Arquivo

Canto dos Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020)

Por João Pedro Faro

84477724_618921502176010_800208898949644288_n

Entre o vampirismo como manutenção de um poder vigente e como puro hedonismo, Canto dos Ossos (2019, Jorge Polo e Petrus de Bairros) estrutura-se na variação de possibilidades do mito. O vencedor da Mostra Aurora na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes é a tentativa de emular possibilidades imagéticas de um cinema de gênero com regras próprias de execução.

Localizado tanto no litoral do Rio de Janeiro quanto no do Ceará, Canto dos Ossos e seu tamanho de tela reduzido busca um conto juvenil de horror vampírico atado ao tema do abandono. As instituições públicas em crise, totalizadas na professora-vampira que guia a narrativa, e a maresia litorânea de uma rotina marcada pelo ócio da adolescência, vivida pelo casal de amigas que acabaram de se formar, formam o mosaico de ideias prontas para serem experimentadas pela derivação.

Dos clássicos de monstro da Universal e do cinema de terror descolado oitentista, especialmente de referências como Os Garotos Perdidos (1986, Joel Schumacher), os autores integram o desejo de seus personagens pela transformação pulsante de um estado atual, independente das consequências dessa transformação. Dois rapazes se conhecem por acaso em uma noite e transam no dia seguinte, com a descoberta de que um deles é um vampiro sendo apenas a pulsação pela mudança do marasmo rotineiro que cansa em existir. Mesmo como monstros, os personagens jovens de Canto dos Ossos reconhecem a necessidade da mutação do corpo, da imagem e do espírito como essenciais à sobrevivência, são vampiros que devoram em tela seu próprio desejo de não sepultar-se ao tédio.

Outros vampiros, que surgem como a única ameaça real de uma trama que não se importa muito com o próprio desenvolvimento, estão em putrefação, definhando com seu poder dominante que sabota as possibilidades de prazer da juventude. O único momento de invenção que essa classe dominante pode viver é em sua destruição, sendo a morte do patriarca-múmia-vampiro-chefe preenchido na tela por uma gosma verde e por um incêndio controlado que fura o enquadramento.

Canto dos Ossos é dosado pelas experimentações impulsionadas por seu contexto enquanto percorre uma dicotomia estranha entre pequenas tramas inacabadas e uma intensidade de ambientações. A gratuidade de ideias, com diversos personagens protagonizando diversos conceitos, por ora gera um constante investimento na experiência do filme, mas também acaba por desvalorizar uma certa pontualidade de momentos mais congratulatórios, revestidos de maior originalidade imagética e sonora. O grupo de vampiros que protagoniza as sequências no Ceará, os melhores momentos do filme, possui um encontro de invenções que estabiliza conceitos do gênero (existe uma luta de vampiros, uma obsessão pelos signos clássicos subvertida em um ambiente próprio do longa) com interseções típicas ao jogo de juvenilidades e fluxo do filme (na interessante sequência do banho no lago). Mas sua potência parece perdida dentre outras, de menor calibre imagético e de ideias menos singulares, como a trama detetivesca de um fotógrafo e as longas incursões pela narrativa de um texto gótico. Uma mania constante a um cinema de gênero mais contido: a fixação por pequenos amuletos, de passagens antigas empurradas em qualquer canto da obra até a brevidade de objetos fora-de-lugar que parecem querer puxar a todo custo algum significado místico por si só. Por vezes, do muito surge pouco.

Inevitavelmente expressivo em concepção, Canto dos Ossos não parece querer ser um trabalho finalizado, em termos tradicionais e superficiais do termo. Porém, mesmo na incompletude, seus coitos interrompidos e seu apreço narrativo pelo mínimo oscilam entre resultados genuinamente desestabilizadores e projeções mornas do gênero derivativo. Aí está o abandono consentido, presente tanto na relação de seus personagens com o mundo quanto em seu próprio ideal de cinema. É como a promessa de uma eternidade melhor que o presente, ou sobre a confusão entre esses dois conceitos que torna instável um projeto mais concretizado de invenções.

FacebookTwitter

Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020)

Por João Pedro Faro

73260277_2457992051153268_7825578538144104448_o

Uma alternativa para o cinema jovem brasileiro está em Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso. É quase como se as temporadas recentes de Malhação, da TV Globo, tivessem um senso político menos raso e liberal. O longa de Déo, ainda que didático e por vezes ingênuo, combina uma competência formal com um senso interessante de cinema popular.

A história de Saulo (Lucas Limeira), jovem negro que decide ocupar sozinho a escola pública em que estuda, preza pela objetividade. Os personagens são estabelecidos em diálogos rápidos e o ambiente onde instaura-se a revolta é naturalmente propenso à indignação, sendo um espaço totalizador de uma geração de periferia marcada pela continuidade do abandono estatal e pelos meios modernos de disseminação de ideias. Esses dois fatores se chocam em Cabeça de Nêgo e acendem a pólvora de um trabalho que busca as últimas consequências de sua premissa, ainda que empatadas por decisões narrativas.

A ingenuidade ocasional parece perdoável pela apropriação de Cabeça de Nêgo dos moldes do cinema adolescente. Porém, mesmo que atrás de um meio mais massificador de representação, nem sempre sua proposta é bem conversada com os tons mais aprofundados do longa. Saulo é um personagem-modelo, sem erros, sem conflitos que não estejam externalizados, e sofre ao tornar-se uma figura totalizadora da revolta que não permite momentos mais reconhecidamente humanos. O filme sofre de uma clara euforia de querer falar de tudo ao mesmo tempo e ser absoluto sobre todos os seus temas, e isso custa alguma parcela de humanidade aos personagens, por mais que os minutos finais tenham uma potência inevitável de luta. Fica a sensação dúbia: essa potência é natural ao contexto, não ocorre necessariamente pela construção de um mundo de pessoas reconhecíveis e complexificadas, que merecem esse tratamento mesmo dentro de um filme mais juvenil. Perde-se um grupo de atores que parece ter muito mais potencial do que conseguem demonstrar durante a projeção.

A integração do meio digital gera algumas das sequências mais interessantes. Saulo registra sua ocupação em vlogs verticais, em uma transferência muito orgânica entre linguagens que se afasta de tentativas caquéticas de outros trabalhos recentes em representar a vida virtual da juventude. Posteriormente, outros registros feitos no digital de celulares também integram a montagem e movimentam a narrativa, com a pixelização das imagens aproximando o longa de uma realidade mais reconhecível e mais desestabilizadora, distanciando-se de um filme teen mais típico. A presença policial, um assombro crescente durante o filme e uma ameaça sempre presente nos entornos da existência periférica, fica ainda mais reconhecível e brutal quando filmada pelas lentes de um celular, quando o digital se desintegra diante da violência. O filme busca uma linguagem própria dentro do gênero adolescente, ainda que carregado de derivações assumidas. A sequência final, especialmente, que compila e entrecorta diversas filmagens amadoras de enfrentamentos entre policiais e estudantes, claramente se inspira no que Spike Lee buscou nos minutos finais de seu recente Infiltrado na Klan (2018).

Déo Cardoso oferece uma construção justa de um gênero que nunca se importou pelo grupo que o cineasta quer retratar. Essa tentativa de reparação gera certos meios totalizadores que não servem bem ao filme, que confunde cinema jovem com condução juvenil. Ainda que preso pela euforia da proposta, Cabeça de Nêgo é um ponto de partida para um tipo específico de filme feito para adolescentes que quase ninguém parece interessado em produzir de maneiras menos óbvias, ainda mais para um público geralmente marginalizado por esse cinema.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Mascarados (Henrique e Marcela Borela, 2020)

Por João Pedro Faro

73260277_2457992051153268_7825578538144104448_o

Uma primeira diferenciação possível entre Mascarados, nova longa de Henrique e Marcela Borela, e outros trabalhos similares do cinema latino-americano contemporâneo, é a desritualização do trabalho. Diferente de filmes como La Libertad (2001, Lisandro Alonso), não há interesse em ritualizar o gesto do trabalhador braçal. A percepção desse fator é essencial a Mascarados: para os autores, a tradição, o rito do trabalho, não exalta o trabalhador, ela apenas valida a exploração.

O tradicional trabalho das pedreiras, típico da cidade de Pirenópolis que serve de cenário ao longa, não gera nada além de exaustão ao trabalhador explorado. Mascarados é um filme curto, mas de muitas imagens, de planos breves e estáticos que ressaltam o sentimento de apatia e marasmo vivido pelos membros da pedreira. Nesse contexto, surge a festa do Divino e seus mascarados. Os trabalhadores que querem participar da festa usando máscara continuam cerceados, sofrem a imposição de um fichamento individual, fica marcado como eles se tornam uma ameaça ao poder vigente a partir do momento em que não estão mais de uniforme. Não há festa, não há cultura que comporte um espaço para quem é condenado ao ambiente subalterno. A máscara esconde o rosto que precisa sempre ser vigiado, encarado.

