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ANARCA FILMES E CHORUMEX: BANDIDAGEM CIBORGUE

por Fábio de Carvalho Penido

ANARCA FILMES

As primeiras imagens de Waleska Molotov (Amanda Seraphico, 2017) são tomadas em direção ao céu. As luzes de um helicóptero perscrutante estabelecem uma primeira relação de poder vertical, entre a visibilidade que vem de cima e subjuga o que está embaixo. O segundo plano, dando ensejo a essa ideia, é do enquadro de uma mulher negra por uma luz forte, que força o corpo a se recolher entre duas paredes, no limite do espaço. O som, trilha de suspense e ruídos de sirenes, confirma o que o corpo da personagem, que treme e recua, já sugere. Rápidos cortes em sucessão apresentam mais cenas que pela textura das imagens remetem mais ao plano inicial, do helicóptero, do que a sequência do enquadro policial. A câmera instável corre pela cidade segurada nas mãos, observando carros incendiados e outros fragmentos de um protesto. Há sons de tiros e mais ruídos no cotejo entre esses planos ágeis e as imagens dessa mulher desconhecida, agora sob uma luz avermelhada, com um semblante suplicante de mártir. Por fim, um corte encerra essa primeira montagem paralela e delimita um contexto: Cidade Estado da Guanabara, 2034, d.C., o Ano do Tigre. Atrás do texto, uma imagem desconcertante de um felino esculpido em pedra, de coloração azul e fisionomia cômica.

A montagem paralela será uma forma recorrente de contar a história em Waleska Molotov. Se por um lado acompanhamos a personagem solitária, como que refugiada e se recuperando do assalto produzido pela polícia (embora jamais possamos ver a representação dessa violência na tela, somente sua sugestão), por outro há também uma outra personagem que emerge num panorâmica da Cidade-Estado da Guanabara, esse lugar em que o “trem da história está enguiçado”, como reflete a voz narradora. Rapidamente ela se junta a outras figuras e começa a realizar uma série de intervenções na cidade dominada pelo poder policial: explosões, festas, surubas e feitiçarias coletivas. A individualidade da primeira personagem vai se intercalando com a multiplicidade de personagens dessa gangue cyberpunk. A deriva das criminosas se contrapõem à reclusão da personagem refugiada; a movimentação efusiva aos seus movimentos contidos de um corpo que procura se restabelecer.

Esses dois caminhos culminam na morte de todas em tons de martírio. A gangue bandida é destruída pelo olhar perscrutador policial de uma câmera que varre as ruas e corre atrás delas noite adentro. Elas terminam estateladas no chão, enquanto transeuntes presentes durante a rodagem acham a performance para o filme um pouco engraçada. A mulher isolada, finalmente descoberta, é cercada pelas miras de vários rifles em um plano frontal. Sua saída é tomar nas próprias mãos o ato da morte, enfiando uma faca em si mesma antes dos tiros lhe acertarem. O plano seguinte a essas sequências sintetiza o contraste que permeia todo o filme. Ao lado de um pagode de bairro, com música alta e pessoas dançando, há um IML em funcionamento. Rima imprecisa, entre pagode e morte, que constitui Waleska Molotov e todos os outros filmes reunidos neste texto. Entre a necessidade do humor e a seriedade da vocação política e suas urgências, os filmes desenham os percursos de seus personagens carnavalescas e terroristas, gozadoras e bandidas.

A bandidagem é a figura central de Waleska Molotov e a possibilidade que o filme encontra para a resistência de suas personagens em um mundo opressor. Os termos do banditismo estão postos destarte: tomada das ruas, intervenção no espaço público, boicote e terrorismo ao poder privado corporativo, contracultura, experimentação, liberdade sexual e inversão das hierarquias do bom/mau gosto estético.

Em Waleska, X-Manas, Os Anos 3000 Eram Feitos de Lixo (Ana All, Cleyton Xavier, Clara Chroma, 2016) e Tsunami Guanabara (Cleyton Xavier, Lyna Lurex, 2018), filmes contemporâneos aqui analisados, o imaginário do bandido no cinema brasileiro encontrou uma inflexão sexo-gênero dissidente de monstras, ciborgues, artistas e bichas como figuras de subversão. As personagens pertencem a universos distópicos[1], nos quais agem como agentes revolucionárias em futuros de avanço do capitalismo e suas formas de controle.

Como inimigas dos regimes ditatoriais de poder representados nos filmes, são reconhecidas por traços identitários, quando desobedecem normas performáticas de gênero. A representação das personagens perpassa o imaginário LGBTQIA+ e queer artístico e erótico, com roupas exuberantes, uma afinidade estética pelo camp e pelo excesso. Já as forças ditatoriais ecoam as performances e discursos popularizados pelo bolsonarismo e sua lógica de guerra cultural e conservadorismo social extremado. Que os filmes todos se passam no futuro, diz de uma afirmação que todos os filmes colocam a sua maneira de que os antagonismos políticos do presente serão intensificados adiante. Diz também do desejo desses filmes de fazer uma leitura crítica do futuro e do destino político do Brasil usando da ficção como campo de especulação.

Nessas distopias, o totalitarismo é midiático. Nas Guanabaras digitais de Anos 3000 e Tsunami Guanabara, o poder é representado por noticiários sensacionalistas, publicidade política belicosa, ditadores cômicos e agentes policiais. Na Guanabara de 2034 de Waleska Molotov e na Recife de 2054 de X-Manas a arquitetura exprime uma forma de poder verticalizante por meio de câmeras de vigilância, prédios corporativos altíssimos, helicópteros que perscrutam as ruas e outros signos do desequilíbrio de forças que está em jogo. Resta às bandidas se apropriar estrategicamente do campo das imagens amadoras, precárias, marginais ou de mau gosto que exprimem a horizontalidade de suas relações.

Waleska Molotov (2017) de Amanda Seraphico

Se em Waleska o modus operandi da bandidagem coletiva já exprime seu tom geral, X-Manas é mais explícito. A penetração anal através de dildos em pessoas sem gênero identificados, o sangramento do corpo transtornando os limites entre a dor e o prazer, o uso dos excrementos nas experimentações sexuais e as refeições com sacos de lixo e restos de mato na sarjeta são algumas das sequências que incorrem numa imaginação erótica abjeta.

No entanto, a principal diferença entre os dois filmes não está só nessa adoção de um imaginário mais consequente e que consegue definir uma ritualística da bandidagem bastante contemporânea. Há também a apresentação das X-Manas como portadoras de um futuro possível, marcado pelo antagonismo fundamental entre pessoas normativas e as monstras. Esse discurso, que se apresenta em tom de manifesto, contém um pathos profético em que as personagens se identificam como antigas, pertencentes a um mundo pré-regime capitalista que as persegue.

Esse desejo de uma fonte originária inspiradora remete ao amplo repertório de abjeções performado por elas. A abjeção, para Julia Kristeva, ecoa um manancial arcaico de relações pré- sujeito, pré-processos de individuação das sociedades ocidentais e suas ordens simbólicas. Mas, de forma ainda mais latente, ressalta o caráter teleológico da narrativa em questão. Como portadoras de um conhecimento anterior e misterioso, as personagens atemporais conclamam que um destino social há de se realizar por via de seus modos de vida. Uma sublevação final da ordem capaz de subverter hierarquias, destituir formas de poder e instaurar um novo regime anárquico: “Nada para nois, tudo para todes” é o slogan deixado por uma delas via mensagem de texto. Os crimes das X-Manas são figurações do porvir político da nação e seu destino.

COLETIVO CHORUMEX

Os Anos 3000 eram feitos de lixo e as ciborgues também encontram uma forma de sobrevivência através da bandidagem. Como nos curta-metragens da Anarca Filmes, o totalitarismo é de feição midiática, em um regime de hipervigilância que perscruta os espaços em busca das traficantes de “artes amadoras experimentais”, negócio rentável no mundo do crime.

Uma das primeiras sequências de Anos 3000 se atenta ao processo coletivo de produção, distribuição e consumo dessa arte terrorista. Menos que discernir o que está sendo feito em cada plano, num ordenamento linear da realização audiovisual, as imagens da produção e distribuição são fragmentárias, com personagens trocando objetos entre si, fitas cassetes, vinis; organizando equipamentos e enquadramentos de câmera.

Nessa organização elíptica os planos também se misturam em sobreposições, uso de chroma key e fusões criando um espaço visual típico da cultura virtual de hipertextualidade e excesso de informações. Isso aproxima os filmes da linguagem da videoarte e dos videoclipes, como na sequência final de X-Manas (um clipe vaporwave), mas que é assumida na inteireza dos filmes da Chorumex.

O espetáculo sensorial, em que não se encontra um plano que escape ao saturado, distorcido e pixelado, encena uma perseguição política por variados pontos de vista. De um lado, os artistas criminosos, com seus produtos altamente aditivos – a vida dos usuários dessa arte, de ingestão oral, são flagrados por um noticiário sensacionalista em uma das sequências do filme -, do outro a agente da perseguição Clara Chroma, estilizada como pistoleira, que confronta os consumidores dessa arte e seus produtores.

A personagem Chroma se mistura ao universo visual de Anos 3000 não como elemento dissonante, mas como mais uma criatura pós-humana, embora ela tenha escolhido o lado policial. Sua presença na trama marca o principal arco narrativo de um curta-metragem interrompido frequentemente por esse primado da fruição visual das cores e texturas. Suas aparições, assim como dos demais personagens, não são conduzidas pela fala, mas pela movimentação de seu corpo na tela.

Os Anos 3000 eram feitos de lixo

A ênfase nos gestos, expressões faciais e movimentos corporais performáticos, reforçam a interpretação desse mundo como um lugar distópico, sim, mas também paródico. Os artistas experimentais e seus inimigos não estão tão distantes assim no que concerne ao seu desempenho em tela, o que, mais uma vez, sugere que a autoconsciência e a paródia são fundadores desse universo que filtra todos os dados possivelmente trágicos e nefastos pela lente do humor e de uma sensibilidade memética.

Talvez por isso não gere tanto estranhamento no espectador a mudança súbita na narrativa quando Clara Chroma, em um conflito apoteótico com as artistas ciborgues, finda por se unir a eles através de uma lavagem cerebral, em que suas funções de robô são modificadas. Esse novo pertencimento, que já era de todo aparente, revela uma das principais crenças do filme, na capacidade da conversão e redenção das suas personagens por via da arte.

