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Os Primeiros Soldados, de Rodrigo de Oliveira: Os deuses que chegam para morrer

Por Luiz Soares Jr.

“Eu descobri que a AIDS é uma doença estranha (…) É uma doença que nos dá tempo de morrer, e à morte o tempo de viver;” esta é a garrafa lançada ao mar em off de Johnny Massaro para encimar com o hors champ virtual do som o plano de seu corpo conspurcado por úlceras em pose de David, olvidados o mármore , o ósculo de Donatello e a poeira dos séculos; sim, o objeto de Os Primeiros Soldados é o tempo que urge, mais descrito em interjeição exclamativa cassavetiana modulada pelo suspense temporal do furacão pialatiano que narrado ‘pace dies irae’ de vela na mão e filhos em torno dos Greuze e Fragonard neo-clássicos moribundos; em Os Primeiros Soldados, este filme inspirado pelos estertores de écriture da página testamentária manchada de fluidos últimos; como descrever, na carne maculada e no gesto invocativo de personagens que sofrem ativamente a própria experiência/experimento do fim (o vídeo testamentário do terço final, que nada faz senão arrematar em chave para-si, tematizada enquanto tal, a experiência/experimento dos fins últimos, e portanto enfim objetos de narrativa, que estrutura o próprio filme) , senão gritando e mordendo , hipérbole paroxística dos corpos em combustão, contra a inimiga à porta? 

Tudo o mais no filme de Rodrigo de Oliveira é pace distendido, vinheta alegorista (o começo, o fim), unção ritual, da capo apaziguado, neutralidade do découpage: uma rigorosa e extenuada écriture a manchar de névoa o negrume lazúli do crepúsculo; aqui, cabe sobretudo aos corpos dos atores o som e a fúria que os incitam a viver e finalmente a morrer, consequência mais causal impossível a que, na vida como na arte, os dionisíacos e  os barrocos sempre fizeram jus: naturalismo fatigado de Clara Choveaux, picardia melancólica de Johnny Massaro, exaltação demiúrgica de Renata Carvalho, Meyerhold para crianças de Vitor Camilo, todos no entanto vibrados segundo o diapasão cool agonístico da iminência de um acontecimento inclemente, não necessariamente a Morte como é tematizado expressamente no filme, e sim algo prenhe de revelações existenciais sobre si mesmos, de radicais diferenças abertas como crateras no seio do Mesmo; este crédito, este pacto in extremis, esta fé herética, esta aposta visceral no corpo do ator, sigificante-mor a ser celebrado, é herdeira de Cassavetes e de Pialat, como dito acima, mas também nasce de uma conversão muito idiossincrática do diretor em pegar os pelos, os suores, as úlceras e os beijos salivados de seus entes possuídos (lembro-me agora de um texto de Narboni sobre Flammes de Arrieta, em que ele compara o corpo do ator ao da prostituta, pois ambos se utilizam da mesma matéria excremencial dos fluidos, aqui contaminados, mas sigamos) e transformá-los em significantes claros e límpidos num filme que deve ao plano o seu fundamento de estrutura mais sólido,e  portanto ao pano de fundo da stylo bailarina de incrição dos corpos em um disegno de paradoxal combustão, como se ao corpo do plano e ao corpo do ator pré existisse uma consanguinidade uterina que ao filme basta atualizar: um filme velado e expiado pelos anjos da Morte se dedica a maior parte de seu tempo in extremis a nos de-mostrar corpos e processos  desenhados contra o fundo do abismo do tempo, corpos que emergem à superfície apesar de e com o abismo?

