Arquivo

Até o Fim (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)

Por João Pedro Faro

o lodo

Com grandes momentos pontuais, os limites do atual cinema de afeto brasileiro estão expostos em Até o Fim, último trabalho da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Por mais que estejam lidando com quatro atrizes interessantes, interpretando quatro irmãs que se reúnem na ocasião da morte do pai, a condução não parece estar à altura de quem filma.

Arlete Dias, Jenny Muller, Wal Diaz e Maíra Azevedo carregam todo o peso do longa. Nesse Longa Jornada Noite Adentro baiano, as performances tomam conta de todo o espaço cênico e ditam os rumos narrativos da obra. Existe um vigor muito genuíno em cada uma das personagens, uma credibilidade quase imediata pelo nível de expressividade do grupo. Ainda que expressivas, nem sempre o texto (que acaba sendo incessante, com pouquíssimos momentos de imagens sem intrusão verbal) acompanha o nível dessa vividez. Uma contradição esquisita: ao mesmo tempo, os diretores parecem confiar totalmente em quem estão retratando mas também não deixam que os conflitos entre as personagens sejam expostos de maneiras menos óbvias. Muito do que é verbalizado já estava exposto em olhares, planos/contraplanos e tensões mais sutis. Especialmente a resolução entre duas personagens específicas, desenvolvida a partir do conflito de um abuso, é tratado com uma verborragia excessiva que desvaloriza a potência do tema e das atuações.

Essa desvalorização por verborragia é uma constante no filme. Os autores claramente expõem uma herança do melodrama mais clássico, com diversas tragédias entrelaçadas e simultâneas, mas sem um tratamento fílmico que as justifique. A câmera na mesa de bar repete diversos planos entrecortados, que vão de detalhes das mãos que não apresentam gestos reveladores até planos conjuntos que não conversam com o tom dos diálogos. Se o melodrama é construído, essencialmente, pelo tempo dedicado a rostos, olhares e contatos, Até o Fim acaba apressando demais seus ritmos visuais. Não que os diretores devam qualquer coisa ao clássico, muito pelo contrário, mas suas reinvenções nem sempre alcançam o potencial do drama. O conceito da execução contemporânea não monta com a tradição de seu texto, e esse conflito distancia o efeito de ambos.

Até o Fim, filme-irmão de diversos outros trabalhos da recente filmografia nacional, sofre de um mesmo problema de confundir educação sentimental com didatismo emocional. Um exemplo está em uma das irmãs do longa, uma mulher transexual. Por mais que seja muito gratificante finalmente ver uma personagem trans que não é interpretada por uma mulher cis, a atriz recebe um material que descomplexifica seus potenciais conflitos. Nada do que acontece com a personagem vai além do que esperamos desse tipo de retrato, entrando em uma espiral de repetições e explicações que são mais do que óbvias na atual produção nacional. Típica situação que entende “afeto” como simples representação, e não como aprofundamento, compreensão e imagem. As outras irmãs também passam por momentos similares, onde o que é dito parece ser o único veículo de aproximação entre autor e personagem. Ao cinema de afeto, faltam imagens verdadeiramente afetuosas, que não se apoiem quase unicamente em seus pressupostos.

O desfecho se aproxima de uma catarse coletiva que é genuína e comovente, onde as quatro atrizes finalmente entram em comunhão em tela. O momento musical é gratificante, um respiro de possibilidades entre quatro mulheres que não receberam toda a atenção cinematográfica que mereciam em boa parte da projeção. Mas há uma forte esperança nos momentos finais, uma expectativa por futuros imagéticos e sonoros mais condizentes com a grandeza de seus temas e pessoas.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Sertânia (Geraldo Sarno, 2019)

Por João Pedro Faro

os escravos de jo rosemberg cariry

Geraldo Sarno está entre os nomes deixados de lado pelo cânone do cinema brasileiro. Dentre longas e curtas em uma carreira que se estende por quase cinco décadas, o cineasta baiano moldou uma filmografia de conceitos muito próprios, porém bem menos celebrada do que seus colegas de profissão que trabalharam no mesmo período. Sendo assim, Sertânia (2019) surge como um trabalho de purgação, um épico sertanejo de proporções que fazem justiça à sua carreira, elevada na ponta da carabina.

O faroeste sensorial parte das entranhas de seu protagonista Gavião (Vertin Moura), perpassando sua relação de amor e ódio com seu capitão jagunço Jesuíno (Julio Adrião) e encontrando redenção pelo juízo final de um homem que está tão perto de morrer quanto o período histórico em que existe. Existe um clima quase rastejante quando percorre o processo social e político do tempo, a fotografia melindrosa e sísmica, entrecortada por montagens velozes e industriais, sugere o nível de violência do materialismo exposto. O cangaço em decadência, intercalado não-linearmente por tempos áureos do banditismo, sempre puxa as imagens para a cova.

Carregado por um preto e branco quase psicodélico, a imagética de Sertânia busca a danação completa. O extenso scope nunca enquadra caminhos menos asfixiantes para seus personagens, quase sempre posicionando-se do plano médio ao primeiríssimo. A trajetória de Gavião rumo ao terror é potencializada por imagens banhadas por um sol ardente que possibilita as sombras e contornos de quem está em tela. Diferente de outros recentes experimentos de PB do cinema mundial, Sertânia nunca usa o recurso como preciosismo. Pelo contrário, o branco quase sempre estourado pela luz solar incidente e o preto carregado de sombras amargas reforçam a cada plano um mal estar generalizado. Ao mesmo tempo, remete a um registro documental custoso à filmografia de Sarno e também é totalmente próprio em seu interesse pela intensidade do tenebroso.

Por mais que pareça, em superfície, não dá para chamar o filme de faroeste revisionista, porque o gênero original já se encontra completamente revirado. Sertânia é um revisionismo das concepções formuladas historicamente pelo cinema brasileiro em relação a figura do cangaceiro. Tanto as visões populares de cangaço que datam desde o cinema dos anos 50 até o cinemanovismo de Mandacaru Vermelho (1961, Nelson Pereira dos Santos) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) estão compreendidas em Sertânia. O banditismo existencialista e seus questionamentos pelo vazio do mundo encontra grandes cenas de tiroteio e embates mais do que enraizados pelo imaginário popular. Ao mesmo tempo, Sarno busca um intimismo radical, de imagens sobrepostas e explorações oníricas do indivíduo jagunço, e sequências dignas de um cinema mais clássico. O que determina essa dialética é a montagem: tudo está fervilhante em uma sequência comum de intensidade.

O que atrasa certos momentos do filme é essa mesma intensidade que gera outros momentos brilhantes. A ambição do projeto não dá qualquer descanso que seja às suas ideias, fazendo com que praticamente toda cena aposte numa potência de sensações que nem sempre é alcançada, uma potência que deveria estar reservada aos momentos realmente cruciais. O encontro da trupe de Jesuíno com os imigrantes, a jornada mística de Gavião ao plano superior e toda a sequência final são alguns exemplos de uma execução brilhante que não atingem todo o impacto que deveriam pelo excesso de força entregue a momentos anteriores naturalmente menos poderosos. A decisão de Sarno por um filme que praticamente não descansa é ao mesmo tempo seu triunfo e sua limitação.

O que melhor funciona, dentro desse aspecto, é o mosaico que o longa vai formando entre o registro etnográfico e à descida profunda a narrativa ficcional. Um desses entrecortes memoráveis acontece a partir da repetição: depois de Sarno nos acostumar com o gesto de enquadrar famílias sertanejas reais como uma fotografia da época em planos breves e estáticos, ele quebra a própria expectativa ao colocar o personagem de Gavião escondido no meio de um desses planos. Um grupo enorme de pessoas rendidas por soldados da república formam um dos planos, primeiramente compreendido como mais um dos enquadramentos anteriores. Até que um soldado intervém na imagem, chamando um jovem Gavião perdido dentre o quadro, explorando diretamente a combinação de registros do cineasta.

Incansavelmente inventivo e ambicioso, Sertânia é o testamento de um autor para sua obra. Um cinema nordestino idealizado é revirado pelas tripas, expondo sua carne aos abutres até o último minuto de tela. Tipo de filme para ser descoberto. Talvez não hoje, mas quando o cinema nacional tiver real interesse pela sua própria história.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

Sofá (Bruno Safadi, 2019)

Por João Pedro Faro

hds_and_visitor

Não é grande elogio dizer que determinada obra é “sobre o nosso momento”. Muito mais interessante do que isso é perceber um trabalho como desmembramento de imagens inevitáveis ao que está sendo produzido atualmente, e a partir delas gerar impressões e sensações que remodelam o que já era conhecido pelo espectador antes de entrar em contato com a produção em si. Sofá, de Bruno Safadi, é um filme de desmembramentos. Desde o ator global visto como potência de um cinema sem distribuição comercial até a reinvenção de imagens cotidianas do Rio pelo filtro de um cinema interessado em som e textura antes de poder interessar-se pela própria atualidade do contexto em que se insere.

Entender o popular e o erudito como frutos de um mesmo chão é o primeiro passo para que filmes como Sofá ainda possam existir. Joana Darc (Ingrid Guimarães), removida de sua casa pela prefeitura para obras olímpicas no Rio de Janeiro, e Pharaó (Chay Suede), o pirata caolho de língua presa, são personagens que carregam tanta a história de seus títulos quanto suas imagens de celebridade, e Safadi aproveita as duas possibilidades imediatas disso ao inseri-los em ambientações e enquadramentos que sempre valorizam o artesanato de cada plano para realçar quem está em tela. É pela complexificação do aparato fílmico, típico das referências mais do que escancaradas ao autor que se estendem desde experimentos seculares de película até o cinema de invenção brasileiro dos anos 70 e 80, que Sofá se torna bem mais do que um experimento banal de inserir rostos conhecidos pela mídia em um filme autoral. Tanto para Safadi quanto para os mentores que carrega na filmografia, esses dois universos separados por conceitos de consumo existem justamente para serem mutualmente devorados. Desde que seja imagem e som, qualquer que seja o material está apto para ser explorado nos mais livres contextos, sempre chocando-se entre o que já esperamos e o que ainda está para ser imaginado.

Sofá se concentra nesses choques. As cores, de rosa, verde e amarelo são intercaladas, mixadas e exploradas quase sempre que muda o plano. Geram a sensação de um microcosmo cheio de capacidades próprias de mutação, uma utopia visual que é contraposta por uma realidade rasteira que sempre ocupa o extracampo do filme e, vez ou outra, se infiltra nas imagens do longa apenas para recapacitar os desejos de desmembramento que Safadi busca no que é possível e no que talvez seja impossível.