Tal fé nas imagens e sua capacidade de sublevação política é levada um grau acima em Tsunami Guanabara. Enquanto em Anos 3000 as artistas incorporam uma dimensão coletiva, com nenhuma delas ganhando maior foco narrativo do que a policial Clara Chroma, em Tsunami Guanabara a protagonista é a Cavalona Dishavada. O contexto dessa distopia é informado nos moldes dos filmes anteriores, mas desta vez o regime ditatorial ganha o rosto não de uma policial, mas de um político falastrão, de gestos exagerados que se comunica com o espectador através da janela midiática denominada JAIZBR.

O ditador caricato, cuja retórica é uma paródia do discurso de guerra cultural contemporânea, condena a arte de Cavalona Dishavada, representada de forma icônica e em pose heroica. A perseguição a personagem é levada a cabo pelos Moralistas que, como ressalta o sósia de Jair Bolsonaro, não são braços do Estado, mas cidadãos comuns que proferem uma ideologia de justiça pelas próprias mãos. Eles assassinam a personagem e desovam seu corpo na baía de Guanabara. Lá a personagem é ressuscitada pelas mãos sensuais de um monstro submarino. Depois ela é treinada por um mestre de artes marciais, ao estilo dos filmes de ação, e prossegue a derrotar a gangue de Moralistas e o ditador.

Entre Anos 3000 e Tsunami Guanabara o salto não está tanto na radicalização do imaginário visual, como nos curtas da Anarca Filmes, embora Tsunami tenha um repertório mais amplo de experimentações do que seu antecessor. A diferença principal parece estar entre a redenção do sujeito caído do primeiro – a policial reprogramada – e a narrativa crística do segundo.

A volta de Cavalona Dishavada, ponto final dessa trama, é interpretada por parte da população como um fenômeno nos moldes da ressurreição de Cristo. A profeta dos marginalizados, perseguida, passa por um renascimento simbólico e efetiva seu lugar como líder em uma insurreição de ciborgues.

Ao mesmo tempo salvadora e destruidora, Cavalona ocupa uma posição de consciência elevada ainda maior que as personagens de Anos 3000. Afinal, sua posição de artista mártir era somente a primeira camada de uma força histórica messiânica, capaz de terminar mundos e propor um novo início.

A sequência final de Tsunami Guanabara, após a derrota do ditador e seus aliados, consiste na justaposição de uma série de chamadas jornalísticas, entoadas por uma voz eufórica. Elas informam ao espectador a sucessão de eventos cataclísmicos que se segue a deposição de Jaiz: o culto a Cavalona, por uma parte da população que acredita no seu papel de Messias; os protestos violentos e desencontrados da população; a crise financeira no mercado “de belas artes”, com a escalada dos preços das obras de Cavalona depois de sua ressurreição – devido a isso, todas as formas de expressão são suspensas por tempo indeterminado; o apocalipse suíno dos seguidores de Cavalona, que sofre repressão das camadas populares e militares que ainda apoiam o governo deposto.

Após essas chamadas alarmantes, as últimas imagens de Tsunami Guanabara são de tsunamis[2], representados por imagens de diversos contextos televisivos e amadores. Esses fenômenos ganham feição sobrenatural, na medida em que são apresentados logo após a associação direta de Cavalona Dishavada com o “apocalipse suíno”. A natureza de Messias da personagem, reforçada pelo caminho que o filme percorre ao seu lado, acompanhando sua ressurreição pelas mãos de uma força maior e sua ascensão ao poder com o apoio da fé dos crentes, chega em um ponto final que reforça radicalmente o que todos os filmes aqui discutidos compartilham: a bandidagem é uma arte experimental de proposição de novos mundos para uma humanidade quebrada. O bandido é mártir, profeta e Messias, incorporando essas múltiplas figuras na concretização de um caminho predestinado de sublevação da ordem instituída e de inscrição de um novo regime de traços anárquicos.

BANDIDAGEM E DESTINOS HISTÓRICOS

Nas representações do bandido na história do cinema brasileiro, suas formas já se aproximaram ora mais, ora menos, da incorporação de ideais revolucionários. Por vezes, o bandido foi a própria impossibilidade de uma síntese da histórica nacional, da sua efetivação em um projeto político. O bandido profético, misantrópico, abjeto, avacalhado, utópico, malandro se mesclou, nos filmes, a história nacional. Apontando rumos ou desfazendo caminhos, a bandidagem marca um lugar de oposição a forças instituídas e cultiva a fagulha insurrecional, quer ela seja radicalmente individualista ou coletiva.

Em filmes tão aparentemente fragmentários, que expressam evidente desdém pelas forças narrativas tradicionais; que apresentam personagens cuja performatividade abjeta, avacalhada e erótica (de ecos de cinema marginal) parece negar o princípio da individualidade; que almejam uma representação estético política da coletividade social, não deixa de ser inquietante a onipresença de traços narrativas ligados a teleologia e a figura do Messias na concretização do destino histórico.

Não deixa de ser evidente que a comunhão em um corpo político coletivo, principalmente pela sexualidade e arte experimental, seja a solução encontrada para o levante das personagens contra forças sociais ditatoriais que elas mesmas, à sua maneira bem distinta, guardam princípios messiânicos – o ditador, sabemos, se autointitula condutor dos destinos. A sexualidade, nesse sentido, ganha traços instrumentais de iniciação ou ritualística no seio da coletividade que encena formas alternativas de vida, propondo uma fusão das individualidades – sua dissolução – em uma denominação geral: monstras, artistas, ciborgues. Afinal, essa bandidagem só se efetiva por performatividades específicas do corpo.

O “primado do gestual”, como escreveu Ismail Xavier sobre o cinema marginal, encontra uma inflexão contemporânea nas bandidas da Anarca Filmes e Chorumex. Em seu foco na gestualidade, os filmes exprimem seu sentido de urgência de transformação histórica, fazendo eco ao cinema brasileiro do passado, mas fazendo sua aposta em corpos específicos do presente, de acordo com valores que lhes são próprios. São neles que testemunhamos a transformação dos “programas estéticos em ato” e que se “aloja a experiência e se inscreve a história”.

Se no telos histórico é preciso subsumir as vontades a um princípio ordenador, o princípio de aliança e comunhão entre as personagens como portadoras e concretizadoras desse destino está nas suas identidades.

CONCLUSÃO

Mesmo que o deboche seja elemento onipresente nas quatro obras analisadas, é preciso acreditar também na veia intervencionista que todos esses filmes tem como vocação. Não só parodiar os elementos históricos, mas oferecer um embate com as forças totalitárias: esse é um desejo dos filmes que não fica só na promessa, mas na atuação das personagens em cena. Nesse sentido, é preciso levar a sério o telos histórico que se desenhava desde Waleska Molotov, que alcança um grau limite de intensidade em Tsunami Guanabara, e que levanta uma série de questões para o cinema brasileiro e sua relação com a história.

Todos esses filmes veem suas personagens como, ora mártires, ora anunciadoras de um futuro político de combate e superação das distopias. A luta que essas personagens empreendem não é objeto de deboche, embora suas naturezas derrisórias sejam amplamente exibidas pelos filmes. A carnavalização da subversão política é, antes, uma força pela ótica da Anarca Filmes e Chorumex.

Um outro ponto que parece se tornar mais explícito na aproximação dos filmes é que essas personagens, por serem anunciadoras, carregam em si uma espécie renovada de crença teleológica na história da humanidade. Afinal, se são portadoras de um futuro para além do humano (monstras, ciborgues, robôs), são também as escolhidas para empreender uma transformação radical da realidade.

Todas enunciam que esse futuro passa por uma política da coletivização, do “nada para nois, tudo para todes” através da arte, da experimentação com o próprio corpo, da construção de comunidades alternativas de prazer e resistência.

Por fim, o modo de vida bandido, clandestino, é o que serve melhor a essas personagens e sua negação do sistema que habitam. O bandido, signo histórico de forças contrárias ao ideal de progresso e desenvolvimento consensual e pacífico da nação, se atualiza nesses filmes contemporâneos a partir de um outro lugar de aparição. A afinidade estética e política entre esses filmes permite pensarmos em uma teleologia da bandidagem própria dos nossos tempos, como já houveram outras na história do cinema brasileiro. Através do crime, o Brasil distópico pode escapar de seus futuros opressivos e traçar um novo destino que culmina na paz anárquica.

1. A mostra Brasil Distópico, realizada em 2017, foi o pontapé inicial para a discussão do texto e possui uma variedade de distopias muito mais ampla, dando a ver a profusão de imaginários de futuros desolados na cinematografia brasileira do passado e do presente sem necessariamente passar pelo banditismo.

2. Os tsunamis também estão presentes no fim do mundo distópico de Aiyè 3016.

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BANDOLEIRAS DO SOL NASCENTE: MATO SECO EM CHAMAS (ADIRLEY QUEIRÓS E JOANA PIMENTA, 2022)

Por João Campos

E os presidiários são grandes sonhadores.

Fiódor Dostoiévski em “Escritos da casa morta”.

Primeiro há o som da ação do fogo sob a tela preta. O crepitar das chamas se mistura aos latidos de cachorros – ecos da vizinhança. Num átimo surge a imagem de um incêndio. É noite, vemos ruínas de uma construção em chamas num terreno baldio. Uma inscrição no fogo situa topograficamente a fábula: “Sol Nascente (Ceilândia/DF)”. Mato seco em chamas (Adirley Queirós & Joana Pimenta, 2022) acontece na periferia da periferia de Brasília, isto é, à margem de Ceilândia. Mais que isso, o filme começa onde Era uma vez Brasília (Adirley Queirós, 2017) termina: no fogo.

A favela do Sol Nascente é uma das maiores áreas de ocupação irregular do Brasil e da América Latina. Oficialmente, ela se encontra na Região Administrativa de Ceilândia, uma das cidades- satélites que compõem o Distrito Federal e seu surgimento está diretamente relacionado a um processo histórico de ocupação desordenada, algo típico de regiões metropolitanas em expansão, que não conseguem atender à demanda por habitação popular de maneira regular e planejada. Nos jornais, Sol Nascente é constantemente associado ao crime organizado e violência extrema. Logo, o filme de Queirós e Pimenta parte dessa cena para elaborar uma imagem complexa da vida que acontece na região. O imaginário do crime é usado, aqui, com fins surrealistas e rebeldes.