O som de Mascarados também potencializa o abismo entre os planos. Uma música de Milionário e José Rico começa a tocar na rádio em um enquadramento e continua no próximo, indo do espaço caseiro para o espaço da pedreira. Uma explosão interrompe a canção, com milhares de pedregulhos caindo da montanha, marcando a chegada de mais trabalho para os pedreiros. As marretadas nas pedras são a única sintonia possibilitada. Assim, a mudança de sequências, mesmo entre cortes que fazem o tempo passar, parece contaminada por um sentimento conjunto de dominação.

É do trânsito entre esses espaços, da pedreira à casa, da casa ao festejo, que começa a emergir uma atmosfera de desconstrução das estruturas tão marcadas por uma montagem tão rígida. As máscaras usadas na festa são uma liberdade temporária, falsa, encerrada de um corte para outro que já coloca os trabalhadores novamente no ambiente de exploração. A câmera, dentro da festa, circula livremente pelos pedreiros que finalmente são vistos como algo além da força usada para aumentar as riquezas de quem os explora. E isso se encerra de um plano para o outro. O trabalho é contra a cultura, e a cultura é do domínio de quem impõe o trabalho, portanto não há como perdoar cultura alguma. Ela atrasa a revolta.

A demissão encerra a mudança de espaços, e dela surge um ultimato. Não há mais escape pelo festejo, a máscara é trocada por uma espingarda e ela movimenta todo o plano final. Entre um plano e outro reside uma sensação amplificada pela sequência das imagens, de uma certeza e uma precisão para o encaminhamento final do longa. O homem, não mais o trabalhador, atinge um estado de liberdade com a arma na mão. Atravessa um cercado, em uma imagem final sísmica de fuga. O plano se alonga pela floresta, em uma correria que vai contra todo o marasmo das imagens criadas anteriormente na obra. Não há apatia possível quando se está livre do domínio, sem as máscaras, sem as tradições, sem qualquer rito que seja. Apenas um último momento de intensidade onde o sujeito se reconhece como possibilitador da própria liberdade.

FacebookTwitter

Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, 2020)

Por João Pedro Faro

os escravos de jo rosemberg cariry

Em dado momento da cerimônia de abertura da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, quando convocavam ao palco os apoiadores do evento, um representante da Polícia Militar foi chamado para integrar o grupo. Recebido com aplausos, o comandante fardado foi bem recebido pelo evento, sendo a PM Mineira listada como “parceira cultural” da mostra. Nos próximos dias, o que ocupou uma grande parcela das telas foram longas e curtas denunciando a ação policial, especialmente da PM. Cadê Edson?, de Dácia Ibiapina, é talvez dos exemplos mais claros e diretos que expõe o terrorismo de Estado imposto pela polícia.

Sendo dos mais “tradicionais” documentários vistos na Mostra, com cabeças falantes e legendas que localizam o espectador no tempo-espaço, o longa busca centrar-se em um protagonista. Edson Francisco da Silva, figura de liderança do Movimento de Resistência Popular, é filmado entre 2012 e 2018 em suas ocupações e discursos, passando pelo golpe de 2016 até a eleição do atual presidente. De início, sua forte presença parece ser o guia narrativo do documentário, junto com o caso da remoção do grupo que ocupava o hotel Torre Palace, promovida brutalmente pela PM brasiliense em 2016. Quando o filme progride, Edson perde o lugar que havia construído no longa, com uma condução desfocada que perde-se em imagens que a cercam.

A quantidade de trabalhos documentais recentes sobre os caminhos tortuosos vividos na política dos últimos 4 anos exige que novos lançamentos criem cada vez mais personalidade. Cadê Edson?, ao mesmo tempo, carrega ideias muito próprias (estudo de protagonista, uso de imagens não registradas pela equipe) e rende-se ao “lugar comum” encontrado nesse tipo de longa. Quando se afasta do seu personagem-título, a sensação é a de que estamos vendo as mesmas imagens que vimos em todos os outros filmes que circulam pelo mesmo momento político. A divisão do verde-amarelo e do vermelho, os personagens que encaram o planalto central e as falas absurdas dos trio-elétricos direitistas são alguns exemplos que tomam tempo de tela em um filme que parecia buscar enquadrar momentos e pessoas pouco vistos em outros projetos similares.

O título acaba sofrendo da ironia da direção, pois Edson desaparece dos registros à certa altura do longa. A falta de um foco tão claro acaba com a firmeza inicial da diretora, que parece querer totalizar uma narrativa que era tão forte justamente por estar focada em um ambiente menor e mais concreto. O que há de poderoso nas imagens ao fim do longa, razoavelmente entrecortadas pela presença do protagonista, é o uso dos registros em drone feitos pela polícia em sua ação de violência contra os membros do MPR que ocupavam o Torre Palace.

Dácia parte da reapropriação das imagens policiais: o drone busca tornar heroico o ato da polícia covarde, mas suas intenções iniciais são completamente subvertidas pelo contexto apresentado. Os helicópteros, lotados de policiais armados, sobrevoam um grupo de ocupantes do MPR desarmados, tratados como criminosos de alta periculosidade. É gratificante em ser impiedoso na exposição do antagonismo policial, um maniqueísmo justo e condizente com a premissa da obra de Dácia.

Mesmo bagunçado e desfocado, Cadê Edson? é mais bruto e enervante do que a maioria dos trabalhos que circundam um atual momento político. Não há relativização possível da presença policial, registrada como assombro, como terrorismo declarado pelas próprias imagens feitas por agentes policiais em operações, apropriadas de seu discurso de origem e expostas sem o filtro tenebroso do bom-mocismo. Um trabalho de erros e acertos mas que nunca dá o pé atrás no que acredita, nunca higieniza uma realidade tão sórdida.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (Bruno Risas, 2019)

Por João Pedro Faro

18404033_1640875242611907_8017276790604635530_o

Desde o princípio de sua imagem, o disco voador surge como interrupção de um estado de normalidade da sociedade moderna. Mesmo em uma cidade global como São Paulo, primeiro mundo do terceiro mundo, não há arquitetura mal projetada ou viaduto erguido que esteja no mesmo nível de um OVNI. Parte do que torna Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (2019) um diferencial dentro do desgaste atual do filme-rotina ou do filme-caseiro é sua relação com o objeto voador não identificado: sua presença reafirma o ordinário.

Filmado entre 2010 e 2017, de um experimento comum de registro e encenação que se complexifica ao longo da projeção, o primeiro longa de Bruno Risas coloca sua própria família como protagonista. Não há qualquer novidade na premissa de buscar (ou melhor, observar) mise-en-scène na rotina do próprio lar, nem na inserção de elementos fantasiosos em um contexto social, é a execução que cria sua personalidade. Sendo todo o processo de filmagem, seus conflitos, distâncias e erros expostos em veia aberta, com a iminência da fantasia construída no extracampo sonoro, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu sugere renegar os próprios meios. A construção de sua dramaturgia, mostrada em tempo real por Risas, transforma a suspensão de descrença em pura descrença. Ao mostrar a briga com sua mãe por errar um dos planos, a diretora de fotografia repetindo os takes sem corte e a conversa sobre o ato de filmar como parte constante do filme, cria um estranhamento através da desimportância de uma divisão entre o registro do espontâneo e do ensaiado.

Enquanto isso, vem chegando o disco voador. O som do tremor espacial é reconhecível desde a primeira vez que surge, mas parece tão comum ao espaço caseiro paulista, entrelaçado por brigas de família e marasmo do desemprego, que a comunhão entre o elemento de ficção científica e do cinema observacional tornam-se inseparáveis. Risas filma seus parentes como a típica classe média em crise, dentre idas e vindas de dinheiro ao longo dos anos e um senso de inquietação por uma falsa estabilidade, sempre à beira de desmoronar. O espaço da casa é um ambiente alienígena por si só, e aí não se encaixa metáfora qualquer, apenas um senso de alienação por parte de um grupo de pessoas que flutuam sobre a instabilidade do espaço em que habitam, tanto em termos de classe quanto de interpessoalidade.

As conversas corriqueiras são montadas por sequências paralelas e hipnóticas, quando sons intergalácticos parecem interferir no comportamento de pessoas brutalmente comuns. Ou talvez elas estejam agindo normalmente, e talvez a normalidade seja mesmo uma inconstância de gestos que variam entre o comum e o bizarro sem que possamos perceber. A não ser que tenha alguma câmera posicionada em nossa sala de estar, uma presença ao mesmo tempo consentida e invisível, que transparece a quem assiste seus registros nossa incapacidade de permanecer comum o tempo todo. Encenações ou espontaneidades? Provavelmente temos menos controle sobre isso do que imaginamos.