Por mais que lide com pessimismos diretos e ocasionais obviedades inevitáveis do pós-apocalipse olímpico carioca, não existe cinismo em sua frontalidade. O que é carregado pelas duas performances principais é uma capacidade lúdica em aproveitar possibilidades oferecidas por um cinema de imediatismo criativo, de derivações muito claras que nunca estão escondidas e por isso são tão bem aproveitadas para serem reimaginadas e avacalhadas. Como Chay Suede já fez anteriormente em seu brilhante trabalho no A frente fria que a chuva traz (2016), acompanhado do lendário Neville de Almeida (um dos autores digeridos pelo universo de Sofá), a liberdade em poder escrotizar conceitos de atuação do cinema nacional, no caso do Frente Fria, o playboy, e no caso de Sofá, o bandido carioca, gera alguns momentos de genuíno brilhantismo da avacalhação filtrada pelo tratamento de imagem de um cinema de profundo valor imagético. Novamente, o plano popular e erudito coexistem em invenção.

Ainda é gratificante perceber o tal pessimismo do longa como um desprezo pela reconciliação. Joana Darc não consegue sua casa de volta, é traída pelo plano superior do poder assim que confia cegamente nele. Nizo Neto, que reinterpreta o prefeito do Rio como um nobre francês, brutaliza a obviedade de certas imagens e reafirma que não há espaço para simbolismos ou metáforas, apenas para a extrapolação de conceitos mais do que enraizados. Aí que está o elogio justo a Sofá: não é sobre “o nosso momento”, é sobre qualquer momento, sobre a percepção de que a paródia é cotidiana e não há tempo para qualquer metáfora que seja, nos resta a avacalhação. Melhor do que isso é ver como a maior traidora da narrativa, a filha do prefeito interpretada por Laura Neiva, tem como único figurino a camiseta do New York Herald Tribune usada pela personagem de Jean Seberg em Acossado (1960). Portanto, Godard existe tanto como referência quanto algoz, elevando o poder de escárnio que o filme busca a todo momento.

Júlio Bressane, que trabalha com Safadi há duas décadas e que está nos nomes que abrem o filme, já chamou o cinema de “música da luz”. Essa definição seria, em superfície, saber como ritmar o que está sendo iluminado e a partir disso possibilitar. Sofá leva esse conceito para se movimentar como um dos sambas de rádio que faziam os embalos do Rio no início do século passado: uma dialética entre o humor escapista, a marginalização do que o cerca e um pé firmado na noção de um mundo mais próximo da realidade. O que define o alcance de suas pretensões é a execução, e Sofá é satisfeito em fazer de seu processo de criação o meio transformador de todo um universo de derivações, sempre pronto para ser demolido e reconstruído.

FacebookTwitter

O Lodo (Helvécio Ratton, 2020)

Por João Pedro Faro

o lodo

Um despertador toca, fade in. Vemos um homem de meia-idade acordar, emburrado, seguindo para sua rotina desgastada no tão temido mundo corporativo. Esse tipo de premissa para representar qualquer personagem masculino “cansado desse mundo” já parece ter se tornado um pressuposto automático desde meados do século passado, inclusive com a mesma sucessão de gestos. A primeira meia hora de O Lodo, novo filme de Helvécio Ratton, já denuncia uma percepção mais do que costumeira de uma realidade em desencanto, e o resto do filme mantém a linha tênue entre a saturação dos conflitos típicos para um determinado tipo de personagem e a banalização do próprio mundo fantástico.

O evento que transforma o mundo do protagonista (Eduardo Moreira) é uma visita ao psicanalista Dr. Pink (Renato Parara), que revela-se um stalker do cliente, cercando sua vida de situações bizarras. Ratton tem uma rigidez formal curiosa ao longo de todo o filme: a tela reduzida conduz planos estáticos e longos, que constantemente entram em conflito com o andamento da própria narrativa. Enquanto absurdismo protokafkiano transformado em comédia de erros com elementos fantasiosos superficiais, nem sempre as decisões mais rígidas conversam com o tom de estranhamento. Lodo parte de tantos lugares comuns a esse tipo de história que parece não perceber seus pontos de maior interesse, sendo o peso de um mundo desanimador e não-naturalista desconversado com o que existe de próprio ao universo que cria. É como se sentisse a necessidade de uma atmosfera de cinema mais prestigiosa que afunda muita de suas pretensões em imagens e ideias desgastadas aos pequenos filmes de realismo fantástico que aparecem quase sempre em grades de festival.

Os signos desse tipo de cinema resistem em ir embora. As sequências de sonho com breves retoques de horror, a psicanálise e seus tipos como mote de uma desconstrução visual quase sempre óbvia demais, o espaço dos escritórios como opressão de um “mundo moderno” que existe como entidade e figuras religiosas como símbolos de uma culpa católica elementar são alguns dos elementos mais cansados e repetidos desse tipo de construção de mundo, e que ocupam tempo demais em tela no longa de Ratton gerando a extensa sensação de que este filme já foi feito muitas e muitas vezes. Os dois primeiro atos, muito definidos em uma obra que preza por um teor quase caquético de narrativa (não que isso seja o maior dos problemas), tomam muito tempo nesses mesmos cacoetes de um realismo fantástico que parece sempre muito mais interessado pelo tal do realismo do que pelas implicações do fantástico.

É no ato final que surgem ideias mais singulares ao longa, especialmente pela aparição da personagem interpretada por Inês Peixoto. Sua relação com o protagonista é genuinamente interessante, apoiada por uma performance vívida da atriz. Com ela, o filme finalmente parece abraçar um certo caos ainda que contido nos enquadramentos austeros. Infelizmente esse caos é breve, perpassado, pesando bem menos do que a construção feita na última hora de filme que gera pouco mais do que uma cena ou outra de curiosidades.

O Lodo é um experimento de poucos riscos e excentricidades pontuais, sendo confortável demais para gerar perturbação e contido demais para gerar interesse. Para um filme com esse título, se suja bem menos do que se limpa.

FacebookTwitter

23ª Mostra de Cinema de Tiradentes

hds_and_visitorTextos por João Pedro Faro

OS ESCRAVOS DE JÓ (Rosemberg Cariry)

O LODO (Helvécio Ratton)

SOFÁ (Bruno Safadi)

SERTÂNIA (Geraldo Sarno)

ATÉ O FIM (Ary Rosa e Glenda Nicácio)

SEQUIZÁGUA (Maurício Rezende)

 ONTEM HAVIA COISAS ESTRANHAS NO CÉU (Bruno Risas)

CADÊ EDSON? (Dácia Ibiapina)

MASCARADOS (Marcela e Henrique Borela)

CABEÇA DE NÊGO (Déo Cardoso)

CANTO DOS OSSOS (Jorge Polo, Petrus de Bairros)

FacebookTwitter

Os Escravos de Jó (Rosemberg Cariry, 2020)

Por João Pedro Faro

os escravos de jo rosemberg cariry

O último filme de Rosemberg Cariry exibe um fenômeno cinematográfico bem específico: um clima cansado e tardio de obras que parecem pertencer à retomada do cinema brasileiro da década de 90. A fixação por temas totalizadores, estética televisiva e a planificação de simbolismos são algumas características desse tipo de cinema que ainda persistem em cineastas como Cariry. O diferencial maior, que separa essas duas décadas, é o baixo orçamento atual e sua tentativa de adequação à agendas políticas em pauta.

Recontando o mito grego de Édipo por vias confusas, Os Escravos de Jó estrela um grupo de diferentes personagens na cidade de Ouro Preto em conflito com suas descendências. O estudante judeu órfão (Daniel Passi) que se apaixona por uma jovem árabe (Daniela Jesus) enquanto flerta com uma francesa (Romi Soares), aprendiz de um idoso sionista (Everaldo Pontes), mais parecem ter saído de um anedota de mau gosto do que da recontextualização de uma tragédia. Inicialmente, a falta de naturalismo das atuações e o nível desconcertante das caricaturas podem até parecer escolhas estilísticas arrojadas, mas o desenvolvimento do filme de Cariry e a seriedade falsamente poética que tenta empurrar em sua pretensão política risível não deixam dúvidas de que tudo se trata de um tenebroso equívoco em forma de cinema.

Diálogos com frases como “vamos mandar um e-mail para o Latuff, grande ativista pela causa palestina” ou então o ataque bizarro de um grupo de personagens contra um imigrante árabe berrando os mais inacreditáveis clichês colocam em cheque a mistura de má consciência política e péssima condução fílmica. Personagens que parecem caracterizados para uma esquete de comédia de baixo orçamento e colocados em conflitos políticos rasos não fazem jus tanto à tragédia da realidade quanto do próprio universo fantasioso que o filme parece querer situar-se. Estruturado em um esquema de debate cena-a-cena, nada que sai da boca dos protagonistas vai além do esperado de uma vergonhosa discussão corriqueira nas redes sociais. E tudo piora quando a narrativa decide tornar-se ainda mais destrutiva no ato final, percorrendo os caminhos da história de Édipo que surgem quase que aleatoriamente na narrativa.

As imagens criadas por Cariry não vão além de uma decupagem encontrada em qualquer programa educativo da TV aberta. Sempre que um personagem decide ser didático sobre algum dos diversos assuntos abordados sem grande desenvolvimento, a câmera aproveita um plano médio que coloca locutor e interlocutor juntos para a conversa. Além disso, quase todas as cenas estão devidamente iluminadas por luzes brancas que criam planos chapados, aumentando a atmosfera de televisão com pouco dinheiro que precisa otimizar imagens em prol de um funcionalismo fácil. Não existe qualquer valor de interesse quando se trata de cinema em Os Escravos de Jó. Os enquadramentos são pobres em preenchimento, criação e ideias, acreditando que podem ser apoiados pelo o que está sendo demagogicamente dito pelas figuras que filma. No caso, o que está sendo dito é tão raso e juvenil quanto o que está sendo filmado.

Os Escravos de Jó apresenta uma série de conceitos que fracassam antes mesmo de serem executados. Seu desejo por alguma consciência política sempre sugere ser uma âncora, mas só afunda ainda mais o filme quando expõe que seu conceito de “político” gira entorno de cenas como uma jovem palestina tirando fotos íntimas com seu celular, apenas para se tornar a falsa musa de um amante judeu. É desse tipo de ideia para pior, embalado em uma noção visual que já pareceria fora de lugar há duas décadas. Um caso de cinema excessivamente didático que parece deseducar qualquer um que assista.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

FacebookTwitter

JEAN COCTEAU SE DIRIGE AOS ANOS 2020

Por Bárbara Bergamaschi

     Jean Cocteau previa que, nos anos 2000, os jovens artistas não estariam sentados e muito menos entre duas cadeiras*[1]. De fato esta parece ser a pré-condição de existência do artista no Brasil de 2019 (em breve, 2020). Hoje, mais do que nunca, vive-se sob a ponta dos pés em um constante estado de emergência, prontos para o devir-desvio da torrencial chuva de descalabros vertiginososo preferidas por um (des)governante digno de Ubu-Rei. Como pierrots tragicômicos, os artistas se equilibram de maneira peri-patética no ar, sendo lufados de um lado para o outro pelos furacões do mau-tempo. Os ataques convocam defesas, e assim vemos poetas – se me permitem uma imagem “ao estilo” da veia mitológica de Cocteau – com de escudos de Perseu, tentando lutar contra os monstro ctônicos contemporâneos.