O longa-metragem acompanha as ações de uma gangue de mulheres que organiza um esquema clandestino de extração de petróleo e venda de gasolina no Setor Habitacional Sol Nascente. As mulheres, conhecidas como Gasolineiras, articulam uma aliança com os motoboys da cidade que, em troca de gasolina barata, se juntam a elas, formando uma espécie de exército fora-da-lei. Aliado a isso, uma das personagens se candidata nas eleições do Distrito Federal pelo fictício Partido do Povo Preso (PPP), levando a cabo uma campanha performática em aliança com os motoqueiros pelas ruas do Sol Nascente. Este é o mote ficcional da obra, que se mistura às histórias de vida das personagens – todas ex-presidiárias que vivem em Ceilândia.

A obra é triangulada entre três protagonistas: Chitara, a líder do bando; Léa, a guerreira; e Andréia, a política. A primeira atriz é meia-irmã da segunda, como passamos a conhecer no decorrer do longa-metragem. Entre os motoqueiros, encontramos Cocão, que também é meio-irmão de Chitara e Léa. Este personagem funciona, no drama, como líder dos motoboys – a ponte entre as Gasolineiras e os entregadores do Sol Nascente. Os nomes e vulgos reais das atrizes e atores são usados na obra, num gesto que borra as fronteiras entre documentário e ficção.

Mato seco em chamas parte de uma metamorfose artística do imaginário de afirmação da soberania nacional do Brasil através do petróleo.

O slogan “O petróleo é nosso!” da época do governo de Dilma Rousseff é subvertido pela imaginação dos artistas. Contrabandeado para o universo dos excluídos e periféricos, a frase se transforma numa pergunta insólita: “e se o petróleo fosse de nóis?”. E se o petróleo fosse interceptado por aqueles que nada possuem? E se a população negra e periférica tomasse posse dos bens coletivos estratégicos da nação? A obra de Queirós e Pimenta constrói uma fábula a partir desse deslocamento imaginativo, erigindo cenas que fazem aparecer lampejos de um mundo pós-capitalista desde a extrema periferia da capital do Brasil.

A primeira imagem do fogo abre caminho para a aparição de uma mulher negra de perfil. Ela fuma cigarro enquanto consulta um dispositivo tecnológico em seu pulso – é Andréia. A engenhoca produz barulhos como em um clichê de ficção científica. O fogo continua em cena, mas ao fundo. A mulher olha para o fora de campo e solta fumaça. Sirenes se juntam à sinfonia das chamas na banda sonora. Um clima de tensão é tecido.

A mulher veste roupas pretas e está montada numa motocicleta. Ela termina pacientemente seu cigarro e arranca com o veículo noite adentro. Em seguida, os créditos iniciais do filme aparecem sobrepostos a uma cena em que o bando trabalha na extração de petróleo num dos ambientes principais da obra: o estreito lote em Sol Nascente.

O esconderijo da gangue é estranho, a começar pela maquinaria que o lote ostenta em seu quintal. Um plano médio mostra, bem no meio do lugar, um cavalo de pau, unidade de bombeamento mecânico utilizada na extração de petróleo. Este objeto antiquado e rudimentar, um tanto fora de moda e desatualizado, surge como aparição surrealista na paisagem da periferia brasiliense, causando estranhamento em quem assiste seu movimento. A máquina soca o chão e bombeia o líquido preto enquanto o bando trabalha. À direita, vemos uma mureta com os tijolos à mostra e um tonel cuspindo fogo. À esquerda, encontra-se um casebre com vigas de ferro encostadas. Um poço artesiano e o portão de ferro compõem a cena ao fundo do quadro. Um retrato noturno da plataforma clandestina de intercepção de petróleo das Gasolineiras do Sol Nascente.

O reenquadramento das cenas pelos cortes nos aproximam das pessoas a trabalhar, revelando o grupo coletando o material do fosso em baldes. A banda sonora mistura o som do crepitar das chamas com o barulho do petróleo correndo no canteiro de obras fora-da-lei. Enquanto despeja o líquido no balde de Chitara, o homem diz: “Carai, petróleo du bom ein?”. Chitara responde: “Tô te falando parceiro…” e solta uma risada contida. O trabalhador segue girando a manivela e o petróleo continua jorrando. O corte nos transporta para um terreno baldio à noite. O plano geral mostra o horizonte planificado do Distrito Federal, caracterizado por um feixe reto de postes de iluminação ao fundo do quadro. As mulheres do bando estão sentadas à beira da fogueira curvada pelo vento forte. Um carro e uma motocicleta se escondem na escuridão, à esquerda do quadro. Uma das gasolineiras acende um foguete com a ajuda de Andreia e solta o disparo para o céu. É uma cena típica de filmes de gângster: a negociação clandestina. Chitara observa o fogo fora de campo num primeiríssimo plano de seu rosto. Ela fuma e assopra fumaça enquanto é enquadrada obliquamente. O ronco de uma multidão de motocicletas começa a gritar na banda sonora. Notando a aproximação de seus interlocutores, a líder das Gasolineiras olha para sua direita. Um corte distancia novamente nossa visão da cena, mostrando uma constelação de faróis que emergem do breu da noite em Ceilândia.

Os motoqueiros chegam em bando e sua cinética apresenta contornos peculiares. Em outras palavras, em Mato seco em chamas, as motos se deslocam de uma maneira coreografada. Usando a profundidade de campo, Queirós e Pimenta fazem o grupo chegar pelo fundo do quadro: as máquinas emergem da noite e se aproximam das Gasolineiras lentamente. Primeiro enxergamos os faróis que balançam no escuro. Em seguida, os motoqueiros, já inteiros na imagem, realizam um movimento circular para rodear o bando de Chitara. As motocicletas gritam enquanto cercam a fogueira e as mulheres em seu rito de entrada. Cortes nos mostram o semblante da líder e Andreia, que observam com cautela a performance maquínica feita de movimento e o som violento dos motores.

A paisagem sonora que o bando dos motoqueiros produz em cena rompe o silêncio da noite e bagunça os sentidos do espectador. O som das motos é, em Mato seco em chamas, signo de anunciação da performance dos motoboys, além de uma forma de desobediência estética que perturba os códigos de um cinema bem-comportado e elegante. Essa sonoplastia contribui para que o filme de Queirós e Pimenta se afirme como obra ruidosa e disruptiva. Nas palavras de Adirley Queirós:

E os motoqueiros? O que eles gostam, na verdade, é de puxar, arrancar motor, o barato deles é o som da moto. Quando estávamos na montagem do filme, falávamos assim: “Vamos botar isso para tremer a sala [de cinema], porque é disso que eles gostam. Põe a sala para tremer, se não gostar, sai da sala.” Queríamos ouvir o som tremer, não queríamos um som educado, no sentido de uma educação cinematográfica[1].

Essa dança das motocicletas contribui para a criação de um corpo coletivo para os motoboys. Realizando movimentações dissonantes em relação à cinética ordeira da cidade, eles instauram uma coreografia estilizada que refunda, no plano da imaginação, o status desse personagem urbano. De trabalhadores precarizados e despossuídos, se tornam sujeitos políticos que negociam suas condições de vida e alianças, e ainda confrontam a ordem policial estabelecida no universo fabulado. Dessa forma, a coreografia reforça o caráter coletivo e combativo dos motoboys no filme de Queirós e Pimenta.

Depois da entrada performática, os dois bandos negociam. Cocão, liderança dos motorizados, pergunta: “Chitara, tem fogo aí?”. A líder delega: “Dá moral de incendiar lá Andreia?”. A mulher vai até o carro e abre o porta-malas repleto de galões de gasolina. Ela pega um dos recipientes, joga o líquido no chão e incendeia. Cocão acena positivamente e convoca seus companheiros para recolherem a mercadoria e homens de capacete surgem para buscar os galões de combustível. Antes de ir embora, Cocão dá um recado para Chitara: “Se liga que o Portuga tá saindo aí”. A gasolineira responde com rispidez: “Mermão, dá ideia pra aquele filho da puta lá que nóis aqui tá si fudendo pra recado de cadeia”. E assim os motoqueiros partem em debandada, levantando poeira do chão terroso de Ceilândia.

O diálogo cifrado levanta a suspeita: algum inimigo do bando foi liberto da prisão. Diante disso, o grupo tem que agir. Na cena seguinte, Chitara aguarda sua presa na penumbra. A enxergamos de perfil em primeiríssimo plano de seu rosto. Ela fuma um cigarro e observa os arredores. O barulho das motocicletas surge na banda sonora – sabemos que algo acontecerá. Um homem surge do escuro, entrega uma arma a Chitara e diz: “tá eu e o Pitbull lá na entrada”. O que se segue é uma cena de execução.

O plano geral mostra um carro se deslocando à noite. Não se vê nada além do feixe horizontal de luzes da cidade ao longe e fiapos da estrada de terra iluminados pelo farol do automóvel. A câmera faz uma panorâmica para a direita, seguindo o percurso da máquina. Um corte reenquadra a cena, mostrando o carro estacionando perto do veículo de Chitara. Sai um homem que exclama: “Chitara! Chitara!”. Passamos para um primeiro plano da líder das Gasolineiras mirando com sua pistola. Ela dispara e acerta o adversário. A mulher sai de seu veículo e se aproxima do homem caído no chão. Outro disparo confirma a morte do infeliz, que se convulsiona ao receber a carga. Após o homicídio, Cocão e Pitbull chegam com suas motocicletas para auxiliar a mafiosa. Eles carregam o corpo para o fora de campo e a cena se encerra. Uma emboscada digna de um filme noir. O filme opera, portanto, uma mescla entre ficção dramática e seus gêneros (noir, sci-fi, faroeste), teatro épico e documentário etnográfico. Seguimos os corres das bandoleiras na periferia de Brasília numa perspectiva que dá substância ao espaço urbano filmado, fazendo a cidade se tornar protagonista da obra através da perambulação de seus personagens. Nos interstícios da trama ficcional são reveladas facetas da vida real das atrizes. É o caso da cena do culto evangélico, que mergulha sensorialmente no ritual dando forma ao canto de Andreia e seus parceiros de fé aos moldes do cinema direto de Jean Rouch. O filme dá tempo e espaço ao evento, fazendo uso de planos-sequência que desvelam a cantoria em toda a sua beleza e emotividade.

A opressão do Estado se faz presente através do camburão da polícia, figura monstruosa que vara as noites de Mato seco em chamas em sua ronda. O automóvel circula pela periferia escoltado por drones no ar, analisando e mapeando a cidade sitiada. Numa cena, um dos policiais ensina aos outros o gesto da saudação nazista sob os dizeres “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, fazendo referência a um dos slogans do governo de extrema-direita de Jair Messias Bolsonaro. A performance brechtiana faz uma montagem entre Bolsonaro e nazi-fascismo, criando um comentário gestual sobre a conjuntura política da época. As forças policiais bolsonaristas são, no filme, soldados neonazistas operando uma limpeza social na periferia.

