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DAS LETRAS E SEUS MOVIMENTOS: TRÊS FILMES DE DAVID GATTEN

Por Waleska Antunes

Se alguém quiser saber alguma coisa sobre poesia, deverá fazer uma das duas coisas ou ambas: É Olhar para ela ou Escutá-la. E quem sabe, até mesmo pensar sobre ela. E se precisar de conselhos, deve dirigir-se a alguém que Entenda alguma coisa sobre ela.

— ‘O ABC da Literatura’, Ezra Pound.

Em um texto chamado The Art of Moving Shadows, Annette Michelson, teórica da avant-garde americana, discute sobre o primeiro cinema partindo da ótica da fotografia. Segundo ela, a imagem estática inserida no fluxo da narrativa cinematográfica ocasiona uma tensão e um questionamento sobre qual é a validade da imagem cinematográfica estática versus a imagem sequencial e cinemática. A leitura vai em direção a uma relação dialética entre cinema e fotografia para além do aparato e como constante eco em influência e meio. 

A inscrição da imagem estática como recurso perpassou os diversos movimentos cinematográficos, porém teve maior ressonância em seu período modernista, em especial com o uso da iconografia e pintura, principalmente no cinema dos anos 50 e 60. Seu uso era principalmente como maneira de questionar a relação entre som e imagem como meio para a representação cinematográfica não somente em forma, mas também em ideologia. Em uma análise para Letter to Jane (1972) de Jean-Luc Godard – um filme composto de uma única imagem estática – ela propõe: 

“Letter to Jane (1972) está situado em uma resposta à guerra do Vietnã por Godard e apresenta uma análise crítica de uma imagem estática, submetendo a imagem a um questionamento ideológico intenso, completando assim um ciclo histórico. Ao fazer isso, põe-se de novo em questão: quando um filme é um filme? Ou: o que é o cinema?”

Para além do questionamento ideológico da imagem, a proposição de Michelson é certeira; se o cinema é a imagem em movimento, o que está fora disso pode ser considerado cinema? Ou é uma outra coisa? E que coisa seria essa?

Esse pressuposto parte de uma imagem estática de Jane Fonda, logo, uma representação visual do mundo decomposta – experimentos esses que não são incomuns dentro do cinema, vide Tom Tom The Piper’s Son (1969) de Ken Jacobs e, em certa medida, nostalgia (1972), de Hollis Frampton – mas e quando não há uma imagem e sim, uma palavra? A palavra em si, enquanto matéria, é um ser estático; quem dá o significado ou a torna um organismo vivo é o espectador/leitor. Logo, a palavra por si só em uma tela a 24 quadros por segundo seria cinema? É possível um projeto cinematográfico que torne a palavra estática cinema?

Nenhuma dessas perguntas possui uma resposta – e se possui, levam a outros questionamentos infinitamente, como devem ser todos os questionamentos – no entanto, é possível aliar a imagem e a palavra como seres de instâncias distintas em um filme e, ainda assim, produzir um todo orgânico. Um dos nomes que melhor encapsulam essa fusão entre palavra e imagem, movimento e estático, mundo exterior e interior, o pensamento e a ação, é o cineasta americano David Gatten.

As obras de Gatten se inserem em um corpus fílmico pautado pelo uso da literatura, se valendo da escrita e do que foi escrito impressos na tela junto de imagens, texturas, efeitos fotoquímicos, teorias físicas, narrativas históricas, fissuras e turbulências. Ao longo dos anos, partindo de um cinema artesanal e íntimo, ele estende uma colcha de retalhos constante, costurando referenciais e narrativas que tornam o seu cinema, com a palavra estática impressa na tela, um cinema que se move e se conta a cada frame.

Hardwood Process (1988): A descoberta da linguagem

Nas palavras do próprio cineasta, Hardwood Process é “um filme-diário artesanal, criado a partir de técnicas alternativas de processamento, tratamentos químicos e impressão ótica e por contato, é uma história de superfícies marcadas, uma investigação e uma imaginação: sobre as marcas que vemos e as que fazemos, sobre as linguagens que conseguimos ler e aquelas que estamos tentando aprender. Escrito nos arranhões no chão, nas cicatrizes das mãos e nas gravações químicas na emulsão do filme, essas linguagens da experiência são instáveis — vocabulários que mudam constantemente com o passar do tempo.”  

Como um filme-diário errante exposto ao acaso da revelação e processamento do filme, e fruto do incerto, Hardwood Process é um filme cuja linguagem está em um processo de descobrimento. As mãos tateiam pelas paredes, as imagens se dissolvem e se reconstroem, o mundo material se torna um misto de cores e ranhuras na tela. Todas essas texturas são entrecortadas por entradas de um diário divididos por dias, onde o narrador fala consigo, conta quem visitou, quem não viu e se pergunta constantemente do que é feito esse filme. Em uma das entradas, ele se pergunta “O que são essas cicatrizes, de que elas são feitas e de onde vieram?”, como quem estivesse se perguntando qual é a maneira correta de interpretar tantas ranhuras e ruídos, e afirmando em seguida: dessas cicatrizes e ranhuras, é possível conciliar e criar, aos poucos, uma nova linguagem, um novo vocabulário. Em uma das últimas cartelas de texto do filme, surge a inscrição color pharmakon. Não por acaso, a noção de pharmakon é um mistério em tradução – podendo ser o grego para elixir, poção, encantamento e, ao mesmo tempo, designar o veneno. É um conceito proveniente de mistério. No caso de Hardwood Process, o phamakon está inserido no filme como um efeito cromático, uma matéria da ordem do inefável. Em outras palavras, pode ser descrita pelo pharmakon de Jacques Derrida como “(…) uma substância, com tudo o que esta palavra possa conotar, no que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade críptica recusando sua ambivalência à análise, preparando, desde então, o espaço da alquimia.”

Moxon’s Mechanick Exercises, or, the Doctrine of Handy-Works Applied to the Art of Printing (1999): Linguagem enquanto arte e reprodução 

Moxon’s Mechanick é o primeiro de uma série de filmes de Gatten que trata sobre a figura de William S. Byrd, escritor americano do século XVIII, com produção teórica prolífica espalhada por diversos registros escritos. As cartas, livros e diários se aliam à biblioteca vasta de Byrd, trazendo à tona o referencial como pedra fundamental no cinema de Gatten, cunhado pelo termo ‘secret reading’ – ou, uma leitura de/em segredo aplicadas aos filmes como citação ou referência implícita. Uma dessas citações foi um livro de Joseph Moxon escrito em 1703 (que batiza o filme) e que é o primeiro manual de estilo e impressão para as primeiras prensas. Gatten pega os princípios de Moxon, sobre como a letra deve ou não se comportar em um meio físico, e aplica à Bíblia de Gutemberg. 

Tal escolha não é arbitrária; a Bíblia de Gutemberg marca um ponto de transição entre a matéria escrita e a reprodução mecânica. Os trechos da Bíblia, dissolvidos pela água e colados entre os fotogramas, garantem à palavra não apenas a recuperação do ímpeto primordial da linguagem enquanto significação e enunciação, mas também enquanto reprodução e forma.

Além disso, na segunda sessão do filme, é proposto o questionamento e a navegação da palavra entre línguas, a tradução. Para o filme ser feito, foram utilizadas cinco versões da Bíblia e cada uma delas propõe uma versão da história. A leitura secreta de Gatten mistura esses excertos e, em meio ao segredo da montagem, propõe o colapso e a elevação das palavras traduzidas, as questiona e mostra ao espectador que há a possibilidade de uma história documentada e de uma história secreta, entrecortada pelas anotações de Byrd e traduções e retraduções da Bíblia. O filme é, principalmente, um tratado da letra e seus movimentos, sejam eles em uma análise da letra enquanto forma material ou do movimento do quadro cinematográfico movendo a letra. O texto é físico; o significado não o é.  

Dessa forma, Moxon’s Mechanick age como um filme-palimpsesto, onde a primeira inscrição da palavra foi raspada para que outra(s) palavra(s) pudesse(m) ser escritas. As vemos através da transparência da película cinematográfica, sem perder sua materialidade primeira, mas destacadas de um todo, e, citando Moxon, assim criando um Corpo e um Espírito da linguagem no cinema composto por letras capitais.

The Great Art of Knowing (2004): Língua como ciência 

The Great Art of Knowing é mais um dos filmes da série sobre William S. Byrd e, desde o princípio, atua como um filme-como-biografia/bibliografia da vasta biblioteca do escritor. 

O filme parte de um evento, o leilão da biblioteca de Byrd e se estrutura de forma enciclopédica pelas páginas de um livro do século XVII – cujo qual nomeia o filme – de autoria de Athanasius Kircher. Definido pelo próprio autor como um filme antinômico e de uma iconoclastia gentil, é uma análise sobre como a ciência instrumental e mecânica é a mais nobre e a mais aplicável entre todas as outras ciências. 

Isso ocorre porque ela demonstra como os corpos animados possuem movimento e como esses movimentos permitem transformar operações. Segundo ele, todo movimento tem sua origem no centro de gravidade, que está localizado no ponto de equilíbrio entre extremidades com pesos diferentes. Essa ciência também revela a relação entre abundância ou escassez de músculos e o equilíbrio entre peso e contrapeso. Nesse contexto, a mecânica instrumental pode ser entendida também como o próprio uso da palavra. A palavra, assim como o movimento nos corpos, é o que “anima” ou dá vida às ideias e expressões. Se o cinema é a “imagem em movimento”, aqui é a palavra que gera movimento, tanto ao criar imagens mentais quanto ao desafiar significados já estabelecidos. A palavra em si é o peso e o contrapeso, em combinações que estruturam o universo em uma reconstrução do mundo.  

Aliado a isso, entre uma palavra e outra, há o entrelace de textos e destinos; Gatten preenche as lacunas deixadas pela ciência, explicável e química, com o que é inexplicável e terreno, como o romance oculto de Evelyn Bird. O espaço entre as letras, as frases e as linhas criam a margem de seus próprios segredos, como se em cada uma das correspondências de Evelyn ao seu amante distante a ensinassem a viver em um imaginário secreto e íntimo, como quem lançasse uma garrafa ao mar esperando que alguém a lesse. Esse romance, da ordem do impossível, se estende em outras obras do cineasta, como no filme What Places of Heaven, What Planets Directed, How Long the Effects? or, The General Accidents of the World (2013), em variação de tom e forma, adotando assim a forma poética e como um breviário-bússola do amor perdido. 

As palavras de Gatten são dotadas de forma e movimento; se a fotografia de Jane Fonda em Godard é ideologia, a de Gatten é a palavra e a iconoclastia. E dessa iconoclastia, das palavras na tela, dos mundos dentro de mundos e das narrativas à borda da imagem cinematográfica, o que resta enquanto certeza é que não é o modo como as coisas existem no mundo que as tornam místicas; mas sim, apenas o fato delas serem. E a palavra é. Sempre é.

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O QUE ACONTECE QUANDO UM FILME DANÇA? (Dácia Ibiapina, 1984)

Por João Paulo Campos 

Entre 1978 e 1985, o grupo Mel de Abelha se dedicou à realização de filmes com câmeras caseiras super 8mm em diferentes cidades do Piauí. Este engajamento coletivo surge a partir de uma postura crítica em relação à apatia da intelectualidade piauiense diante dos fenômenos sociais que surgiram durante a ditadura civil-militar brasileira. Tudo se passa como se o grupo estivesse dizendo: se os intelectuais não querem pensar a miséria, a fome, o crescimento urbano desordenado e a criatividade popular, o cinema o fará.

Os membros do grupo Mel de Abelha compartilharam a tarefa estética (e não menos política) de dar forma às culturas locais a partir da perambulação pelos ambientes com a câmera na mão, gesto facilitado pela portabilidade das câmeras utilizadas. Filmes realizados pelo grupo — como Espaço Marginal (Luís Carlos Sales, 1980) e O pagode de Amarante (Dácia Ibiapina, 1984) — abrem mão da elaboração de teses generalistas sobre a pobreza  e  opressão  capitalista  típicas  da  produção  documentária cinemanovista para praticar uma interação inquieta com as cidades do Piauí, produzindo perspectivas de lugares tão distintos como o centro urbano de Teresina e o bairro que serve de palco para a festa popular em O pagode de Amarante. Este filme de Dácia Ibiapina parece querer nos tirar para dançar. Mas o que acontece quando um filme dança?

Nos créditos iniciais desta obra lemos “Um filme do grupo Mel de Abelha” sob a tela preta granulada. Escutamos em destaque o batuque do pagode marcando o compasso de nossa fruição – o corpo estremece, sentimos o ritmo com olhos, ouvidos, barriga e os pés pisando-pisantes. Os créditos se encerram para nos mostrar imagens de um bairro localizado no alto dum morro da cidadezinha de Amarante. Vemos planos fixos de casebres, postes de iluminação e fiação elétrica, o movimento pacato nas ruas de terra, animais e crianças brincando na sombra. A montagem sobrepõe as imagens da paisagem local à voz de Chico Dedinho, convidando o povo de Amarante para a filmagem que o grupo Mel de Abelha realizará mais tarde no pagode na casa de João Bitu.