            A retórica se baseia em um espelhamento, é preciso trabalhar dentro da lógica do “inimigo” que impera: justifica-se a existência da arte por números e cifras. É o que se vê na cartela de encerramento de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, por exemplo: ”Este filme produziu cerca de XYZ… quantidade de empregos, de renda, de lucro… Veja como a nossa arte gira a roda da economia!” Ora, não desmerecendo o mérito e o esforço do argumento, mas não haveria um perigo inerente à essa lógica? Filmes de baixo orçamento e que não mobilizam um grande número de profissionais e público pagante não tem valor para sociedade? Devem ser descartados? Não tem razão de existir?

            Tendo este panorama distópico em mente, me pergunto: como produzir algum tipo de pensamento sobre o valor da arte para além de um discurso da rentabilidade alinhado à lógica do capital? Em tempos de ataque à cultura e aos artistas, como pensar o trabalho de um poeta- para além das justificativas financeiras e industriais? Como produzir uma nova forma de pensar a  “economia das imagens”[2]?  É isso que investigarei nessa crítica do filme “Orfeu” (1950)  de Jean Cocteau, retomado recentemente no Brasil pela montagem dirigida por Felipe Hirsh da Opera-adaptação de Philip Glass, encenada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro no final do mês de Outubro desse ano.

Tudo que não invento é falso. – Manoel de Barros

            Jean Cocteau, o cineasta surrealista, representante mais notável da avant-garde francesa, dizia que sempre preferiu a mitologia à história porque: “a história é feita de verdades  que eventualmente se transforma em mentiras , enquanto a mitologia é composta de mentiras que eventualmente se tornam verdades”. O mito de Orfeu foi a narrativa privilegiada escolhida por Cocteau para servir de parábola sobre o papel do poeta na sociedade – e por poeta aqui entende-se todos aqueles que fabricam algo da ordem da aesthesis, obras que agenciam os cinco sentidos, em suma qualquer artista, aí incluso músicos, pintores e cineastas. Cocteau adapta o mito grego para o seu tempo na trilogia orféica composta por: Sangue de um Poeta (1932),  Orfeu (1950) e enfim no Testamento de Orfeu (1960).

            O mito original conta a tragédia do poeta e tocador de lira homônimo, que a todos emocionava com suas composições e cantos. Orfeu perde sua amada, Eurídice, e resolve descer ao Inferno para trazê-la de volta à vida. Após ultrapassar todos os obstáculos do submundo com sua cítara – sendo inclusive capaz de adormecer e amansar a temida besta-fera Cérbero, cão de três cabeças, guardião do portão do Inferno –  Perséfone, mulher de Hades e rainha do submundo, concede ao poeta à alma de Eurídice. Ela autoriza que retorne ao mundo dos vivos com sua esposa, desde que não olhe para trás durante o percurso. Orfeu não consegue manter sua promessa, pois no último segundo se vira para ver se alma de Eurídice o acompanha. Neste momento ela é rapidamente puxada de volta para o mundo dos mortos, sumindo em um piscar de olhos. Resulta em um fim melancólico a Orfeu que, desolado, termina despedaçado no rio Hebro pelas Bacantes (também conhecidas como Ménades), mulheres do séquito de Dionísio, que não se conformam com a indiferença que o poeta reserva à sua lascividade e erotismo.

            Na nova visão cinematográfica do mestre francês, o famoso poeta “Orfeu” (Jean Marais) encontra-se em uma fase madura, já reconhecido por seus pares e, por isso, vive enfastiado com sua mulher e vida burguesa. Em meio a uma briga de bar, apaixona-se de forma obsedante por uma personagem misteriosa, a rica Princesa (Maria Casares), patrona dos jovens poetas da cidade, que descobrimos se tratar, com efeito, da própria Morte. A paixão é reciproca, e a Princesa orquestra o sequestro do poeta para a dimensão dos mortos, arquitetando também a morte prematura de Eurídice (Marie Déa), esposa de Orfeu, por quem nutre um terrível ciúmes. Dividido entre o amor terreno e o etéreo, Orfeu se aventura nas profundezas do inferno, a princípio com a motivação de salvar sua esposa, porém, vê-se que sua real intenção é explorar o próprio inferno interior e por fim unir-se com o seu verdadeiro amor: a morte, que oferece-o vida eterna – desejo, em última instância, de todo poeta.

            Uma primeira indagação que o filme de Cocteau nos propõe é pensar a da figura do poeta. Afinal o que é um poeta? Para que existe? Qual sua função na sociedade?  Na Grécia antiga acreditava-se que os poetas eram aqueles que eram visitados (geralmente em seu sono) por uma das nove musas[3]. Nesse encontro mítico era o momento no qual ocorria o que hoje nós nomearíamos como a “inspiração”. Assim, o produto artístico chegavam aos homens como resultado da união do divino e do profano. As obras de arte eram, dessa forma, consideradas como algo da ordem do sagrado. Os poetas na Grécia, eram seres escolhidos pelos deuses, ponto de contato entre dois mundos, eram, portanto, extremamente respeitados. Na narrativa de Cocteau, esta função “relacional” do poeta é bastante evidente na misé-en-scène em que Jean Marais se torna obcecado pelo rádio que sintoniza a frequência do submundo onde mora Maria Casares. O rádio seria uma analogia para essa espécie de labor artístico. Como uma espécie de “antena” de sua geração o poeta estaria a todo tempo “a serviço”, conversando com os poetas do passado, desvendando  e atualizando as mensagens cifradas nos tempos presente em uma nova forma ou linguagem. Como uma espécie de fio que conecta as pontas do tempo, o mundo mítico ao mundo secular, em suma, o artista seria uma ponte entre a vida e a morte.

“O poeta é de certa forma um trabalhador, de um modo é mais profundo que ele mesmo e que mal conhece as forças que o habitam. Eu diria até: um esquizofrênico que habita a todos nós, e de que quase todos os adultos têm vergonha, de quem só os heróis, as crianças e os poetas não se constrangem. Os poetas são os intermediários entre esses  “esquizofrênicos” e o exterior, eles tentam tornar isso viável. (…) Não sou responsável por meus personagens e por meus poemas, sou apenas um intermediário, como um médium, uma mão de obra. Todos os poetas são pontes e trabalhadores braçais dessas forças misteriosas que os habitam” – Jean Cocteau em S’adresse à l’an 2000 (1962)

            Os poetas eram também conhecidos na Grécia republicana como aedos, aqueles que declamavam as tragédias e as comédias para um grande público, de forma decorada. O poeta eleito como vencedor pelos espectadores era aquele que conseguia imprimir melhor emoção às histórias que todos já sabiam de cor, ou seja, o valor de um poeta não residia na sua originalidade (lembremos que o “gênio criativo” é um mito burguês moderno) mas na sua capacidade de interpretação. Artista era portanto não apenas um mero “imitador”, mas sim um tradutor, quem melhor permitia que as expressões e paixões dos deuses chegassem aos homem de uma maneira inteligível.

            A expressão “de “Cor”, no original do latim corresponde a palavra coração pois antigamente se pensava que o coração era o órgão da memória. Os poetas eram portanto aqueles que tinham as narrativas – ou, em grego, os mythos – guardados no coração. Eram os guardiões da história de um povo. Aristóteles inclusive, em sua Poética, afirma que o poeta seria mais importante que o historiador, pois enquanto o historiador apenas registra e produz documentos, o poeta organiza o tecido da memória, em um linha causal linear (com começo, meio e fim), dando enfim sentido à vida coletiva experimentada por todos os cidadãos. Ao contrário de Platão que desconfiava e via um perigo no potencial farsesco do poeta, para Aristóteles, a capacidade fabuladora do artista permitiria a criação de um princípio de identidade e coletividade, transformando-o em um ator social de suma importância para a polis grega.

HOLY MOTORS

            Há muitas interpretações possíveis para o fim trágico do mito de Orfeu. Em uma análise primeva poderíamos dizer que a moral da história é que não deve-se olhar para o passado afim de não perder o que se conquistou no presente. Uma outra leitura alternativa seria a de não se questionar as determinações divinas e do destino, questionar a autoridade e duvidar das ordem dos deuses é algo que não ocorre sem sofrimento e punições. Uma das interpretações que acho mais interessantes é a que está presente em O Banquete de Platão, em que Fedro discursa sobre amor usando como caso exemplar o de Orfeu:

“(…) A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e não ousava por seu amor morrer, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades. Foi realmente por isso que lhe fizeram justiça, e determinaram que sua morte ocorresse pelas mulheres; “.

            Orfeu, nesta interpretação, é punido pelos deuses por desconfiar do amor terreno dos homens. Assim, ao se virar para trás, expõe para si mesmo e para os outros que no âmago do seu ser não estava verdadeiramente compromissado com sua amada, não tinha fé no seu amor. Cocteau também expõem este lado perverso de todo artista, que no afã de adentrar a imortalidade, se sobrepõe aos outros “reles mortais’. O desejo de se preservar na História com H maiúsculo faz com que fique cego para o seu semelhante, a assim, se torna autocentrado, extremamente cruel e egoísta.  No filme, Orfeu não dá ouvidos ao ‘chofer’ da Morte – Heurtebise (François Périer) quando ele lhe revela que sua ‘Eurídice’ (Marie Déa) está prestes a morrer. Orfeu também não consegue perceber que a sua passagem para imortalidade está garantida e “ bem debaixo do seu nariz” – quando ele ignora todos os sinais de que Eurídice está grávida.

HOLY MOTORS

            O egocentrismo fatal do artista também se metaforiza na presença do espelho em toda a narrativa. Diz a Heurterbise: “vou te dar o segredo dos segredos. Espelhos são as portas através das quais a Morte vem e vai. Olhe-se no espelho por toda vida… e verá a morte trabalhando, como abelhas numa colmeia de vidro…”. É através do reflexo, do distanciamento de si e da conversão do artista enquanto imagem – ou seja, da visada de si enquanto figura pública, enquanto objeto – que o artista se aproxima da morte. Faca de dois gumes,o Ego é causa e fim do artista, razão de sua glória e decadência. Nessa hora vale lembrarmos do mito de Narciso, que comovido por sua própria beleza no reflexo do lago se apaixona pela própria imagem, e se esquece do real a ponto de se afogar. Na encenação de Felipe Hirsh, a tópica do espelho como porta acesso para o mundo invertido-  a la Alice – é o que orienta toda a movimentação dos atores em cena, pautada pelas saídas e entradas construídas por meio de um enorme paredão de espelho cenográfico fixo durante toda a peça.