Como Encore de Paul Vecchiali, talvez o filme contemporâneo à emergência da AIDS que melhor soube extrair dos corpos decompostos como cavalos cinematografados de Muybridge pela doença um gênio coreográfico único em scope ( e, portanto, plástico como cinético, servindo-se do plano como de um invólucro para a marcha inexorável do Mal), Os primeiros soldados exalta o corpo do plano e o corpo do ator como entidades coexistentes para processos in extremis, de que a performance ( aparição extraordinariamente intempestiva e arquetípica em sua histeria feminil, descendo do ônibus e com os peitos em convulsão expostos , de Renata Carvalho, que já prenuncia o tom, diapasão e arremate do filme numa atuação plena de energia mas aberta igualmente às síncopes da agonia) é o evento melodramático, patético mor, de que a cena em que a travesti canta Gonzaguinha com trejeitos e meneios de dançarina de boulevard,decepcionando o público do réveillon, que esperava outra máscara e corpo, como talvez a plateia de festival esperasse outro filme sobre a experiência/experimento do fim?, menos espetacular que especular, como aqui..a interpretação de Renata Carvalho, moeda de Caronte encarnada para supra espasmos do corpo possuído por exaltações somáticas e metafísicas, imprime à diafaneidade de entretons neutros do découpage geral de Os primeiros soldados um flerte com o Infinito das libações trágicas; o equilíbrio atônico do filme encontra, no desespero somático de menino abandonado de Massaro ao descobrir o corpo ulcerado no espelho da câmera-sintomatológica, como também nos sobressaltos e projeções de voz artaudianas de Renata Carvalho, um veio a partir do qual o equilíbrio atônico de tudo ameaça soçobrar e  cair, mas este resvalo, “reparo” e sobressalto de rampa é apenas um biombo detrás do qual tudo- personas-máscaras, narrativas, eixos- se reorganiza para recomeçar outra vez, em outro diapasão: em alguns instantes, a câmera estaca muda e imóvel diante dos objetos, atomizada pelo progressivo esvaziamento nirvânico da voz narrativa pelo processo niilista do corpo que soçobra, e que portanto parece levar com ele para baixo e  para os fundos este filme tantas vezes sobre corpos em devir extático, para fora e para sempre, mas logo o seu eixo se endireita e retoma fôlego, foco, eixo; a performance em Os Primeiros Soldados, -de que a atuação de exterioridade pura de Carvalho é apenas a ponta de lança de processos de interpretação somática mais em surdina no caso dos outros atores, mas não menos intensa- é o buraco da fechadura da cena originária de Freud, o terceiro olho através do qual a  criança vai se intrometer na trepada do casal para investigar as potências possíveis do terceiro excluído, a fresta da indagação metafísica: é no buraco da Mãe que se escondem A Morte, Deus, o Nada? é este empoleirado pedaço de carne entre as pernas do Pai a lança de Tarquínio que vai penetrá-los, tirá-los de seu escaninho de reclusão para trazê-los à luz do ser?

Tudo, através da performance, como da interrogação sobre o invisível da criança diante da ultra-visibilidade do corpo humano, se torna complexo, multiforme, outro; morrer é agora não apenas ser abandonado pelo corpo,e  portanto, como pensava Berckley, abandonar a esfera do ser, que é ver e ser visto, mas também o processo, tantas vezes elíptico, elegíaco e machucado em Os primeiros soldados, de reinventar o corpo ainda ativo, ainda vidente como é visto no espelho paulino: Johnny Massaro filmado com suas úlceras pela câmera espelho se torna o objeto candente e a experiência impossível de alguém que advém novamente à vida ( ele morre um pouco antes do terço testamentário ‘em vídeo final) para dar voz, ritmo, textura a um cadáver “que ainda se agita”, como dizia Pascal da errata pensante, ressurreição só possível numa arte do present tense epifânico e do rewind memorialista; Renata Carvalho é este monstro de vitalidade mas também uma abertura taciturna de inervação mediúnica, onde o Feminino dolorido mas funcional de Clara Choveaux reencontra  as graças de uma potência deliberadamente impotente, à ausculta cúmplice maternal ou de irmã mais velha a velar pelas duas crianças grandes masculinas com suas pílulas milagrosas ( através da lógica da performance, morrer pode também ser visto como uma brincadeira seríssima  mas mesmo assim brincante, de qualquer modo uma alteridade convocada para enriquecer as possibilidades do corpo doente, disléxico e  patético: bastam apenas duas pílulas, e tudo vai cessar, talvez para recomeçar sob outra máscara, penso eu).