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu extrai uma potência quase magnética dessa ambiguidade. Dá até para dizer que o filme atinge um entretenimento muito direto na curiosidade pelo mínimo e pelo máximo, pelo mínimo em situações como uma risada estridente e esquisita no meio de um diálogo ou pelo máximo em aparições iminentes de figuras de outros planetas. Como em outros trabalhos construídos por encenações caseiras e planos, ao mesmo tempo, genuínos e calculados, esses momentos são capazes de tornar uma imagem corriqueira em uma construção até o enervante. Sendo exemplo 11×14 , de James Benning, em que um longo take de cozinha torna-se emocionante pela rápida passagem de um vulto no fundo do quadro, o filme de Risas tem total confiança no poder de ações menores transformadas em ações máximas pelo enquadramento. O contrário também acontece: situações máximas tornam-se mínimas diante de um dia a dia tão cheio de mistérios intrínsecos a sua natureza. Passar o dia inteiro esperando pelo dinheiro na conta ou pela hora do café, sem perceber as entranhezas naturais de uma rotina ensaiada. Resta aguardar por visitas interplanetárias que provem a nossa incapacidade de sair do lugar.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes.

FacebookTwitter

Sequizágua (Maurício Rezende, 2020)

Por João Pedro Faro

os escravos de jo rosemberg cariry

A distância entre a encenação e o registro documental  sempre foi muito pequena. O modelo de ficção documental, provavelmente a maior tendência dos festivais nas últimas duas décadas, nem sempre percebe que a divisão entre esses dois termos é praticamente inexistente. Com algumas imagens poderosas, Sequizágua, de Maurício Rezende, erra justamente na fragmentação típica do gênero que pertence.

Em um plano inicial preciso, um morador de uma cidade no norte de Minas Gerais explica a tragédia vivida pela intrusão do agronegócio em suas terras. O resto do longa acompanha alguns outros personagens da cidade em sua tentativa cotidiana de desviar das consequências desse terror. É possível compreender o filme em duas metades: a primeira, interessada pelo registro de imagens rotineiras, a segunda, construída em cima de encenações mais claras em que os protagonistas interagem. O desenvolvimento acontece sem que elas conversem diretamente, a divisão não mescla o potencial que cada metade apresenta. A construção de imagens fortes fica perdida nessa primeira metade (a caminhada sobre a terra seca, as crianças e os facões, a procissão) e a narrativa mais clássica da segunda metade não alcança mesmos potenciais imagéticos.

Na objetividade da estrutura, Rezende acaba passando por manias desgastadas da ficção documental. Um exemplo, que acontece lá pela metade, é a sequência de “montagem de rostos”: o filme para afim de que alguns locais, que não estão inseridos na narrativa, façam um plano estático e austero encarando a câmera diretamente. É uma mania contemporânea que perde seu potencial por desgaste, quase como se tivesse que estar lá simplesmente para cumprir uma tabela de requisitos que o gênero insiste. Estão em Sequizágua também há o plano das roupas no varal, o plano do pôr do sol e o plano close dos alunos na escola que geram a sensação de que estamos assistindo um compilado do que é mais comum de encontrar em um filme desses.

Ainda que não seja tão próprio, Sequizágua ainda alcança trechos interessantes. A sequência em que duas adolescentes buscam os irmãos caçulas, perdidos em um rio que secou, e a cena do “amigo oculto” na escola conseguem apresentar uma construção visual vista no início do longa trabalhando coletivamente com ideias próprias de relação narrativa moldadas na montagem. Débora Anjos dos Santos, protagonista desses momentos, atinge um potencial de performance que gratifica algumas passagens mais singulares à Sequizágua.

Maurício Rezende é ocasionalmente inventivo e registra um respeito louvável aos residentes do espaço em que seu filme reside. O que distancia Sequizágua de trabalhos similares mais memoráveis acaba sendo esse excesso de segurança em provocar pouquíssima novidade, dotado de uma cartilha de traços reconhecíveis a esse tipo de cinema sem trabalhar muito em cima deles. Um experimento de personagens poderosos e condução distante.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Até o Fim (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)

Por João Pedro Faro

o lodo

Com grandes momentos pontuais, os limites do atual cinema de afeto brasileiro estão expostos em Até o Fim, último trabalho da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Por mais que estejam lidando com quatro atrizes interessantes, interpretando quatro irmãs que se reúnem na ocasião da morte do pai, a condução não parece estar à altura de quem filma.

Arlete Dias, Jenny Muller, Wal Diaz e Maíra Azevedo carregam todo o peso do longa. Nesse Longa Jornada Noite Adentro baiano, as performances tomam conta de todo o espaço cênico e ditam os rumos narrativos da obra. Existe um vigor muito genuíno em cada uma das personagens, uma credibilidade quase imediata pelo nível de expressividade do grupo. Ainda que expressivas, nem sempre o texto (que acaba sendo incessante, com pouquíssimos momentos de imagens sem intrusão verbal) acompanha o nível dessa vividez. Uma contradição esquisita: ao mesmo tempo, os diretores parecem confiar totalmente em quem estão retratando mas também não deixam que os conflitos entre as personagens sejam expostos de maneiras menos óbvias. Muito do que é verbalizado já estava exposto em olhares, planos/contraplanos e tensões mais sutis. Especialmente a resolução entre duas personagens específicas, desenvolvida a partir do conflito de um abuso, é tratado com uma verborragia excessiva que desvaloriza a potência do tema e das atuações.

Essa desvalorização por verborragia é uma constante no filme. Os autores claramente expõem uma herança do melodrama mais clássico, com diversas tragédias entrelaçadas e simultâneas, mas sem um tratamento fílmico que as justifique. A câmera na mesa de bar repete diversos planos entrecortados, que vão de detalhes das mãos que não apresentam gestos reveladores até planos conjuntos que não conversam com o tom dos diálogos. Se o melodrama é construído, essencialmente, pelo tempo dedicado a rostos, olhares e contatos, Até o Fim acaba apressando demais seus ritmos visuais. Não que os diretores devam qualquer coisa ao clássico, muito pelo contrário, mas suas reinvenções nem sempre alcançam o potencial do drama. O conceito da execução contemporânea não monta com a tradição de seu texto, e esse conflito distancia o efeito de ambos.

Até o Fim, filme-irmão de diversos outros trabalhos da recente filmografia nacional, sofre de um mesmo problema de confundir educação sentimental com didatismo emocional. Um exemplo está em uma das irmãs do longa, uma mulher transexual. Por mais que seja muito gratificante finalmente ver uma personagem trans que não é interpretada por uma mulher cis, a atriz recebe um material que descomplexifica seus potenciais conflitos. Nada do que acontece com a personagem vai além do que esperamos desse tipo de retrato, entrando em uma espiral de repetições e explicações que são mais do que óbvias na atual produção nacional. Típica situação que entende “afeto” como simples representação, e não como aprofundamento, compreensão e imagem. As outras irmãs também passam por momentos similares, onde o que é dito parece ser o único veículo de aproximação entre autor e personagem. Ao cinema de afeto, faltam imagens verdadeiramente afetuosas, que não se apoiem quase unicamente em seus pressupostos.

O desfecho se aproxima de uma catarse coletiva que é genuína e comovente, onde as quatro atrizes finalmente entram em comunhão em tela. O momento musical é gratificante, um respiro de possibilidades entre quatro mulheres que não receberam toda a atenção cinematográfica que mereciam em boa parte da projeção. Mas há uma forte esperança nos momentos finais, uma expectativa por futuros imagéticos e sonoros mais condizentes com a grandeza de seus temas e pessoas.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Sertânia (Geraldo Sarno, 2019)

Por João Pedro Faro

os escravos de jo rosemberg cariry

Geraldo Sarno está entre os nomes deixados de lado pelo cânone do cinema brasileiro. Dentre longas e curtas em uma carreira que se estende por quase cinco décadas, o cineasta baiano moldou uma filmografia de conceitos muito próprios, porém bem menos celebrada do que seus colegas de profissão que trabalharam no mesmo período. Sendo assim, Sertânia (2019) surge como um trabalho de purgação, um épico sertanejo de proporções que fazem justiça à sua carreira, elevada na ponta da carabina.

O faroeste sensorial parte das entranhas de seu protagonista Gavião (Vertin Moura), perpassando sua relação de amor e ódio com seu capitão jagunço Jesuíno (Julio Adrião) e encontrando redenção pelo juízo final de um homem que está tão perto de morrer quanto o período histórico em que existe. Existe um clima quase rastejante quando percorre o processo social e político do tempo, a fotografia melindrosa e sísmica, entrecortada por montagens velozes e industriais, sugere o nível de violência do materialismo exposto. O cangaço em decadência, intercalado não-linearmente por tempos áureos do banditismo, sempre puxa as imagens para a cova.