            Cocteau, fornece, à sua maneira, uma releitura do mito, fornecendo uma nova chance de redenção de Orfeu, punido pelos deuses pela sua falta de amor ao próximo e pelo seu excesso de ambição. De certa forma, Cocteau busca restaurar a moral do poeta diante da sociedade. Como no filme, Elsa La Rose (1966)[4]  – documentário sobre a musa do poeta surrealista Louis Aragon – Agnès Varda busca demonstrar que a verdadeira imortalidade está nos pequenos gestos, banais e mínimos do amor “comum” e mundano. Este desejo transgressor de re-encantamento do mundo cotidiano seria o cerne do movimento surrealista que desejava utopicamente reestabelecer no coração da vida humana, momentos “mágicos” apagados pela civilização ocidental burguesa. Aos poetas nos cabe a revelação do divino-maravilhoso imperceptível mas ainda assim diante de nós.

[1] Me refiro a expressão idiomática: “avoir le cul entre deux chaises” que o diretor se refere no filme “Jean Cocteau s’adresse à l’an 2000”de 1962. Para ver o filme na integra acesse:  https://www.youtube.com/watch?v=–LR0nd67t8

[2] Segundo Marie-Jose Mondzain a “Economia” viria do conceito Oikonomia que significa justamente um pensamento e não uma prática. Economia se configura como um arranjo ou modo de uma sociedade se relacionar com “o que está em jogo”, uma palavra para se referir a um dispositivo ou um regime de visualidade. A “Economia das Imagens” portanto não reflete o que ela “mostra” pela semelhança mas sim pelo o que ela traz a tona, torna visível (e inversamente torna invisível), ou seja os discursos que ela engendra. Para mais ver o livro “Imagem, Icone e Economia” (2003) da autora.

[3] Sendo elas: Calíope, musa da Eloquência;  Clio ou Kleio musa da História; Erato, musa da Poesia Lírica; Euterpe, musa da Música; Melpomene, musa daTragédia; Polônia, musa da Música Cerimonial (sacra); Tália, musa da Comédia, Terpsícore, musa da           Dança; e por fim, Urânia,musa Astronomia e Astrologia.

[4] Filme disponível online: https://vimeo.com/97016643

FacebookTwitter

O CINEMA E AS FORMAS DO TRABALHO

Lumiere_saida de operarios

EDITORIAL: O CINEMA E AS FORMAS DO TRABALHO
Camila Vieira

ESTÁTICA E CINÉTICA, SISTEMA E INDIVÍDUO: JEANNE DIELMAN
João Lucas Pedrosa

OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA
Bernardo Moraes Chacur

NO CORAÇÃO DO MUNDO: CONTAGEM É O MOTHERFUCKING TEXAS!
Kênia Freitas

O LAMENTO NOSSO DE CADA DIA: TONSLER PARK
Pedro Tavares

IMAGEM-TRABALHO
Diogo Serafim

ATÉ EXPLODIREM OS PULMÕES
Felipe Leal

A ÉTICA DO TRABALHO INFINITO EM HOLY MOTORS
Gabriel Papaléo

DUAS CENAS DE PESCA: PAULO ROCHA E ROBERTO ROSSELLINI
João Pedro Faro

JUSTINE TRIET, UMA CINEASTA NO SÉCULO XXI
Lucas Saturnino

“A NEGRA DE…” E A ESCRAVIDÃO SILENCIOSA
Chico Torres

JEAN COCTEAU SE DIRIGE AOS ANOS 2020
Bárbara Bergamaschi

*

FacebookTwitter

Até explodirem os pulmões

Por Felipe Leal

1

No labor da conversa infestada de uma práxis do discordante intra-, entre– e além– dos planos de uma comunidade de camponeses sobrevivendo em isolamento da própria história e em regime de sub/autoexistência no pós-guerra italiano e no labor dessas técnicas de vida, de gênero e de relação com a natureza rolando dentro da palavra como infinito dissenso e enquanto razão da própria atividade política comunal. Unidade elementar tanto quanto o grão do alimento, Operários, Camponeses (Operai, Contadini, 2001) foi, para os Straub, a aparição – em hipótese alguma ler: “a origem” – da fala como lugar de desnudamento limítrofe do exercício de mediunidade entre a terra e o valor empregado à existência.

Os cadernos dos atores com o texto original de “Mulheres de Messina”, romance de Elio Vittorini, explicitavam duplamente o caráter de interferência no texto (e do texto) nas atualizações das querelas históricas: rabiscos, setas, círculos, cortes de cor nas palavras acusando mais um trabalho de leitura do que de re-leitura: as frases se interrompiam subitamente, a última sílaba não só parecendo arfar para esperar, como a seguinte colocando os sujeitos do enunciado separadamente de fato; o quadro deslizava como se passasse a vez à réplica e assim “o dissesse”; um olhar desafiando o significado extensivo do horizonte ao mirar para baixo e denunciar a presença de uma página que não sabemos com segurança se está sendo lida. Pois que não nos recatemos em arriscar, essa atenção a um certo paladar do gesto de fala, não sendo apenas uma proliferação das formas que o cinema tem inventado para se elevar ao labor interminável que é reincorporar aquilo do texto que salta o seu (e qualquer) tempo, é também a preservação dessa torção que a palavra pode suscitar quando gira em torno de si mesma, atando poética e política, mas sobretudo, como disse Roland Barthes já ecoando Brecht, o imprescindível matrimônio entre prazer e crítica que, aqui, é passar a fala. E pensando o texto crítico – este, que interpela – como o risco mínimo, ainda que mínimo, de um prazer pela letra, como o invocam os atores, segue adiante um palpite que, em diversos sentidos, tenta prosseguir “a” obra.

2

Há sentenças – frases, aqui, mas ainda e decerto enunciados que se gravam como determinações laminadas – que, se bem operadas dentro de um filme, se estalando num timing tão preciso que é capaz de fazê-lo tremer em seu plano quase nos termos propriamente ideológicos da relação de quem vê e participa, há sentenças que, quando proferidas, perfuram dois tempos de existência e funcionam como máximas mitopoéticas: bifurcações automáticas no sentido e que não podem rodar na mente senão como perguntas sem fim. Em Humilhados (Umiliati, 2003), adaptação outra do mesmo romance, mas que centraliza o dissenso entre estado italiano e povo na argumentação assimétrica deste com alguns oficiais “da cidade” de competência institucional, ainda que esse fraseado eventualmente culmine em algo como uma pergunta cuja obviedade interrogativa antes infere sobre a autoinferência mesma da estupidez retrógrada dos camponeses do que abre espaço para uma resposta digna, sua descarga diante dos jogos entre trabalho, valor econômico, progresso e participação nacional é semelhante à subterrânea moral que funciona junto ao fabular quando este eclode.

Quando um dos carabinieri (braço das forças armadas italianas e ramificação das políticas de segurança com aparente e demasiada inclinação judicial, “corretiva”) se encontra em vias de ilustrar o retrocesso, o abismo do valor de peso de trabalho empregado por aquela comuna em relação à quantificação da produção e da subsistência a que assistem em retorno, não apenas estão violentamente introduzidas diante da vida geológica, ancestral e persistentemente reclamada, daqueles trabalhadores as noções de lucro capitalista e de labor como dispêndio máximo e exaustivo de energia, mas também a situação que lhe pede atravessamento para dar significado àquela exclusão é de um grau em que é possível, ainda que trágico, que se veja a humilhação enquanto técnica do apagamento de um povo: quando compara a situação econômico-ética dos camponeses à hipotética preferência de alguém por andar, andar logo quando já existe o trem!, ele não põe o modelo de preferências sob o parâmetro da redução das distâncias de x a y, mas diz, repuxando um estranhamento já integrante ao jogo de linguagem, que aquilo, que a permanência daquela retrogradação, seria “como correr a pé atrás de um trem”. Ante a casca de uma conclusão, sustém-se uma (das) pergunta(s): correr atrás do trem é a imagem do trabalho fútil, tornado inválido quanto mais rápido andar o veículo (que o realiza por mim)?, é a ardilosa arquitetura caricatural do camponês suando, em frangalhos, para alcançar o progresso (que ele supostamente recusa)?, ou seria ainda a mais trêmula prancha de piratas em que se subirá somente para ser empurrado à morte, uma vez que se feriu a moral da embarcação, uma vez que ou se está dentro ou se está fora?

Umiliati-20033-e1553868127464

E uma quarta, que bem recolhe a faísca de todas: ora, em que momento aquele que argumenta simultaneamente impõe – não se diz ‘partilha’, não se diz ‘devolve’ – o escopo a partir do qual é possível, não tão-somente argumentar, como dominar as bordas até as quais a linguagem terá direito ao funcionamento de reinvindicação? Porque é impossível responder a essa pergunta que encerra suas imagens e seus futuros de imagem. E poucas vezes um plano de coletividade terá parecido tão irresponsivo, poucas vezes um quadro aberto contemplará doze corpos como se não fossem nem atores nem aqueles a-pátridas de Vittorini, mas a relação entre sujeitos que beira o silêncio – e que nele cairia, não persistisse a história da Terra ululando a suavidade comunal de sua feitura conjunta à nossa. Porque antes que essa polícia “em nome do que é público” surja, o traço que distingue Operários, Camponeses deste outro (que pouco significaria, se lhe funcionasse só como “continuação”), o traço de uma dobradura da palavra que quer dissenso e conversa de forma ainda mais pujante, espaçada, vibrando em seu próprio intervalo, distingue também para reafirmar a magnitude da política de ameaça à extinção que virá logo em seguida.

O estrangeiro que debaterá antes dos três carabinieri, ele que esteve ali na vila, previamente, em nome de si mesmo, e que agora retorna para que sua ponte de sugestões sirva para provocar e instalar uma crença sub-repticiamente, num dado momento em que sucessivos cortes amalgamam cada elemento do que foi construído pelas mãos dos camponeses na ordem de reclamações seriais em defesa do que será apropriado pelo Estado, finge espantar-se e fala daquela operação – fraturada pela cesura da montagem à maneira de disparos dos lugares de fala – como se eles falassem todo ao mesmo tempo, restando que ninguém pode, afinal, ter seu dizer, e que estão todos fadados à permanência no mesmo lugar. O truque, que almejava interverter a proposição mesma de toda conversa, de uma conversa qualquer, e tentava fazê-los parecer menos comunitários ali mesmo onde a fala seguia a ordem plural de sua argila, é respondido à altura de um acontecimento que devolve à conversa-fiada o tremor daquilo que carrega seu dúplice. Acaso tem proprietários, o deserto que os nômades atravessam?, ao que se segue a interrupção sentencial e ambígua de um senhor sentado, erguendo uma das mãos em palma em direção ao estrangeiro. Que ele agora diga, que ali se cale, que aquilo seja um endereçamento ou um rasgo inevitável entre aqueles, pouco imposta: é a interpelação dizendo que interpela – labuta de quem presencia: ver é convocar(-se) a participar.