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

  Nesse prólogo, já é possível perceber dois traços característicos da obra de Dácia Ibiapina. Em primeiro lugar, nota-se uma entrega da equipe ao encontro com as pessoas e os lugares filmados. Esta forma de trabalhar parece buscar a instauração de uma comunidade, ainda que provisória, entre equipe de filmagem e seus interlocutores – modo de trabalho que resulta numa conversa franca e direta com as pessoas. A própria forma do filme nos sugere que a relação produzida no encontro entre os envolvidos na filmagem é de franca aliança e camaradagem. Em segundo lugar, destaco a atenção particular que a autora dedica à montagem, que não apenas encadeia os fragmentos, mas também interrompe nossa fruição com o objetivo de produzir choques. A forma com que a cineasta amarra as bandas sonora e imagética também se destaca. Não se trata de inscrever numa forma simétrica ou simultânea som e imagem, mas tecer com os materiais algo singular. Um filme tecido, tal qual um bordado.

Responsável por fazer aparecer aspectos da fisionomia da cidade ao mesmo tempo que desdobra o convite de Chico Dedinho aos possíveis espectadores desta obra, a sequência inicial é bruscamente cortada pela montagem. Interrompendo o fluxo de uma possível apreciação idílica das imagens da cidade-vilarejo, Dácia Ibiapina apresenta o discurso do anfitrião dos pagodeiros, João Bitu, a partir de um enquadramento frontal. A entrada disruptiva da entrevista e a relação dialógica com a pessoa que discursa toma a forma de um papo reto com o público.

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

  João Bitu nos comunica a razão de ser do pagode de Amarante: “O pagode aqui é o seguinte. (… ) o esforço que a gente faz é pra fazer ter movimento”. O homem se queixa dos preços altos que atrapalham a vida naquele tempo e apresenta o pagode como uma forma de arrecadar dinheiro e inventar formas de se movimentar em reação aos problemas que assolam a comunidade. O pagode também convida os “velhos pra dançar”, contribuindo para a lembrança de que eles estão vivos e, por isso, não podem ficar parados, pois, “se nóis fica parado, nóis fica morto”.

O discurso do personagem provocado pela entrevista de Dácia Ibiapina descortina aspectos de uma situação social e política que ambienta o festejo popular. As forças invisíveis que surgem no discurso do pagodeiro Bitu são capazes de imobilizar os corpos das pessoas pobres (sobretudo as mais velhas), e também podem suscitar reações bastante inventivas, como é o caso do pagode. Nesse contexto de precariedade material, devido ao desemprego e à inflação, os pagodeiros de Amarante colocam as pessoas a “pular prum lado e pra outro” numa coreografia alegre. Uma resposta criativa às forças petricantes que emergiram das entranhas do “Milagre Econômico” do governo militar.

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

  Da entrevista saltamos para o festejo popular. Com a câmera na mão, a documentarista se imbrica no outro em festa: é noite de saliva, suor e pagode em Amarante. Homens e mulheres comem, bebem e dançam girando de um lado para o outro da roda iluminada por alguns refletores. Nos interstícios da movimentação dos corpos, distinguimos semblantes embebidos de suor e pagodeiros tocando seus instrumentos. Os pés dançantes enquadrados em plongée (de cima para baixo) evocam imagens de um filme realizado dois anos antes por Leon Hirszman, Partido Alto (1982). Ambas as obras se dedicaram a uma observação e escuta atentas às diferentes formas da criatividade popular a partir de engajamentos etnográficos de casos particulares: o pagode no Piauí e o samba de partido alto no Rio de Janeiro. 

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

A montagem do curta de Dácia Ibiapina entrelaça imagens das pessoas dançando com entrevistas com os pagodeiros. Além disso, é possível distinguir um motivo visual que se tornou recorrente no cinema da diretora: a observação das pessoas na labuta. No meio do festejo, a documentarista desvia nossa atenção para as mulheres que preparam a refeição do pagode. São trabalhadoras de movimentos manuais ágeis que se colocam na tarefa de descascar laranjas a fim de colaborar para a nutrição da coletividade na farra.

A noite se encerra e o dia ressurge. Acompanhando o movimento do pagode que não cessa com a noite virada, a câmera curiosa da cineasta deambula pelo espaço como se tentasse mimetizar o movimento dos corpos. Explorando a silhueta escurecida das construções à contra luz da manhã que se anuncia, Dácia Ibiapina rascunha desenhos com sua máquina-mão, brincando com os volumes negros das casas e árvores.

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

  O pagode de Amarante inventa uma instância que acolhe a alteridade e dá tempo à performance popular, nos oferecendo uma etnografia sensorial do movimento dos corpos que se misturam articulada ao ritmo intenso do pagode e aos discursos das pessoas entrevistadas. Este poderoso experimento procura antes performar em relação à alteridade e produzir uma ação no espaço citadino do que representar cidades e culturas.

Se aproximando do happening e da performance, o filme realiza um engajamento sensual com a festa popular. Dácia Ibiapina nos presenteou com um curta-metragem de texturas que coloca a vida em seu devido lugar: em movimento. E eu, que sou duro como uma rocha e nem ao menos sei dançar, o que farei depois de assistir a esta raridade no atual contexto de petrificação no Brasil e alhures? Eu quero mais é cair num pagodão!

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PALAVRAS AO VENTO: LUCÍA SELES E CHARLES ROXBURGH NA CONSTRUÇÃO DO COTIDIANO

Por Pedro Tavares

A relação do cinema com a palavra – escrita, falada, intencionada – é inerente à linguagem dos filmes narrativos e condensa seu rumo após o cinema das atrações. Seja pela relação direta como cartelas que comunicam intenções, sentimentos e caminhos de um filme sobretudo na fase do “cinema mudo” indo daqueles que mais investiram no lirismo das imagens como Dreyer ou daqueles que usavam palavras como um complemento às ações corporais como Chaplin e Buster Keaton. Há outros, como Jonas Mekas ou Hollis Frampton, que usufruíram da força das letras e palavras para comunicar, ou aqueles como Godard, que pagam tributo à palavra pela força da leitura, ou como Straub e Huillet, que transformam o exercício de compreensão em beleza. Ausência de explícita comunicação como forma de tensão narrativa e de representação, como são os casos de Chantal Akerman e James Benning, por exemplo, também perpassam a relação das imagens e da comunicação.

Se hoje é possível vermos uma teia de elementos de comunicação em um só plano em filmes como Unseen (Yoko Onomura, 2023), Desaparecida (Missing, Nicholas D. Johnson, Will Merrick, 2023) e Unfriended (Levan Gabriadze, 2014) na junção da palavra, mensagem de textos, imagens de desktop com o desenrolar da trama, chamam atenção dois realizadores contemporâneos que, de formas distintas, realçam a relação com a palavra e o verbo. A realizadora argentina Lucía Seles, de carreira prolífica e de método rígido em relação ao desenvolvimento de trama e construção de personagens, e o norte-americano Charles Roxburgh, que baseia suas comédias na verborragia e no como ela molda o cotidiano absurdo de seus personagens. 

São dois realizadores que residem em extremos opostos quando pensamos em construção e efeitos. Seles desenvolve suas tramas como contos passíveis de seus próprios comentários. Eles vêm em frases escritas na tela, tal qual uma mensagem de texto em um desktop movie. Ela comenta o caminho dos personagens, as locações, as reviravoltas e, claro, seus próprios métodos. Já Roxburgh utiliza de formas estabelecidas na sociedade moderna, como propagandas para televisão, espetáculos de stand up-comedy ou palestras, para dialogar com situações que se costuram muito bem com o subúrbio americano, local no qual seus filmes se desenvolvem. 

Roxburgh sempre trabalha em parceria com Matt Farley, protagonista de todos os seus filmes e que dirigiu Local Legends: Bloodbath (2024), longa-metragem que serve como representação satírica do pequeno núcleo que representa o cinema independente, sobretudo dos realizadores que usam de seus arredores e amigos para filmar e, que no primeiro lampejo de reconhecimento, entram em crise. Farley simplesmente utiliza das cartelas para afirmar que se trata de um filme de Roxburgh, ou seja, não há grandes mudanças nos métodos de composição. Bloodbath parece sair do mesmo mundo de Boston Johnny (2023) e Heard she got married (2021), estes sim dirigidos por Roxburgh, que está no elenco do novo filme de Farley.

Em comum, Seles e Roxburgh têm seus próprios universos desenvolvidos pelas palavras. Em Seles vemos os mesmos atores, personagens, locações e que aos poucos passam por mutações como uma série de filmes que muda de temporada, a exemplo da “tetralogia do tênis” composto por Smog en tu corazón (2022), Saturday disorders (2022), Weak rangers (2023) e Terminal Young (2023). O método de Seles segue intacto em seus mais recentes filmes como The Urgency of Death (2023) e Escuela Privada Alfonsina Storni (2024), mas o que chama atenção desta primeira “série” são as respostas vindas na mesma forma que seu método como vemos nas reações do público via Internet registradas pela Revista Caligari:

Roxburgh recomeça suas intrigas a cada filme, porém, como Seles ou Sang-Soo, seus métodos e referências dizem mais que os próprios personagens ao (re)compor seu mundo no subúrbio norte-americano. Frequentemente composto por relações do “dizer”, ou seja, recontar o que foi dito e, neste ato, ter tempo para ouvir as palavras escutadas com mais – ou menos, dependendo do caso – atenção e caminhar, durante o filme, para embates envolvendo situações passadas, Roxburgh condensa a vida cotidiana e seus pequenos curtos-circuitos. Seja em uma promessa feita que é obrigada a ser descumprida e que levará às mágoas de um homem a explodir, ou um homem apaixonado que tocará suas músicas em um restaurante para conquistar o seu amor e renega a força de uma boa conversa, o diretor cria teias de relações de caos e bonança com o humor que lhe é característico e que dá espaço para seu protagonista-parceiro Farley refazer seus caminhos e ironizar este feito.

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Um filme que não é de Charlie Roxburgh.

O que difere de Farley a emular Roxburgh com John Turturro a fazer um filme de Woody Allen em Fading Gigolo (2011) ou Alfonso Arau em Picking up the Pieces (2000) por exemplo, é como sua frontalidade é passível de mudanças suaves como um divertido jogo dos sete erros. A pergunta é justamente se Roxburgh se comunicaria da forma que Farley ou se teríamos uma abordagem distinta. Este ruído que é intuitivo entre Roxburgh e Farley toma corpo na filmografia de Lucía Seles que utiliza de espaços coletivos – clubes, colégios – e pauta o espectro social e as distorções e repercussões das palavras ditas ou intencionadas. Como uma grande ação do ver e ouvir, Seles se permite intervir como uma ouvinte sentada à mesa com aqueles que contam a história, com seus braços cruzados e com frieza cirúrgica pronta para rebater o que se vê e o que se diz, ou, simplesmente, assumir suas identificações com personagens, espaços, situações e emoções. Dois casos ricos do cinema contemporâneo sobre a plurivalência do ensejo, mesmo quando se assume como diversão domesticada – ou poesia do mundo capitalista e que produzem em alta escala pois têm muito a dizer. Como um dos personagens de Local Legends diz: “você faz filmes com mais velocidade do que eu para vê-los”.

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Farley usa cartelas como troca de mensagens em Local Legends: Bloodbath! (2024)
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TAQUICRAFIA ESPIRITUAL: A PALAVRA CARTORIAL DE KAFKA TRANSCRITA PELO CINEMA BURLESCO DE STRAUB E HUILLET EM “RELAÇÕES DE CLASSE”

Por Luiz Soares Jr.

“Se há uma coisa que pode ser encontrada na teologia chamada judaica em Kafka é sua virtual ausência do conceito de Natureza; em certo sentido não existe Natureza na Gêneses, já que o mundo é criado para o homem”. ”

Günther Anders, Kafka pró e contra

“Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito…Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta…acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau.”

Conde de Lautréaumont, Cantos de Maldoror

Em seu Le champ aveugle, Pascal Bonitzer tem uma intuição de vertiginosa profundidade genealógica, quando nos diz que o cinema começou escatológico (no burlesco: Fatty Arbuckle , Sennet) e terminou frígido, com Marnie de Hitchcock: esta História feito cristal teve seus paradigmas, suas exceções, seus heresiarcas e asseclas, mas no Relações de classe (adaptação do América de Kafka pelo casal Straub e Huillet) ela adquire, para nos intrigar e enlevar de fascínio, uma mecânica muito bem torneada, oleada, escorreita e lisa, mas em todo caso uma mecânica: na citação intertextual do encontro de Karl com o policial saído diretamente de um Chaplin da Mutual, temos a sensação de que algo de muito antigo e nobre acedeu novamente à profundidade de campo de uma tela de cinema, e nos convoca para indagar de suas origens; o policial corre, apita, corre de novo (atrás de Karl, que por sua vez foge impromptu), e acaba por perdê-lo para um cubículo estreito e vertical onde Delamarche espera o rapaz para tapar-lhe a boca; em um découpage causalista de soberana potência demonstrativa (ou deveria dizer “monstrativa”, forçando os limites da língua para falar da fulgurância do gênio?), um plano para cada ação e uma ação em sequência da outra, Straub e Huillet se utilizam da diligência mecânica do burlesco para nos falar de corpos autômatos, da tragicidade do autômato espiritual que recupera o Kafka cartorial de seus últimos romances para se apresentar numa arte materialista, onde figurar um corpo que se precipita espaço abaixo é uma questão seminal.