Carregado por um preto e branco quase psicodélico, a imagética de Sertânia busca a danação completa. O extenso scope nunca enquadra caminhos menos asfixiantes para seus personagens, quase sempre posicionando-se do plano médio ao primeiríssimo. A trajetória de Gavião rumo ao terror é potencializada por imagens banhadas por um sol ardente que possibilita as sombras e contornos de quem está em tela. Diferente de outros recentes experimentos de PB do cinema mundial, Sertânia nunca usa o recurso como preciosismo. Pelo contrário, o branco quase sempre estourado pela luz solar incidente e o preto carregado de sombras amargas reforçam a cada plano um mal estar generalizado. Ao mesmo tempo, remete a um registro documental custoso à filmografia de Sarno e também é totalmente próprio em seu interesse pela intensidade do tenebroso.

Por mais que pareça, em superfície, não dá para chamar o filme de faroeste revisionista, porque o gênero original já se encontra completamente revirado. Sertânia é um revisionismo das concepções formuladas historicamente pelo cinema brasileiro em relação a figura do cangaceiro. Tanto as visões populares de cangaço que datam desde o cinema dos anos 50 até o cinemanovismo de Mandacaru Vermelho (1961, Nelson Pereira dos Santos) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) estão compreendidas em Sertânia. O banditismo existencialista e seus questionamentos pelo vazio do mundo encontra grandes cenas de tiroteio e embates mais do que enraizados pelo imaginário popular. Ao mesmo tempo, Sarno busca um intimismo radical, de imagens sobrepostas e explorações oníricas do indivíduo jagunço, e sequências dignas de um cinema mais clássico. O que determina essa dialética é a montagem: tudo está fervilhante em uma sequência comum de intensidade.

O que atrasa certos momentos do filme é essa mesma intensidade que gera outros momentos brilhantes. A ambição do projeto não dá qualquer descanso que seja às suas ideias, fazendo com que praticamente toda cena aposte numa potência de sensações que nem sempre é alcançada, uma potência que deveria estar reservada aos momentos realmente cruciais. O encontro da trupe de Jesuíno com os imigrantes, a jornada mística de Gavião ao plano superior e toda a sequência final são alguns exemplos de uma execução brilhante que não atingem todo o impacto que deveriam pelo excesso de força entregue a momentos anteriores naturalmente menos poderosos. A decisão de Sarno por um filme que praticamente não descansa é ao mesmo tempo seu triunfo e sua limitação.

O que melhor funciona, dentro desse aspecto, é o mosaico que o longa vai formando entre o registro etnográfico e à descida profunda a narrativa ficcional. Um desses entrecortes memoráveis acontece a partir da repetição: depois de Sarno nos acostumar com o gesto de enquadrar famílias sertanejas reais como uma fotografia da época em planos breves e estáticos, ele quebra a própria expectativa ao colocar o personagem de Gavião escondido no meio de um desses planos. Um grupo enorme de pessoas rendidas por soldados da república formam um dos planos, primeiramente compreendido como mais um dos enquadramentos anteriores. Até que um soldado intervém na imagem, chamando um jovem Gavião perdido dentre o quadro, explorando diretamente a combinação de registros do cineasta.

Incansavelmente inventivo e ambicioso, Sertânia é o testamento de um autor para sua obra. Um cinema nordestino idealizado é revirado pelas tripas, expondo sua carne aos abutres até o último minuto de tela. Tipo de filme para ser descoberto. Talvez não hoje, mas quando o cinema nacional tiver real interesse pela sua própria história.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Sofá (Bruno Safadi, 2019)

Por João Pedro Faro

hds_and_visitor

Não é grande elogio dizer que determinada obra é “sobre o nosso momento”. Muito mais interessante do que isso é perceber um trabalho como desmembramento de imagens inevitáveis ao que está sendo produzido atualmente, e a partir delas gerar impressões e sensações que remodelam o que já era conhecido pelo espectador antes de entrar em contato com a produção em si. Sofá, de Bruno Safadi, é um filme de desmembramentos. Desde o ator global visto como potência de um cinema sem distribuição comercial até a reinvenção de imagens cotidianas do Rio pelo filtro de um cinema interessado em som e textura antes de poder interessar-se pela própria atualidade do contexto em que se insere.

Entender o popular e o erudito como frutos de um mesmo chão é o primeiro passo para que filmes como Sofá ainda possam existir. Joana Darc (Ingrid Guimarães), removida de sua casa pela prefeitura para obras olímpicas no Rio de Janeiro, e Pharaó (Chay Suede), o pirata caolho de língua presa, são personagens que carregam tanta a história de seus títulos quanto suas imagens de celebridade, e Safadi aproveita as duas possibilidades imediatas disso ao inseri-los em ambientações e enquadramentos que sempre valorizam o artesanato de cada plano para realçar quem está em tela. É pela complexificação do aparato fílmico, típico das referências mais do que escancaradas ao autor que se estendem desde experimentos seculares de película até o cinema de invenção brasileiro dos anos 70 e 80, que Sofá se torna bem mais do que um experimento banal de inserir rostos conhecidos pela mídia em um filme autoral. Tanto para Safadi quanto para os mentores que carrega na filmografia, esses dois universos separados por conceitos de consumo existem justamente para serem mutualmente devorados. Desde que seja imagem e som, qualquer que seja o material está apto para ser explorado nos mais livres contextos, sempre chocando-se entre o que já esperamos e o que ainda está para ser imaginado.

Sofá se concentra nesses choques. As cores, de rosa, verde e amarelo são intercaladas, mixadas e exploradas quase sempre que muda o plano. Geram a sensação de um microcosmo cheio de capacidades próprias de mutação, uma utopia visual que é contraposta por uma realidade rasteira que sempre ocupa o extracampo do filme e, vez ou outra, se infiltra nas imagens do longa apenas para recapacitar os desejos de desmembramento que Safadi busca no que é possível e no que talvez seja impossível.

Por mais que lide com pessimismos diretos e ocasionais obviedades inevitáveis do pós-apocalipse olímpico carioca, não existe cinismo em sua frontalidade. O que é carregado pelas duas performances principais é uma capacidade lúdica em aproveitar possibilidades oferecidas por um cinema de imediatismo criativo, de derivações muito claras que nunca estão escondidas e por isso são tão bem aproveitadas para serem reimaginadas e avacalhadas. Como Chay Suede já fez anteriormente em seu brilhante trabalho no A frente fria que a chuva traz (2016), acompanhado do lendário Neville de Almeida (um dos autores digeridos pelo universo de Sofá), a liberdade em poder escrotizar conceitos de atuação do cinema nacional, no caso do Frente Fria, o playboy, e no caso de Sofá, o bandido carioca, gera alguns momentos de genuíno brilhantismo da avacalhação filtrada pelo tratamento de imagem de um cinema de profundo valor imagético. Novamente, o plano popular e erudito coexistem em invenção.

Ainda é gratificante perceber o tal pessimismo do longa como um desprezo pela reconciliação. Joana Darc não consegue sua casa de volta, é traída pelo plano superior do poder assim que confia cegamente nele. Nizo Neto, que reinterpreta o prefeito do Rio como um nobre francês, brutaliza a obviedade de certas imagens e reafirma que não há espaço para simbolismos ou metáforas, apenas para a extrapolação de conceitos mais do que enraizados. Aí que está o elogio justo a Sofá: não é sobre “o nosso momento”, é sobre qualquer momento, sobre a percepção de que a paródia é cotidiana e não há tempo para qualquer metáfora que seja, nos resta a avacalhação. Melhor do que isso é ver como a maior traidora da narrativa, a filha do prefeito interpretada por Laura Neiva, tem como único figurino a camiseta do New York Herald Tribune usada pela personagem de Jean Seberg em Acossado (1960). Portanto, Godard existe tanto como referência quanto algoz, elevando o poder de escárnio que o filme busca a todo momento.

Júlio Bressane, que trabalha com Safadi há duas décadas e que está nos nomes que abrem o filme, já chamou o cinema de “música da luz”. Essa definição seria, em superfície, saber como ritmar o que está sendo iluminado e a partir disso possibilitar. Sofá leva esse conceito para se movimentar como um dos sambas de rádio que faziam os embalos do Rio no início do século passado: uma dialética entre o humor escapista, a marginalização do que o cerca e um pé firmado na noção de um mundo mais próximo da realidade. O que define o alcance de suas pretensões é a execução, e Sofá é satisfeito em fazer de seu processo de criação o meio transformador de todo um universo de derivações, sempre pronto para ser demolido e reconstruído.

FacebookTwitter

O Lodo (Helvécio Ratton, 2020)

Por João Pedro Faro

o lodo

Um despertador toca, fade in. Vemos um homem de meia-idade acordar, emburrado, seguindo para sua rotina desgastada no tão temido mundo corporativo. Esse tipo de premissa para representar qualquer personagem masculino “cansado desse mundo” já parece ter se tornado um pressuposto automático desde meados do século passado, inclusive com a mesma sucessão de gestos. A primeira meia hora de O Lodo, novo filme de Helvécio Ratton, já denuncia uma percepção mais do que costumeira de uma realidade em desencanto, e o resto do filme mantém a linha tênue entre a saturação dos conflitos típicos para um determinado tipo de personagem e a banalização do próprio mundo fantástico.