Os maneiristas inventaram, dos gestos esmaecidos e dos cinzelados empoeirados das esculturas da antiga Grécia, uma nova Grécia, que coincidiu com a morte da Idade Média: a bella ideia, que as manieri tão cariciosamente invocavam e erigiram em mármore, cores fúnebres e stacatti de árias barrocas era na verdade a terminal máscara para o  cadáver semi-embalsamado pela suntuosa múmia dos significantes maneiristas; foi a cerimônia fúnebre, foram seus codex cênicos, imagéticos e metafóricos o grande leitmotif da subtração preciosista da anamorfose maneirista, aquele que resgata a Cena originária da escultura e da arquibancada gregas para inoculá-la  com este insidioso veneno da maniera, à analogia do fantasista (em 1984) wishful thinking da vacina invocada por Renata Carvalho para Johnny Massaro, perto do final ; assim como a  vacina contém em seu cerne o corpo vitrificado, mortificado, mumificado do vírus para injetar a vida sob a máscara da Morte, a operação maneirista se serviu da arcaica Grécia de Praxíteles, Escopas e Lísipos para inaugurar a Renascença sob a inspiração do menino Jesus da Madona Sistina, velado pelos querubins mortuários que, segundo Daniel Arasse, tinham os rostos mortificados e os dedos emaciados de pungente melancolia porque sabiam que agora finalmente Deus ia morrer, uma vez que desde o monte Sinai Ele havia finalmente se encarnado num homem; toda esta elegíaca constatação fúnebre de que parte para não mais voltar eleva Os Primeiros Soldados à posição agonístca de ser um filme sobre os deuses que chegam para morrer; ao contrário das stars caducas de Femmes femmes (Vecchiali novamente), que dedicavam seu álbum de retratos e músicas demi-faisandés ao Camus de Jouez la comédie!, Rodrigo de Oliveira não precisa adular seus atores ou supra-encantar seu público com uma dedicatória empoeirada; mas é para as personas performáticas e fantasmáticas de Renata Cravalho, Johnny Massaro, Clara Choveaux, etc., como os processos, as ações e as inações que imprimem ao corpo de todo ator uma veleidade de posteridade, de in memoriam encarnado (como pensava o Daney de uma correspondência com Biette sobre Wim Wenders e o fantasma encarnado do ator que atravessa eras e envelhece com o cinema) que o filme é subliminarmente dedicado.

Contudo, eu não gosto do final de Os Primeiros Soldados, que me pareceu demasiado copia e cola do gênero “uma imagem exemplar, “redentorista”, para nos demonstrar que a vida, representada pelo casal jovem e erógeno dos dois meninos que se beijam, vence finalmente a morte, com a repetição/rima aqui da ejaculação fantasista da queima dos fogos, ontem com Suzano e hoje com seu sobrinho; para mim, o filme acaba idealmente muito antes, com o wishful thinking de Rose para Suzano de que daqui a dois anos ninguém nunca mais vai ouvir falar de Aids; é sobre a frágil haste desta esperança quase infantil que nos afastamos para ver melhor  e mais longe que o destino ideal para um filme é encarnar as potências oníricas dos pobres espectadores nestas imagens vertiginosas, feitas de sombra e de luz,que a projeção realiza; também nós, como os deuses,merecemos morrer para finalmente começar a sonhar.

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Anotações sobre Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, de Érica Sarmet

Por Geo Abreu

 Mais uma edição da Mostra de Cinema de Tiradentes vai terminando. Apesar de nunca ter participado presencialmente, pude acompanhar a mostra nos últimos anos por consequência das medidas sanitárias de combate à Covid-19 e do pouco que pude observar até aqui, a força dessa 25ª edição deve muito ao cinema queer.

Se o cinema negro – aqui, entendido em amplo espectro – esteve à frente das experimentações mais interessantes produzidas pelo cinema brasileiro recente, agora é o cinema queer, despontando em bando e apresentando temas e formas de abordar a realidade que nos entregam muito, e não só em discurso.

Em Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, curta dirigido por Érica Sarmet, que vem fazendo carreira por festivais, inclusive os internacionais, fala sobre o encontro entre duas gerações de mulheres, lésbicas e não-binárias. A liberdade do grupo de garotes impressiona a mulher mais velha, que faz um paralelo entre a atualidade e a cena lésbica de uma Niterói de trinta anos antes, quando Vange Leonel ficou conhecida pela música que é tema do filme e que também já foi tema de novela. Nessa dinâmica de por em relação a experiência de mundo de cada grupo, o filme trabalha com a ideia de invisibilidade a qual as vidas lésbicas foram mantidas por tanto tempo, esse tempo da paciência selvagem de que fala o título.

Interessante que, ainda que essa necessidade de ser invisível seja pontuada, a abertura do filme postula o justo oposto: usando imagens de arquivo em que mulheres se apresentam nas mais diversas situações, entre festas, atos públicos e composições de mesas (de bar e políticas),elas apareçam vivas, felizes e ativas, no que o filme desenvolve seu melhor argumento: a necessidade de catalogar referências e discursos para as próximas gerações.