Um moto perpétuo de engrenagem que adquiriu autonomia, uma inconsciência automática, um encadeamento de causas e de efeitos que se implicam reciprocamente são os comandos desta sequência fabulosa, sobretudo se a pensarmos como uma exceção, visto que ao longo de todo o filme o expressionismo reivindicado por Straub e Huillet se nutriu de um classicismo muito à americana, tamisado de luz e sombras, découpage elementarmente arquiteturado (campo, contracampo, entradas e saídas de campo, raccord diretivo do olhar, em suma, uma transparência elementar, que só se recorda da câmera para um sibilante flerte com o extracampo do texto onipresente: Kafka, Mallarmé, Pavese, Corneille), mas de um espaço coordenado pela vontade de potência de um escriturário de cartório; Straub, numa entrevista a Positif, nos falava de sua nostalgia pelo grão do som dos primeiros falados, de Lang e Féjos e ao Man to man de Dwan, e aqui como em seus melhores ele sabe destilar a pregnância de um da-sein (ser aí) que poucos tardios souberam reencontrar (sim, pois houve um Era uma vez na sua história onde o cinema, com Lumière e Secondo de Chomon, foi “aí”; as mediações todas vieram depois, e  paulatinamente), mas este ser-aí só o “é” se o pensamos como o atalho a posteriori para uma consumação da história do cinema clássico e expressionista alemão (este encontrou na América uma suprassunção dialética de sua atmosfera, seus personagens assombrados e seus cortes abruptos do inconsciente do personagem para o cenário de cartolina pintada onde este se exteriorizava, enfatizando-se o fato nada fático de que a América castrou o stimmung histérico do expressionismo e ficou apenas com o esqueleto ou estrutura de seu cenário mental e objetivo, como os dois últimos Lang tão bem ilustraram); o “ser aí” do casal Straub e Huillet, porém, veio ao final de uma História, e assim reencontrou seu começo, mas o preço a pagar foi um diálogo de sombras urdido pelo agenciamento, ativo mas minimalista, das sublimes mediações de majoritária História aurática do cinema, arte é bom lembrar herdeira do extracampo da pintura e (um tanto menos) do teatro; mas como Straub e Huillet, adaptando um autor de escritura cartorial como Kafka, vão acabar por reencontrar a presença suntuosa dos primórdios do cinema falado? Em que medida a palavra, avara de enfeites mas não de metáforas, de Kafka vai servir de uma plataforma inexcedível para esta adaptação segundo a letra e o espírito de sua novela americana?

Em uma carta a seu amigo e executor testamentário Max Brod, Kafka, aqui um rabino niilista, escrevia: “Há um ponto além do qual não há a possibilidade de retorno; é este ponto que devemos atingir”; o ponto teleologicamente orientado para a tragicidade do no return, no casal Straub e Huillet , é precisamente este aí: o murmúrio de ramagens das árvores, as pegadas do homem no espaço, sua respiração, o trateio de sua fala entrecortada de saliva e ar; e qual palavra senão a protocolarmente neutra de Kafka ( os franceses diriam: a palavra do on, do pronome indeterminado que envolve o nós e o eles) é a necessária para ressentirmos, como uma mosca na teia da aranha ou de um corpo no furacão, a resistência que os elementos, naturais e humanos, opõem ao sentido ideológico-metafísico, para a perversa preeminência da Ideia sobre o ser? Como bem pensava Daney, a resistência dos Straub é da ordem da rocha: um túmulo para o olho, é como ele diz mais precisamente; tudo o que é resiste à cooptação pela ideologia, pelo significante, pela alienação geral do homem decaído do cotidiano (Heidegger), pela metafísica da subjetividade, etc, e se Kafka é paradigmático desta condição, mais ontológica que política (mas também política, ambas devidamente coordenadas por uma reflexão imanentista) é porque o seu texto mata-mosca só permite filtrar aquilo que resiste igualmente ao sentido fácil e frívolo, à flor da pele, à perigosa sedução pela prosa engalanada do beau siècle, que os Straubs exorcizaram com seu decoreba de cooper de dicção cosmopolita na adaptação do Corneille de Othon: se os Straub o escolheram, antes de tudo é porque, autores austeramente quakers, as sentenças lacunares do autor tcheco (como Lucrécio, como Mallarmé, citados expressamente por Straub em entrevistas e corpo a corpo com a redação dos Cahiers) permitem a incrustação, a  captura, a cooptação do essencial, um exorcismo da superfície e do anódino em nome de uma profundeza dialogal com o passado, da história da literatura, do cinema ou do Talmude, de sua fixação no coração da presença filmada: elas exigem ser preenchidas, como o fora de campo do cinema tardio straubiano, pelas interjeições expletivas, índex de atenção humilíssima aprendidas pelo espectador ao cabo do filme-Lição;  no caso do casal hermeneuta, com tudo aquilo que “é aí”/da-sein ao alcance da mão do homem e transcendente ao seu domínio programático, prático-inerte; mas também porque, em corredores ensombrecidos, Straub pode designar a presença/ausente do expressionismo metafísico de Night of the demon de Tourneur ou Sétima vítima de Lewton/Robson, por exemplo: ao puxar para si o classicismo americano como metro de toda figuração, o casal também está se assenhorando do expressionismo, cujo maior legado foram as obras em chiaroscuro e unheimlish da América profunda; este aprendizado de centrar toda a atenção naquilo que resiste se faz pedagogicamente no Relações de classe, como num bildgsroman filosófico, paradigma Wilhelm Meister e Fenomenologia do espírito: cada encontro ( com o foguista, com Delamarche, com o garoto do ascensor, com Brunelda, etc) vai permitindo a Karl ascender a um grau superior de know how sobre o que o cerca, sobre o  fenômeno e a ética e a necessidade insofismável de achar uma ponte entre eles: esta operação, como num espelho convexo de epifanias fulminantes de alteridade, também tem por objeto a percepção do espectador, é claro, porque sem isso ainda seríamos clássicos; é a neutralidade háptica do mundo que resiste, a heterogeneidade do sintagma e do plano que persiste resistindo ( Daney ainda: “(…) disjunção, divisão (…) o olhar a e a voz, a voz e sua matéria, seu grão); à montagem ideologizada, dicotômica significante/significado, superestrutural dos russos o incipiente cinema falado americano resistiu com o grão da fala, do rugido do vento, da burilação do espaço pelos corpos: ao terrorismo dos constructos russos, o cinema falado resistiu, como as sentenças lacunares e protocolares de Kafka resistem (modelo das fábulas e ditados do Talmude judaico, a lei oral que permitiu a sobrevivência da doutrina hermeneuta do rabino Hilel) ao senso-comum, ao prático inerte da literatura de consumo rápido ( e portanto também ao capitalismo, sistema que a endossou porque ganha um usufruto infinitamente sórdido com ela); os Straub, sem o declarar, fizeram outro filme de inspiração rabínico/materialista (e qual grande cineasta não cerziria o Segredo segundo o anátema da matéria, daquilo que ainda resiste ao filisteísmo doutrinário?), à semelhança do Fortini cani e do Moisés e arão: Kafka era um sábio talmudista laico que, como na balada de Wilde, não ousava dizer seu nome, e foi incólume aos ventos do Sul- um tanto como na revolução dos passos de pomba nietzschiana- que ele nos deixou algumas das páginas mais belas sobre o Totalmente Outro, agora em chave imanentista/burocrática, do século 20. 

Ao elegerem Franz Kafka como o estilista menos estilista de todos ( aquele para quem o estilo é antes de tudo um problema, uma questão: como o teorema de Gödel, sempre infenso à resolução do raciocínio fiável), o homem da prosa plana e do sintagma elíptico, o casal Straub e Huillet, fiéis à letra e o espírito do rapazote burocrata de Praga, elevaram-no à condição de clássico que um filme ruim como o de Orson Welles lhe negara de forma brutal; e para terminar: não tenho como capturar neste texto o tempo intempestivo de Relações de classe, como capturo seu espaço anfractuoso e saturado de luz, mas revejam e reparem que Huillet, montadora do casal, sempre nos dá um tempo maior antes e depois no plano ocupado “há pouco” por uma pessoa ou um objeto ( de pronto: a valise de Karl, a estátua que abre o filme e a estátua da Liberdade, etc); é seu jeito de resistir mais metafísico: um pouco de tempo em estado puro antes e depois, um infinito tempo incrustado num plano de densidade inquebrantável; ao cinema terrívelmente ruim que hoje nos bate à porta vindo de todas as partes do mundo, a resistência ofertada por Kafka, Cézanne, do casal Straub ( como também de excelsos cineastas como Apichatpong, Costa, Claire Denis, Stanley Kwan, Eugène Green, Kiyoshi Kurosawa e Rousseau) é um alento, uma inspiração e a realização de uma Promessa para a cinefilia penitente.

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O TRAJETO DA PESTE E OS INSTRUMENTOS DA MORTE: UM HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA ENTRE EDGAR ALLAN POE E ROGER CORMAN

por Gabriel Papaléo

”E então, tudo é loucura – a loucura de uma memória que se ocupa de coisas proibidas.”

Edgar Allan Poe, O Poço e o Pêndulo

Adaptados diretamente para o cinema por diretores como Jean Epstein, Edgar Ulmer, Dario Argento, George A. Romero e Lucio Fulci, os contos de Edgar Allan Poe também inspiraram diversos outros cineastas que trabalham com o imaginário do horror gótico dos mistérios sobrenaturais, cuja obsessão com fantasmas e maldições mantém sua influência no terror até hoje. Entre 1960 e 1964, o diretor Roger Corman realizou algumas das mais famosas adaptações do escritor, oito longas-metragens baseados nos contos do americano no que ficou conhecido como o “Ciclo Poe”, da American International Pictures. Para essa edição da Multiplot!, focada no diálogo e nas interseções entre cinema e palavra, pensei imediatamente em dois dos filmes desse ciclo: O Poço e o Pêndulo, de 1960, e A Orgia da Morte, de 1964 – duas adaptações particulares por suas sintonias finas entre a adaptação das tramas e de suas viradas, incorporando a essência do medo que atravessa os escritos de Poe para além de suas intrigas. Como o cinema de Roger Corman, que ao lidar com o fantástico buscava entender o desconhecido, sentir o mistério, descobrir a distância entre o palpável e o etéreo, lida com um escritor cujas imagens de horror perduram por mais de um século no imaginário cinematográfico?

A morte contra o tempo

No conto O Poço e o Pêndulo, a morte em Poe é vista por fragmentos: o narrador enxerga chamas que aos olhos se confundem, alguém cujos algozes desconhecemos, que sabe apenas por imagens imprecisas que caiu num poço cuja armadilha pende de cima, e se aproxima a cada instante. A descrição minuciosa do espaço ao redor mapeia diretamente o olhar do narrador que tateia, no completo breu, essas paredes, intuindo seu cárcere apenas pelas medidas dos seus pés e mãos – uma imagem hipnotizante, mas bastante complicada de se transpor para o cinema. Diante dessa escuridão de base, Corman toma outros caminhos, e junto do roteiro do grande Richard Mathieson, capta o que Poe oferece de essencial em espírito para a sua atmosfera de opressão, e principalmente de contexto histórico: a complexa cela, palco dos sadismos de homens invisíveis, era instrumento de tortura da Inquisição Espanhola. É através dessa pista, a princípio apenas contextual, que Corman encontra a danação da alma que quer filmar.

As cores abstratas do início do filme, escorrendo pela tela, apresentam um contraponto ao escuro apavorante que Poe descreve no conto: o que era indistinção de luz no breu literário vira indistinção das formas nas imagens cinematográficas; são imagens que preparam terreno para o prólogo que, sem diálogos, já antecipa a chegada a um lugar sombrio sem recorrer ao desespero inicial de desorientação de Poe. É justamente porque o interesse de Corman é mais num mal-estar construído aos poucos, não da clausura forçada da cela, mas a clausura consentida da conveniência do castelo; menos uma prisão espacial e mais uma prisão temporal. 

Esse é um dos mecanismos narrativos que explicitam como a transposição do texto de Poe para o filme é mais detalhada nos seus comos e porquês: o roteiro é focado nas intrigas familiares que disparam o contexto para a armadilha do título ser filmada – uma cerimônia em torno daquela armadilha que não causa o mesmo choque proposto por Poe, mas adere à violência física e simbólica que, tanto pela forma de narração quanto pelo contexto histórico de opressão institucionalizada, já estava no texto.

A ambientação da inquisição espanhola do conto original é colocada em perspectiva pelas lembranças familiares do protagonista: filho de um inquisidor que mantinha no castelo as máquinas de tortura como troféus, Nicholas precisa lidar com um espaço que teme e odeia por mera letargia cerimoniosa com seus deveres familiares. A violência se torna uma herança histórica maldita, um pesadelo formado no sangue do personagem de Vincent Price, cuja casa é amaldiçoada justamente pelos crimes do passado de seus familiares. O tormento de sua esposa morta, que sentia medo do que aquele castelo guardava, permanece entre os corredores como uma assombração, uma rara presença extracorpórea que percorre o filme.

Para discutir esse fantasma que ronda o castelo, Corman usa de demais imaginários da escrita de Poe. Outra das imagens que atormentam o protagonista, os retratos de sua esposa morta, vem como mais uma herança de Poe, especialmente no conto O Retrato Oval, que também falava sobre quadros pintados em homenagem a almas tão perturbadas que permanecem vagando como fantasmas. Ao pintar o rosto de sua esposa, Nicholas simbolicamente a mantém viva, vigilante por uma casa que não suporta sua perda, cujas criptas escondidas revelam os segredos que psicologicamente a consumiram. À medida que vemos flashbacks do passado de ambos, e conforme o irmão da falecida descobre mais sobre o castelo e seus habitantes, vai se construindo um mal-estar que mantém no seu centro um crime do passado que projeta sua sombra pelas paredes do lugar.