O evento que transforma o mundo do protagonista (Eduardo Moreira) é uma visita ao psicanalista Dr. Pink (Renato Parara), que revela-se um stalker do cliente, cercando sua vida de situações bizarras. Ratton tem uma rigidez formal curiosa ao longo de todo o filme: a tela reduzida conduz planos estáticos e longos, que constantemente entram em conflito com o andamento da própria narrativa. Enquanto absurdismo protokafkiano transformado em comédia de erros com elementos fantasiosos superficiais, nem sempre as decisões mais rígidas conversam com o tom de estranhamento. Lodo parte de tantos lugares comuns a esse tipo de história que parece não perceber seus pontos de maior interesse, sendo o peso de um mundo desanimador e não-naturalista desconversado com o que existe de próprio ao universo que cria. É como se sentisse a necessidade de uma atmosfera de cinema mais prestigiosa que afunda muita de suas pretensões em imagens e ideias desgastadas aos pequenos filmes de realismo fantástico que aparecem quase sempre em grades de festival.

Os signos desse tipo de cinema resistem em ir embora. As sequências de sonho com breves retoques de horror, a psicanálise e seus tipos como mote de uma desconstrução visual quase sempre óbvia demais, o espaço dos escritórios como opressão de um “mundo moderno” que existe como entidade e figuras religiosas como símbolos de uma culpa católica elementar são alguns dos elementos mais cansados e repetidos desse tipo de construção de mundo, e que ocupam tempo demais em tela no longa de Ratton gerando a extensa sensação de que este filme já foi feito muitas e muitas vezes. Os dois primeiro atos, muito definidos em uma obra que preza por um teor quase caquético de narrativa (não que isso seja o maior dos problemas), tomam muito tempo nesses mesmos cacoetes de um realismo fantástico que parece sempre muito mais interessado pelo tal do realismo do que pelas implicações do fantástico.

É no ato final que surgem ideias mais singulares ao longa, especialmente pela aparição da personagem interpretada por Inês Peixoto. Sua relação com o protagonista é genuinamente interessante, apoiada por uma performance vívida da atriz. Com ela, o filme finalmente parece abraçar um certo caos ainda que contido nos enquadramentos austeros. Infelizmente esse caos é breve, perpassado, pesando bem menos do que a construção feita na última hora de filme que gera pouco mais do que uma cena ou outra de curiosidades.

O Lodo é um experimento de poucos riscos e excentricidades pontuais, sendo confortável demais para gerar perturbação e contido demais para gerar interesse. Para um filme com esse título, se suja bem menos do que se limpa.

FacebookTwitter

23ª Mostra de Cinema de Tiradentes

hds_and_visitorTextos por João Pedro Faro

OS ESCRAVOS DE JÓ (Rosemberg Cariry)

O LODO (Helvécio Ratton)

SOFÁ (Bruno Safadi)

SERTÂNIA (Geraldo Sarno)

ATÉ O FIM (Ary Rosa e Glenda Nicácio)

SEQUIZÁGUA (Maurício Rezende)

 ONTEM HAVIA COISAS ESTRANHAS NO CÉU (Bruno Risas)

CADÊ EDSON? (Dácia Ibiapina)

MASCARADOS (Marcela e Henrique Borela)

CABEÇA DE NÊGO (Déo Cardoso)

CANTO DOS OSSOS (Jorge Polo, Petrus de Bairros)

FacebookTwitter

Os Escravos de Jó (Rosemberg Cariry, 2020)

Por João Pedro Faro

os escravos de jo rosemberg cariry

O último filme de Rosemberg Cariry exibe um fenômeno cinematográfico bem específico: um clima cansado e tardio de obras que parecem pertencer à retomada do cinema brasileiro da década de 90. A fixação por temas totalizadores, estética televisiva e a planificação de simbolismos são algumas características desse tipo de cinema que ainda persistem em cineastas como Cariry. O diferencial maior, que separa essas duas décadas, é o baixo orçamento atual e sua tentativa de adequação à agendas políticas em pauta.

Recontando o mito grego de Édipo por vias confusas, Os Escravos de Jó estrela um grupo de diferentes personagens na cidade de Ouro Preto em conflito com suas descendências. O estudante judeu órfão (Daniel Passi) que se apaixona por uma jovem árabe (Daniela Jesus) enquanto flerta com uma francesa (Romi Soares), aprendiz de um idoso sionista (Everaldo Pontes), mais parecem ter saído de um anedota de mau gosto do que da recontextualização de uma tragédia. Inicialmente, a falta de naturalismo das atuações e o nível desconcertante das caricaturas podem até parecer escolhas estilísticas arrojadas, mas o desenvolvimento do filme de Cariry e a seriedade falsamente poética que tenta empurrar em sua pretensão política risível não deixam dúvidas de que tudo se trata de um tenebroso equívoco em forma de cinema.

Diálogos com frases como “vamos mandar um e-mail para o Latuff, grande ativista pela causa palestina” ou então o ataque bizarro de um grupo de personagens contra um imigrante árabe berrando os mais inacreditáveis clichês colocam em cheque a mistura de má consciência política e péssima condução fílmica. Personagens que parecem caracterizados para uma esquete de comédia de baixo orçamento e colocados em conflitos políticos rasos não fazem jus tanto à tragédia da realidade quanto do próprio universo fantasioso que o filme parece querer situar-se. Estruturado em um esquema de debate cena-a-cena, nada que sai da boca dos protagonistas vai além do esperado de uma vergonhosa discussão corriqueira nas redes sociais. E tudo piora quando a narrativa decide tornar-se ainda mais destrutiva no ato final, percorrendo os caminhos da história de Édipo que surgem quase que aleatoriamente na narrativa.

As imagens criadas por Cariry não vão além de uma decupagem encontrada em qualquer programa educativo da TV aberta. Sempre que um personagem decide ser didático sobre algum dos diversos assuntos abordados sem grande desenvolvimento, a câmera aproveita um plano médio que coloca locutor e interlocutor juntos para a conversa. Além disso, quase todas as cenas estão devidamente iluminadas por luzes brancas que criam planos chapados, aumentando a atmosfera de televisão com pouco dinheiro que precisa otimizar imagens em prol de um funcionalismo fácil. Não existe qualquer valor de interesse quando se trata de cinema em Os Escravos de Jó. Os enquadramentos são pobres em preenchimento, criação e ideias, acreditando que podem ser apoiados pelo o que está sendo demagogicamente dito pelas figuras que filma. No caso, o que está sendo dito é tão raso e juvenil quanto o que está sendo filmado.

Os Escravos de Jó apresenta uma série de conceitos que fracassam antes mesmo de serem executados. Seu desejo por alguma consciência política sempre sugere ser uma âncora, mas só afunda ainda mais o filme quando expõe que seu conceito de “político” gira entorno de cenas como uma jovem palestina tirando fotos íntimas com seu celular, apenas para se tornar a falsa musa de um amante judeu. É desse tipo de ideia para pior, embalado em uma noção visual que já pareceria fora de lugar há duas décadas. Um caso de cinema excessivamente didático que parece deseducar qualquer um que assista.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

JEAN COCTEAU SE DIRIGE AOS ANOS 2020

Por Bárbara Bergamaschi

     Jean Cocteau previa que, nos anos 2000, os jovens artistas não estariam sentados e muito menos entre duas cadeiras*[1]. De fato esta parece ser a pré-condição de existência do artista no Brasil de 2019 (em breve, 2020). Hoje, mais do que nunca, vive-se sob a ponta dos pés em um constante estado de emergência, prontos para o devir-desvio da torrencial chuva de descalabros vertiginososo preferidas por um (des)governante digno de Ubu-Rei. Como pierrots tragicômicos, os artistas se equilibram de maneira peri-patética no ar, sendo lufados de um lado para o outro pelos furacões do mau-tempo. Os ataques convocam defesas, e assim vemos poetas – se me permitem uma imagem “ao estilo” da veia mitológica de Cocteau – com de escudos de Perseu, tentando lutar contra os monstro ctônicos contemporâneos.

            A retórica se baseia em um espelhamento, é preciso trabalhar dentro da lógica do “inimigo” que impera: justifica-se a existência da arte por números e cifras. É o que se vê na cartela de encerramento de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, por exemplo: ”Este filme produziu cerca de XYZ… quantidade de empregos, de renda, de lucro… Veja como a nossa arte gira a roda da economia!” Ora, não desmerecendo o mérito e o esforço do argumento, mas não haveria um perigo inerente à essa lógica? Filmes de baixo orçamento e que não mobilizam um grande número de profissionais e público pagante não tem valor para sociedade? Devem ser descartados? Não tem razão de existir?