 Há um chamado explícito a isso que o curta desenvolve em toda sua duração: do monólogo inicial de Zélia Duncan até o jogral que finaliza com Lorre Mota chamando a próxima conversa, o que se apresenta é essa indiscernibilidade entre gozo e luta, entre festa e protesto, entre cinema e vida que lembra Dyketactics e Women I Love, curtas de Barbara Hammer, cineasta que conheci através de Érica e de uma mostra sobre a cineasta norte-americana acontecida no Rio de Janeiro em 2017 e para a qual fui atraída pelo chamado a um cinema lésbico experimental feito num tempo anterior ao meu. Aliás, essa ideia de uma geração anterior ou posterior é bem trabalhada no curta de Sarmet: se estamos vivas – ainda que menos novas do que já fomos um dia -, esse não deixa de ser o nosso tempo, o tempo de estarmos vivas e desejantes.

Fonte de referências de modos de agir, reagir e filmar, Uma Paciência Selvagem nesse sentido faz par com Vênus de Nyke, curta de André Antônio lançado em 2021 que, traçando o perfil psicológico de um rapaz em relação com sua terapeuta, fala sobre a descoberta da sexualidade, infância queer e fetiches, inventariando referências – filmes, sites, músicas, livros – e estabelecendo um corpus de pesquisa sobre o universo gay masculino. Assim como Paciência, Vênus fala às crianças queer, aquelas que Paul Preciado diz ter seus cuidados e escolhas negados pela sociedade patriarcal[1], indicando caminhos de pesquisa e criação de comunidade para atravessar o caminho até o vale.

A paixão que o curta apresenta entre as tantas possibilidades de encarar a vida a partir de uma vivência dyke/quer/não binária contagia e reverbera, e faz coro com O Nascimento de Helena, Tito, uma videópera pop do cerrado mineiro em chamas, Sad Faggots + Angry Dykes Club e Seguindo Todos os Protocolos, todos filmes que compõe a Mostra de Tiradentes nessa 25ª Edição.


[1] “Quem defende as crianças queer?” – texto de 2013 escrito por Preciado na reação a uma marcha do tipo orgulho hétero ocorrida na França no mesmo ano.

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Avá – Até que os Ventos Aterrem (Camila Mota, 2022)

Por Gabriel Papaléo

Vamos às imagens e sensações do fim do mundo, os símbolos místicos, religiosos e mágicos da tradução dessa terra devastada. À tentativa de diálogo para investigar aonde e como foram destruídas as ideias e as terras. Se não há vislumbre de ação nem organização política diante do fascismo, talvez o verbo agressivo da profecia seja o caminho para o revide. A questão que fica latente logo no ato I de Avá – Até que os Ventos Aterrem, no entanto, é que as intenções de destruição e apoteose são quase opostas ao trabalho de câmera e montagem, mais filmagem de peça e registro pouco pensado de performance que propriamente o desencadeamento de imagens fílmicas que almeja. Partir de dois níveis no plano do palco, o alto da deusa e o baixo do humano, para não diferencia-los em imagem e nem localizá-los no espaço, acaba uma boa ideia implodida sem muitas delongas nos 62 minutos do longa.

A encenação não é adaptada para uma lógica cinematográfica, e continua presa à uma ideia de espetáculos teatral – sem o hibridismo de formas da qual a Mostra encoraja nas justificativas curatoriais; o que sobressai é uma cobertura audiovisual do texto e das atuações, com a câmera nunca soando ativa nas decisões narrativas do filme. Existe esse esforço de articulação principalmente no como as realizadoras lançam mão das imagens encontradas e das texturas experimentais que adentram uma pictorialidade na destruição em tela, mas nunca parece tensionar nas disruptivas, e sim nos termos reiterativos. A cada palavra, uma imagem equivalente; não de antítese, não de complemento, mas de equivalência.

Não por acaso, os créditos finais apresentam “Dramaturgia”, no lugar de argumento ou roteiro, porque a vontade de Avá – Até que os Ventos Aterrem parece sempre honrar uma tradição dos palcos, tradição do incômodo proposto pelo histórico do Teatro Oficina. Nesses créditos, homenageiam os atores e diretores que passaram pelo teatro, além de homenagear também os povos indígenas nas suas lutas por dignidade e por suas terras, um ativismo político que, apesar de comentado em tela, nunca ultrapassa a barreira do comentário de rede social sobre os assuntos desesperadores que aparecem nas nossas telas. No campo das profecias, sobram explicações e reflexões, faltam místicos e chamados à ação.