Se aos Straub era célebre o fator gestual da contenda entre povos e ideias, aqui ele recai com o invisível peso dos tempos conjuntos e dos tempos intempestivos, tempos sem métricas, tão sociais quanto míticos. Responde sem responder tanto quanto se encarrega de comportar uma ética, uma crença não mais como a solidez encurvada dos saberes restritos àqueles que os detém, mas como a suspensão e o inesgotável que é estar sempre apto a responder à volubilidade dos acontecimentos junto aos outros. É precisamente isto que os soldados não conseguem ver e que assoberba seu leque de “fatos” paradigmáticos que invariavelmente findam com o grande exemplo dos norteamericanos, isto que cimenta a lógica natimorta de suas proporções e faz de “dez operários produzindo em um mês aquilo que ‘eles’ produzem em um ano” a mais mesquinha afronta ao progresso: serão incontornavelmente incapazes de ver que suas condutas são prescritas (limitadas) pelo Estado, que serão pré-escritas (lhes antecederão tanto quanto delas não participam) por ele sem cessar, e que aquilo que lhes convém chamar de justiça, essa ideia sob a qual trajam espingardas e lenços vermelhos como cadetes, estes, sim, humilhados, não contabiliza, sobretudo, aquilo que eles não pararam de colocar como termo do meio: a terra. É-se justo com a terra quando ela é cercada, apropriada, estuprada, justo a terra, a única capaz de suster todos? Sua posse viaja, imantada, até a titulação fixa de “propriedade” somente porque aquele que a utiliza produz mais dela, e dela fabrica a imagem de um jardim? Produz para quem? Sua lógica é o logro da quantidade sobre um outro tipo de propriedade, aquela que distingue as coisas pelas particularidades que lhe dão, por exemplo, motricidade, produção ou função? Passemos ao que não tem tempo.

Conta o mito que Astreia, filha de Zeus e Têmis e marca-passo transicional da Idade de Ouro para as eras de declínio entre os humanos, horrorizada com um evento de roubo promovido por um mercador que visava extrair lucro através do engodo com uma balança, pede ao pai para fincar morada nos céus como estrela, desgostosa com a perversão à sabedoria e aos hábitos coletivos que pregava. O que a maior parte das narrativas, no entanto, relega ao olvido, é o último gesto performativo da chamada “virgem das estrelas”, pois que antes de ascender aos céus Astreia se reúne no cume de uma montanha para repassar toda sua sapiência a quem pudesse interessar-se numa vida simplificada, arranjando uma espécie de séquito de indivíduos dedicados àquilo que há de justo, bem como às atividades de caça e cultivo que garantiam a comunhão minimamente estável com o mundo. Que relação pode haver entre o simples e o justo e que faz a balança das entidades estar costumeiramente acompanhada de uma espada? É que o simples, longe do estigma pejorativo da coisa sem adorno ou limpa do intragável, é menos o oposto do complexo do que o trabalho de encontro com as propriedades mais adequadas, descobertas também por labuta, para tratar do bruto. E é – e será – preciso entrar numa contenda de valores e técnicas com essa ‘coisa bruta’, bruta na medida de sua singularidade mais ou menos velada, de sua particular propriedade, para com ela entoar um justo possível.

Umiliati-20034-e1553868138928

Se numa conta amalucada de transposições fosse possível dizer: é impossível à árvore participar do verbo ‘pedir’, uma vez que tudo que ela extrai inevitavelmente se desdobrará em fruto, em interação contínua com o ‘onde’ de onde ela puxa vida, tão despropositado é o gesto que encerra o filme. Assim como a árvore, ele É. Ele não encerra, não entrega as mãos à humilhação, não abre nem tampouco questiona. É um movimento voltado para si mesmo e cujo significado fê-lo bem não se traduzir, mas do qual não se pode dizer que não faz nada. A camponesa o pronuncia e cai no aparente repouso estatuário de um enigma, o horizonte recortado do quadro recaindo em sequência para mostrar dela o punho fechado e os pés sobre a pedra que inicia devidamente os contornos de sua habitação.

Durante todo o filme, os pássaros, o vento, as árvores e as águas perpetuarão seus cantos, seus ruídos, na intraduzível língua que cinde sujeito e natureza. Ou melhor: repartiria, não fossem gestos como aquele, palavras sacras e secretas que duram o suficiente para sublinhar a fixidez de uma impermanência: entre nós e entre-nós, há relações que não unificam e que não buscam a semelhança. Há aquelas que afastam e reiteram a comunidade daquilo que é fragmentado. Ali, uma mulher. Acolá, uma árvore. Uma fome, um fruto entre eles, mas ainda e sempre: uma mulher, uma árvore, um fruto e uma fome. Um, em seguida, outro. Nem tudo o que é sólido desmancha no ar. Algumas coisas explodirão, como pragueja o presságio do militar sobre os pulmões daqueles trabalhadores exaustos e que, de acordo “com ele”, não sabem sonhar – completamente desavisado de que a distância entre a ricota e aquelas mãos, entre o trigo e a contagem de bocas e estações, entre a energia elétrica produzida e os olhos turvos de labor e alegria, subsiste não uma proximidade que é preciso explorar, mas a mais indubitável das distâncias que eles aprenderam a respeitar e estipular empunhando a justiça com a terra: que cultive e deixe viver aquele cuja sabedoria seja, e não sirva a, ainda que por dez mil anos, o comum. Disparatado, inconcebível, o pensamento que formula a um povo ser necessário produzir mais do que necessita? Inconcebível, decerto, mas vivemos sob seu regime, e a terra também descobre suas maneiras de gritar.

FacebookTwitter

O lamento nosso de cada dia: Tonsler Park

Por Pedro Tavares

Se eu tivesse escutado a minha mãe, estaria em casa agora.

David Perlov

HOLY MOTORS

Uma postura corriqueira na carreira de Kevin Jerome Everson: assumir a ambição de construir, pela observação, o diagnóstico geral de uma nação. Em oito de novembro de 2016, Everson registrou em closes o curso das eleições presidenciais em Charlottesville, Virginia. De certo que o olhar de Tonsler Park é dos seus mais frontais e diretos acerca do separatismo americano, até então mais silencioso que os dias atuais e utiliza do trabalho para este comentário incisivo.

Em entrevista ao Jornal do Brasil em março de 1993, o crítico Ismail Xavier comentou sobre como diagnósticos gerais abrem campo para o privilégio das alegorias e como este reducionismo é arriscado: “(…) permite condensar muitos aspectos da experiência em poucas figuras e situações”. O questionamento de Everson resvala nas bordas da afirmação de Xavier. O que se vê é, pela estrutura, na repetição de gestos do trabalho manual, como a esperança se esvai conforme a experiência torna-se mais intensa – quanto mais tarde fica e quão perto está o terror. Nos corpos negros que mantém a ordem para que a votação corra nos conformes, fica nestas poucas figuras, justamente, o desconforto da postura daqueles que votam e que levará a América a um novo rumo social e econômico.

HOLY MOTORS

Este pensamento de 80 minutos está sob molduras, o limitando a um período, como um recorte para o estudo do todo. Por outro lado, é um filme de transparências óbvias que sinaliza na reiteração da ordem o passado dos Estados Unidos. Cabe o pensamento de Hal Foster ao comentar o “erro” de O Estádio do Espelho de Lacan:

No entanto, esse sujeito blindado e agressivo não é simplesmente qualquer ser da história e da cultura: é o sujeito moderno na condição de paranoico e até fascista. Pairando nessa teoria está uma história contemporânea que tem no fascismo seu sintoma extremo: uma história de guerra mundial e mutilação militar, de disciplina industrial e fragmentação mecanicista, de assassinato mercenário e terror político. Perante esses acontecimentos o sujeito moderno se blinda contra a alteridade interior (…) e alteridade exterior (para o fascista isso pode significar judeus, os comunistas, os gays, as mulheres); todas essas figuras do corpo despedaçado, do corpo entregue ao fragmentário e ao fluido ressurgem. Esta reação fascista está de volta? Chegou a desaparecer?

Seguindo o protocolo da edição, chama atenção no pensamento de Foster, fora o óbvio manifesto, o do funcionamento industrial. De volta ao filme de Everson, o trabalho aqui está além dos gestos mecânicos: o olhar daquele que espera na fila é imperativo e para aquele que o acompanha desde o início do dia ganha um valor completamente distinto. É na simples troca de palavras que a força histórica se constrói, a pensar no resultado da eleição. Se para a equipe filmada seus gestos são puramente funcionais e protocolares a serviço da nação, é evidente que para Everson o caminho é oposto. Como pode a ordem manter-se no ápice dos gestos políticos?

HOLY MOTORS

George Orwell, em artigo escrito em 1940, vê Jonas, o personagem bíblico que é engolido por uma baleia como um homem moderno, inquieto, impolítico e que busca abrigo da realidade na barriga da baleia. Embora o voto nos Estados Unidos não seja obrigatório, o mecanismo que reside no ato registrado por Everson é latente:  carrega em si questões morais direcionadas ao sujeito em si e não ao país como unidade, ou seja, uma fuga da realidade. O “fazer sua parte” não está no campo da serventia à pátria e sim ao patrão, enquanto aqueles que controlam o espaço para que a moral seja exercida estão jogados ao contexto histórico a cada voto.

Tonsler Park, portanto, é a observação do não-ordinário costurado pela rotina: a eleição não acontece diariamente, mas a desigualdade de todos os dias segue estampada no quadro. Esta duplicidade carregada de lamento coloca o filme como o ápice de um movimento do dia-a-dia, tão inconsciente quanto acordar, levantar e trabalhar. E para isso Everson tem uma resposta mais certeira: “Este é o meu trabalho. Trabalho de 40 a 50 horas semanais fazendo filmes”.

FacebookTwitter

No coração do mundo: Contagem é o motherfucking Texas!

Por Kênia Freitas

“O trabalho é a essência do homem porra nenhuma” (Pichação) – Mais do que um resumo, esta frase é uma possível porta de entrada para No Coração do mundo (Gabriel Martins, Maurílio Martins, 2019). O filme se constrói a partir de duas espacialidades de natureza diferentes: a concretude da vizinhança do Laguna, na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte/MG; e o desejo por um novo lugar de plenitude da existência, o sonhado Coração do Mundo. Entre um e outro, os atravessadores das relações tornam-se o trabalho e o dinheiro.

E o trabalho aqui é entendido mais próximo de sua origem no latim, na palavra  “Tripallium”: um instrumento de tortura para fazer os escravos e pobres produzirem. As múltiplas dimensões do trabalho no filme passam pela sobrevivência, pela busca de emancipação (principalmente a feminina), por uma possibilidade de afirmação de si. Mas o trabalho das personagens constitui sobretudo um sistema brutalizante do cotidiano: das micro agressões (a dona da loja que ainda desconfia de Miro [Robert Frank], o seu empregado como vendedor há sete anos), até as macros (a passageira que fisicamente agride Ana [Kelly Crifer] por não possuir o troco para a passagem de ônibus). Em suas flexíveis e porosas reconfigurações no século XXI, as linhas são tênues e os corres são muitos – é salão e Uber ao mesmo tempo, inventando tempo ainda para o marido e os esquemas de encontrar o amante.“Meu nome é trabalho, meu sobrenome é dinheiro”, é como explica Rose (Bárbara Colen) a impossibilidade cotidiana de suas atividades. É também, ao mesmo tempo, vender foto na escola e planejar um assalto.