A imagem do gangsterismo ceilandense é reinventada como fúria popular, tomando a forma de desobediência civil performada em cena e quando os motoboys se rebelam contra os policiais nazi-fascistas, há o ápice dessa conversão. A sequência mostra as forças policiais circulando na cidade em vigília. De repente, os motoboys atacam o camburão, invadindo seu interior. Os tiras são mortos e os motoqueiros ocupam o caveirão até o amanhecer, quando começam a desmanchar o automóvel para, ao fim, incendiar sua carcaça num plano frontal da ação rebelde.

Os cenários urbanos de Mato seco em chamas são terrenos incendiados. A cenografia usa o fogo como forma expressiva, contribuindo para a (re)construção de Ceilândia como cidade sitiada. A cidade se torna palco de confronto – uma guerra porvir. O estado de sítio é, como disse Walter Benjamin, “o status quo de certa parcela da humanidade”. O incêndio é a regra dos pobres no capitalismo. O fogo é fundo e figura na obra de Adirley Queirós e Joana Pimenta, que experimentam a poética das chamas neste longa-metragem. O mundo que o teatro do gangsterismo de Mato seco performa é um universo incendiado – uma sociedade em vias de destruição. Os pactos que sustentam a nação e a opressão contra os pobres se tornam insustentáveis, tensão que desemboca no conflito generalizado, na rebelião total dos oprimidos em cena. A cidade, figurada como microcosmo do Brasil, é reinventada imaginativamente sob o signo do fogo.

O filme interrompe o drama com a inscrição de arquivos policiais reais: Léa é presa injustamente por tráfico de drogas durante o período das filmagens. Uma voz sóbria lê o processo de Léa enquanto vemos os documentos de sua prisão e fotos da atriz no quintal de sua casa. Os documentos dão lugar a um monólogo de Chitara para sua irmã, texto que expressa o entusiasmo das duas com a feitura do filme. O momento metalinguístico revela o processo de criação da obra como experiência aventuresca – um ritual transformador.

O real proporciona a matéria do efeito de distanciamento aqui executado, operação que desnaturaliza a opressão da polícia nas periferias. A remontagem dos rastros da prisão de Léa tem o efeito estético de tornar o Brasil da polícia militar insuportável para o espectador da fita. Nada mais próximo do teatro épico brechtiano do que a realidade dos condenados da terra.

Mato seco em chamas (2022)

E Mato seco em chamas termina em coreografia, dando um final proléptico para a fábula. Cocão pilota sua moto com Léa na garupa. A câmera acompanha de maneira frontal o movimento da motocicleta que balança no solo irregular do Sol Nascente. Um exército de motoqueiros surge pouco a pouco nas esquinas, formando uma motociata dos despossuídos. Na banda sonora, toca DF Faroeste, música do rapper Mente Consciente que descreve as guerras de gangues que assolavam o Distrito Federal de outrora. Imagem do passado, rearticulada no presente de novos confrontos nesta performance que inventa um corpo coletivo e combativo dos oprimidos frente a uma guerra porvir, ecoando o verso do artista supracitado: “O povo da favela, meu irmão, sabe como se defender”[2].

Mato seco em chamas taca fogo no Brasil de Bolsonaro e seus militares, tomando posição contra o status quo através da imaginação surrealista da periferia de Brasília. O uso da figura do gangster no filme cria uma paisagem crítica do Brasil contemporâneo do ponto de vista dos novos oprimidos do capitalismo caracterizando esse épico como um dos grandes filmes utópicos do cinema brasileiro do século XXI.                            

[1] ROCHA, Lorenna. A circularidade do tempo de Sol Nascente: uma conversa com Adirley Queirós e Joana Pimenta | 55ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro”. Camarescura. Disponível em : https://camarescura.com/2022/11/16/adirley-joana-entrevista-por-lorenna-rocha/

[2]“Código de Honra”, de Mente Consciente.

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BANDIDAGEM NO CINEMA BRASILEIRO MODERNO

por Rodrigo de Abreu Pinto

Quem é um “bandido”? A pergunta é difícil, afinal, a resposta é ampla. É o que ensina Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere mediante a sua descrição dos diversos colegas com quem conviveu na prisão. Ou Maria Sylvia de Carvalho Franco, em seu clássico Homens Livres na Ordem Escravocrata, em que explora transcrições de autos de processos-crime, datados do século XIX, para traçar uma análise multifacetada dos homens livres, pobres e delinquentes que permeavam a sociedade brasileira.

Já que se trata de cinema, a pergunta pode ser mais bem delimitada: o que é um “bandido” no cinema? Ou melhor, o que significa pôr um bandido em cena? A história do cinema também é ampla o suficiente para que uma resposta exaustiva seja impossível. Basta lembra do sem-número de gatunos, meliantes e foras da lei em filmes de faroeste, noir, horror, ação, etc. Quero então me debruçar sobre uma questão específica o bastante: os regimes de representação dos bandidos no cinema moderno brasileiro, filmado entre os anos 50 e 70.

Na raiz do cinema moderno brasileiro – quando os filmes engatinhavam rumo à uma linguagem menos sujeita às regras do estilo clássico de estruturação da narrativa e composição das cenas – a figura do bandido é bem ilustrada na obra de Lima Barreto, O Cangaceiro (1953) – aliás, vencedor do Prix International du Film d’Aventures no Festival de Cannes, o prêmio mais importante conquistado pelo cinema brasileiro até então. O filme ganha vida em meio a um ataque do bando de cangaceiros, liderados por Galdino, em uma pequena vila do interior. É nesta ocasião que o bando sequestra a professora Olívia, com o objetivo de usá-la como moeda de troca para obter um resgate.

Acontece que um dos membros do bando, Teodoro, se apaixona por Olívia, ao lado de quem foge e abandona o cangaço. Galdino não se conforma e assim inicia uma perseguição a Teodoro, ao final da qual ele é morto.

Fato é que Teodoro até tenta se redimir e começar uma nova vida ao lado de Olívia, só que não é capaz de escapar das vicissitudes de sua vida pregressa no cangaço. A moral da história é que o banditismo é um fardo, fundado em uma visão maniqueísta do mundo, em que os espectadores só podem sentir pena pelos imersos neste mal de modo definitivo.

Em anos seguintes, mesmo em filmes já impregnados pela convergência entre “política dos autores”, baixo orçamento e renovação da linguagem, o caráter moralizante da figura dos bandidos permanece. A convivência entre o novo e o arcaico refletia o momento de transição do cinema brasileiro em que a reforma da linguagem e a crítica social já se impunham, mas coexistiam com o didatismo moral na representação das classes marginalizadas – o que, por sua vez, era expressão de mentalidades formadas em processos de longo prazo, tal como refletidas no senso comum do brasileiro.

É o caso de Um Favelado (1962), curta de Marcos Farias incluído na coletânea 5x Favela, caracterizado pela contradição entre, de um lado, as filmagens em locações reais, o uso de atores não profissionais e os movimentos de câmera rebeldes; e, de outro lado, a representação do bandido como uma mera vítima das circunstâncias sociais, premido pelos desafios de redenção moral.

A passagem só se completaria à medida que as leituras críticas da sociedade brasileira se aprofundam. Tal maturidade é evidente na obra de Glauber Rocha, a exemplo de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), feito no auge da ascensão política da esquerda a ponto de que a expectativa de mobilização das massas se refletiu na violência estética e reflexão sociológica do filme.

A obra está situada no sertão nordestino, onde estamos ao lado de Manuel (Geraldo Del Dery) e sua esposa Rita (Yoná Magalhães). O espectador é apresentado às duras condições de vida dos trabalhadores rurais em meio à exploração pelos grandes proprietários de terra, os chamados ‘coronéis’. Até que Manuel se revolta, assassina o coronel e a narrativa se desdobra em uma corrida que alegoriza a esperança de que “o sertão vai virar mar”, como cantado nos versos de Sérgio Ricardo.

O vaqueiro topa primeiro com Sebastião (Lívio Moreira), um líder religioso que promete a emancipação dos camponeses pelo intermédio da fé. Em seguida, se depara com Corisco (Othon Bastos), o cangaceiro para quem a libertação decorreria da violência. O filme acaba no momento em que o passo seguinte está disponível apenas para o espectador, a quem caberia a redenção através da política. Inserido nessa teologia, o cangaceiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol é, à sua maneira, uma releitura daquele que protagoniza o filme de Lima Barreto. Em lugar do banditismo tomado como natureza e alheio a qualquer mística, o Corisco de Glauber Rocha simboliza uma resistência contra um sistema que força os indivíduos a adotarem o papel de outsiders e rebelados. Justo o oposto do que faz Lima Barreto com Teodoro, como o próprio Glauber detalha em seu Revisão Crítica do Cinema Brasileiro:

Sem ter entendido o romance do cangaço e sem ter interpretado o sentido dos romances populares nordestinos, Lima Barreto criou um drama de aventuras convencional e psicologicamente primário, ilustrado pelas místicas figuras de chapéus de couro, estrelas de prata e crueldade cômicas. O cangaço, como fenômeno de rebeldia místico-anárquica surgido do sistema latifundiário nordestino, agravado pelas secas, não era situado”. (ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 91)

Só o insucesso dos movimentos políticos suscitaria uma releitura da figura do bandido, desta vez em chave pessimista. Se do cangaceiro sacralizado por Glauber Rocha era legítimo esperar um gesto redentor, nada mais distante dos personagens de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Ozualdo Candeias.

A representação em tons épicos e revolucionário é substituída pelo bandido em formas tipicamente urbanas – menos prestigiadas e atreladas ao imaginário da sociedade de consumo – como a cultura do gibi, das colagens e dos circos de periferia. A estética do mau gosto que daí advém resulta em uma representação da bandidagem que desconforta o espectador e alegoriza o percurso do cinema brasileiro e do país.

Esta é a leitura canonizado por Ismail Xavier em seu “Alegorias Do Subdesenvolvimento”: os marginais que protagonizam Bandido da Luz Vermelha (1968), O Anjo Morreu (1969) e Matou a Família e Foi Ao Cinema (1969) representam; uma ruptura com a pedagogia cinema novista; e, em maior escala, um escárnio contra a nação utópica outrora prestes a se tornar realidade pela tomada de consciência das massas.