A opção pela crônica do fim do mundo, reduzida a um soldado num ambiente sitiado e destruído que encontra a transcendência ao buscar o contato com a carne – uma trama que já soa uma alegoria cansada e reducionista de cara – encontra pouca inovação numa encenação que não ilustra espacialmente o desafio da distância física entre soldado-entidade, pessoa-deusa, humana-natureza. As atrizes se valem do texto como dá, mas a dimensão política soa como manifesto aos ventos, pouco articulada além da impressão básica do desgoverno, do descontrole pandêmico, e do ataque às minorias a qual o Brasil passa atualmente. Sobram os trocadilhos com vacina e com guerra, falta o corpo presente que o trabalho teatral tanto almeja.

Não ajuda a opção pela lógica estruturada na fala como fluxo de consciência, vomitada pelas entranhas desesperadas, bem ao monólogo de Lucky em Esperando Godot – para trazer o contato que a peça/filme explicitamente busca, como reforçam os créditos citando Beckett; no personagem do dramaturgo irlandês, o desespero é traduzido em sua maior (e quase única) fala, cuja ambição é a pulsão e o caos na falta de coerência daquelas palavras proferidas por um escravo que sonhou com a fuga; aqui, as falas buscam esse desespero em meio a reflexões políticas muito rasas e um mapeamento de possibilidades do que constitui esse mundo imaginado, quase uma consciência una que se comunica por diversas vozes.

Fica sempre a sensação de que falta ao filme a dimensão desse espaço do futuro obliterado que versa sobre, as limitações do palco que funcionam tão bem no teatro, e que aqui soam como rascunhos distantes. É tocante que se pense numa utopia, na melhor sequência do filme perto do final, e na fúria e graça regeneradoras duma natureza agora sem prestar contas a ninguém – mas é também o refúgio mais direto e insuficiente que os supostos retornos ao primitivismo, a empostada ideia simbolista de primeira mão, desenham sem ao menos desconfiar de sua disposição acidentalmente apolítica.

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Seguindo Todos os Protocolos (Fábio Leal, 2022)

Por Natália Reis

Após ficar 10 meses sozinho em quarentena, Francisco quer transar. Francisco, como muitos de nós, é adepto de procedimentos capilares radicais feitos no banheiro de casa e recorre de vez em quando às propriedades paliativas dos cristais, óleos essenciais, tarô e meditação. Ele lê os últimos estudos sobre as respostas imunológicas da vacina, taxas de mortalidade, reações medicamentosas. Segue os protocolos, não sai de casa por razões banais, sabe qual é o melhor modelo de máscara, mas não sabe qual é o plural de “álcool em gel”. Julga quem compartilha as escapadas do isolamento no Instagram e acaba sendo criticado por isso. Francisco não sabe, mas é a pessoa mais bonita do mundo.

Já faz um tempo que venho me questionando sobre o sentido de um incômodo que tenho com a ideia de “filme pandêmico” enquanto gênero. Ainda não consegui chegar a uma conclusão quanto a isso, mas, conversando com um amigo, levantamos alguns motivos prováveis dessa cisma: “pode ser que esse filme já nasça um tanto datado, fixo num momento histórico” ou ainda “se aproveite de forma leviana do tema para conquistar certos espaços”, ou como gostamos de chamar (venenosamente) “filme espertinho”, o tipo de obra consciente dos mecanismos aos quais vai recorrer para arrematar o maior número possível de respostas positivas. O filme de Fábio Leal não é um filme espertinho, é um filme esperto. De uma esperteza tamanha que me deixou por quase 48 horas pensando nele, com medo de começar um texto que não desse conta nem de parte dessa esperteza. É esperto porque é sincero, engraçado, dolorido e se vale de personagens totalmente adoráveis e palpáveis nas suas neuroses e desejos. Também não merece ser descrito apenas como um “filme pandêmico”, pois ainda que a pandemia seja esse acontecimento de proporções globais, seus efeitos devem ser individualizados para não nos tornarmos dormentes. Acredito que as aflições compartilhadas pelo protagonista interpretado pelo próprio diretor vão além do momento atual. A vontade, e muitas vezes dificuldade, de se relacionar, de encontrar no outro uma companhia ou mesmo o gozo rápido, são sentimentos que acompanham a história da humanidade. Sentimentos terrivelmente humanos. 