Nesse sentido, os corres direta ou indiretamente ligados ao crime (pequenos golpes, o empréstimo de uma arma, etc.) não estão desconectados dos trabalhos lícitos formais e informais. Mas, mesmo na porosidade, as fronteiras existem e parte do dilema do filme é nos confrontar com os pontos de não retorno. Na lógica do poder operante do neoliberalismo, sustentada na criação de máquinas de moer gente e os seus desejos, quem sobrevive (e às vezes até vive) são aquelas e aqueles com mais maleabilidade para driblar as engrenagens dentro das regras dos jogos aos quais se propõem ou se submetem – seja no capitalismo ou no crime. O que a vacilação de Beto (Renato Novaes) logo no início do filme deixa evidente é que não basta atirar, mas é necessário saber o momento certo e, sobretudo, acertar a boa. Lição que voltará para assombrar o trio Ana, Marquinhos (Leo Pyrata) e Selma (Grace Passô) em seu plano de assalto cheio de pontas soltas – não há perdão.

Na estrutura capitalista de exploração sem limites das forças vitais, dos desejos e das formas de vida, a violência dos pequenos e grandes golpes e dos assassinatos é assim, também, parte das fronteiras indefinidas do trabalho – mostrando uma faceta do seu potencial de extração e exploração máxima e direta. “Contagem é o motherfucking Texas!”, como anuncia a música do Mc Papo que abre o filme. A cena inicial já começa por trazer os entrecruzamentos desta porosidade de relações, conjugando no mesmo acontecimento e espacialidade: o trabalho de entrega de mensagens românticas presenciais de uma pequena empresa, a declaração de amor de Ana para Marquinhos em seu aniversário, e uma execução, na qual Beto usando a arma emprestada por Marquinhos mata a pessoa errada.

Marquinhos e Ana no ponto de não retorno

Fica evidente também as intersecções das relações de gênero com o trabalho. O filme opera quase sempre por contrastes pedagógicos na apresentação dessa dinâmica: a inércia de Marquinhos, tentando se virar com pequenos esquemas (como ajudando Selma no negócio das fotos para as escolas), em oposição à sua mãe, Dona Fia (Gláucia Vandeveld), que com persistência vende diariamente os seus produtos caseiros batendo de porta em porta e à irmã Fernanda (Malu Ramos), com 17 anos e já contribuindo nas contas da casa. Um contraste semelhante é mostrado entre os amantes Rose e Miro: enquanto ela articula-se para somar mais uma renda como motorista de Uber, ele permanece no mesmo emprego há sete anos. Em ambos os casos, para Fernanda e Rose, a autonomia financeira desdobra-se em uma emancipação sexual: Rose com segurança comanda Miro durante a cena de sexo, Fernanda tem a permissão e a cumplicidade da mãe para dormir na casa do namorado.

As amigas Rose e Selma falam da vida e tratam de negócios.

Em seus vários arranjos familiares, o filme ressalta a falência das figuras masculinas como referência de autoridade ou de compasso moral – e uma intrínseca relação entre esse deslocamento e as novas fontes de renda e trabalho das mulheres. Se ao final do filme, Brenda (Mc Carol), que está a caminho do novo trabalho arranjado pela a avó, dá a letra para Marquinhos, o seu amigo das antigas – “não dá mais pra ficar nessa vagabundagem” -, é o olhar de decepção para o filho de Dona Fia (enquanto empurra o seu carrinho cheio de garrafa pet) que termina por condená-lo.

As relações que compõem o trio Ana, Marquinhos e Selma no assalto do desfecho do filme se configuram de formas mais complexas. Selma é construída no filme também na linha mulher-emancipada-e-autoconsciente, como Fernanda e Rose, mas já em outra fase da vida. É ela que enuncia o desejo de partir para o Coração do mundo – o lugar em que se quer pisar, o lugar do desejo e da vida plena. Esta explicação para Marquinhos, desse desejo pulsante por recomeço, é o que constrói discursivamente o desfecho da narrativa. No entanto, há um evidente descompasso entre o desenvolvimento da personagem na trama e a sua importância enunciativa. Com as outras personagens centrais há um processo de mostrar as relações cotidianas familiares e amorosas em ato, mas de Selma nos aproximamos apenas por seu longo relato para Marquinhos (o mesmo que enuncia o Coração do mundo) e por algumas fotos vistas no celular. Por brilhante que seja a atuação de Grace Passô, a estratégia do filme acaba por criar mais uma desconfiança do que uma adesão ao conflito da trama. Selma, nesse sentido, funciona quase como um dispositivo narrativo para catalisar a ação do casal.

Selma explica o que é o Coração do Mundo, enquanto arruma o cenário para as fotos de escola.

Já entre o casal Ana e Marquinhos há um acordo implícito que se quebra quando ele a convida para participar da fita (por exigência de Selma). O não dito entre eles é falado pela primeira vez, e as fronteiras não delimitadas dos corres de Marquinhos ganham nome e demarcação. Não mais a porosidade entre pequenos delitos e trabalho precarizado, o novo arranjo com a concordância de Ana gera uma ruptura. É acertar a boa ou nada: “Agora não tem mais volta”, como Selma avisa minutos antes do assalto.

O desastre após a fita e a melancolia de Marquinhos e Ana seguindo com a sua rotina depois de cruzarem um ponto de não retorno acabam com qualquer expectativa de resolução da trama pela catarse ou pela fuga. Um pouco traído pelas promessas de um ritmo inicial vibrante do filme, ao espectador cabe lidar com o fato de que Contagem é o Texas, não Hollywood. E que, em se estabelecendo a trama sobre uma dinâmica de mundo estruturada em um sistema econômico, social e racial que é uma máquina de moer as forças vitais e os desejos, não há negociação possível com um final feliz – não importa o quanto a construção da narrativa tenha nos prometido outra coisa.

FacebookTwitter

Imagem-trabalho

Por Diogo Serafim

Ao compararmos a iconografia do cinema à da  pintura cristã, percebemos que lá o trabalhador  é visto como aquela mesma criatura rara, santa. O cinema mostra o trabalhador de  outras formas também, mas capta  principalmente o elemento referente ao trabalhador presente em outras formas de vida. Quando os filmes americanos falam de poder econômico ou dependência, eles costumam retratar isso usando o exemplo de bandidos, sejam pequenos ou grandes, preferindo essa   dinâmica ao cenário de trabalhadores e empregadores. Devido ao fato da máfia controlar alguns sindicatos dos EUA, a transição do filme trabalhista para o filme  gangster pode ser tranqüila. Concorrência, formações de trust, perda de independência,  destino de funcionários menores e exploração – todos são relegados ao submundo. O filme americano transferiu a luta pelo pão e o pagamento da fábrica para as salas de entrada  dos bancos. Embora os ocidentais freqüentemente lidem também com batalhas sociais, como as que ocorrem entre fazendeiros, elas raramente são travadas em pastagens ou campos, mas com mais freqüência nas ruas da  vila ou no saloon.

Harun Farocki

 

HOLY MOTORS

O trabalho na física está relacionado com o deslocamento de um corpo devido à atuação de uma força, consistindo assim em uma transferência de energia. Quando Farocki analisa a força que puxa os operários para longe da fábrica ao fim do turno diário, o diretor está se referindo a uma força concreta que faz com que aquele movimento acelerado resulte na saída uniformizada e coletiva dos operários de diversas fábricas no mundo no processo de se individualizarem. Uma força que aparentemente age contra um bloco de indivíduos se demonstra na realidade uma congregação de forças que agem em cada operário de acordo com as vidas próprias que cada um possui, vidas estas perdidas durante o turno de trabalho em uma lógica de alienação comunitária.

Aqui Farocki retoma como ensaio uma ideia que Kaurismaki já tinha trabalhado em Sombras no Paraíso (1986) como relato, a ideia de uma vida que é própria a um proletário mas que floresce apenas ao fim do turno diário. Usualmente vemos a saída da fábrica mais como uma extensão do trabalho em outra modulação do que propriamente uma fuga temporária, e devemos ao menos acreditar na possibilidade de um novo tipo de lógica laboral nessa inversão de rotina. Já que a ideia de comunidade não pode sobreviver fora do ambiente do trabalho, Farocki vê a saída dos operários como possível catalisador de uma articulação reformista. Mais que isso, vê o cinema como a possibilidade de propor a faísca necessária para que essa articulação ocorra.

HOLY MOTORS

Mas como poderia o cinema, atividade intelectual, proporcionar uma mudança efetiva? Como se pode transformar a abstração da imagem e reduzi-la a uma práxis materialista? Farocki afirma que há de ser possível encontrar um substituto para a medição manual com o uso de fotografias. É perigoso estar fisicamente em algum lugar para mensurá-lo precisamente, tirar uma foto é um procedimento mais seguro. A primeira imagem de Auschwitz foi tirada a 7000 metros de altitude, mas sequer percebemos do que ela tratava efetivamente naquele momento. A questão que deve ser posta, sabendo que o olho pode manter uma distância segura do objeto e mesmo assim observá-lo, é saber se o olhar pode substituir a presença. O registro de uma imagem pode ser orientado como poesia, controle ou examinação, mas jamais como presença. A presença deve, então, ser intelectualizada.

Recentemente a imagem de uma criança morta em uma praia na Turquia foi catalisadora para uma nova política imigratória em toda a Europa. Uma imagem foi capaz de alterar o curso político de um continente inteiro por meses, feito que semanas de diplomacia não foram capazes de concretizar. Assim, felizmente, a intelectualização de uma imagem é espontânea. Sua dialetização não forçosamente, e é por isso que temos a combinação de imagens, o cinema, incumbido com tal tarefa.

O movimento repetitivo das ondas indo em direção à terra é o que provoca a ignição da reflexão. Na fábrica que inicia o filme Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1989), os pensamentos provenientes desse processo repetitivo, constante, culminam na reflexão. Uma piscina de ondas provocadas por um braço mecânico, um barco à deriva que na realidade tem um movimento programado. Tudo é controlado, tudo é utilitário. A produção em massa é uma produção de guerra. Assim, o estado fundamental econômico nosso é um estado de guerra.

O trabalho de Farocki está muito próximo do marxismo clássico. Guardando a imagem da fábrica como o ponto de inflexão entre o mundo privado e o público, propondo a alienação do espaço controlado de trabalho e a liberação do fim do turno diário, guarda também boa parte dos elementos exigidos pelo autor para o exercício dialético de natureza materialista. Sabendo que as dinâmicas de produção mudaram drasticamente mais de um século seguindo a escrita de O Capital de Marx, como encontrar paralelos entre a descrição proposta pelo autor da sociedade com a política do trabalho no mundo atual, mantendo o olhar crítico e a emergência para reforma social proposta pelo autor? A solução parece repousar próxima do traço de paralelos entre o mundo da segunda metade do século XIX com o mundo devastado pela guerra na primeira metade do século XX e da vigilância tecnológica da segunda metade do século XX. Sua obra consiste na busca por uma imagem que defina o processo de barbarização coletiva que continua para muito além da alienação proletária, para além do genocídio programado nazista, para além do controle estatal e empresarial. A fé de que a dialetização do registro possa ser uma chave emancipatória para o mundo.