Já ninguém se interessa em fazer uma gênese do bandido, tal como vimos em Lima Barreto e Glauber Rocha, porque a bandidagem se alastrou de cima a baixo, sobretudo nos estertores do poder usurpado pelos militares. Foi o que Rogério Sganzerla escreveu: “Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha. (…) É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo”. O filme de Sganzerla pinta o retrato do marginal com ironia absoluta. Para isso, inspira-se em um caso real, o do assaltante de bancos João Acácio Pereira, mais conhecido como o “Bandido da Luz Vermelha”, já que usava uma lanterna de luz vermelha durante os crimes.

Mas no final das contas, o foco do filme mal recai sobre o personagem em si, e sim sobre a curiosidade alienada e midiática da sociedade sobre o criminoso. Que é justamente o que faz dele um bandido carismático e, acima de tudo, um espelho da sociedade – o que faz dos extremos do maniqueísmo (sociedade e bandidos) dois lados da mesma moeda.

A intuição Rogério Sganzerla – apta a torná-lo o artista descrito por Ezra Pound (“os artistas são as antenas da raça”) – é que percebeu uma tendência social que apenas nascia. Em texto clássico sobre o assunto, Michel Misse conta que mal se falava de violência urbana no Brasil até o início dos anos 1970 (ver MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas: Revista De Ciências Sociais, vol. 8, nº 3, pp. 371–385, 2008)

Não é que a violência não existisse. O que não existia era uma sensibilidade para a violência – que estava ali, mas não era percebida como um problema. Nas palavras de Misse, “[f]icava confinada aos jornais sensacionalistas, lidos apenas pelas classes populares” (p. 376), tal como aqueles que Rogério Sganzerla emula em seu filme.

O momento em que o discurso sobre a violência ganha releva coincide com a ascensão de um famoso grupo paramilitar, criado por policiais do Rio de Janeiro, chamado de ‘Esquadrão Le Cocq’ (em homenagem ao policial Milton Le Cocq, morto durante confronto com o criminoso Cara de Cavalo). Uma vez que as ações do grupo amiúde resultavam em mortes de suspeitos, a imprensa passou a chamá-los de ‘Esquadrão da Morte’.

Uma das estratégias de legitimação do grupo era a veiculação do discurso de que “bandido bom é bandido morto”, como um dos integrantes disse à imprensa um de seus integrantes (o mesmo que seguiria carreira política com o uso de tal bordão em campanhas eleitorais). Segundo Michel Misse, os efeitos disso é que a incriminação se antecipa preventivamente à criminação – ou seja, antes que haja um crime, há um criminoso potencial desse crime. A disseminação de tal figura do “criminoso” era refletida em manchetes da época, como “As cidades estão com medo” (estampada na Veja) ou “Criminalidade cresce em todo o país” (no Jornal do Brasil).

Disso emanou uma estratégia estética que seguia a trilha do Cinema Marginal – no tocante à equivalência entre bandidos e supostos mocinhos – só que em chave didática.

Os exemplos mais famosos estão em trabalhos de Helio Oitica. Em sua obra-homenagem à Cara de Cavalo, assaltante morto pela polícia, Oiticica apresentou uma caixa com paredes forradas pelas fotos do cadáver. Apresentada assim, a obra denunciava “a repressão e assumia o marginal como figura da revolta a ser interpretada dentro de uma rede mais ampla de relações, fora do maniqueísmo legitimador da sua execução sumária”, como escreveu Ismail Xavier[1].

No âmbito do cinema, a tematização do bandido nesta chave aparece em Lúcio Flávio Passageiro da Agonia (1977), de Hector Babenco. Era o momento em que o cinema brasileiro deixava para trás a radicalidade do cinema marginal – cujo saldo estético era positivo, embora ao preço do isolamento – a fim de reestabelecer uma comunicação ampliada com o público. Disso dependia a adoção de uma linguagem mais convencional, mas sem abrir mão da eficiência na análise social. Lúcio Flávio (Reginaldo Faria) começa a sua trajetória como um bandido envolvido em pequenos delitos e logo se especializa em assaltos a bancos. Ele é capturado, preso e desde então fica sujeito às arbitrariedades dos policiais que exploram os presos, seja por meio de extorsões ou violência física.

Para demarcar a diferença entre Lúcio Flávio e os policiais, Hector Babenco organiza representação da seguinte maneira: de um lado, o protagonista é apresentado por meio de sua atuação pública, mas também em sua vida privada, na qual manifesta valores positivos e que revelam uma “verdade maior” do personagem; e, de outro lado, os policiais são apresentados em meios atos de violência, cometidos com frieza, método e cálculo que bloqueiam qualquer identificação com os espectadores.

É nesse sentido que estamos em viés melodramático semelhante ao filme de Lima Barreto analisado inicialmente, em que a dicotomia entre público e privado privilegia a “verdade interior” como sentido prevalecente dos personagens – o que, afinal, se explica pela estratégia de conquistar audiência de ambos os filmes. A diferença é que a obra de Babenco não desemboca na oposição fatalista entre personagens bons e maus, e sim em uma análise social que desvela os desmandos de uma política mais bandida que qualquer bandido.

Lucio Flavio Passageiro da Agonia

Os diferentes capítulos da história do cinema brasileiro – e, em particular, os 4 (quatro) filmes analisados mais de perto (O Cangaceiro, Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Bandido da Luz Vermelha e Lúcio Flávio Passageiro da Agonia) – compõem um mosaico incompleto, só que suficiente para demonstrar os diferentes fins a que servem a representação de bandidos no cinema brasileiro.

O que fica claro, em todos eles, é que a ambiguidade que caracteriza os bandidos – temidos pelos seus crimes, mas cheios de irreverência e bravura, já que isso é necessário para o êxito de suas ações – faz deles personagens prontos a servir de alegoria e iluminar os pontos cegos da experiência social. Arrisco-me a dizer que dificilmente outro tipo social tenha cumprido tantas vezes este desígnio. Daí porque dos bandidos ainda há muito a ser roubado.

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O Sétimo Código (Kiyoshi Kurosawa, 2013)

por João Lucas Pedrosa

Apesar da tradução internacional de Sebunsu Kodo para “Sétimo Código” (Seventh Code em inglês), ao jogar o título em katakana no Google, encontra-se o conceito de “Acorde de Sétima”. Seventh Chord, não à toa, é o nome anglofônico da música que encerra o filme, performada pela atriz principal (e celebrada cantora j-pop) Atsuko Maeda, e que inspirou o título do filme. Há uma diferença conceitual enorme entre um código e um acorde: um código é um sistema de normas que transmite uma mensagem pré-definida; um acorde é a união de três ou mais notas que criam um conjunto harmônico. O código pode ser interpretado, promete uma resolução; o acorde é um acúmulo, uma fusão de sons individuais ouvidos ao mesmo tempo. Um é teleológico, o outro é experimental. Faz sentido a escolha pelo “código” na distribuição internacional de um suposto thriller e a promessa implícita de solução linear para um suposto mistério. Mas, para quem a obra de Kiyoshi Kurosawa já é familiar, não é surpresa que estamos a experimentar algo da chave fenomenológica, do fracasso de quaisquer linhas e objetivos que pareçam minimamente claros. Seus filmes têm um corpo pulsante e metamorfo, que se direcionam ao mesmo tempo para dentro e para fora continuamente. Talvez como um acorde, um acorde mutante que adiciona uma nota por vez no decorrer dos minutos, compondo e distorcendo a cada adição.

O Sétimo Código é o primeiro de dois filmes que Kurosawa faria com Maeda como protagonista jogada num país asiático não amarelo onde ela é estarrecedoramente estrangeira (o segundo é O Fim da Jornada, O Começo de Tudo, lançado comercialmente em 2018). O desamparo e a alienação dessa condição fazem parte de ambos os filmes, cada um à sua maneira, mas, especificamente neste primeiro, o estrangeirismo da personagem principal Akiko é manifestado pela sua opacidade. Ela é estrangeira – estranha, alheia – tanto em seu contexto como em sua representação. Assim que o filme começa, entendemos que foi à Rússia perseguir Matsunaga (Ryohei Suzuki), que ela afirma não conseguir esquecer desde quando tomou um café com ele no mês anterior. No primeiro plano do filme, Akiko sai correndo atrás do carro azul vintage que o transporta – e que será um ícone da presença desse homem-objeto de desejo ao longo do filme – numa corrida já injusta: não apenas tenta alcançar um automóvel em movimento a pé, como carrega uma pesada mala que faz estrondo por onde passa. Ela surge em plano – e em filme – logo depois que o carro azul sai, na frente de uma fachada em cirílico; antes de Akiko surgir, o espectador comum intuiria que o carro seria o guia dos planos numa sequência introdutória à trama do filme. Mas quem nos guia pelo filme é a protagonista em sua luta romântica estranha, aparentemente infundada e aparentemente perdida. Matsunaga não apenas denota verbalmente seu desinteresse pela moça, como foi à Rússia para tocar uma negociação ilícita com criminosos nativos.

Akiko, assim, se nos apresenta a priori como um desvio tonal, uma revolução epicentral. Ela surge como uma figura inoportuna e indesejada ao contexto estabelecido, buscando desesperadamente romance num lugar emaranhado em intriga internacional. Mas veremos que o ziguezague de intenções e expectativas será o fundamento de nossa relação com ela durante todo o filme. Um personagem particularmente curioso para Maeda, que, enquanto ídolo j-pop, corporificava um arquétipo de estilos e trejeitos graciosos próprios ao conceito da AKB48, supergrupo feminino que integrou até 2011. É um conjunto de configuração muito específica, com dezenas de membros e diversas frentes simultâneas realizando shows pelo Japão. Um exército da delicadeza performática. À altura do lançamento de O Sétimo Código, estava lançando singles solos (Seventh Chord seria o quarto e último) enquanto prosseguia em trabalhos de atuação, apartada do corpo-nação musical onde começou. No filme, ao invadir um prédio fechado para seguir Matsunaga em meio a negociação com mafiosos russos, Akiko é raptada e agredida, e então deixada amarrada e ensacada no meio de um campo remoto. Agora perdeu sua bagagem – as posses que sinalizavam alguma raiz anterior à viagem – e precisa rasgar seu caminho de volta ao mundo, como um pato quebrando a casca. Um renascimento que se dá também enquanto personagem, ao menos aos olhos do espectador, pois uma Akiko muito diferente se levanta da grama. Ela rasga o saco e desata os nós com facilidade e propriedade, anda pelas ruas sem o descuido frágil (e estridente, sempre acompanhado do arranhar da mala arrastada pelo asfalto) de antes, mas com as costas eretas, a precisão analítica de quem encontrará o que precisa. Responde em russo fluente a um homem que lhe oferece ajuda na estrada e invade sem cerimônia uma casa vazia para pegar roupas limpas e um band-aid para o corte no rosto. Um gesto de “auto remonte” a partir dos escassos recursos em mãos – algo coeso ao tom de Kurosawa, que ama erigir potências de mundo das ruínas, e à então fase de Maeda, que formava seu novo tom de carreira.