Quando a grande revelação acontece, não por acaso, os doppelgängers se enfileiram, porque a intriga do presente se torna a do passado, com seus adultérios provocados quase que pelos espíritos violentos da casa. Um histórico de horror é tornado concreto pelo salto entre o simbólico e o literal: Nicholas, o homem apaixonado e traumatizado que passou uma vida a negar a herança maldita de seu pai homicida, abre seus olhos diante da traição de sua esposa e de seu amigo para ser legitimamente possuído pelo espírito do pai inquisidor. Essa mudança, magistralmente conduzida por Corman ao encenar a queda da escada – para que nos lembremos que quanto mais profunda a viagem para o subsolo, mais descobrimos o horror desse passado – é trágica pelo seu peso do inevitável, um legítimo sentimento gótico herdado de Poe sem nem ao menos estar no conto original.

A armadilha do poço e do pêndulo, que no texto de Poe evoca a leitura dos dois acertos de contas com o destino, o inevitável manifestado ao norte e ao sul do narrador, aqui é a ferramenta de tortura contextualizada de um homem cuja vingança tem os laços sanguíneos que buscou recusar uma vida inteira. O que em Poe eram dois abismos de existência – cujo resultado só podia ser a morte exemplificados pelo pêndulo cortante e o poço escuro e infinito – aqui é lido sob uma ótica de fatalidade histórica: os dois abismos têm suas origens no que a família conjurou para sua linhagem, instrumentos de tortura institucional que se espalham pela História como ferramentas também de vinganças pessoais, passionais, conjugais. É um dos muitos trunfos do roteiro de Mathieson: para mantermos nas referências literárias, se adapta não a Júlio César, mas sim ao espírito de Roma.

A morte contra Deus e o diabo

Em O Baile da Morte Vermelha, a extravagância do príncipe Próspero, o anfitrião do baile do título, é sentida principalmente pelo seu apreço pelos rituais da festa: há um badalar constante que arrepia a espinha dos convidados, a forma que organiza as cores variadas de cada espaço no conto, salões declaradamente caracterizados pelo narrador pelo seu potencial de horror, há uma sensação de movimento constante entre os convidados, e um espectro de controle, de poder sobre seus vassalos, que ronda o castelo muito antes da Morte Vermelha dar as caras; uma obra in loco, friamente calculada por um anfitrião que pensa como Deus. Em A Orgia da Morte, sua contraparte cinematográfica, o príncipe Próspero, vivido também por Vincent Price, pode até pensar como Deus, mas sua fé é enquanto servo devoto de Satã.

A Orgia da Morte logo apresenta muitos dos lugares conhecidos do conto, como as câmaras coloridas e o relógio cujos badalos suspendem as almas alheias por um momento. Mas também se estrutura como uma conversão do rigor de Poe para uma narrativa novelística, condensando as ações e as intrigas mais em volta do espírito e da poética da prosa de Poe, e menos em sua trama. Aqui, o diretor é bem mais fiel ao conto original que em O Poço e o Pêndulo, mas não deixa de tomar suas liberdades tanto narrativas quanto analíticas. Em Poe, o papel da morte é onipresente por sua implacabilidade quase científica, uma peste que arrasa um castelo como forma tanto de demonstração de seu poder absoluto – que não conhece marcações de território –, quanto de vingança moral contra um homem que julgava controlar o destino de si e dos que tiraniza. Aqui, esse julgamento moral é mantido em foco sob uma constante disputa de fé, entre Próspero e Francesca, entre Deus e Satã, entre Satã e a Morte. Interessa a Corman os iconográficos variados do inevitável, e para isso filma outras formas de misticismo, do tarô ao ritual de sacrifício, passando também pela religião.

Desde o prólogo, o filme de Corman vai numa raiz religiosa punitiva da peste, como o início de A Maldição do Demônio, de Mario Bava – não por acaso um sucesso de bilheteria nos Estados Unidos, que foi trazido ao país pela mesma AIP. O príncipe de Vincent Price condena o pequeno vilarejo ao fogo sem pensar duas vezes, e a destruição daquela gente humilde assombrada pela tirania humana e da peste permanece um espectro que consome A Orgia da Morte. Como Bava, Corman filma formas de encarar imagens amaldiçoadas pela disparidade social, por quem os poderosos marcavam como hereges e dispensáveis, desde os sacrifícios religiosos até as humilhações às quais os convidados são constantemente submetidos. Nesse sentido, é marcante a sequência dos camponeses que pedem pela clemência de Próspero para que ele os deixe entrar no castelo e se proteger da peste: ao recusar, o conde ordena a morte de todos (menos de uma criança), e os seus guardas sacam as bestas e disparam flechas sem cerimônia, sem piedade ou hesitação – mortes brutais filmadas de forma ríspida, seca. O corte a seguir soa ainda mais cru, porque exemplifica bem a indignação social de Corman: imediatamente depois das mortes, vemos o banquete que acontece no castelo, dos visitantes que estão entre reféns da crueldade mística do rei e felizes súditos de uma terra arrasada.

O badalar do relógio do conto aparece no início, um marcador momentâneo do horror, que relembra aos presentes a sua efemeridade e, principalmente, a sua clausura – mas são pequenos toques estilísticos de ambientação cuja importância no conto é consideravelmente maior. Não deixam de ser bons motifs visuais na construção estética do filme, mas estão lá por outros motivos narrativos, da mesma forma que os salões de luzes coloridas, aqui adaptados para uma cripta que esconde os desejos mais ritualísticos do conde e de sua esposa. Convém mais à batalha espiritual do filme que essas criptas sejam menos esboços de um esforço intelectual de construção de terror por parte do príncipe, e mais locais pregressos de tortura, cuja oferenda é para seu mestre sobrenatural. A última cripta, preta com luz vermelha, é o local principal das cerimônias, a igreja de Satã cujo uso diário de repouso dos seus vassalos reais está sempre pronta para ser usada como altar de sacrifícios e pactos.

Não por acaso, a Morte Vermelha confronta Próspero nessa sala. A morte surge como punição do culto a Satã, um acerto de contas que arrasa com um homem que pensava enganar a morte ao ser também súdito de uma autoridade maior, e que encontra na Morte Vermelha um oponente tão poderoso que usa de seu rosto para amaldiçoá-lo para sempre – mais um duplo na leitura de Corman aos textos de Poe, uma curiosa ideia que não está presente nos contos.

No conto de Poe, o confronto místico se dá enquanto plano estético: a peste personificada em um corpo que transita pelo baile, mas cujo alcance não deixa de ser científico, não religioso. Já no filme de Corman, como recompensa a todas as discussões teológicas no confronto de fé entre Francesca e Próspero, a representação se torna ainda mais etérea: no clímax, ao espalhar a doença por todos que se julgavam seguros dos horrores, Corman filma uma dança macabra como um ataque zumbi, da peste que se espalha pelo salão até a morte de todos, como um equalizador das castas – a Morte Vermelha mostrando aos humanos que seu alcance é vasto e oferece vidas como forma trágica de provar sua supremacia diante das deidades que cultuamos. Tragédia essa reconhecida pela Morte quando encontra seus pares, as outras responsáveis por pestes, trajadas com vestes que ecoam justamente as câmaras coloridas do castelo; entidades destinadas a continuar a espalhar o horror inexplicável e inapreensível da morte.

É nessa repetição da violência que Corman encontra Poe, uma linhagem de horror que se recusa a cessar diante da mudança dos tempos, cujas ideias aproximam muito os dois filmes. Em certo momento, Próspero diz que, nas criptas subterrâneas sua família, tortura pessoas há pelo menos uma centena de anos, como se Vincent Price aqui fosse uma continuação do inquisidor de O Poço e o Pêndulo e um oposto de seu filho, três personagens marcados por um histórico sanguinário. Esse mal-estar, essa contemplação estupefata do horror, atravessa as palavras de Poe nos dois contos originais e em muitos outros, e aqui ganha no corpo da História, explicações dolorosas para esse mal que paira sobre a Terra, e que o escritor americano nem sempre se interessava em mapear o porquê dele. Nessas duas brilhantes adaptações, as raízes da violência têm em seu coração as trevas do exercício apavorante de um poder que se julga ilimitado até encontrar autoridades mais fortes. Seja no destino inevitável da morte, seja na repetição terrível do tempo, sentimos a respiração de dois monstros invisíveis e metafísicos cujas concretudes ganham corpo, quadro e movimento com Roger Corman.

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UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA (MUGUNZÁ, 2022)

Por Geo Abreu

Séculos distante da trilogia tebana, da tragédia fundadora de Édipo, que marca o destino de sua família, em Mugunzá o que vemos é uma história tipicamente brasileira: a vida de uma mulher negra e lésbica lutando contra as opressões cotidianas em uma cidade pequena e cuja luta por dignidade e liberdade parece atravessar gerações, todas marcadas por dilemas de fundo semelhante: raça, sexualidade e classe.

Apresentando Arlete – interpretada por Arlete Dias –  como narradora e personagem principal, acompanhamos o desenrolar de alguns capítulos de uma vida insubmissa: mãe, dona de bar e crítica da situação política de sua cidade, Cachoeira, essa figura se vê perseguida dentro de sua própria casa, onde a encontramos devastada desde a sequência de apresentação. 

Arlete vive enquanto narra, reivindicando sempre a palavra a partir da necessidade que sente de contar a própria história. Na esteira disso é possível dizer que uma das forças desse filme é seu texto, que tem uma importância antiga, muito anterior ao cinema, remontando a oralidade como transmissão de conhecimentos. 

Essa força da palavra, aliás, é característica da já profícua trajetória da dupla de diretores Glenda Nicácio e Ary Rosa, cujos filmes, desde Café com Canela, entre diferentes escolhas de procedimentos, se ancoram sempre na importância de uma comunidade, nas formas como as opressões cotidianas atravessam os corpos negros e o desenrolar de histórias de pessoas que se negam a ceder a elas.

Entre escolhas que chamaremos aqui de artesanais, como locações únicas e a forte presença dos atores em cena, com seus textos e sotaques afiados, a impressão é de que todos os procedimentos arranjados para contar essa história são calcados em pressupostos ancestrais, desde griôs e a oralidade, passando por bardos e arautos – de onde tirei a referência às tragédias gregas clássicas -, passando pelo teatro, – escolha escancarada em Mugunzá -, esses artifícios artesanais, experimentais para o cinema, se resolvem concentrando toda a potência do que vemos na tela no corpo dos atores, e não há dúvida de que o filme exista em função de Arlete Dias, antiga colaboradora de Nicácio e Rosa.

Recusando encarar esses procedimentos ou escolhas dos realizadores como necessidade pautada pelo material e encarando o minimalismo da estrutura de palco, locação única e um ator – Fabrício Boliveira, em cinco papéis diferentes – como potência narrativa, é feita uma economia de estímulos que guia a atenção na direção da história contada, apostando no jogo de criação de mundo conjunta com o espectador. 

As canções originais compostas por Moreira ganham uma dimensão popular de discurso público cifrado em algumas cenas, como a despedida do casal de amantes, Arlete e Prefeitinho, cada um, ao seu modo, declarando intenções de forma difusa sobre o futuro da relação. E é esse apelo popular ancorado por personagens que, se não documentais, são inspirados em figuras facilmente encontráveis na realidade de Cachoeira, que vem como outro ponto forte do filme. 

A anedota sobre a presença de uma empresa de exploração mineral que busca apoio na força de uma mãe de santo local para ter acesso a riquezas num fundo de rio traz aspectos religiosos, mas também de uma inteligência e modo de navegação social muito próprias do lugar, mais uma vez espelhando essa ancoragem popular do discurso fílmico, que na interpretação de Arlete Dias perde qualquer traço caricatural.

Essa arqueologia de formas de discurso popular, algo de pedagogia mas também de aviso sobre si, a revelação das armas possíveis de serem manipuladas por Arlete, passam despercebidas pelo olhar pouco apurado de Prefeitinho que, seduzido pela forma, não percebe as intenções declaradas da personagem frente a qualquer ameaça possível e ao seu profundo conhecimento do lugar Cachoeira, de onde ela se recusa a sair, mesmo sob forte pressão.

Ao final, a heroína destroçada produz uma teia elaborada para conduzir sua vingança, livrando a cidade de vários homens de poder numa única jogada, e, que azar de meu nego, que acabou levado a reboque. Que azar. “O mundo seguirá melhor sem você”, Arlete sentencia.

Ainda que a presença do personagem do Pastor sirva ao propósito de elencar mais uma opressão, a religiosa, no já pesado fardo crítico da personagem, a construção de sua entrada em cena não parece ter sido tão cuidada quanto os demais, carecendo de melhor elaboração. E, mesmo com toda a cênica da mãe que conta ao filho histórias de ninar nem tão bonitas, saímos do clímax para um dos poucos momentos em que o discurso não parece ter sido usado com toda a força que se constrói ao longo do filme.

Imperfeito, mas nem por isso menos interessante e propositivo de formas outras de narrar, Mugunzá é um exercício de estilo precioso, que referencia arquétipos populares, baianos, ao mesmo tempo em que dialoga com estruturas clássicas, num jogo gostoso de ser visto, seja pelo ritmo, pela presença em cena de ótimos atores, embalados por canções e a cadência do sotaque baiano que arremata um cinema muito brasileiro, um cinema do recôncavo.

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SAINT JOAN (Otto Preminger, 1957)

Por Carolina Azevedo

Nas críticas que atravessaram o Atlântico em junho de 1957, a Santa Joana de Otto Preminger apareceu como “um triste fracasso” (The Guardian), “uma decepção” (Le Monde) e nem de perto uma experiência tão memorável (The New York Times) quanto as apaixonadas versões de Dreyer e Flemming do processo de Joana d’Arc. A crítica fica ainda mais hostil quando decide comparar o filme de Preminger com a peça de Bernard Shaw, em que se baseia. Que direito tinha Preminger de transformar uma tragédia de mais de três horas de duração em um filme que pouco passa de uma hora e meia – e, pior ainda, escolhendo, para interpretar a divindade guerreira, uma adolescente inexperiente? 