            Tendo este panorama distópico em mente, me pergunto: como produzir algum tipo de pensamento sobre o valor da arte para além de um discurso da rentabilidade alinhado à lógica do capital? Em tempos de ataque à cultura e aos artistas, como pensar o trabalho de um poeta- para além das justificativas financeiras e industriais? Como produzir uma nova forma de pensar a  “economia das imagens”[2]?  É isso que investigarei nessa crítica do filme “Orfeu” (1950)  de Jean Cocteau, retomado recentemente no Brasil pela montagem dirigida por Felipe Hirsh da Opera-adaptação de Philip Glass, encenada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro no final do mês de Outubro desse ano.

Tudo que não invento é falso. – Manoel de Barros

            Jean Cocteau, o cineasta surrealista, representante mais notável da avant-garde francesa, dizia que sempre preferiu a mitologia à história porque: “a história é feita de verdades  que eventualmente se transforma em mentiras , enquanto a mitologia é composta de mentiras que eventualmente se tornam verdades”. O mito de Orfeu foi a narrativa privilegiada escolhida por Cocteau para servir de parábola sobre o papel do poeta na sociedade – e por poeta aqui entende-se todos aqueles que fabricam algo da ordem da aesthesis, obras que agenciam os cinco sentidos, em suma qualquer artista, aí incluso músicos, pintores e cineastas. Cocteau adapta o mito grego para o seu tempo na trilogia orféica composta por: Sangue de um Poeta (1932),  Orfeu (1950) e enfim no Testamento de Orfeu (1960).

            O mito original conta a tragédia do poeta e tocador de lira homônimo, que a todos emocionava com suas composições e cantos. Orfeu perde sua amada, Eurídice, e resolve descer ao Inferno para trazê-la de volta à vida. Após ultrapassar todos os obstáculos do submundo com sua cítara – sendo inclusive capaz de adormecer e amansar a temida besta-fera Cérbero, cão de três cabeças, guardião do portão do Inferno –  Perséfone, mulher de Hades e rainha do submundo, concede ao poeta à alma de Eurídice. Ela autoriza que retorne ao mundo dos vivos com sua esposa, desde que não olhe para trás durante o percurso. Orfeu não consegue manter sua promessa, pois no último segundo se vira para ver se alma de Eurídice o acompanha. Neste momento ela é rapidamente puxada de volta para o mundo dos mortos, sumindo em um piscar de olhos. Resulta em um fim melancólico a Orfeu que, desolado, termina despedaçado no rio Hebro pelas Bacantes (também conhecidas como Ménades), mulheres do séquito de Dionísio, que não se conformam com a indiferença que o poeta reserva à sua lascividade e erotismo.

            Na nova visão cinematográfica do mestre francês, o famoso poeta “Orfeu” (Jean Marais) encontra-se em uma fase madura, já reconhecido por seus pares e, por isso, vive enfastiado com sua mulher e vida burguesa. Em meio a uma briga de bar, apaixona-se de forma obsedante por uma personagem misteriosa, a rica Princesa (Maria Casares), patrona dos jovens poetas da cidade, que descobrimos se tratar, com efeito, da própria Morte. A paixão é reciproca, e a Princesa orquestra o sequestro do poeta para a dimensão dos mortos, arquitetando também a morte prematura de Eurídice (Marie Déa), esposa de Orfeu, por quem nutre um terrível ciúmes. Dividido entre o amor terreno e o etéreo, Orfeu se aventura nas profundezas do inferno, a princípio com a motivação de salvar sua esposa, porém, vê-se que sua real intenção é explorar o próprio inferno interior e por fim unir-se com o seu verdadeiro amor: a morte, que oferece-o vida eterna – desejo, em última instância, de todo poeta.

            Uma primeira indagação que o filme de Cocteau nos propõe é pensar a da figura do poeta. Afinal o que é um poeta? Para que existe? Qual sua função na sociedade?  Na Grécia antiga acreditava-se que os poetas eram aqueles que eram visitados (geralmente em seu sono) por uma das nove musas[3]. Nesse encontro mítico era o momento no qual ocorria o que hoje nós nomearíamos como a “inspiração”. Assim, o produto artístico chegavam aos homens como resultado da união do divino e do profano. As obras de arte eram, dessa forma, consideradas como algo da ordem do sagrado. Os poetas na Grécia, eram seres escolhidos pelos deuses, ponto de contato entre dois mundos, eram, portanto, extremamente respeitados. Na narrativa de Cocteau, esta função “relacional” do poeta é bastante evidente na misé-en-scène em que Jean Marais se torna obcecado pelo rádio que sintoniza a frequência do submundo onde mora Maria Casares. O rádio seria uma analogia para essa espécie de labor artístico. Como uma espécie de “antena” de sua geração o poeta estaria a todo tempo “a serviço”, conversando com os poetas do passado, desvendando  e atualizando as mensagens cifradas nos tempos presente em uma nova forma ou linguagem. Como uma espécie de fio que conecta as pontas do tempo, o mundo mítico ao mundo secular, em suma, o artista seria uma ponte entre a vida e a morte.

“O poeta é de certa forma um trabalhador, de um modo é mais profundo que ele mesmo e que mal conhece as forças que o habitam. Eu diria até: um esquizofrênico que habita a todos nós, e de que quase todos os adultos têm vergonha, de quem só os heróis, as crianças e os poetas não se constrangem. Os poetas são os intermediários entre esses  “esquizofrênicos” e o exterior, eles tentam tornar isso viável. (…) Não sou responsável por meus personagens e por meus poemas, sou apenas um intermediário, como um médium, uma mão de obra. Todos os poetas são pontes e trabalhadores braçais dessas forças misteriosas que os habitam” – Jean Cocteau em S’adresse à l’an 2000 (1962)

            Os poetas eram também conhecidos na Grécia republicana como aedos, aqueles que declamavam as tragédias e as comédias para um grande público, de forma decorada. O poeta eleito como vencedor pelos espectadores era aquele que conseguia imprimir melhor emoção às histórias que todos já sabiam de cor, ou seja, o valor de um poeta não residia na sua originalidade (lembremos que o “gênio criativo” é um mito burguês moderno) mas na sua capacidade de interpretação. Artista era portanto não apenas um mero “imitador”, mas sim um tradutor, quem melhor permitia que as expressões e paixões dos deuses chegassem aos homem de uma maneira inteligível.

            A expressão “de “Cor”, no original do latim corresponde a palavra coração pois antigamente se pensava que o coração era o órgão da memória. Os poetas eram portanto aqueles que tinham as narrativas – ou, em grego, os mythos – guardados no coração. Eram os guardiões da história de um povo. Aristóteles inclusive, em sua Poética, afirma que o poeta seria mais importante que o historiador, pois enquanto o historiador apenas registra e produz documentos, o poeta organiza o tecido da memória, em um linha causal linear (com começo, meio e fim), dando enfim sentido à vida coletiva experimentada por todos os cidadãos. Ao contrário de Platão que desconfiava e via um perigo no potencial farsesco do poeta, para Aristóteles, a capacidade fabuladora do artista permitiria a criação de um princípio de identidade e coletividade, transformando-o em um ator social de suma importância para a polis grega.

HOLY MOTORS

            Há muitas interpretações possíveis para o fim trágico do mito de Orfeu. Em uma análise primeva poderíamos dizer que a moral da história é que não deve-se olhar para o passado afim de não perder o que se conquistou no presente. Uma outra leitura alternativa seria a de não se questionar as determinações divinas e do destino, questionar a autoridade e duvidar das ordem dos deuses é algo que não ocorre sem sofrimento e punições. Uma das interpretações que acho mais interessantes é a que está presente em O Banquete de Platão, em que Fedro discursa sobre amor usando como caso exemplar o de Orfeu:

“(…) A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e não ousava por seu amor morrer, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades. Foi realmente por isso que lhe fizeram justiça, e determinaram que sua morte ocorresse pelas mulheres; “.

            Orfeu, nesta interpretação, é punido pelos deuses por desconfiar do amor terreno dos homens. Assim, ao se virar para trás, expõe para si mesmo e para os outros que no âmago do seu ser não estava verdadeiramente compromissado com sua amada, não tinha fé no seu amor. Cocteau também expõem este lado perverso de todo artista, que no afã de adentrar a imortalidade, se sobrepõe aos outros “reles mortais’. O desejo de se preservar na História com H maiúsculo faz com que fique cego para o seu semelhante, a assim, se torna autocentrado, extremamente cruel e egoísta.  No filme, Orfeu não dá ouvidos ao ‘chofer’ da Morte – Heurtebise (François Périer) quando ele lhe revela que sua ‘Eurídice’ (Marie Déa) está prestes a morrer. Orfeu também não consegue perceber que a sua passagem para imortalidade está garantida e “ bem debaixo do seu nariz” – quando ele ignora todos os sinais de que Eurídice está grávida.