HOLY MOTORS

FacebookTwitter

Editorial: O cinema e as formas do trabalho

Por Camila Vieira

Lumiere_saida de operarios

Como invenção da experiência moderna, o cinema desperta o olhar para o trabalho como atividade da vida cotidiana e, desde seu advento, intensifica a percepção da existência do dinamismo laboral para o desenvolvimento de uma região. Em 1895, os irmãos Lumière filmam a saída dos operários da fábrica da família em Lyon, na França. O registro em breves 45 segundos é marcado pela singularidade histórica de uma época: a passagem de mulheres e homens da classe operária, da clausura da fábrica para a rua, em pleno boom da industrialização nas grandes cidades europeias.

A proposta da nova edição da Multiplot é pensar a presença do trabalho ao longo da história do cinema, seja nos registros documentais, nas narrativas ficcionais ou mesmo nas configurações do experimental. O conjunto de textos apresentados nesta edição não pretende compor uma genealogia do trabalho no cinema, mas pensar filmes em que as formas do trabalho tornam-se relevantes para a construção de poéticas cinematográficas, que podem ser diversas de acordo com a criação de cada realizador.

O cinema pode ampliar a sensação de brutalidade e esgotamento da força de trabalho – Mudar de vida (1966), de Paulo Rocha; e Stromboli (1950), de Roberto Rosselini – e criticar a intensificação do poder laboral na exploração dos desejos e das formas de vida – No coração do mundo (2019), de  Gabriel Martins e Maurílio Martins. Ou explicitar o trabalho como instrumento de perpetuação das heranças do colonialismo e das marcas da escravidão, como em A negra de… (1966), de Ousmane Sembene.

Há filmes capazes de engendrar formas fílmicas que implodem a perpetuação do trabalho mecânico doméstico – Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman – e outros que exaltam a eficiência laboral e a industrialização no crescimento da malha urbana – Um homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov. Uma comunidade de camponeses no pós-guerra italiano e a reflexão sobre o trabalho produtivo e os usos da terra mobilizam Jean-Marie Straub e Danièle Huillet a realizar Operários, Camponeses (2001). O desequilíbrio entre patrões e empregados no ambiente da fábrica é o ponto de partida para Oito horas não fazem um dia (1972-1973), de Rainer Werner Fassbinder.

Se a história do cinema nos oferece um apanhado de imagens diversas de trabalhadores, será preciso então fazer um movimento de retorno ao filme dos Lumière, como faz o ensaio A saída dos operários da fábrica (1995), de Harun Farocki. Não é um retorno que se paralisa no passado, mas compreende o presente a partir dos gestos que perpetuam a organização do mundo do trabalho. A máquina da alienação proletária também movimenta a força dos operários para longe da fábrica ao fim do turno diário.

FacebookTwitter

Oito Horas não fazem um dia

Por Bernardo Moraes Chacur

HOLY MOTORS

Oito Horas não fazem um dia, série em cinco episódios transmitida entre 1972 e 1973, foi o primeiro trabalho de Rainer Werner Fassbinder para a TV alemã. Conforme anunciado pelos créditos iniciais, o programa era uma Familienserie, gênero popular na Alemanha Ocidental de então. Oito Horas, no entanto, fugia do padrão desse tipo de narrativa ao apresentar uma família operária no lugar tradicionalmente reservado ao “típico” lar de classe média. Mas apesar dessa escolha de personagens e temas, o seriado também rejeitou as convenções do cinema politicamente engajado, contrabandeando discussões políticas entre doses de otimismo e entretenimento. Como resultado, Fassbinder atraiu críticas de ambos os lados do espectro ideológico e a série foi cancelada antes da filmagem dos três últimos três capítulos, apesar do sucesso de audiência.

A trama gira em torno de dois membros da família Epp, Jochen (Gottfried John) e a Avó (Luise Ulrich). O primeiro é um jovem que trabalha em uma fábrica, onde é pressionado por metas crescentes de produtividade. A segunda é uma viúva obrigada a morar com a família por falta de recursos. Jochen se apaixona por Marion (Hanna Schygulla), que lhe ajudará a canalizar de forma produtiva o seu descontentamento com o trabalho. A Avó conhece outro viúvo (Werner Finck), com quem decide buscar independência e um novo lugar para viver. A partir dessas duas linhas de ação somos apresentados a outros membros da família, amigos e, especialmente, colegas de trabalho.

As dificuldades enfrentadas por esses personagens são vencidas de forma coletiva. No contexto da fábrica, contudo, cada vitória obtida por Jochen e seus colegas revela imediatamente um novo desafio, demonstrando a eficiência e ubiquidade daqueles mecanismos de exploração. A partir dessa estrutura, Fassbinder combina esperança e pragmatismo: as vitórias são possíveis, mas o brutal desequilíbrio de forças entre patrões e empregados está sempre presente.

Fassbinder dialogou com a Velha Hollywood ao longo de sua carreira e há momentos em Oito Horas calcados nas screwball comedies. Mas a ligação entre o seriado e o cinema americano dos anos 30-50 ultrapassa o nível superficial. Assim como nos roteiros clássicos, as questões econômicas e sociais são enquadradas em dramas pessoais e entretecidos na narrativa. Os problemas enfrentados pelos personagens são solucionáveis e as comunidades são retratadas como essencialmente boas, apesar das tensões internas. O desenrolar do enredo reforça valores positivos, por mais que os valores defendidos por Fassbinder destoem do tradicional ideário norte-americano. O resultado diverge tanto das preocupações anti-ilusionistas de Brecht quanto do frequente pessimismo do Realismo Social, para citar duas vertentes da arte de esquerda – embora valha mencionar que nos três episódios não filmados, a série daria uma guinada mais trágica e explicitamente política.

HOLY MOTORS

Oito Horas foi filmado cerca de um século depois da publicação do Capital. Algumas situações e diálogos parecem alusões diretas a conceitos marxistas: trabalhares alienados do próprio trabalho; o controle exercido pelos detentores dos meios de produção. Alguns incidentes parecem extraídos do início da Segunda Revolução Industrial e os personagens parecem viver em um mundo no qual o Manifesto Comunista jamais foi publicado. Não há sindicatos a vista. Esses anacronismos podem parecer uma estratégia didática, mas vale lembrar das tentativas de apagamento e estigmatização sofridas pelos discursos anticapitalistas naquele país ao longo do século XX. Líderes trabalhistas alemães foram executados pelo nazismo e, no exílio, por Stalin. O Partido Comunista da Alemanha Ocidental foi banido em 1956 e refundado somente em 1968. Ideias de esquerda eram associadas ao Outro ameaçador, que espreitava do outro lado do Muro ou praticava atentados sob a forma do Grupo Baader-Meinhoff.

A transmissão do seriado coincidiu com os últimos anos da chamada Era de Ouro do Capitalismo (1945-73). O período foi marcado pela ausência de crises financeiras sérias, baixo desemprego e melhora sensível na distribuição de renda – pelo menos no Hemisfério Norte e para a população branca desses países. No intervalo, foram utilizadas políticas execradas pelos defensores da economia de mercado, como intervenção estatal na economia e restrições ao movimento de capitais.[1] O medo de alastramento do comunismo influía na concessão de benefícios e direitos. Em um contexto como esse, a insubordinação de Jochen e seus companheiros de fábrica parecia especialmente plausível.

A partir de 1973, uma série de crises estremeceram a economia global. A assistência social, a regulação econômica e os direitos trabalhistas foram reiteradamente apontados como origem de todos os males. Adotando o caminho oposto, as políticas das décadas seguintes permitiram um incremento cada vez mais acelerado da concentração de riqueza. Essas mudanças foram acompanhadas por um extraordinário esforço de propaganda. Em Oito Horas não fazem um dia os conformistas e conservadores não defendiam o status quo por acreditar que aquela sociedade era justa, mas por considerá-la imutável. Nos dias de hoje, as mesmas pessoas provavelmente falariam em empreendedorismo e estado mínimo para justificar que o capitalismo tardio é o melhor (e único) mundo possível.

Considerando a trajetória das últimas décadas, não é surpreendente o desespero e até derrotismo de tantas obras hoje classificadas como críticas sociais. Em contrapartida, o otimismo de Oito Horas poderia parecer ingênuo e contraproducente. Um dos grandes momentos da série é a festa de casamento de Jochen e Marion, uma longa sequência que reúne a maioria dos personagens, cada vez mais bêbados. Em outros filmes, seria fácil imaginar cenas parecidas redundando em conflitos. Ao invés disso, somente o cunhado conservador e um operário xenofóbico terminam isolados, enquanto entre os demais vence novamente a união e solidariedade. Por que Fassbinder, geralmente tão cáustico, teria adotado aqui esse tom positivo? Talvez por calcular que sem uma opção consciente pela esperança nenhuma mudança pode ser imaginada, postura essencial em um cenário cada vez mais adverso.

HOLY MOTORS

[1] Boa parte dessa síntese foi retirada do seguinte artigo: https://www.newyorker.com/magazine/2018/05/14/is-capitalism-a-threat-to-democracy

FacebookTwitter

Estática e cinética, sistema e indivíduo: Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles

Por João Lucas Pedrosa

Discorrer sobre Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, envolve inevitavelmente discorrer sobre a permanência (e a derrocada) de um sistema que constitui os alicerces do filme. Um sistema, sobretudo, de trabalho. Segundo a Física, o trabalho existe quando uma força exercida sobre um corpo gera o seu deslocamento. A força exercida durante esse deslocamento é a que conhecemos por “cinética”, cuja raiz etimológica é a mesma de “cinema” (kinema, “movimento”; kinein, “mover, deslocar”). Tratar de cinema é, portanto, tratar do movimento, desse deslocamento cujo trabalho aparece como fundamento-motor, como a força que faz mover. Essa força pode tratar-se da vida mesma que passa pelo ser, coisa ou lugar captado pela lente, como pode também tratar-se da força mecânica da câmera que registra os efeitos da força misteriosa primeira, e a obra fílmica surge primordialmente como produto do choque entre essas duas forças.