Ao colocar a jovem Jean Seberg em um papel anteriormente interpretado pela robustez dramática de Maria Falconetti e de Ingrid Bergman, Preminger incomodou a crítica, sobretudo na França, onde Jean de Baroncelli escreveu: “nenhuma chama arde nela. Ela não é Joana d’Arc. Sua altura e constituição física não têm nada a ver com isso. Ludmilla Pitoëff era ainda mais frágil do que Jean Seberg quando interpretava a heroína de Shaw. No entanto, ela dava a impressão de ser habitada por uma força sobre-humana. A graça a transfigurava. Nada transfigura Jean Seberg.” 

É curioso que a crítica tenha contestado tanto a interpretação de Seberg, pois foi ela a escolhida pelo diretor entre as mais de 18.000 garotas que Preminger teria testado para o papel, uma busca que fez com que a equipe de seleção de elenco viajasse entre Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Irlanda e Suécia em busca da garota ideal. Passados mais de cinquenta anos e outras dezenas de filmagens do processo de Joana d’Arc – dentre elas a terrivelmente sóbria versão de Robert Bresson – é difícil entender o que os críticos viram de tão ruim naquela performance, que, mesmo menos dramática, não deixava de ser comovente e convincente. 

O filme de Preminger sofreu muito com a insistência da comparação entre original – no caso, a peça de Shaw – e adaptação. Jonathan Rosenbaum define Santa Joana como o único “filme de arte” do diretor, dado o tom intelectual ditado pelos diálogos de Shaw. Mas a ingenuidade da jovem protagonista e a comicidade do personagem do Dauphin (Richard Widmark), somados à forma dinâmica com que a épica corre em sua curta duração, intercalada às imagens fantasmagóricas e oníricas – que, em sua modestidade, parecem mais reais do que as cenas da tragédia que ela narra – dão ao filme um caráter não menos popular que qualquer outro produzido pela Hollywood da década de 1950.

Sobretudo durante sua primeira metade, Santa Joana segue uma tradição do cinema cômico americano que André Bazin defende ser o mais “teatral” de todos – cômico em linguagem e situação. Mas a teatralidade do filme foi lida em sua chave negativa, enfatizando a sensibilidade pretensiosa e reacionária da heresia do que a crítica chamava de “teatro filmado”. Talvez tenha sido o preconceito de uma crítica crente de que o cinema é uma arte maior – e que, portanto, não deveria submeter-se às leis de outra arte, menor e ultrapassada, como o teatro – que gerou a reação que tomou conta dos jornais em 1957. Tudo o que a obra de Preminger faz, no entanto, condiz com a solução de Bazin em relação à adaptação teatral: “compreender que não se trata de fazer passar para a tela o elemento dramático – intermutável de uma arte para a outra – de uma obra teatral, e sim, ao contrário, a teatralidade do drama.” 

Ao invés de um filme longo dividido em apenas seis cenas e um epílogo, como ditava o texto de Shaw, Preminger toma a força dramática de seus diálogos e a traduz para a linguagem cinematográfica em toda a sua potência. Tomando da pintura o artifício da descentralização da imagem e adicionando o dispositivo cinematográfico da montagem para fragmentar a narrativa, o texto de Shaw se transforma em cinema. Emprestando as palavras de Bazin, Santa Joana é “uma luz brilhante projetada sobre a poesia dramática” quando a lente enquadra o rosto de Seberg, que volta seu olhar para o céu e, tomada pela emoção, faz esquecer todos os religiosos que, no segundo plano, a condenam. 

A Santa Joana de Otto Preminger pode ter sido condenada pelos críticos de seu tempo, mas ainda tem chance de salvação pelas revisões de um público menos reacionário às adaptações e que reconheça do gênio de Jean Seberg.

O God that madest this beautiful earth,

when will it be ready to accept thy saints? How long, O Lord, how long?

Joana d’Arc em Santa Joana, de Bernard Shaw

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EDITORIAL: CINEMA E PALAVRA

por Felipe Leal

As relações da arte cinematográfica com a palavra são tamanhas no que ambos os suportes se misturam para “dar a\à voz”, que seria possível questionar se, com o advento da câmera e sua grafia particular, as letras não ganharam com isto uma “cinética-imagética-montagem” renovada, enquanto campo de significação transversal. Lembremos que a palavra não precisa ser oral nem escrita para adquirir tal estatuto: se num silêncio entre duas pessoas muito fica suspenso, retesado, enquanto discurso/expressão, por ex., mesmo as palavras que àquela tensão faltam… são, afinal, palavras (em estado espectral, mas ainda assim dizeres que um voice-over, pela técnica da edição, encarnaria da narratividade do psíquico).

As cartelas dos filmes do primeiro cinema, contraditoriamente apelidado de mudo (o ruído do projetor, dos espectadores, o acompanhamento musical presencial de pianistas dentro das salas – tudo isto não é sonoridade?), ao tornar as historietas dramáticas, de ação ou fantasia alicerçadas pelo intercalar das interjeições dos personagens, indicativos auxiliadores das mudanças da trama ou ornamentos contextuais (históricos), ainda que não fossem entendidas por toda a população, posto que, arte de massas à era das feiras e exposições, nem todos eram letrados – ainda assim, o modo carregado com que as frases tinham de compactar expressões e sua subsequente aparição hiperbólica enquadrada frequentemente por molduras “classudas” dava àqueles primeiros filmes uma aura naturalmente épica, como se uma
voz superior tivesse proclamado um tal desenrolar singular de invenções dentro da tela atrás da qual rugia o giratório do rolo de película.

Nos anos 60, com a possibilidade de tornar a gravação do som (das grandezas do mundo externo e do povo) síncrona à gravação, realizada esta com equipamentos infinitamente mais portáteis, o cinema alcança o popular, faz da rua cenário, deixando- a (também ela) tomar a palavra, e traz uma multidão de sotaques aos ouvidos dos públicos, modos de existência contidos nas articulações de tipos sociais que
literalmente nunca sequer tinham aparecido nas telas. Em Comícios de Amor (Comizi d’Amore, 1964), Pasolini circula a Itália entrevistando camponeses, burguesas, jovens garanhões, adolescentes afetadas, operários, e ainda um palimpsesto volumoso de classes, sobre os temas do erotismo e do amor. Um retrato-costura sociológico complexo de seu país inteiramente pautado na escolha ora precisa, ora jocosa, ora titubeante, ora envergonhada de palavras ao redor de um tópico demasiado íntimo.

A 1972, em Carta Para Jane (Letter to Jane), Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin criticam uma fotografia popular da atriz Jane Fonda tirada no Vietnã do Norte, à época da ocupação norteamericana no país fraturado e devastado, e a quantidade verborrágica de palavras e a qualidade ácida da desconstrução é tão absoluta, em sua arquitetura ideológica, que pode-se dizer que chegamos perto da importância do raciocínio “indiscutível” aos oradores dos senados e ágoras da antiguidade, a quem o trabalho do convencimento, isto é, da criação de uma imagem-persuasão, beirava o de uma anunciação divina. O maquinário crítico dos pensadores-com-uma-câmera quase resulta numa ode indireta à própria língua francesa, dado o uso engenhoso com que proliferam as anti-visões à dominação estadunidense num tiroteio ácido quase ininterrupto. Entre palavra e o chicote, a estreiteza de significados atinge um pico
inenarrável de mistura.

Esse cinema-redação consegue, ainda, apontar o processo de infinitude que certas imagens carregam por meio de um ‘palavraear’ que as torne ilha de edição do imaginário em nevrálgico debate na multiplicidade de vetores políticos ali em implícita disposição.

Em outras palavras: a conversa que toma partido pelos jogos ocultos nas visualidades mais provocadoras que nos cercam atesta que nem toda montagem ou representação logra aquilo que suas intenções detinham como pureza de fenômeno/ato. Ao inverter o caminho comum da adaptação de um “texto” à tela, partindo não de um livro a um recorte imagético, mas de uma única fotografia em direção à palavra que brota outras imagens à camada da superfície, Godard e Gorin nos fazem pensar se a produção dessa espécie de diálogo que o cinema faculta não trata justamente de uma ferida tão essencialmente comum, que sua própria ordem é ser “esquecida” na massa de lugares de des-opinião: não temos as mesmas palavras (definições) para as mesmas imagens, ainda que as palavras entre nós sejam as mesmas.

Se observamos, por outro lado, Vale Abraão (1993), uma dentre as prolíficas associações de Manoel de Oliveira à conterrânea escritora Agustina Bessa-Luís, filme em que o narrador atinge as camadas da sociedade portuguesa com a mesma argúcia analógica contraditoriamente neutra com que tece olhares afetuosos e herméticos às idiossincrasias geográficas e culturais de algumas regiões do país, a palavra detém um poder criador-confabulador tão serpentino e “tragante” quanto o das estonteantes imagens campestres ou das mansões luxuosas abrigando as disputas familiares que, por meio daquela voz, parecem se acrescer de uma força de memória quase sobrenatural. A obra, assim, não está nem no que se vê, nem no que se ouve, mas no espaço de enunciação que abre àquela visão estendida dos “fatos”-destino. Metonímica, política, historiográfica, mágica, anunciadora – a quantidade de relações
que as artes da palavra e do cinema contemplam desvela uma miríade de leituras do cotidiano e do extramundano, e uma máquina de materializações do fator de heterogeneidade sobre as essências, aparências e identidades entre as coisas. Buscaremos, nesta edição, dar as letras a algumas das mais especiais dentre tais realizações.

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Através do Fluxo (By the Stream, Hong Sang-Soo, 2024)

por Carolina Azevedo 

Poucos cineastas conseguem navegar pelas dinâmicas do corriqueiro como Hong Sang-Soo. O que há de tão esplêndido em refeições que o faça as filmarem tantas vezes em Através do Fluxo, seu 32º filme e segundo lançamento de 2024? É ali que, enquanto tentamos desvendar o que comem e bebem os personagens, somos surpreendidos por confissões – nem sempre na forma de palavras, mais frequentemente em gestos e olhares – que nos revelam quem são cada um deles e que relações nascem ou desvanecem a cada mordida. 

O filme replica a fórmula do diretor: encontros compassivos entre conhecidos de maior ou menor intimidade se desenrolam em situações cômicas sem grandes picos de emoção negativa ou positiva. Neste caso, os conhecidos são Jeon-im (Kim Min-hee), professora de artes em uma universidade de garotas, e Chu Si-eon (Kwon Hae-hyo), seu tio, velho diretor de teatro obrigado a largar a carreira por uma confusão pouco esclarecida – que faz menções ironicamente autobiográficas à cultura de cancelamento – e abrir uma pequena livraria. 

O clima outonal chama a atenção para os hábitos curiosos da personagem de Kim Min-hee, que, a cada manhã, aparece à beira de um pequeno riacho, com um caderninho na mão. Se revela que aquilo faz parte de seu projeto artístico enquanto residente da universidade: os rios da região se transformam em tapeçarias de azuis que sutilmente se entrelaçam em padrões cuidadosamente calculados pela artista. 

Aqui, o título de repente faz sentido e se transforma em algo maior do que de costume nos filmes de Hong Sang-Soo: parece ecoar o “love is a stream” de Cassavetes enquanto a personagem de Kim Min-hee se isola com seus riachos e Kwon Hae-hyo se aprofunda nos amores que reencontra no teatro. Tudo se revela em paixão, por mais corriqueira que pareça. 

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It’s Not Me (Leos Carax, 2024)

por Carolina Azevedo 

Não é de hoje que Leos Carax se apresenta enquanto sucessor – se não imitador – de Jean-Luc Godard. Se com Mauvais Sang (1986) ele emprestou os vermelhos e azuis de Godard para fazer sua distopia romântica aos moldes de Alphaville (1965), dali em diante, percebeu seu potencial inventivo em obras de absurdo, como Holy Motors (2012) e Annette (2021). Em C’est pas moi (2024), o retorno à imitação já não cola tão bem. 

De fato, em forma, o que Carax produz é uma cópia perfeita do estilo tardio de Godard. Das Histoire(s) du cinéma (1989) e do Le livre d’image (2018), se empresta o voiceover rouco, as filmagens de seus queridos cachorros, os recortes políticos e as referências à história do cinema. Dessa memória afetuosa do grande mestre do cinema, no entanto, o que resta é um gosto amargo de quem não consegue atingir a fúria apaixonada de Godard. 

O projeto nasce como uma comissão do Centre Pompidou de Paris, que lhe pergunta: “onde você está, Leos Carax?”. O que poderia ter sido uma auto-revelação mostra um cineasta que, ao invés de sonhar – como Godard – com o futuro do cinema e da humanidade, prefere se voltar e remanescer sobre o passado. Este não é idealizado por Carax, que dedica parte do filme às lembranças dos horrores do nazismo, mas de que serve repudiar passado e presente sem sonhar com o futuro? 

O único momento em que essa reflexão – aí sim, godardiana – eleva o filme ao patamar que Carax se propõe a atingir é quando a narração do diretor nos lembra de piscar, fechar os olhos, suspender as imagens, para que possamos, enfim, continuar a ver as coisas belas. A passagem, por mais bela que pareça na sala do cinema, é como o resto do filme: não abre espaço para o espectador, dá todas as respostas e passa para o próximo tópico sem movimentar paixões. 