Podemos, daí, talvez, entender que se trata de um romance – ou novela, dada a curta duração do filme – de formação. Seria, talvez, uma das definições melhor resolvidas com a teleologia inquieta de Akiko: a jornada da maturidade e do autodescobrimento tomando os contornos e rodeios caóticos da vida. Mas a personagem é quem representa o próprio caos, numa sorte de auto entropia, vinda de dentro para fora. Em sua inquietude, constantemente reinicia do zero nossa compreensão de seus objetivos. Ela passa a trabalhar num restaurante para ter sustento, moradia e poder observar a rua (e a possível passagem da Matsunaga). O seu chefe lhe ajuda a entender que seu homem-objetivo está atrás do Krynon, um dispositivo nuclear raro, e morre no processo. Matsunaga vê Akiko a esmo na rua e a leva para casa, com pena. Lá, em completo domínio de combate físico, ela o imobiliza e mata com um tiro na cabeça para roubar-lhe o Krynon e levá-lo a um político russo. O motivo emocional parecia então apenas o subterfúgio de um motivo muito claro e utilitário. Isso não vem como surpresa, dada a postura de Akiko após sair do saco de pano, mas a sua sustentação da narrativa romântica para o chefe do restaurante e a colega garçonete ao longo de tanto tempo nos faz questionar o quanto talvez Akiko possa ter se “perdido na personagem” – ou, talvez, encontrado algo.

Com o dinheiro que ganha, ela pega carona com uma caminhonete cheia de dinamite em direção ao futuro. Seventh Chord, enfim, toca, e a cena incorpora a performance filmada da música por Akiko numa afetação poética em promessa de vida que, ao mesmo tempo, também assume a natureza musical de sua atriz. A música termina assim que o caminhão sai de plano, sumindo no horizonte. Mas o carro azul de Matsunaga aparece seguindo-os, mais uma vez desviando o desfecho do filme. Vemos Akiko sorrindo em close ao ver o carro – o júbilo da inversão de perseguidora a  perseguida? Ela parou de buscar e agora é o objetivo – e, já num plano geral, a troca de tiros ao fundo da estrada. Um deles pega na dinamite e tudo se explode. Sempre houve algo a interromper ou ressignificar a jornada ao extracampo conclusivo, mas agora tudo se dissolve aos céus; à nossa frente, mas a uma distância intimista aos explodidos. O plano lenta e quase imperceptivelmente acompanha a elevação da fumaça em travelling up – uma jornada que nunca foi só “para a frente”, mas para todas as direções, em expansão – até que, talvez no reconhecimento de sua limitação transcendental, a câmera joga o enquadramento para a direita, e a estrada e as cinzas para fora de tela, enquanto os créditos rolam sobre o campo ao qual agora tudo se fundiu em estranha paz. Uma unidade imanente em que todas as sugestões e tons pelos quais o filme se propôs a passar – o romance, o suspense, o jogo de mentiras, o Bildungsroman, o videoclipe, a trova, a poesia – são, enquanto armadilha de uma compreensão “linear” ou “global” da trama, parte do corpo fílmico em toda sua sinceridade metamórfica e contraditória. A explosão acidental é resultado de uma batalha de máfia, de espião contra espião, e também é um shinjū (duplo suicídio dos amantes). Recusar a renúncia de qualquer potência; recusar a verossimilhança para não renunciar à verdade.

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As muitas mortes de Antônio Parreiras (Lucas Parente, 2025)

Rir da morte

João Paulo Campos

As muitas mortes de Antônio Parreiras (Lucas Parente, 2025) aborda de maneira heterodoxa a vida e obra de Antônio Parreiras, importante pintor paisagista brasileiro. O longa de Lucas Parente investiga e remonta materiais de arquivos distintos, revelando fragmentos de filmes, reproduções de quadros do autor e de outros artistas, músicas e fotografias. Mas, além dessa pesquisa investigativa mais tradicional, o diretor arrisca encenações que fabulam, numa chave zombeteira, momentos derradeiros da vida de Parreiras. 

Todas as vozes são dubladas pelo diretor num estilo Zé do Caixão, o que investe as desgraças de Parreiras de comicidade. Outro elemento cômico presente na obra é o boneco de urubu que ronda o pintor com comentários mórbidos através de um carrinho. Tudo parece um estranho sonho neste filme.

Parente coloca Antônio Parreiras no centro de um teatro da formação da cultura nacional. Neste palco, é encenado o pacto sombrio entre o artista e a elite do país. “Precisamos criar mitos e alegorias, alimentando a pátria, a família”, diz o homem rico. Parreiras é o escolhido para a tarefa de inventar a cultura nacional pela pintura.

O artista é figurado como homem melancólico e suscetível. A cena do pacto é bem elucidativa nesse sentido. Parreiras é convencido por meio de uma espécie de feitiço do homem rico, interpretado por Leo Pyrata. Frágil, o pintor sucumbe à ganância das elites da nação.

Mas o grande barato do filme está na articulação entre os arquivos e as encenações. O autor consegue integrar o material num organismo só, tecendo a história entre os dois materiais. A sequência final demonstra isso. Os índios que matam Parreiras vêm de um material de arquivo. O filme faz conexões transversais de montagem para contar a sua história e construir sua atmosfera.

As muitas mortes de Antônio Parreiras acaba sendo um experimento lisérgico de (contra)biografia que brinca com os começos e os fins, os pactos e as mortes. É um filme que ri diante da morte.

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Deuses da Peste (Gabriela Luíza e Tiago Mata Machado, 2025)

Teatro da tirania

Por João Paulo Campos

Deuses da peste aborda o universo do bolsonarismo desde um encontro assustador entre cinema e teatro. Se a extrema direita radicaliza a teatralização da política, o longa de Gabriela Luiza e Tiago Mata Machado efetua uma politização do teatro e cinema. Uma tentativa de vingança pela arte é encenada no filme da dupla, oferecendo uma imagem sombria do Brasil atual.

A obra foi realizada sem financiamento público e mostra uma trupe de atores performando num casarão que, em cena, se torna um castelo dividido em instâncias ou palcos. O espaço do filme é transformado um microcosmo alegórico que procura ensaiar uma posição estética diante da ressurgência do nazi-fascismo no Brasil e no mundo. A alegoria nacional encontra o terror da fúria de direita que tem virado o mundo de cabeça pra baixo nos últimos anos. 

Cada parte do filme, dividido em atos, cita uma referência diferente da história do teatro, desde Shakespeare até Artaud, passando por Brecht, Aimé Césaire e outros no caminho. Encontramos Paulo Goya como um tirano em decadência e Renan Rovida de bufão bolsonarista, pequeno diabrete-agitador cuja coreografia se junta ao coro da desgraça, formado por atrizes e atores de São Paulo, como Carolina Castanho e Sofia Botelho. Helena Ignez faz a bruxa que fustiga o teatro da tirania encenado no filme. 

Numa Mostra de Tiradentes marcada por filmes que colocaram em cena a tristeza, o luto e o sucídio, Deuses da Peste surge como um longa  que, apesar de ser dark, também é politicamente propositivo. Isso por tentar entender o universo da extrema direita na prática do cinema em convergência com o teatro. 

A participação de Eduardo Fukushima é digna de nota. Além de ter preparado o elenco, o coreógrafo realizou duas performances no filme. Quando o dançarino aparece tudo se desvela. A cena em que Fukushima surge de vestes pretas na frente de uma mureta à noite nos revela a origem da cinética que estrutura o trabalho dos atores e atrizes empesteados. A dança coloca um corpo doente em cena, num registro expressivo que elabora uma imagem da decadência contemporânea.

O filme mostra uma dança da destruição e uma cinética quebra-ossos. Corpos doentes vagam e se contorcem nos espaços que a obra apresenta, fazendo caminhos entre o terror do agora. Partindo da mímesis da extrema-direita, Luíza e Machado desenvolveram um cinema da crueldade do Brasil atual. E a peste ainda está entre nós, o que convida a arte a tirar a desgraça para dançar. 

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Confluências (Dácia Ibiapina, 2024)

Etnografia da amizade

João Paulo Campos

Confluências parte do encontro de Dácia Ibiapina com Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, que assina a co-direção do curta-metragem. O filme começa em movimento. Uma música vibrante embala as imagens filmadas de dentro de um carro. As paisagens vão passando e a música energiza nossos corpos. Estamos a caminho do quilombo Saco-Curtume, na zona rural de São João do Piauí, onde Nego Bispo vivia e compartilhava seus saberes com seus camaradas.

O filme é formado por registros das celebrações de aniversário de Bispo em seu quilombo. O lugar se torna palco não apenas da farra coletiva, mas também de uma troca de ideias que desvela o pensamento do autor e sua cultura. Ali, a vida é “começo, meio e começo”, diz o sábio numa das conversas, atestando uma forma de vivenciar o tempo e espaço completamente distinta dos ditames da modernidade capitalista.

Confluências é uma obra intensiva. Através dela mergulhamos na experiência da festa do quilombo de Bispo. O curta consegue, além de descrever a vida que ali se desdobra, captar a energia dessa gente em estado de farra. A fita vibra com os corpos em movimento e a música animada, fazendo a obra se tornar um filme-festa. 

Trata-se de um documentário etnográfico que se arrisca no mundo sem medo de desvios de rota. Como disse a diretora em sua apresentação no festival, Confluências é um documentário que lida com os imprevistos da experiência. O maior deles foi a morte do co-diretor e protagonista, que fez a realizadora assumir um registro intensivo do aniversário de Nego Bispo, em vez de optar por um caminho extensivo no tempo. 

Ibiapina observa, mas também participa do evento registrado. Uma das cenas mais belas do curta mostra Nego Bispo dançando. De repente, ele puxa Dácia do fora de campo e arrasta um forró com a diretora. Nota-se, nessa cena, a relação de confiança e amizade que a documentarista desenvolveu com Bispo no decorrer das filmagens. O filme dá uma forma amorosa à alteridade, como se fosse uma etnografia da amizade.

A obra de Ibiapina mimetiza o pensamento de seu interlocutor. A montagem de Cristina Amaral amarra os caminhos do filme numa confluência guiada pelo pensamento e presença de Nego Bispo. O que encontramos no quilombo de Bispo é uma forma de vida alheia ao individualismo capitalista. O filme descreve uma cultura marcada pela coletividade e a amizade.