HOLY MOTORS

            O egocentrismo fatal do artista também se metaforiza na presença do espelho em toda a narrativa. Diz a Heurterbise: “vou te dar o segredo dos segredos. Espelhos são as portas através das quais a Morte vem e vai. Olhe-se no espelho por toda vida… e verá a morte trabalhando, como abelhas numa colmeia de vidro…”. É através do reflexo, do distanciamento de si e da conversão do artista enquanto imagem – ou seja, da visada de si enquanto figura pública, enquanto objeto – que o artista se aproxima da morte. Faca de dois gumes,o Ego é causa e fim do artista, razão de sua glória e decadência. Nessa hora vale lembrarmos do mito de Narciso, que comovido por sua própria beleza no reflexo do lago se apaixona pela própria imagem, e se esquece do real a ponto de se afogar. Na encenação de Felipe Hirsh, a tópica do espelho como porta acesso para o mundo invertido-  a la Alice – é o que orienta toda a movimentação dos atores em cena, pautada pelas saídas e entradas construídas por meio de um enorme paredão de espelho cenográfico fixo durante toda a peça.

            Cocteau, fornece, à sua maneira, uma releitura do mito, fornecendo uma nova chance de redenção de Orfeu, punido pelos deuses pela sua falta de amor ao próximo e pelo seu excesso de ambição. De certa forma, Cocteau busca restaurar a moral do poeta diante da sociedade. Como no filme, Elsa La Rose (1966)[4]  – documentário sobre a musa do poeta surrealista Louis Aragon – Agnès Varda busca demonstrar que a verdadeira imortalidade está nos pequenos gestos, banais e mínimos do amor “comum” e mundano. Este desejo transgressor de re-encantamento do mundo cotidiano seria o cerne do movimento surrealista que desejava utopicamente reestabelecer no coração da vida humana, momentos “mágicos” apagados pela civilização ocidental burguesa. Aos poetas nos cabe a revelação do divino-maravilhoso imperceptível mas ainda assim diante de nós.

[1] Me refiro a expressão idiomática: “avoir le cul entre deux chaises” que o diretor se refere no filme “Jean Cocteau s’adresse à l’an 2000”de 1962. Para ver o filme na integra acesse:  https://www.youtube.com/watch?v=–LR0nd67t8

[2] Segundo Marie-Jose Mondzain a “Economia” viria do conceito Oikonomia que significa justamente um pensamento e não uma prática. Economia se configura como um arranjo ou modo de uma sociedade se relacionar com “o que está em jogo”, uma palavra para se referir a um dispositivo ou um regime de visualidade. A “Economia das Imagens” portanto não reflete o que ela “mostra” pela semelhança mas sim pelo o que ela traz a tona, torna visível (e inversamente torna invisível), ou seja os discursos que ela engendra. Para mais ver o livro “Imagem, Icone e Economia” (2003) da autora.

[3] Sendo elas: Calíope, musa da Eloquência;  Clio ou Kleio musa da História; Erato, musa da Poesia Lírica; Euterpe, musa da Música; Melpomene, musa daTragédia; Polônia, musa da Música Cerimonial (sacra); Tália, musa da Comédia, Terpsícore, musa da           Dança; e por fim, Urânia,musa Astronomia e Astrologia.

[4] Filme disponível online: https://vimeo.com/97016643

FacebookTwitter

O CINEMA E AS FORMAS DO TRABALHO

Lumiere_saida de operarios

EDITORIAL: O CINEMA E AS FORMAS DO TRABALHO
Camila Vieira

ESTÁTICA E CINÉTICA, SISTEMA E INDIVÍDUO: JEANNE DIELMAN
João Lucas Pedrosa

OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA
Bernardo Moraes Chacur

NO CORAÇÃO DO MUNDO: CONTAGEM É O MOTHERFUCKING TEXAS!
Kênia Freitas

O LAMENTO NOSSO DE CADA DIA: TONSLER PARK
Pedro Tavares

IMAGEM-TRABALHO
Diogo Serafim

ATÉ EXPLODIREM OS PULMÕES
Felipe Leal

A ÉTICA DO TRABALHO INFINITO EM HOLY MOTORS
Gabriel Papaléo

DUAS CENAS DE PESCA: PAULO ROCHA E ROBERTO ROSSELLINI
João Pedro Faro

JUSTINE TRIET, UMA CINEASTA NO SÉCULO XXI
Lucas Saturnino

“A NEGRA DE…” E A ESCRAVIDÃO SILENCIOSA
Chico Torres

JEAN COCTEAU SE DIRIGE AOS ANOS 2020
Bárbara Bergamaschi

*

FacebookTwitter

Até explodirem os pulmões

Por Felipe Leal

1

No labor da conversa infestada de uma práxis do discordante intra-, entre– e além– dos planos de uma comunidade de camponeses sobrevivendo em isolamento da própria história e em regime de sub/autoexistência no pós-guerra italiano e no labor dessas técnicas de vida, de gênero e de relação com a natureza rolando dentro da palavra como infinito dissenso e enquanto razão da própria atividade política comunal. Unidade elementar tanto quanto o grão do alimento, Operários, Camponeses (Operai, Contadini, 2001) foi, para os Straub, a aparição – em hipótese alguma ler: “a origem” – da fala como lugar de desnudamento limítrofe do exercício de mediunidade entre a terra e o valor empregado à existência.

Os cadernos dos atores com o texto original de “Mulheres de Messina”, romance de Elio Vittorini, explicitavam duplamente o caráter de interferência no texto (e do texto) nas atualizações das querelas históricas: rabiscos, setas, círculos, cortes de cor nas palavras acusando mais um trabalho de leitura do que de re-leitura: as frases se interrompiam subitamente, a última sílaba não só parecendo arfar para esperar, como a seguinte colocando os sujeitos do enunciado separadamente de fato; o quadro deslizava como se passasse a vez à réplica e assim “o dissesse”; um olhar desafiando o significado extensivo do horizonte ao mirar para baixo e denunciar a presença de uma página que não sabemos com segurança se está sendo lida. Pois que não nos recatemos em arriscar, essa atenção a um certo paladar do gesto de fala, não sendo apenas uma proliferação das formas que o cinema tem inventado para se elevar ao labor interminável que é reincorporar aquilo do texto que salta o seu (e qualquer) tempo, é também a preservação dessa torção que a palavra pode suscitar quando gira em torno de si mesma, atando poética e política, mas sobretudo, como disse Roland Barthes já ecoando Brecht, o imprescindível matrimônio entre prazer e crítica que, aqui, é passar a fala. E pensando o texto crítico – este, que interpela – como o risco mínimo, ainda que mínimo, de um prazer pela letra, como o invocam os atores, segue adiante um palpite que, em diversos sentidos, tenta prosseguir “a” obra.

2

Há sentenças – frases, aqui, mas ainda e decerto enunciados que se gravam como determinações laminadas – que, se bem operadas dentro de um filme, se estalando num timing tão preciso que é capaz de fazê-lo tremer em seu plano quase nos termos propriamente ideológicos da relação de quem vê e participa, há sentenças que, quando proferidas, perfuram dois tempos de existência e funcionam como máximas mitopoéticas: bifurcações automáticas no sentido e que não podem rodar na mente senão como perguntas sem fim. Em Humilhados (Umiliati, 2003), adaptação outra do mesmo romance, mas que centraliza o dissenso entre estado italiano e povo na argumentação assimétrica deste com alguns oficiais “da cidade” de competência institucional, ainda que esse fraseado eventualmente culmine em algo como uma pergunta cuja obviedade interrogativa antes infere sobre a autoinferência mesma da estupidez retrógrada dos camponeses do que abre espaço para uma resposta digna, sua descarga diante dos jogos entre trabalho, valor econômico, progresso e participação nacional é semelhante à subterrânea moral que funciona junto ao fabular quando este eclode.

Quando um dos carabinieri (braço das forças armadas italianas e ramificação das políticas de segurança com aparente e demasiada inclinação judicial, “corretiva”) se encontra em vias de ilustrar o retrocesso, o abismo do valor de peso de trabalho empregado por aquela comuna em relação à quantificação da produção e da subsistência a que assistem em retorno, não apenas estão violentamente introduzidas diante da vida geológica, ancestral e persistentemente reclamada, daqueles trabalhadores as noções de lucro capitalista e de labor como dispêndio máximo e exaustivo de energia, mas também a situação que lhe pede atravessamento para dar significado àquela exclusão é de um grau em que é possível, ainda que trágico, que se veja a humilhação enquanto técnica do apagamento de um povo: quando compara a situação econômico-ética dos camponeses à hipotética preferência de alguém por andar, andar logo quando já existe o trem!, ele não põe o modelo de preferências sob o parâmetro da redução das distâncias de x a y, mas diz, repuxando um estranhamento já integrante ao jogo de linguagem, que aquilo, que a permanência daquela retrogradação, seria “como correr a pé atrás de um trem”. Ante a casca de uma conclusão, sustém-se uma (das) pergunta(s): correr atrás do trem é a imagem do trabalho fútil, tornado inválido quanto mais rápido andar o veículo (que o realiza por mim)?, é a ardilosa arquitetura caricatural do camponês suando, em frangalhos, para alcançar o progresso (que ele supostamente recusa)?, ou seria ainda a mais trêmula prancha de piratas em que se subirá somente para ser empurrado à morte, uma vez que se feriu a moral da embarcação, uma vez que ou se está dentro ou se está fora?