Conhecendo a obra de Carax, talvez seu desejo não tenha sido uma grande obra, mas uma pequena sátira, a diversão de brincar de Deus ao imitar, plano por plano, a forma de seu mestre do cinema. Pelo menos pudemos revisitar personagens emblemáticos de sua obra em novos formatos. Sr. Merda e Annette nos lembram que, em Carax, tudo é um pouco mais artificial.  

VISTO NA 48a MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO

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Tú me abrasas: uma conversa com Matías Piñeiro 

por Carolina Azevedo 

Não é de hoje que o cineasta argentino Matías Piñeiro se aventura na adaptação literária para o cinema. Em um ciclo de seis filmes ficcionais, o diretor explorou os papéis femininos em Shakespeare para realizar o que ele chama de suas “Leituras Shakespearianas”. A paixão pela tensão entre o cinema e a literatura continua a moldar a sua obra, mas sua empreitada agora é outra: em Tú me abrasas, Piñeiro adapta o texto Espuma do Mar, de Cesare Pavese, menos como ficção e mais como ensaio. 

Ao tomar o diálogo construído por Pavese entre a poeta grega Safo e a ninfa Britomartis, Piñeiro não se limita a replicar as adaptações de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet filmando suas atrizes e colaboradoras “em um penhasco, vestidas de gregas, com panorâmicas”. Seu interesse é em fazer um filme que “pensa sobre como o cinema pode adaptar a nota de rodapé”, misturando o diálogo de Pavese com poemas fragmentários de Safo e uma breve leitura de Retrato de um amigo, de Natalia Ginzburg. 

Tú me abrasas constrói seu discurso através de fragmentos, que, na materialidade do filme 16mm, se traduz em desejo: “o fragmento nunca é completo, o ritmo da montagem é rápido. Esses elementos refletem a ideia de desejo, sempre fugidio, além do alcance, em movimento.” Em entrevista, Piñeiro convida o espectador a entrar no jogo do fragmento cinematográfico e “colocar algo de si mesmo no filme”. 

Como você se deparou com esse texto do Pavese e por que decidiu que ele deveria se transformar em filme? 

Conheci Pavese como autor através de um professor meu, que me mostrou o filme Le Amiche de Michelangelo Antonioni, inspirado em Entre mulheres sós de Pavese. Isso foi há mil anos, na universidade, em 2001. De repente, o nome reapareceu através dos filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, que adaptaram muitos textos de Diálogos com Leucó. Ainda assim, não gerou um interesse muito particular. Eram só esses caminhos cinéfilos de explorar o texto. Mas, de repente, durante a pandemia, eu disse: “bom, vou ler esse texto de Pavese.” 

Quando li Diálogos com Leucó, achei o texto muito difícil, hermético, fechado, e tive dificuldade em terminá-lo. De fato, a primeira vez que peguei o livro, não consegui terminar. Foi só depois, quando li outros textos de Pavese, que voltei Diálogos com Leucó e encontrei o texto de Safo e Britomartis, Espuma do Mar. Esse, em particular, me interessou muito pelo tema e pelo diálogo em si. Acho que é o único dos Diálogos de Pavese que é entre duas mulheres. Minha reação imediata foi escrever no livro o que se vê no filme, aquilo escrito em púrpura: “com isso, posso fazer um curta.” 

Sempre tive vontade de fazer um curta, mas praticamente nunca consegui. Sempre começo um filme pensando que vou fazer um curta, e acabo fazendo um longa. Meus longas são curtinhos, como de uma hora, porque inicialmente têm essa ideia de ser um curta. Mas depois me dá a sensação de que, para funcionar, preciso expandi-los mais, e acabam tendo a duração que têm.

Você é um dos corajosos que se aventura na adaptação literária. O seu filme é um ensaio sobre a literatura, versando sobre tradução e resgate de textos antigos e analisando suas ressonâncias em escritos modernos – Pavese e Ginzburg. Para você, qual a relação entre cinema e literatura? 

O que eu gosto na relação entre cinema e literatura é a tensão que existe, a resistência de um texto a ser adaptado de uma maneira natural para o cinema. O que me atraiu no texto de Pavese é que eu não sabia como filmá-lo. Quando o li pela primeira vez, havia algo muito estimulante, quase abismal, no sentido de que eu não podia filmá-lo da mesma maneira que tinha feito com meus filmes anteriores. Tive que encontrar uma nova ideia de encenação para fazer com que funcionasse. Eu não podia filmar Maria e Gabi em um penhasco, vestidas de gregas, com panorâmicas, como costumava fazer.

Então, me perguntar como eu poderia fazer isso foi o que começou a dinamizar uma série de filmagens, pequenos ensaios, experimentando ideias a cada mês, a partir de outubro de 2021. O jogo mnemotécnico, o jogo da memória, dos poemas, as imagens que surgem do texto – eu ia testando coisas diferentes a cada vez. Com essa situação de escrita, filmagem, montagem, escrita, filmagem, montagem, o filme foi se construindo como é. Claro, a ideia que encontrei é que eu não queria – percebi no processo – apenas adaptar o texto de Pavese, mas também adaptar suas notas de rodapé. Entender que o filme não era apenas uma adaptação de uma narrativa, mas também de outro gênero, que é mais ensaístico.

Então, a realidade tem essa mistura híbrida entre ficção e ensaio. E também os poemas de Safo, claro, que são uma espécie de desvio, como uma nota de rodapé que te conta tudo isso. O filme pensa sobre como o cinema pode adaptar a nota de rodapé.

O filme se constrói como fragmentos, ensaiando repetição e tradução em imagem. Você me mandou uma foto do seu caderno com alguns planos marcantes que se repetem. Você pode me contar um pouco sobre a história que as suas imagens querem contar ali?

O texto resistia a ser adaptado de forma natural. Mas eu gosto de trabalhar de maneira literal. De início, quando eu ainda não sabia como filmar, decidi captar certos elementos mencionados no texto. Uma montanha, um escorpião, uma onda, a espuma do mar. Me submeti a essas filmagens sabendo, desde o início, que seria um filme com muita voz em off. Como nos filmes de Marguerite Duras, India Song, Aurélia Steiner

O caderno de Piñeiro
O caderno de Piñeiro

Mas um dos primeiros momentos foi reunir imagens, coletar imagens que estivessem ligadas às palavras ditas no texto. “Serpente, escorpião, espuma, sêmen, Helena (Helena de Tróia), Leucoteia, Calianira… não sei quem são, quem é Calipso?” O curioso é que tive muito tempo e uma dinâmica de produção muito independente, em que eu e minha equipe, muito pequena, nos permitíamos filmar como se escreve um ensaio, dia a dia, rascunhando, indo para frente e para trás. Isso não foi filmado em dez dias seguidos ou em quatro semanas. Foi filmado ao longo de um ano e meio, todas as semanas, com tentativas e erros, erro após erro.

Então, as imagens têm uma intenção, por vezes, muito literal, e outras vezes não. Um dos outros jogos era o jogo mnemotécnico e o jogo de memória do aprendizado de um poema de Safo, que consistia em filmar planos de coisas um pouco aleatórias, mas que, ainda assim, tinham sua lógica. As imagens foram se juntando, se tornando parte da minha vida e do meu aprendizado ao lidar com a câmera Bolex de 16mm. O filme também pode ser visto como um diário de como aprendi a trabalhar com essa câmera.

A Bolex determina o tom do filme. Por que você escolheu filmar com ela e em que resultados ela implicou? 

Eu estava trabalhando na Escola de Cinema de San Sebastián, que tem um foco muito forte no analógico. Me aproximei da Bolex através dessa escola, e a familiaridade com essa tecnologia veio das minhas conversas com os alunos, que estavam trabalhando com ele. Então, isso se tornou algo cotidiano. Decidi que seria interessante me dedicar a esse processo de filmar aos poucos. Eu já havia feito alguns vídeos com Mariano Llinás, que também trabalha de forma um pouco cotidiana, com uma espécie de correspondências no ano de 2020, e essas correspondências eu filmei com o celular.

Então, pensei: “Bom, quero que no novo projeto haja algo de diário, mas acho que preciso de uma imagem diferente, uma nova imagem, que não seja a do celular.” Daí decidi pelo 16mm. Pensando que precisava de algo que eu pudesse manusear bem, a Bolex me pareceu ideal, porque é muito maleável. 

Logo surgiu também a noção das limitações da Bolex: a imposição do fragmento, que me pareceu ter a ver com a condição dos poemas de Safo. A ideia do fragmento é muito presente na montagem, o vazio, o que está quebrado, o que se deteriora, que fica exposto. A câmera determinou claramente a ideia de fragmento. Eu não precisaria forçá-lo; ele já estaria presente desde a origem, porque a Bolex não filma mais do que 20 segundos. Se não fosse assim, a ideia de fragmento seria uma imposição. Eu poderia fazer um plano de 8 minutos e depois montar o que quisesse, mas, aqui, a própria tecnologia impunha uma limitação, que fazia eco com algo da memória, do físico. Havia também algo na resistência à imagem digital, que é muito rápida, veloz e fluida. Eu precisava de algo que me fizesse ir mais devagar, que resistisse. A luz no filme resiste, e há algo na natureza do fotoquímico que, para mim, tinha mais a ver com o processo deste filme. 

Também lembramos que, se hoje preservamos material, o preservamos em filme, não no digital. Uma das minhas colaboradoras, Tomás Paula Márquez, me chamou a atenção para isso. São ideias que vão se juntando. Eu gostava dessa ideia de ir mais devagar, para poder pensar melhor. O digital me acelerava. Quando fiz as correspondências com Llinás, eu tinha apenas duas semanas para fazer, então precisava dessa velocidade do digital. Mas aqui, não. Aqui, eu tinha tempo, e precisava de tempo, já que não sabia como filmar exatamente. Estava investigando, e não podia ir rápido, porque, se fosse, filmaria de maneira parecida com o que fiz antes. Eu sabia que precisava filmar de forma diferente. Não é um saber que vem de fora, mas algo que se obtém fazendo.

Lendo os créditos, me chamou a atenção que a equipe do seu filme é muito feminina. Como você reuniu a equipe do seu filme e como foram as filmagens? Entendo que envolveram muitas viagens. 

Isso tem a ver com o que eu digo sobre seguir a minha vida. O filme vai acompanhando meus próprios caminhos pela vida. Algumas são colaboradoras de longa data, como Maria e Gabi, as atrizes. Este é um filme onde estavam Safo e Britomartis, o que se conecta com os meus outros filmes, sobre os papéis femininos nas comédias de Shakespeare. Há algo nesse universo feminino, na ficção dos papéis femininos, que claramente me interessa.

Formou-se um coletivo em torno disso. O meu núcleo principal é feminino, eu sou o único homem envolvido. Me parecia necessário esse universo. Além disso, foi um desafio interessante, porque é um mundo muito feminino e de feminilidades que às vezes são difíceis de transferir completamente ou de compreender. Por isso, achei importante me cercar de mulheres, de pessoas desse universo. Não era uma tese proposital, mas percebi que a figura masculina, que sempre foi um pouco relegada nos meus filmes, nesta obra em particular, não deveria estar presente. 

Até considerei a possibilidade de incluir minha voz no filme, mas decidi que não. Achei que o filme não precisava disso, que essa presença não era necessária. Eu estava buscando algo e sentia que essa presença poderia me desviar. Além da vontade de querer trabalhar com essas amigas, que são muito talentosas e fazem parte da minha vida.

O texto de Pavese parece ressoar com a sua obra ao tratar com muito carinho e com sinceridade a experiência feminina. “O nosso terror é que um homem nos possua, nos capture. Isso seria o fim de tudo”, diz Britomartis. Por que você se interessa por esse tema? 

É um interesse na alternatividade. A posição da mulher não se estabelece como algo central, unívoco e totalitário, mas como uma alternativa, uma divergência, um desvio. Há essa tensão entre homem e mulher, que, para mim, parece estar mais alinhada com uma afinidade pela força dessa luta feminina. É uma defesa da escolha de um caminho alternativo, um desvio iluminador.

Pensar sobre isso não é algo natural ou simples, e, com tantos homens ao redor, isso me força a buscar um desvio, a criar um tipo de discurso mutante. Isso me interessa mais do que se fosse uma questão de homem-homem. Isso me obriga a criar retratos mais complexos das coisas, a questionar e desafiar-me a mim mesmo.

O universo masculino também poderia trazer desafios, como o retrato do homem pelo homem, mas o universo feminino me desafia de uma maneira diferente. Além disso, estou muito cercado por esse universo, que me ajuda a ter um contato mais interessante com o artifício. Não é um mero reflexo da realidade, mas uma composição mais elaborada.

O filme retrata a dialética do desejo. Desejo como canção e como destruição. O título rememora essa dualidade do amor também: tú me abrasas. Como você vê o tema do desejo nas suas imagens? 

Tú me abrasas evoca uma proximidade, mas também uma perda, uma morte simbólica. Minha maior referência nesse sentido foi Anne Carson, especialmente em Eros, que é um livro sobre o vazio, em que ela fala bastante sobre Safo. As traduções de Carson foram fundamentais para mim, especialmente na ideia de fazer o vazio presente, o “grafema do vazio”, como ela o coloca. Esse vazio, que nunca é preenchido completamente, está sempre ali, uma espécie de vontade de preencher, mas que permanece inacabada.

Nas minhas imagens, o desejo se manifesta nesse mesmo sentido: nunca estão completas, nunca são plenamente satisfeitas. Nenhuma das narrativas de amor no filme chega a um fechamento definitivo. Não há uma sensação de completude ou satisfação total, mas sempre a ideia de que algo está faltando, de uma distância, um vazio que permanece. Isso é fundamental, pois mantém a narrativa em um estado de transformação contínua, em vez de uma conclusão estática e resolvida.

