratton, já denuncia uma percepção mais do que costumeira de uma realidade em desencanto, e o resto do filme mantém a linha tênue entre a saturação dos conflitos típicos para um determinado tipo de personagem e a banalização do próprio mundo fantástico.

O evento que transforma o mundo do protagonista (Eduardo Moreira) é uma visita ao psicanalista Dr. Pink (Renato Parara), que revela-se um stalker do cliente, cercando sua vida de situações bizarras. Ratton tem uma rigidez formal curiosa ao longo de todo o filme: a tela reduzida conduz planos estáticos e longos, que constantemente entram em conflito com o andamento da própria narrativa. Enquanto absurdismo protokafkiano transformado em comédia de erros com elementos fantasiosos superficiais, nem sempre as decisões mais rígidas conversam com o tom de estranhamento. Lodo parte de tantos lugares comuns a esse tipo de história que parece não perceber seus pontos de maior interesse, sendo o peso de um mundo desanimador e não-naturalista desconversado com o que existe de próprio ao universo que cria. É como se sentisse a necessidade de uma atmosfera de cinema mais prestigiosa que afunda muita de suas pretensões em imagens e ideias desgastadas aos pequenos filmes de realismo fantástico que aparecem quase sempre em grades de festival.

Os signos desse tipo de cinema resistem em ir embora. As sequências de sonho com breves retoques de horror, a psicanálise e seus tipos como mote de uma desconstrução visual quase sempre óbvia demais, o espaço dos escritórios como opressão de um “mundo moderno” que existe como entidade e figuras religiosas como símbolos de uma culpa católica elementar são alguns dos elementos mais cansados e repetidos desse tipo de construção de mundo, e que ocupam tempo demais em tela no longa de Ratton gerando a extensa sensação de que este filme já foi feito muitas e muitas vezes. Os dois primeiro atos, muito definidos em uma obra que preza por um teor quase caquético de narrativa (não que isso seja o maior dos problemas), tomam muito tempo nesses mesmos cacoetes de um realismo fantástico que parece sempre muito mais interessado pelo tal do realismo do que pelas implicações do fantástico.

É no ato final que surgem ideias mais singulares ao longa, especialmente pela aparição da personagem interpretada por Inês Peixoto. Sua relação com o protagonista é genuinamente interessante, apoiada por uma performance vívida da atriz. Com ela, o filme finalmente parece abraçar um certo caos ainda que contido nos enquadramentos austeros. Infelizmente esse caos é breve, perpassado, pesando bem menos do que a construção feita na última hora de filme que gera pouco mais do que uma cena ou outra de curiosidades.

O Lodo é um experimento de poucos riscos e excentricidades pontuais, sendo confortável demais para gerar perturbação e contido demais para gerar interesse. Para um filme com esse título, se suja bem menos do que se limpa.

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