Em filmes como Um Homem Com Uma Câmera (1929) pode ser estabelecido um preciso contraponto estrutural e histórico a Jeanne Dielman. Em meio à exaltação da industrialização soviética e da consequente articulação entre homem e máquina (como aponta o título de sua obra), Dziga Vertov desenha em cerca de uma hora o funcionamento do dia de uma cidade, guiado pelo percurso de um cinegrafista que registra cidadãos em trabalho e/ou atividades rotineiras, máquinas e construções. A montagem estabelece entre os componentes uma harmonia operacional, como células de um grande organismo, que é a metrópole. Quando os cidadãos repousam, toda a cidade o faz, e a grandiosa geometria dos edifícios reflete o repouso dos corpos dormentes na cama, nos bancos da rua. O despertar é igualmente compartilhado e, numa das sequências iniciais, o enquadramento da chegada de um trem é justaposto a planos-detalhe da agitação de uma moça na cama de sua casa, que eventualmente desperta com o balançar do plano anterior. Os dois eventos tomam lugar em diferentes espaços, mas a edição permite o agito contagiar um espaço indeterminadamente distante. A edição estabelece uma ligação metafísica entre homem e máquina. O que os une é a força do movimento, sendo o filme o campo dessa troca sinérgica.

Imagem-1

A metalinguagem é muito presente em Um Homem Com Uma Câmera e associa o trabalho cinematográfico-criativo aos demais: o filmar e o editar não são diferentes do dirigir caminhões, do lavar roupas ou do costurar (ação, esta, justaposta com o “cerzir” da montadora). O fazer cinema faz parte do fazer a cidade,

faz parte da atividade coletiva que constitui a metrópole mesma. As máquinas trabalham para as pessoas que para elas trabalham (por isso as cadeiras do teatro abrem-se sozinhas para a acomodação dos espectadores que chegam na abertura do filme) e daí se dá o funcionamento coletivo do organismo comunitário soviético. O trabalho funciona aqui como cinética combustível do mundo, como energia vital de um espaço do operariado, que funciona pela e para a operação laboral. Eis a construção da União Soviética como um grande corpo-nação, em que o labor é a entidade que rege o mundo.

Se a obra prima de Akerman e a obra prima de Vertov funcionam como exemplares opostos, é principalmente por serem oriundos de momentos e motivações histórico-estéticas diametralmente diferentes. Na União Soviética de 1929, Vertov procurava desenvolver um cinema independente das demais artes, livre do roteiro e da noção de narrativa. Seu projeto envolvia registrar principalmente acontecimentos ao invés de encenações (salvo exceções como a moça acordando), e ressaltar, dentro da obra, o artifício cinematográfico, lembrando todo o tempo que estamos assistindo a fragmentos deliberadamente ligados, ao que registrou uma câmera, (articulando a emancipação da sétima arte a ambos o entusiasmo construtivista da época e a exaltação operarial da URSS leninista). Já Akerman, na Bélgica de 1975, influenciada pelo movimento feminista e por um crescente ideário da emancipação individual da mulher, trata não do sistema coletivo de trabalho, mas de um microcosmo laboral invisibilizado por séculos de costume: o doméstico, ao qual associará a escravização do corpo feminino. Ela se apropriará dos acontecimentos para criar uma diegese narrativa profundamente imersiva, reduzindo as ações ao mais bruto e banal pela duração quase absoluta do filme.

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles acompanha três dias na vida da protagonista que dá nome ao filme, quase todo passado dentro da casa cujo endereço também constitui o título (mulher e casa são nele cooptados como homem e câmera em Vertov). Os dias são preenchidos por atividades domésticas: fazer a cama, cozinhar as batatas, botar a mesa, servir a janta, tirar a mesa, fazer a cama do filho. As ações são registradas em tomadas estáticas, geométricas, com profundidade de campo e na integralidade de sua duração, intervaladas por espaços vazios que precedem e sucedem a entrada, ação e saída de Jeanne em cena. Ela se prostitui a um homem por dia, ação que é elipsada: o enquadramento corta seu rosto do queixo para cima, ela pega o casaco do cliente na sala e o pendura na parede, acompanha-o até seu quarto no fundo do corredor e fecha a porta. Um jump cut que baixa as luzes do cenário sugere um lapso temporal no qual teria acontecido o programa. Mesmo as elipses são posicionadas estrategicamente no intuito de manter a sensação estagnada da rotina da personagem ao preservar a duração integral de cada atividade doméstica. Ivone Margulies, em seu capítulo sobre o filme no livro “Nada Acontece”, associa essa escolha estética a uma descrição cumulativa

inspirada na literatura hiperrealista: a dinâmica dos cortes entre longos blocos de ação funcionam como conjunções aditivas, em que ações são enumeradas e empilhadas, e delas é bloqueada qualquer dimensão simbólica ou evasão metafísica. O aqui e agora da rotina de Jeanne é tudo o que há em seu amontoado alienante de tarefas.

Segundo também ressalta Marguiles, é muito caro a Akerman o movimento do cinema estrutural nos EUA dos anos 1960 e seu projeto de centralizar a forma do filme, no qual a narrativa tem importância marginal. Neles, um objetivo formal específico guia a obra (em exemplos mais claros, como em Wavelength (1967) um lento zoom in de mais de 40 minutos, ou em Back and Forth (1969) o movimento de ida e volta da câmera, ambos de Michael Snow), de forma que a encenação narrativa surge de modo fragmentário, no momento em que a câmera, no meio de seu obstinado dispositivo, acabou captando. Voltamos à dupla do início do texto: a força da vida que move o evento prefílmico e a força mecânica que move a câmera que o registra. No cinema estrutural, cada uma tem seu movimento independente friccionado, e o filme, como faísca, surge dos seus atritos e esbarrões.

Em Jeanne Dielman, entretanto, Akerman inspira-se nesse movimento para criar um corpo fílmico que ande em paridade com a narrativa e cause um impacto dual no espectador, construindo tanto uma harmonia sensorial que o embala quanto uma distensão temporal da ação que permite a reflexão sobre ela enquanto acontece. A rígida execução do sistema formal é necessária para que, na metade do filme, ele seja totalmente corrompido. Na noite do segundo dia, Jeanne queima as batatas da janta de seu filho após um programa que demorou um pouco demais, afetando as convenções de seu deslocamento pela casa (num momento de ansiedade e confusão, ela leva a panela de batatas queimadas ao banheiro) e, em consequência, o sistema formal que o rege. A retórica do filme sempre girou em torno do deslocamento (a cinética) de Jeanne pelo espaço, pois são seus passos que preenchem os vazios entre as ações domésticas dentro do plano, seja entre o ato de pegar o café do armário e botá-lo no moedor, seja nos espaços vazios entre os blocos de ação, quando aparecem em extracampo. Desde o início, esse movimento atrita com a estagnação do dispositivo linguístico que a registra. Jeanne desloca-se constantemente, num labor higiênico obsessivo (que Margulies associa à tentativa de limpar os vestígios de sua profissão, “obscena” moral e cenicamente). Uma inquietude estrutural habita as profundidades de seu ser, uma inquietude que era apenas domada pela rotina. Com o queimar das batatas, essa energia não tem mais direção. Ela esparrama-se pelos cantos e causa rachaduras no que estava cimentado pela utilidade. Apenas o acaso que invade essas fendas poderia quebrar o automatismo da rotina de Jeanne e abrir caminho para sua subjetividade como agente das ações. A força primeira (vida) ataca a força segunda (mecânica) e empurra a protagonista em direção à sua emancipação.

Imagem-2

Naturalmente, a quebra desse sistema de contenção existencial envolve o caminho inverso da cooptação homem-aparato de Vertov, à medida que os objetos domésticos passam a recusá-la, a cair das mãos da protagonista (a escova que usa para engraxar os sapatos de seu filho, a colher que acabou de secar e precisa lavar novamente). O rompimento entre Jeanne e sua rotina doméstica se reflete nesse trabalho opositivo ao seu, realizado tanto pelos elementos pontuais desse mundo (os utensílios) quanto pelo mundo em si (no terceiro dia, ela chega à padaria ainda fechada pois acorda uma hora mais cedo). A dinâmica individual é uma, a do trabalho e da cidade é outra. Cada pequeno descompasso que consuma essa cisão indivíduo-sistema gera uma suspensão, gera a antecipação de algo mais extremo à frente. A imersão no fluxo bem sucedido das ações é tão intensa, que os seus transvios tornam-se a chave do drama, ainda que haja um arco narrativo proeminente (que Margulies identifica como tipicamente melodramático). É na dimensão material da narrativa que o drama do filme toma forma.

Para o sucesso dessa empreitada estrutural, Akerman construiu uma série de acontecimentos em benefício de uma experiência diegética fortificada. Como indica Margulies, quando Jeanne/Delphine “descasca as batatas e lava os pratos, as batatas ficam descascadas e os pratos ficam limpos”. Esse pacto de aceitabilidade pelo espectador em relação à consumação real do evento prefílmico cria o choque do desfecho trágico encenado. Ao longo do terceiro dia, Jeanne tem uma hora sobrando (ela acordou muito cedo) e desliga-se totalmente de sua rotina, saindo para procurar um botão que seja o mesmo do tipo que caiu do seu casaco canadense (não encontraria, o fim é sempre o movimento). Quando chega, abre o presente de sua irmã que chegou do correio (mais uma camada para o título?) e é pega desprevenida quando chega o cliente do dia. A câmera agora entra no quarto com ela e vemos num longo take estático o cliente deitado sobre Jeanne, movendo-se muito pouco. Ela se incomoda, agita-se na cama e, em determinado momento, tem um orgasmo, do qual se envergonha. No plano seguinte, sentada de frente para o espelho da penteadeira, ela veste a blusa, pega a tesoura, com a qual tinha aberto a encomenda, e mata o homem deitado em sua cama. São as únicas vezes em que uma ação passa de acontecimento para encenação no filme, mas são ainda homogeneizadas na estrutura do filme (conectadas cumulativamente): Jeanne fez café e abriu o presente de sua irmã e recebeu o cliente e gozou e o matou com uma tesoura no pescoço. Todas as ações são atos de emancipação de Jeanne ao indicarem a ativação de seu corpo como agente de si, e cada ato antecipava o outro pela eficácia da rigidez estrutural do filme e dos seus respectivos glitches. Foi tecida uma rede de subversões que remonta à dinâmica foucaultiana da microfísica do poder, em que um pequeno evento leva a uma teia de outros eventos que desembocam na grande mudança estrutural. A estrutura do filme, assim, faz com que o pequeno evento estopim dessa rede de alterações não seja um motivo psicológico (uma relação edipiana com o filho, presente no filme: ele não suporta pensar nela com outro homem), mas um erro material que descompassaria a estrutura de trabalho doméstico por definitivo, levando ao grande contra ataque de Jeanne ao patriarcado que a construiu. Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles precisar valer-se da precisa construção de um sistema formal e laboral para ser um filme anti-sistêmico por excelência.

O último plano do filme tem sete minutos corridos de Jeanne sentada à mesa da sala, repousando com as mãos ensanguentadas. A queda dos utensílios das mãos de Jeanne, suas hesitações, seus devaneios silenciosos e suas ações-digressões da rotina eram os bloqueios gradativamente mais agressivos do fluxo cinético laboral que se consuma quando seus desejos tomam conta das decisões de seu corpo. A estagnação do último plano não mais briga com Jeanne, mas com ela descansa, na ação mais subversiva possível num sistema do movimento compulsório: o repouso.

Imagem 3

FacebookTwitter