Umiliati-20033-e1553868127464

E uma quarta, que bem recolhe a faísca de todas: ora, em que momento aquele que argumenta simultaneamente impõe – não se diz ‘partilha’, não se diz ‘devolve’ – o escopo a partir do qual é possível, não tão-somente argumentar, como dominar as bordas até as quais a linguagem terá direito ao funcionamento de reinvindicação? Porque é impossível responder a essa pergunta que encerra suas imagens e seus futuros de imagem. E poucas vezes um plano de coletividade terá parecido tão irresponsivo, poucas vezes um quadro aberto contemplará doze corpos como se não fossem nem atores nem aqueles a-pátridas de Vittorini, mas a relação entre sujeitos que beira o silêncio – e que nele cairia, não persistisse a história da Terra ululando a suavidade comunal de sua feitura conjunta à nossa. Porque antes que essa polícia “em nome do que é público” surja, o traço que distingue Operários, Camponeses deste outro (que pouco significaria, se lhe funcionasse só como “continuação”), o traço de uma dobradura da palavra que quer dissenso e conversa de forma ainda mais pujante, espaçada, vibrando em seu próprio intervalo, distingue também para reafirmar a magnitude da política de ameaça à extinção que virá logo em seguida.

O estrangeiro que debaterá antes dos três carabinieri, ele que esteve ali na vila, previamente, em nome de si mesmo, e que agora retorna para que sua ponte de sugestões sirva para provocar e instalar uma crença sub-repticiamente, num dado momento em que sucessivos cortes amalgamam cada elemento do que foi construído pelas mãos dos camponeses na ordem de reclamações seriais em defesa do que será apropriado pelo Estado, finge espantar-se e fala daquela operação – fraturada pela cesura da montagem à maneira de disparos dos lugares de fala – como se eles falassem todo ao mesmo tempo, restando que ninguém pode, afinal, ter seu dizer, e que estão todos fadados à permanência no mesmo lugar. O truque, que almejava interverter a proposição mesma de toda conversa, de uma conversa qualquer, e tentava fazê-los parecer menos comunitários ali mesmo onde a fala seguia a ordem plural de sua argila, é respondido à altura de um acontecimento que devolve à conversa-fiada o tremor daquilo que carrega seu dúplice. Acaso tem proprietários, o deserto que os nômades atravessam?, ao que se segue a interrupção sentencial e ambígua de um senhor sentado, erguendo uma das mãos em palma em direção ao estrangeiro. Que ele agora diga, que ali se cale, que aquilo seja um endereçamento ou um rasgo inevitável entre aqueles, pouco imposta: é a interpelação dizendo que interpela – labuta de quem presencia: ver é convocar(-se) a participar.

Se aos Straub era célebre o fator gestual da contenda entre povos e ideias, aqui ele recai com o invisível peso dos tempos conjuntos e dos tempos intempestivos, tempos sem métricas, tão sociais quanto míticos. Responde sem responder tanto quanto se encarrega de comportar uma ética, uma crença não mais como a solidez encurvada dos saberes restritos àqueles que os detém, mas como a suspensão e o inesgotável que é estar sempre apto a responder à volubilidade dos acontecimentos junto aos outros. É precisamente isto que os soldados não conseguem ver e que assoberba seu leque de “fatos” paradigmáticos que invariavelmente findam com o grande exemplo dos norteamericanos, isto que cimenta a lógica natimorta de suas proporções e faz de “dez operários produzindo em um mês aquilo que ‘eles’ produzem em um ano” a mais mesquinha afronta ao progresso: serão incontornavelmente incapazes de ver que suas condutas são prescritas (limitadas) pelo Estado, que serão pré-escritas (lhes antecederão tanto quanto delas não participam) por ele sem cessar, e que aquilo que lhes convém chamar de justiça, essa ideia sob a qual trajam espingardas e lenços vermelhos como cadetes, estes, sim, humilhados, não contabiliza, sobretudo, aquilo que eles não pararam de colocar como termo do meio: a terra. É-se justo com a terra quando ela é cercada, apropriada, estuprada, justo a terra, a única capaz de suster todos? Sua posse viaja, imantada, até a titulação fixa de “propriedade” somente porque aquele que a utiliza produz mais dela, e dela fabrica a imagem de um jardim? Produz para quem? Sua lógica é o logro da quantidade sobre um outro tipo de propriedade, aquela que distingue as coisas pelas particularidades que lhe dão, por exemplo, motricidade, produção ou função? Passemos ao que não tem tempo.

Conta o mito que Astreia, filha de Zeus e Têmis e marca-passo transicional da Idade de Ouro para as eras de declínio entre os humanos, horrorizada com um evento de roubo promovido por um mercador que visava extrair lucro através do engodo com uma balança, pede ao pai para fincar morada nos céus como estrela, desgostosa com a perversão à sabedoria e aos hábitos coletivos que pregava. O que a maior parte das narrativas, no entanto, relega ao olvido, é o último gesto performativo da chamada “virgem das estrelas”, pois que antes de ascender aos céus Astreia se reúne no cume de uma montanha para repassar toda sua sapiência a quem pudesse interessar-se numa vida simplificada, arranjando uma espécie de séquito de indivíduos dedicados àquilo que há de justo, bem como às atividades de caça e cultivo que garantiam a comunhão minimamente estável com o mundo. Que relação pode haver entre o simples e o justo e que faz a balança das entidades estar costumeiramente acompanhada de uma espada? É que o simples, longe do estigma pejorativo da coisa sem adorno ou limpa do intragável, é menos o oposto do complexo do que o trabalho de encontro com as propriedades mais adequadas, descobertas também por labuta, para tratar do bruto. E é – e será – preciso entrar numa contenda de valores e técnicas com essa ‘coisa bruta’, bruta na medida de sua singularidade mais ou menos velada, de sua particular propriedade, para com ela entoar um justo possível.

Umiliati-20034-e1553868138928

Se numa conta amalucada de transposições fosse possível dizer: é impossível à árvore participar do verbo ‘pedir’, uma vez que tudo que ela extrai inevitavelmente se desdobrará em fruto, em interação contínua com o ‘onde’ de onde ela puxa vida, tão despropositado é o gesto que encerra o filme. Assim como a árvore, ele É. Ele não encerra, não entrega as mãos à humilhação, não abre nem tampouco questiona. É um movimento voltado para si mesmo e cujo significado fê-lo bem não se traduzir, mas do qual não se pode dizer que não faz nada. A camponesa o pronuncia e cai no aparente repouso estatuário de um enigma, o horizonte recortado do quadro recaindo em sequência para mostrar dela o punho fechado e os pés sobre a pedra que inicia devidamente os contornos de sua habitação.

Durante todo o filme, os pássaros, o vento, as árvores e as águas perpetuarão seus cantos, seus ruídos, na intraduzível língua que cinde sujeito e natureza. Ou melhor: repartiria, não fossem gestos como aquele, palavras sacras e secretas que duram o suficiente para sublinhar a fixidez de uma impermanência: entre nós e entre-nós, há relações que não unificam e que não buscam a semelhança. Há aquelas que afastam e reiteram a comunidade daquilo que é fragmentado. Ali, uma mulher. Acolá, uma árvore. Uma fome, um fruto entre eles, mas ainda e sempre: uma mulher, uma árvore, um fruto e uma fome. Um, em seguida, outro. Nem tudo o que é sólido desmancha no ar. Algumas coisas explodirão, como pragueja o presságio do militar sobre os pulmões daqueles trabalhadores exaustos e que, de acordo “com ele”, não sabem sonhar – completamente desavisado de que a distância entre a ricota e aquelas mãos, entre o trigo e a contagem de bocas e estações, entre a energia elétrica produzida e os olhos turvos de labor e alegria, subsiste não uma proximidade que é preciso explorar, mas a mais indubitável das distâncias que eles aprenderam a respeitar e estipular empunhando a justiça com a terra: que cultive e deixe viver aquele cuja sabedoria seja, e não sirva a, ainda que por dez mil anos, o comum. Disparatado, inconcebível, o pensamento que formula a um povo ser necessário produzir mais do que necessita? Inconcebível, decerto, mas vivemos sob seu regime, e a terra também descobre suas maneiras de gritar.

FacebookTwitter