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Mostra de Cinema de Tiradentes: Um Minuto é uma Eternidade Para quem está Sofrendo

Trevas e escuridão

Por João Paulo Campos

Com o surgimento do cinema digital, modos alternativos de produção começaram a aparecer. A revolução tecnológica barateou a feitura de filmes, o que contribuiu para a multiplicação de fitas realizadas na solidão.

Os filmes em primeira pessoa que povoaram as sessões de festivais brasileiros nos últimos vinte anos são, muitas vezes, sisudos e sem graça. A pandemia intensificou o tom fúnebre dessas obras, o que contribuiu para o esgotamento dessa tendência estilística. Pois nada disso vale para Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo (2025), de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro, obra que brinca com as sombras do eu para inventar outra dimensão existencial através da performance e do cinema.

O filme apresenta cenas domésticas de Wesley, um jovem gay que vive com a família num contexto de precariedade. Ele sofre com tendências suicidas, angústia e solidão. Mas o que faz deste filme algo singular é o que o autor faz com o sofrimento. Mais do que narrar suas dores num relato sério e monótono, Wesley constrói uma performance que desloca seu eu em cena. Com isto, ele se torna um personagem que seduz pelos excessos e extravagâncias que realiza diante do terror. A vida cotidiana é transmutada num atlas de atrações que transitam entre o horror e o hilário, o tesão e o imobilismo. 

As filmagens de celular do diretor-ator mostram uma série de situações performadas por ele: leituras, banhos, sessões de cinema em casa, masturbações, mijadas, desabafos, piadas com animais domésticos tomam a forma de esquetes. Diferente de outros filmes em primeira pessoa, Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo é uma obra que não leva o narrador a sério. O performer se duplica e ensaia diferentes formas de brincar a partir da instância pessoal.   

Em vez de fazer do cotidiano difícil uma atração, o longa cria cenas em meio ao caos do dia a dia. A luz cortada, a falta de comida em casa, a vontade de se matar e outras desgraças são narradas enquanto o performer faz a sua mágica. O que toma o protagonismo é o tom da fala, os gestos, o jogo de cena de Wesley. O sarcasmo demolidor e a auto ironia são características centrais de sua performance, o que desloca a vida precária e o sofrimento psíquico para uma zona lúdica de invenção despudorada. 

O filme de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro se destaca na mostra Aurora deste ano ao sinalizar o que pode a arte diante do sofrimento. Virar outra pessoa se torna uma maneira de driblar as trevas da vida precária em cena. Através da performance, o longa revira as entranhas do show do eu contemporâneo.

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Enquanto o Céu Não Me Espera (Christiane Garcia, 2024)

A vida entre espelhos

Bem diferente das imagens comuns de uma Amazônia verde e em certo estado de dádiva ou prenhez eterna, com rios de dimensões martítimas, Enquanto o Céu Não Me Espera apresenta uma vida ribeirinha cinza e claustrofóbica, apesar de toda amplitude, e progressivamente esmagada entre dois espelhos: o céu sobre a cabeça e o Rio Negro sob os pés.

Apostando num futuro de cheias cada vez mais agressivas para a região, o filme nos apresenta uma família que vive num palafita no interior do Amazonas, tirando sustento do cultivando juta, planta que se adapta melhor a ambiente tropicais úmidos e da qual se retira uma fibra que pode receber diversos usos, principalmente têxteis. Neste sentido, a realidade de Vicente – interpretado por Irandhir Santos – mesmo neste futuro distópico, acaba não diferindo muito das histórias de antigos soldados da borracha de séculos antes. Escravizado pela própria insalubridade da relação entre trabalho e território, e principalmente pelas dívidas assumidas com um patrão cuja autoridade mais parece a de um capataz, Vicente absorve a brutalidade como modo de navegação social e na construção deste núcleo de relações o filme de Christiane Garcia remete a um clássico do cinema nortista sobre a dureza da vida ribeirinha: Brutos Inocentes (1973), dirigido por Líbero Luxardo, com Zózimo Bubul no papel principal.

No contraponto dessa brutalidade encontramos Rita (muito bem interpretada por Priscila Vilela), esposa de Vicente e matriarca da família em cuja casa acompanhamos a subida do rio como transposição imagética das tensões sociais do contexto ribeirinho amazônico, mas também da história desse casal. Mesmo com todas as dificuldades em manter a família nutrida e segura, Vicente teima em permanecer na casa enquanto Rita acredita que a solução seja partir.

Na esteira do adensamento desse conflito, o filme entrega diversas imagens da água como espelho e figura ligada ao transbordar de sentimentos, concentrados especialmente em Rita, personagem que já percebeu a queda do céu e não suporta mais a condição sufocante daquela vida submersa em melancolia. Vale destacar essa figuração da água como condição melancólica numa metáfora da atitude calada e ensimesmada do caboclo amazônida, lindamente representadas aqui.

Ainda que seja louvável a coragem técnica para realização de um filme praticamente gravado dentro d’água, a mercê dos humores do Rio Negro e da grandiosidade da natureza amazônica, para uma história que pensa o futuro da região, suas escolhas formais expressam a tradição de um cinema antigo e masculino, apesar da direção feminina de Christiane Garcia. A maior expressão dessas escolhas está na cena do estupro marital, que não possui função narrativa para além da reiteração de uma crueldade que se quer naturalizar,  ao confundir a crueza do entorno à dureza de uma alma ribeirinha, que não encontra reflexo numa observação atenta. Mais um filme que escolhe repercurtir imagens de estupro, numa chave que parece buscar respostas para a estupidez humana, mas acaba esbarrando na reafirmação da cultura da violência sexual e de gênero.

Que os espelhos da realidade amazônica possam se valer das múltiplas possibilidades da fabulação para seguir contando histórias sobre essa região tão plural quanto desconhecida, trabalhando a delicadeza das epistemologias caboclas e apontando para um futuro em que séculos de manejo de vida fluvial possam gerar imagens prenhes de futuros possíveis.

Visto na Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília

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Mar de Dentro (Lia Letícia, 2024), Confluências (Dácia Ibiapina, 2024) e Yõg Ãtak: Meu pai, Kaiowá (Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna, 2024)

Mostra Competitiva Nacional, noite de 03 de dezembro.

Por Geo Abreu

As sessões da Mostra Competitiva do Festival de Brasília juntam num programa, exibido sempre às 21h, dois curtas e um longa metragem. A ideia deste texto é expressar a unidade da sessão programada para a noite do dia 03 de dezembro, e a forma como os filmes confluíram, como diria um de seus protagonistas. Além das impressões pós exibição, somam-se aqui também ideias surgidas durante o debate, ocorrido na manhã seguinte. Aproveito para informar que todos os debates da Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília, realizado em dezembro de 2024, podem ser acessados no canal do festival no Youtube.
Por ordem de exibição, então, apresento alguns comentários sobre os filmes exibidos:

Mar de Dentro

Divindo a tela em duas, como numa instalação para galeria, Lia Letícia, diretora e performer, apresenta a história de Preto Sérgio, homem negro e insubmisso e sua saga para fugir de uma prisão arbitrária ocorrida durante a ditadura Vargas. Lia conta que encontrou a história de Sérgio ao vê-la contada em paineis pintados em frente a uma pousada de Fernando de Noronha. A partir daí, seguindo o fio da narrativa, encontrou Kelly, neta de Preto Sérgio e dona da pousada. Kelly, então, detalha a história do
avô: ele, preso por ter ferido por engano um rapaz de família rica, se vê exilado na ilha feita de prisão. Com astúcia, estuda a geografia, marés e ventos, constrói uma pequena embarcação e foge, sendo recapturado tão logo chegou em terra firme. Sendo levado de volta pela força policial, foge pela segunda vez, e só retorna à ilha ao descobrir que está sendo procurado, desta vez para ser inocentado e libertado por bravura. A diretora, que também é historiadora, relata que usou a ideia do díptico, dividindo a tela em duas, para pôr em relação diferentes materiais referentes ao caso de Sérgio, tentando transformar a fala do personagem, expressa pelos painéis, como um arquivo “válido”, buscando fazer com que este filme, além de obra audiovisual, atue também com documentação sobre o ocorrido. Além disso, a ideia do díptico, produz também uma dobra do tempo do filme que em 8 minutos conta a história com riqueza de detalhes, relacionando arquivos oficiais e arquivos de origem popular, como os painéis e relatos, buscando assim a validação da versão de Preto Sérgio por contaminação, por relação.

Ao final, com a pintura do homem negro remando contra uma maré agitada, reivindicando o direito de contar sua própria história, somos levados ao filme de Dácia Ibiapina, e como muito bem apontou André Dib durante o debate da sessão, parece que Sérgio de forma diegética está remando ao encontro do Quilombo Saco-Curtume, tema do filme seguinte.

Confluências

Não sei dizer se é possível humanizar ainda mais alguém como Antônio Bispo do Rosário, famoso Nego Bispo, autor reconhecido de diversos livros sobre o pensamento quilombola, que ganhou notoriedade nos últimos anos como divulgador de epistemologias outras, quase no mesmo nível alcançado por Aílton Krenank. Digo quase porque, há exatamente um ano, Nego Bispo fez a passagem e agora nos observa a partir de outro plano, no qual é mais difícil publicar livros.

Dácia Ibiapina diz que escolheu abordar este personagem, já tão conhecido, a partir de um ângulo mais pessoal: a festa de seu aniversário de 60 anos junto aos parentes no quilombo Saco-Curtume. E o que o filme nos apresenta é uma figura confluindo entre suas contradições, lidando com uma família numerosa e amigos que chegam de vários lugares para saudar sua existência.

Desta forma, o curta opera na mesma linha do pensamento que Bispo expressa em fala sobre o fato de que uma história só é história quando se ouve os dois lados. Quando se ouve um lado só, o que temos é ficção e, segundo ele, quase tudo que se sabe sobre quilombos é ficção. E quase tudo que sabe sobre o Quilombo Saco-Curtume está em seus livros e sua falas espalhadas em vídeos pela internet. Mas em Confluências é possível entender as dinâmicas de festa e de construção coletiva e composição da vida daquele lugar, desde a criação das crianças até a forma de monetizar algumas situações expressa pelo leilão de comida ou da discussão sobre o cachê da banda de forró.

No mais, a pequena cena em que Bispo e Dácia dançam forró de forma muito animada e cúmplice, expressa um fazer cinema que dialoga com os personagens e seu entorno, bem como essa pequena-grande diretora brasileira nos ensina: “a gente não consegue domar os filmes.” e as escolhas expressas em tela se manifestam no fazer, descobrindo a história e fluindo com ela, aprendendo com o filme enquanto se realiza.