Meus filmes estão sempre em um estado de movimento constante. Eles nunca param, nunca atingem um ponto final em que tudo se resolve. O desejo, para mim, está ligado a essa ideia de distância, de algo que nunca é alcançado. Então, nas imagens que crio, o desejo está presente de forma distante. O modo de atuação é distante, o fragmento nunca é completo, o ritmo da montagem é rápido. Esses elementos refletem essa ideia de desejo, sempre fugidio, além do alcance, em movimento.

A estrutura fragmentária, como em paralaxe, do seu filme abre espaço para a livre interpretação e experimentação do sentido a ser criado pelo espectador. Qual a importância de devolver a experiência do cinema ao público? 

Você resumiu bem a essência do que tento fazer. O objetivo é transformar o cinema em uma experiência, e para isso é preciso uma estratégia que crie espaços vazios para o espectador preencher. Preciso que o filme esteja sempre em diálogo — não só com os personagens, mas também com o espectador, e até com o escritor, quando há uma adaptação. 

Os planos são montados e cabe ao espectador completar as frases. A história concreta da personagem – o que ela vive, quem a deixa ou não – tudo isso está lá, mas o que realmente me interessa são os conceitos mais amplos, como o desejo, e não apenas a trama em si.

Para que isso funcione, o espectador precisa colaborar, entrar nesse diálogo. O cinema que faço é um convite para esse jogo, em que se espera que a pessoa participe ativamente, que ela não seja tratada de forma passiva ou subestimada. Acho que esse espaço de fragmento e vazio que crio é uma estratégia eficaz para que o espectador coloque algo de si mesmo no filme. Eu não conheço a individualidade de cada pessoa que assiste, mas posso criar um certo tipo de linguagem que permita ao público projetar suas próprias vivências e experiências no que está vendo.

O que me interessa é exatamente isso: que as pessoas se apropriem do filme, que vejam nele coisas que eu não pensei, que o façam delas mesmas. É um processo de co-criação, em que cada espectador pode dinamizar algo dentro de si. Eu gosto da ideia de que o espectador possa moldar a experiência a partir do que ele traz, que o filme sirva como um estímulo para desafiar ou ativar algo em sua própria vida.

Essa é a minha abordagem de encenação, uma forma de permitir que o espectador colabore e contribua com sua própria bagagem emocional e interpretativa.

“Tú me abrasas” foi visto na 48a MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO.

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O SENHOR DOS MORTOS (The Shrouds, David Cronenberg, 2024)

por Carolina Azevedo

“Se você é cineasta, qual é o seu principal objeto de trabalho? O ser humano – o rosto, o corpo, a voz. Então é claro que eu deveria ser obcecado por isso. E se você é um existencialista ateu como eu, sua vida é o seu corpo. Quando o corpo morre, pronto, acabou.” A fala de David Cronenberg em entrevista à Folha de S.Paulo esclarece o que está por trás de cada um de seus filmes. É um cinema do corpo, não do body horror como a crítica convencionou categorizar, mas, simplesmente, do corpo. Para ele, as entranhas não revelam horror, mas beleza, e a morte não passa de algo natural – e nem por isso menos terrível. 

O Senhor dos Mortos é, como o próprio diretor define, um filme que materializa o seu próprio luto. Um filme quase autobiográfico que narra o luto de um homem fascinado pelo controle, que vê um novo mundo, estéril e superficial, após a morte de sua esposa. É menos sobre a morte do que sobre amor e, como tudo em Cronenberg, sexo. 

Karsh (Vincent Cassel) personifica esse amor eterno – um empresário que não abre mão de deitar-se ao lado da esposa por toda a eternidade. Mas a obsessão vai além do comum em um novo mundo, mediado pela tecnologia: após enterrar sua esposa no cemitério do qual é dono, coloca-a na mortalha que inventou ao lado de desenvolvedores chineses para monitorar a decomposição de seu corpo. 

Quando os túmulos de seu cemitério são violados por um grupo misterioso, Karsh se envolve com a irmã de sua falecida esposa e seu ex-marido à procura dos culpados. O filme mórbido – e não menos engraçado no absurdo da situação obsessiva de seu protagonista – se transforma, então, em uma trama de conspiração. Não segue, no entanto, a estrutura terrível de um filme de crime que segue a linha dos fatos em um quadro de cortiça. A conspiração se constrói como uma colagem dadaista, incoerente e impenetrável – valor máximo de um filme que sabe não dever respostas a um público obcecado pela interpretação. 

Do corpo mutilado de sua esposa e da figura tosca da inteligência artifical que guia os passos de Karsh, o que era sedutor em filmes como Videodrome se torna enfadonho, como é tudo nos dias da vigilância e da tecnologia – que não é mais utopia, como nos seus filmes da década de 1980, mas realidade. 

Um corpo verdadeiramente mediado e vigiado pela tecnologia não é sensual como aquele que apenas sugeria a possibilidade terrível. Quando a materialidade do corpo não instiga interesse – afinal, “quando o corpo morre, pronto, acabou” –, o que resta a Cronenberg são as palavras, palavras demais para um filme tão visual e nem por isso sedutor. 

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DAHOMEY (Mati Diop, 2024)

por Carolina Azevedo 

Se para Chris Marker e Alain Resnais as estátuas também morrem, para Mati Diop, elas vivem e sofrem eternamente com a dessacralização atrás das vitrines dos museus. “O museu ocidental se baseia em crimes”, clama Françoise Vergès. Mas, se mesmo devolvidas para suas nações de origem, estátuas produzidas por nações africanas continuam condenadas à escuridão sem fim das salas de palácios e museus, há espaço para a utopia emancipatória da descolonização? 

Em Dahomey, a diretora franco-senegalesa resiste a responder qualquer uma dessas questões. Ao documentar o retorno de 26 tesouros roubados do antigo Reino de Dahomey – atual Benin – pelos franceses, Diop prefere dar voz aos estudantes da Universidade Abomey-Calavi e às próprias estátuas ao invés de patronear a discussão com a voz-off que caracteriza o tradicional documentário dito decolonial. 

O tom do relato, no entanto, está longe da neutralidade do documentário jornalístico. Entre imagens de trabalhadores que catalogam e embalam as estátuas e filmagens da celebração do povo do Benin em recepção aos tesouros roubados, Diop destaca a forma como a grande imprensa local estampa as capas de seus jornais: fotos de Emmanuel Macron e do presidente beninês Patrice Talon roubam o espaço e o crédito dos militantes que lutaram pelo retorno durante séculos. 

A discussão ganha forma nas palavras dos estudantes beninenses, cujas falas dão nome ao crime colonial: após o espólio francês, uma fração das obras desenraizadas retornam a um país desigual que ainda carrega, em todos os seus aspectos sociais, as cicatrizes do colonialismo. Como celebrar uma pequena vitória nacional sem se enganar sobre as verdadeiras intenções políticas e diplomáticas por trás delas? Como falar da violência na língua do dominador? É notável que a voz profunda da estátua do Rei Guizo de Dahomey não se expresse na opressiva língua francesa, mas em Fon. 

A voz da estátua se mistura com a trilha de Dean Blunt e transforma a ausência de imagens que toma conta de boa parte do documentário – a escuridão da sala do musée du quai Branly Jacques Chirac, em Paris, da caixa de transporte e do Palácio da Marina, em Cotonou – em algo de virtuoso ou sagrado. 

O resultado é um filme que evita o insulto que seria uma produção francesa que observa de cima os desdobramentos de um crime francês, ao filmar de forma horizontal, igualando as vozes de jovens locais – que ditam o futuro daquelas figuras – à voz das estátuas, que, libertas do passado de espólio, retornam à superfície do tempo. 

VISTO NA 48a MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO

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A SUBSTÂNCIA (Coralie Fargeat, 2024)

Entre o liso e o rugoso

Por Gabriel Moraes

É difícil falar sobre A Substância, dirigido por Coralie Fargeat, sem antes tocar brevemente nos aspectos mais marcantes de sua recepção, posto que aqui temos um dos casos recentes mais notórios do que se convencionou chamar – a partir de um conjunto de reações em demasiado divisivas, efusivas e potencialmente polêmicas – de “ame ou odeie”. Embora possa soar banal, não é um termo sem sentido palpável. Quando se produz um perfil de recepção como este, geralmente tratam-se de projetos que, bem ou mal, levam suas ideias e práticas estéticas às últimas consequências de maneiras radicais, que operam em níveis extremos de uma determinada sensibilidade. A Substância é um destes filmes. Mas qual ou quais experiências se fazem possíveis a partir desta relação particular com o material?

Em primeiro lugar, este é um filme de estilo mais do que de trama, que trabalha com códigos de gêneros e subgêneros do cinema – o horror, o suspense, o body horror, a caricatura – para armar uma diegese fundamentada na investigação dos modos através dos quais estes instrumentos cinematográficos podem dobrar uma realidade ao seu favor. Falar de uma radicalidade de processos em A Substância é pensar a extremação das possibilidades de construção estética e ficcional destes elementos. Ao lidar com o tema de como os corpos femininos estão sistematicamente sujeitos a duros padrões de beleza, o filme adentra a subjetividade de uma protagonista que internaliza e representa as medidas de violência e terror psicológico subjacentes à consciência de viver como mulher em um mundo que existe nestes termos.

A Substância é um filme sem exterioridades, sem traços de uma “realidade objetiva” que exceda os limites de percepção da protagonista. Tudo o que há em tela é uma expressão de como ela percebe as coisas ao seu redor, de como reconfigura a matéria do mundo a partir de suas sensações e impressões. Neste quesito em específico, para citar alguns paralelos famosos ou canônicos, é algo como Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, Clube da Luta (1999), de David Fincher, Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick, os filmes de David Lynch, entre tantos outros exemplos. É importante notar a intimidade dos seus procedimentos com uma genealogia das formas, porque a diretora a todo momento cria planos e situações que falam de e com uma história das imagens, e especialmente com os imaginários que esta história lega.

O conflito de Elisabeth, interpretada por Demi Moore, com o seu corpo é também, afinal, um dilema diante das imagens que este corpo produz, e como um corpo que respira a partir dos imaginários que suscita pode viver sem eles, vide os registros recorrentes do longo corredor kubrickiano nos estúdios de filmagem: primeiro com os retratos enormes de Elisabeth, depois vazio e por último com os retratos de Sue. E é evidente como tudo isto está conectado à figura e trajetória de Demi Moore como celebridade. O filme é um grande cabo de força entre a duplicidade das imagens, entre as superfícies que elas proporcionam e as matérias que existem por trás delas: tanto as vidas, as experiências sensíveis, os corpos e texturas, quanto as ideologias.

Para além do personagem cartunesco do produtor, intitulado Harvey – uma opção pouco sutil – e interpretado por Dennis Quaid, são numerosos os planos que focam nos olhos das câmeras que gravam aqueles espetáculos, mostrando como tudo é fruto de um olhar informado por alguma visão de mundo, por alguma ideologia, por alguma sensibilidade. Outro exemplo mais explícito é a cena em que o diretor detecta algo estranho na gravação, para a filmagem e todos observam atentamente a reprodução quadro a quadro de um plano-detalhe das nádegas de Sue, novamente frisando como não há imagem que saia dali que não seja parte de uma engenharia política, de uma intencionalidade que tem demandas claras para que as coisas sejam de um modo e não de outro, como estes imaginários que circulam fluidamente pela vida contemporânea das cidades nada tem de espontâneos ou naturais, mas estão sempre a cumprir alguma agenda de interesses. E ainda: sobre como a natureza destas imagens é ser invasiva, porque estão sempre a ditar modos de ser, modos de visibilidade. Cenas como estas parecem o esforço mais denotativo da diretora de comentar sobre logísticas e implicações imediatas do male gaze.

E aí poderíamos tratar de um subtema, correlato destes guarda-chuvas, que é crucial em A Substância: o atrito entre o liso e o rugoso. Tanto a ideia literal de superfície quanto a ideia mais abstrata e política do que é superficial são o nervo central do aparelho estético do filme – e iluminarão o subtema mencionado –, seja nos planos ou na sonoplastia. As cenas em que o produtor urina ou come uma refeição, por exemplo, não só reverberam nitidamente o conteúdo em forma, mas caracterizam a impressão que Elisabeth tem de Harvey como um sujeito asqueroso, mal intencionado e repugnante, que é traduzida em uma emanação vigorosa das superfícies da existência física de Harvey: os sons exagerados de sua comilança, o som que faz ao urinar, seu rosto sujo e lambuzado ao comer, sua pele rugosa e envelhecida, o barulho insistente dos seus sapatos como sinônimo do teor irritante de sua presença.

A imagem de Harvey como uma pessoa percebida por Elisabeth atua como uma espécie de díptico contrastante com as imagens lisas, cristalinas e idealizadas que ele pretende gerar e veicular. São vários os momentos em que, além disso, a diretora faz planos-detalhe da pele das protagonistas, sublinhando o quanto elas se percebem por meio de uma relação obssessiva com a própria fisicalidade, por meio de uma relação literal de superfície. A cisão entre vida e imagem estaria, logo, bem ali na transformação do rugoso em liso, do sujo em limpo ou, em outras palavras, do contraditório e vivido no idealizado e construído. As cenas supracitadas que expõem os mecanismos de produção de discurso através de imagens são como pontes entre as extremidades do filme: de um lado, aquilo que pode ser orquestrado, feito e refeito, que é fruto de um sistema criativo minucioso, e de outro, aquilo que é ininterrupto, que não pode ser refeito ou controlado, apenas, no limite, performado. Mas até que ponto? A Substância é também sobre os limites da performance, sobre como a mutação da corporeidade em imagem está ligada a um anseio pela superação dos limites do que não se pode performar, a uma ambição de converter a volatilidade do corpo e do desejo em objetos e significados administráveis, e aí a pergunta óbvia seria: por quem e para quê?