Yõg Ãtak: Meu pai, Kaioŵá

É muito bom estar viva ao mesmo tempo que Sueli Maxakali, acompanhar sua trajetória como cineasta e a forma como seu cinema vem se transformando a cada filme. Em Yõg Ãtak: Meu pai, Kaioŵá a diretora se coloca em cena como nunca antes, talvez pelo tema tão íntimo, o reencontro com um pai que esteve distante por anos devido a uma história de privação de liberdade, como a de Preto Sérgio, personagem do primeiro curta desta sessão. Logo na cena de apresentação, Sueli produz uma foto viva de sua família, nomeando cada pessoa que entra em quadro, expondo a relação que possui com cada uma, apresentando sua família não só para o pai distante, mas para todos nós. E ao longo do filme o que acompanhamos é o desvelar de uma rede de parentalidade que atravessa a história do país e a luta pela retomada de territórios por povos originários.

A naturalidade com a qual o filme constrói a diferença entre os Maxakali e o Kaiowá expõe com sutileza da diferença entre idiomas e formas de apresentação, pinturas corporais, uso de cores e adornos, e esse jogo de diferenças assume certo protagonismo sem eclipsar o tema do reencontro entre parentes, e o processo de tradução e diplomacia entre etnias ocupa boa parte da história: necessária toda uma rede de relações e negociações para que Sueli se reaproxime de seu pai e o convença a participar do filme. Pela primeira vez também se expressa a dinâmica de co-direção entre Sueli e Isael, quando ambos assumem o protagonismo da direção de acordo com aquilo que talvez entendam melhor: Sueli nas entrevistas; Isael na condução do ritmo. Em determinado momento, as cores usadas pelos Maxakali são apresentadas a partir de uma dinâmica de pintura de tecidos que se transformarão nos trajes usados pela comitiva que irá ao encontro dos Kaiowá na culminância do filme e o grande reencontro entre esse pai e essa filha, que tanto tem em comum talvez sem se dar conta disso.

Para finalizar, deixo essa imagem que fiz da tela durante a sessão e a forma como as cores e composição do quadro me fizeram lembrar dos filmes dos anos 1960 de Jean-Luc Godard, e que remetem a uma certa vivacidade e a necessidade de um cinema muito novo de manifestar que está tentando mudar o mundo a partir de imagens. Vida longa ao cinema dos Maxakali e a sua Aldeia Escola.

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Palimpsesto (André di Franco e Felipe Cañedo, 2024)

“O fogo comeu Luzia”

Por Geo Abreu

Uma aflição possível do acadêmico que também é cineasta passa pelas dúvidas sobre como abordar assuntos não tão populares de maneira cinematograficamente interessante. No caso dos arqueólogos, Palimpsesto surge como respiro em meio a filmes comumente duros de assistir.

Tratando sobre o desaparecimento por incêndio da coleção arqueólogica do Museu de História Natural da UFMG,ocorrido em junho de 2020, o filme constrói sua narrativa sobre o luto dos pesquisadores e estudantes que atuavam na reserva técnica dosando as idas e vindas entre informação e ensaio visual, valorizando a própria condição lacunar e a requalificação de um material arqueológico destruído pelo fogo após 40 anos de salvaguarda. Na condição de palimpsesto, a história se inscrevendo nas peças, mais uma vez, a reserva se transformando em sítio arqueológico.

Dividido em blocos temáticos, o filme começa com o encontro dos pesquisadores com o espaço em ruínas, suas dúvidas sobre o processo de resgate e o entendimento sobre a perda para logo se transformar em blocos de encenação sobre o evento, como quando acompanhamos um dos pesquisadores transitando pelo espaço destruído, nos apresentando a ele como se os materiais ainda pudessem ser acessados; a ritualística da entrada no agora sítio arqueológico, antes acervo; a leitura coletiva de diversas notícias sobre a perda de diversos acervos de guarda da memória do país, como o incêndio da Cinemateca Brasileira em 2018 e a uma forma de analisar a progressiva destruição da memória de um país já tão frágil no acesso à sua própria história.

Será que aquelas coisas perderam muito de sua agência? Será que no futuro haverá lugar para a Arqueologia? Em alguns planos, vemos árvores que mais parecem objetos, enquanto o professor aponta sua pá de trabalho, as vezes como pessoa cuja agência o ajuda a lidar com os vestígios que encontra, as vezes como prótese que se acopla ao seu corpo e ao de outras pessoas; noutro momento, alguém adverte que na prática arqueológica é proibido se apropriar de objetos achados, mas que ela quis salvar um pedaço, um traço sem forma daquele acervo desaparecido, como para conter algo da agência que se fragmentou ali.

As árvores são coisas.

Coisas são pessoas.

E o fogo é um dos maiores arquivos do mundo, pois contem tudo aquilo que consome.

De certa forma, essa ideia sobre o fim do mundo como conhecemos tem nos trazido de volta ao pensamento sobre a importância da memória e o cinema tem reflito isso, com muitos filmes se debruçado sobre essas modalidades de apreensão da história, seja via oralidade, escrita ou materialidade. Acompanhar a degradação das coisas que nos rodeiam com tanta consciência tem nos transformado em criaturas melancólicas e ciosas da necessidade registrar tudo. Em breve seremos apenas arquivos digitalizados de nós mesmos? Sigamos.

Visto na Mostra Caleidoscópio do  57o Festival de Brasília.

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Suçuarana (Clarissa Campolina e Sérgio Borges, 2024)

Sem teto nem lei

Por Geo Abreu

Geralmente, mulheres, inclusive enquanto personagens de ficção, tem sua existência relacionada à casa, ao ambiente doméstico e à domesticação das coisas. Por isso mesmo, na fuga desse lugar comum, encontrar filmes que se inscrevam na tradição de mulheres andarilhas é uma espécie de reparação. Em Suçuarana, a protoganista Dora é uma mulher sem teto nem lei, que percorre o mundo com rumo: a terra prometida por sua mãe, outra mulher andarilha.

Assim como em Os Renegados (1985), de Agnes Varda, filme em que acompanhamos Mona em sua jornada de libertação (“Você escolhe a liberdade total e encontra a solidão”), Dora caminha pelo mundo aceitando todo tipo de emprego, dormindo em barracos e lugares ao quais não foi convidada apenas por não querer se apegar a nada nem ninguém para além do fardo de suas lembranças. Ainda assim encontra um companheiro, um cachorro caramelo com feições e orelhas de lobo, o tipo de cachorro ancestral cuja natureza vem sendo moldada por anos e anos de experiência entre o campo e a cidade, a lida com a selvageria do mato e a selvageria das pessoas. A certo ponto, depois de aceitar sua companhia, Dora o nomeia Encrenca e apesar de não termos qualquer indicativo sobre a sexualidade da protagonista, a
presença cênica daquele cachorro me remeteu a história contada por Donna Haraway sobre uma história contada a ela por Paul Preciado, sobre a parceria entre mulheres lésbicas e buldogues, algo que remonta a histórias antiguíssimas da presença indomável de algumas mulheres no mundo e a construção de relações significantes com outros que humanos.

Nessa jornada a protagonista encontra outras tantas mulheres que tocam a vida de maneira solitária e em algum grau se parecem com ela, vagando num mundo em que não há paz para nós, as mulheres andarilhas. Até que, num golpe de mágica cinematográfica, Encrenca a salva de uma situação perigosa e a conduz para um lugar cuja comunidade se organiza em torno das ruínas de uma fábrica, tirando dela o que ainda tenha valor, objetos de ferro e outra máquinas. Aqui cabe a digressão de um breve momento em que as escolhas do cinema de Clarissa Campolina, que nos acostumamos a ver, como em Solón, se impõem como uma experiência de estranhamento do conhecido: a sequência de imagens trêmulas de uma mina de ferro como símbolo de perturbação do mundo como conhecemos e do arruinamento progressivo dele. Uma forma peculiar de assinar a mineiridade e a estética deste filme.

A partir de então, Dora se conecta a um universo de comunidade, troca e ancestralidade, o que teoricamente poderia significar o apaziguamento da busca, a ideia que a movimenta através da história. E como nos momento anteriores suprimidos pela narrativa e aos quais só nos resta imaginar, a personagem se orienta, observa e aprende com os modos de vida daquela comunidade num movimento que nos lembra Arábia (2017), de João Dumans e Affonso Uchoa. Essa imersão por um mundo do trabalho, que em Suçuarana apresenta sua face mais desconstruída, como um pós-mundo, algo que já ocupa um lugar para além de seu próprio fim: os rasgos das minas de ferro como cicatrizes do solo mineiro e a fábrica, totalmente destruída; a antiga vila de seus trabalhadores, cujas casas também estão arruinadas, dando lugar a um outra forma de se relacionar com os espaços e o vestígios daquele velho mundo.

Dora, como essa espectadora privilegiada, observa a tudo de dentro da máquina do filme e, como nós, resolve partir porque o tempo de estar ali é finito e ela precisa voltar a caminhar. No fim, talvez, sua terra prometida seja mesma a estrada.

Visto na Mostra Competitiva Nacional do 57o Festival de Brasília.

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CINEMA E PALAVRA

EDITORIAL: CINEMA E PALAVRA
Felipe Leal

SAINT JOAN (Otto Preminger, 1957)
Carolina Azevedo

UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA
Geo Abreu

O TRAJETO DA PESTE E OS INSTRUMENTOS DA MORTE: UM HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA ENTRE EDGAR ALLAN POE E ROGER CORMAN
Gabriel Papaléo

TAQUICRAFIA ESPIRITUAL: A PALAVRA CARTORIAL DE KAFKA TRANSCRITA PELO CINEMA BURLESCO DE STRAUB E HUILLET EM “RELAÇÕES DE CLASSE”
Luiz Soares Jr

PALAVRAS AO VENTO: LUCÍA SELES E CHARLES ROXBURGH NA CONSTRUÇÃO DO COTIDIANO
Pedro Tavares

O QUE ACONTECE QUANDO UM FILME DANÇA?
João Paulo Campos

DAS LETRAS E SEUS MOVIMENTOS: TRÊS FILMES DE DAVID GATTEN
Waleska Antunes

CARNE, VERBO
Felipe Leal

O NOME DO FILME É IMPORTANTE: IMAGEM E PALAVRA NO KIT GAY BOLSONARISTA
Fábio Penido Carvalho

METAMORFOSE DA PALAVRA
Guilherme Giroto

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