A tentativa de Elisabeth de querer que seu corpo opere nos mesmos termos das imagens que são feitas sobre ele é o que leva à tragédia, mas também à libertação. O desejo de perfeição perene materializado no seu inverso: em monstruosidadade, em escatologia. A figura escatológica na qual a protagonista se transforma é a indexadora do que o filme compreende como verdadeiramente monstruoso: o condicionamento do corpo e do desejo a um estatuto objetificado de significados estáveis. Por isso, a monstruosidade que toma a protagonista é também uma libertação. O esforço de fazer da corporeidade algo gerenciável acaba por radicalizar seus atributos voláteis. O corpo como um movimento implacável de descontrole, uma fisicalidade de sujeira, pulsão e fluidos que atinge um ponto fundamental de contradição: colocar em imagem o que é não-imagem, arquitetar o artifício para chegar ao que não é artificial, ou, visto por outra chave, valer-se dos limites da performance para pensar os limites da imagem; como fazer da imagem uma forma de corporeidade embrenhada em sujeira, rugosidade, instabilidade.

Retomando um argumento anterior, há, ainda, a ideia mais abstrata e política do superficial, que é muito articulada visualmente nos planos internos do apartamento de Elisabeth que situam, ao fundo, visto pela janela, o imenso outdoor que ocupa uma boa parte da vista. É quase como se fosse uma sobreposição de realidades, uma efetivamente operando sobre a outra, ou vampirizando a outra. Inclusive, é curioso como o que leva Elisabeth a se acidentar é a distração ao observar seu rosto sendo arrancado de um outdoor, um certo fator desestabilizador de ver o que parece tão estático e estabelecido se tornar outra coisa. Quando a imagem de Sue é colocada no outdoor que ocupa a vista do apartamento, há duas atividades de consumo. A primeira é mais imediata, no choque direto entre uma e outra: Elisabeth vira uma consumidora das imagens que até então era produtora, passa a idealizar aquilo que ela fazia ser idealizado, torna-se refém do imaginário que ajudou a construir, uma testemunha do maquinário político do qual era uma engrenagem.

E a segunda é mais intimamente ligada à passagem do tempo, a como estes dois planos de realidade sofrem diferentemente esta ação, como são ou deixam de ser consumidos pelo tempo. Enquanto o apartamento é palco para um aprofundamento progressivo do drama, para o desenrolar de uma série de conflitos de alta intensidade, o outdoor permanece intocado, aparentemente imune ao tempo. A diretora enfatiza ainda mais esta escolha ao opor a transição do apartamento entre dois ambientes bem distintos, um solar e esperançoso – habitado por Sue – e outro noturno e amargurado – habitado por Elisabeth –, com a transição entre dia e noite para o outdoor, cuja única diferença é se será iluminado pela luz do sol ou por luzes artificiais, como se aquela imagem surfasse de maneira sutil e elegante pelos mesmos dias que infernizam crescente e alarmantemente a vida no apartamento.

Dito tudo isso, e tendo estabelecido algumas das preocupações e dos recursos centrais para a composição do universo hiperestilizado de A Substância, resta apenas uma interrogação a respeito das problemáticas que se abrem na costura que o filme faz de suas ideias e de sua diegese. Apesar de povoado por boas premissas, a experiência de assistir ao filme propriamente pode ser tortuosa e é capaz de testar mesmo o mais paciente dos espectadores. Um dos obstáculos mais arraigados de A Substância, e que perdura dos primeiros aos últimos minutos, é o excesso de didatismo, um tratamento das ideias e das imagens que poderia mesmo ser chamado de pedagógico, de ilustrativo. Certamente, os exemplos que flertam com o inacreditável são vastos, como as montagens paralelas entre o talk show e a cena da cozinha e entre o espetáculo final e os comentários pejorativos do início – sequências que ainda contam com diálogos como “eu preciso de você porque eu me odeio” –, a cena de encontro com o outro usuário da substância que explica com todas as letras os conflitos do filme sem agregar nada além de exposição. O personagem some sem abrir nenhuma porta ou gerar qualquer implicação para a narrativa.

Enfim, a lista completa seria de proporções bíblicas, mas é espantoso perceber como mesmo momentos mais passageiros como o encontro entre Elisabeth e um antigo conhecido dos tempos de escola, que sugere uma outra possibilidade de vida e de relação com o corpo, com a beleza, também precisam ser pontuados por gestos de mão pesada como o papel com número de telefone anotado que cai em uma poça suja no chão. É uma experiência sufocante de hiperssaturação de significados em que cada plano, cada cena, cada escolha, cada elemento no quadro precisa reafirmar e reiterar os discursos inúmeras vezes. O filme tem conquistado um certo status desde a sua recepção em Cannes e vem ganhando um espaço na cinefilia brasileira, o que é difícil de acompanhar sem um senso de curiosidade, já que uma parte significativa dos procedimentos estéticos e discursivos mais importantes para a obra lembram bastante os piores – e bem rejeitados pela cinefilia brasileira – cacoetes de diretores como Darren Arronofsky, Nicolas Winding Refn e Christopher Nolan.

A questão aqui não é uma crítica essencialista de procedimentos mais ilustrativos, carregados, mas como isto se ramifica para uma rede específica de resultados duvidosos no caso de A Substância. A começar por como esta saturação de significados cria uma instrumentalização de tudo ao seu redor em tal nível que encontrar que um ponto de acesso que não seja aquele da mensagem, do texto, do conto moral, demanda um gesto hercúleo de generosidade. E aqui se torna especialmente contraditório, pois é um filme que lida com visualidades viscerais, mas que em última instância estão domesticadas e asfixiadas pelas leituras que o próprio filme já imprimiu sobre elas. Tudo é informação mais do que experiência.

Em resposta ao texto O efeito de real, de Roland Barthes, no qual ele desenvolve seu conceito de “pormenor inútil”, Jacques Rancière, em seu livro O efeito de realidade e a política da ficção escreve: “o detalhe inútil diz: eu sou o real, o real que é inútil, desprovido de sentido, o real que prova sua realidade por sua própria inutilidade e carência de sentido”. Para complementar este argumento, em seu livro Theory of Film, Siegfried Kracauer apresenta uma leitura análoga que poderíamos utilizar para melhor elaborar a perspectiva de Rancière. Ele diz: “Em sua preocupação com o pequeno, o cinema é comparável à ciência. Assim como a ciência, ele desmembra fenômenos materiais em partículas minúsculas, sensibilizando-nos para as enormes energias acumuladas nas configurações microscópicas da matéria”.

Apesar de ambos os autores estarem tratando mais amplamente de certas concepções de realismo em seus textos, é evidente que o objetivo aqui não é revivê-las ou esperar do filme um cumprimento delas e sim entender o que estas observações em particular, que foram recortadas, esboçam em termos do mapeamento de uma postura sensível diante do registro das coisas. O que estou defendendo é que, no modelo de cinema representado por filmes como A Substância,a noção seja do “pormenor inútil”, do “detalhe inútil” ou do “microscópico” é inexistente pelo simples motivo de que a consciência de que o “microscópico” ou o “pormenor” é só mais uma pincelada dentro do “macroscópico” é algo tão severamente enfatizado que é uma dura tarefa relacionar-se com os elementos estéticos para além da percepção sobre o papel que desempenham nos grandes movimentos conceituais do filme. O “microscópico” é um instrumento imediato de significação do “macroscópico”, de tal modo que, ao invés de propor uma experiência refratária com incontáveis pontos de acesso e engajamento, o filme torna-se o resultado de uma equação que é a soma de suas partes. A relação de autonomia entre o “microscópico” e o “macroscópico” é de uma importância inestimável para o cinema. Vale frisar: é um problema de sensibilidade e não de método. O fato, por exemplo, de que um diretor é um esteta obssessivo de maneira alguma é evidência direta de reprodução da mesma defasagem.

A narrativa de A Substância como um todo é a expressão de um solipsismo radical bastante questionável. A diferença de A Substância para um Taxi Driver nos méritos exclusivos de seus solipsismos é que, no caso de Scorsese, a introspecção que caracteriza o ponto de vista do filme, que pretende ser a um só tempo estudo de personagem e diagnóstico político de uma América psiquicamente fraturada pelos lastros da Guerra do Vietnã, é toda apoiada em referenciais que desenham os traços de personalidade e percepção do protagonista ao mesmo tempo que localizam essa outra América da qual ele não faz parte e é alienado – encarnada principalmente na personagem politizada de Cybill Shepherd, que tem um tipo de agenciamento sobre um mesmo estado das coisas totalmente distinto em relação ao do protagonista, interpretado por Robert De Niro. O protagonista chega à convicção de suas crenças através do desenvolvimento sequencial de muitas divergências com outras visões de mundo, algumas próximas e outras distantes das suas.

Em A Substância, por outro lado, não há nenhum personagem além da protagonista e seu duplo durante todo o filme. A diegese opera toda na mesma frequência, não há contraste algum de agenciamentos sobre a mesma realidade. Um personagem que poderia oferecer tal abertura é o colega dos tempos de escola de Elisabeth, mas ele é prontamente descartado. O filme poderia, ainda, rebater a perspectiva de Elisabeth com a de outra mulher, ou outras mulheres, o que também não acontece. Parece que existe uma única forma de responder à paisagem simbólica desta cultura, o que torna tudo moralista e dogmático, linear e, inclusive, achata as dimensões da protagonista.

É meio surreal pensar como um filme solipsista de mais de duas horas, que não se interessa por nada e nem ninguém além de sua protagonista pode concluir sem que tenhamos ciência de qualquer traço de personalidade desta personagem, de sua visão de mundo, que não saibamos absolutamente nada sobre ela para além de como se relaciona com estes padrões de beleza, e mais ainda, que ela tenha apenas uma resposta, um único agenciamento para estas imposições culturais o filme inteiro. Não podemos esquecer que quando a protagonista decide terminar seu processo de “tratamento” com a substância, não é porque passou a ver as coisas de outro modo ou passou por uma transformação dramática, mas única e exclusivamente porque percebe que o tiro saiu pela culatra. Se ali ela ligasse para empresa e eles dissessem que tem uma nova substância que resolverá os dilemas anteriores e não deve oferecer novos obstáculos, ela certamente aceitaria. O que dá a entender é que realmente não há nenhuma outra maneira de lidar com esta paisagem simbólica.

Não fosse suficiente, o filme ainda cai em um buraco de filosofia liberal que espera imprimir as dores do mundo em um exercício drástico de metonímia individualista. Em seu livro A Tecnologia do Gênero, Teresa de Lauretis traz reflexões que podem nos auxiliar nesta linha de pensamento. Ela escreve: “A discrepância, a tensão e a constante oscilação entre a Mulher como representação, como objeto e a própria condição de representação, e, por outro lado, as mulheres como seres históricos, sujeitos de ‘relações reais’, são motivadas e sustentadas por uma contradição lógica em nossa cultura que é irreconciliável: as mulheres estão tanto dentro quanto fora do gênero, simultaneamente dentro e fora da representação. O fato de que as mulheres continuam a se tornar a Mulher, continuam presas ao gênero como o sujeito de Althusser está na ideologia, e que persistimos nessa relação imaginária mesmo sabendo, como feministas, que não somos isso, mas que somos sujeitos históricos regidos por relações sociais reais, que incluem centralmente o gênero – essa é a contradição sobre a qual a teoria feminista deve se fundamentar, e a própria condição de sua possibilidade”.

A protagonista não seria a perfeita representação da Mulher? De uma coletividade sintetizada em uma individualidade que deve carregar em si os significados do grupo? Soa como uma contradição extrema das ideias do filme, que lida justamente com a noção de resistência aos exercícios de objetificação dos significados dos corpos. Esta Mulher, que representa as relações das mulheres com esta imposição cultural, não está refazendo exatamente este procedimento? Não está objetificando estas formas reais de experiências variadas em uma única concepção estável e linear? Por que não há nenhum outro agenciamento sobre esta realidade?

Poderiam me acusar de estar aqui cobrando uma cartilha moral do filme, como se meu ponto fosse que a protagonista devesse necessariamente ter um esclarecimento sobre as circunstâncias do seu sofrimento ou tivesse respostas lúcidas para resolvê-lo. É claro que não. A arte não tem nenhum compromisso em ser educativa ou edificante, em ser esclarecedora de qualquer coisa. Trata-se apenas de coerência interna. Se o filme fosse puramente um experimento radical de subjetividade e nada mais, seria outra história, mas o que está colocado é claramente um problema de ordem social e cultural, e não apenas pessoal. A resposta desta mulher para este regime simbólico pode ser pessoal, mas as operações que o organizam e às quais ela está sujeita não são. E que a protagonista não passe por transformações dramáticas também não é em si a questão, mas sim este fato aliado à ausência absoluta de outros agenciamentos. A partir do momento em que o agenciamento dela é um entre tantos, ele é pessoal, porém quando ele é o único diante de uma conjuntura que é coletiva, ele torna-se metafórico e metonímico. E se este é o caso, qual o sentido de um filme que meramente se contenta em passar mais de duas horas chovendo no molhado, reafirmando indefinidamente as exatas mesmas condições e circunstâncias das quais partiu em primeiro lugar e sem propor nenhuma experiência estética minimamente desafiadora?

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