Seguindo todos os protocolos (2021) vai narrar a saga de Francisco, homem branco, gay, classe média, em busca de uma transa que não ofereça riscos de contaminação por Covid-19. Passado quase um ano de quarentena, a necessidade de estabelecer contato físico vai se tornar uma grande questão na sua rotina de cuidados e preocupações que ocasionalmente extrapolam em paranoia, e nos encontros nem sempre satisfatórios com outros rapazes, quer sejam no ambiente virtual ou no seu apartamento bem decorado. No desencadeamento de um processo de autoficcionalização, tão bem sintetizado na obra truth, fiction de Leonilson na parede de Chico, Fábio nos presenteia com momentos de humor genuíno, sem apontar dedos ou se amparar em críticas pontuais. O humor aqui é muito mais um meio – pelo qual as contradições e insatisfações de seus personagens podem vir à tona – que um fim. Em poucas palavras: tudo é muito sério e ao mesmo tempo nada é sério. 

Oscilando entre tópicos dolorosos que perpassam a conjuntura pandêmica, como o afastamento dos vínculos afetivos ou o medo de contágio que se desenvolve em ansiedades mais profundas e a precarização do trabalho, e instantes de leveza, de uma intimidade construída na perscrutação dos corpos masculinos e um erotismo arrebatador digno de Robert Mapplethorpe, o filme vai desembocar numa comédia sensível, rendendo cenas memoráveis de interação entre personagens tão prismáticos que podem transitar pela brutalidade e o enternecimento sem nem nos darmos conta. A sensação que fica é que, ao trabalhar a distância e a solidão na impossibilidade do toque, estamos diante de uma obra que se avizinha bastante de um filme como Un chant d’amour de Jean Genet. Se Genet faz uso do encarceramento para tratar desses temas, Leal vai pegar alguns dos maiores temores da nossa geração e moldá-los para que caibam numa história sobre os embaraços da reaproximação e da insatisfação sexual na quarentena, ao mesmo tempo que resguarda – como um segredo prestes a ser partilhado – a esperança e a possibilidade de expurgo dessas mazelas num gesto tão singelo e libertador quanto um passeio de moto pelo quarteirão.

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Meus Santos Saúdam Teus Santos: Carta a Rodrigo Antônio

Por Geo Abreu

Filho, larga a vaidade, prepare-se

És do povo és da mata

garanto-lhe

Rodrigo,

sei que entendes o que vou dizer: como é bom encontrar filme amazônida na programação de um festival. Nosso sotaque anasalado guiando o percurso de um filme e dessa vez não pelo viés da exotização mas sim de algo que pouco se fala: a força da mistura entre religiões de matrizes africanas e indígenas discretamente representadas naquele plano do maracá junto a imagem de Cosme e Damião. 

Não vou chamar de zombaria a representação que geralmente se faz dos espíritos da floresta em muitos materiais audiovisuais sobre a Amazônia, mas de uns tempos pra cá, a caricatura feita disso me assombra como falta de respeito. Curupira, Mãe D’água, a filha de boto da novela das nove, não pegam da força desses arquétipos sequer o farelo. Enquanto numa cena de Meus Santos – aquela do contra-plongée das árvores balançando ao vento -, o barulho das folhas me fez sentir como se fosse possível respirar aquelas imagens. Me senti pequena e abraçada no meio daquela mata. 

É sob a forma de expressão desse mistério que repousa o limite entre um exotismo esvaziado e o respeito com a transmissão de conhecimentos cujos multiplicadores se tornam mais e mais escassos. E do que trata teu filme senão de assumir o compromisso com esse papel de transmissão? 

Em A Memória de Sangue (2021, Elom 20ce), a personagem-narradora também nos conta sobre seu processo de autoconhecimento a partir da religião, no caso, o Vodu. A serenidade com que fala sobre o segredo, que ao mesmo tempo em que é guardado também deve ser multiplicado, é aquele da pessoa cujo processo de formação se completou. Lakoélé, a protagonista, hoje canta numa banda e usa elementos desse conhecimento ancestral em suas performances, seja nas letras, no ritmo ou nas pinturas do rosto e, para além do trabalho efetivo junto às irmãs do Vodu, estabelece a música como lugar de experimentar essa força em outras medidas e encontrar algum equilíbrio entre esses dois mundos. Ouvir Lakoélé e sua história me fez lembrar de Mateus Aleluia – O Canto Infinito do Tincoã (2020, Tenille Bezerra) e a missão que se traduz em música. Encontrar esse equilíbrio entre manutenção e partilha é uma chave poderosa e apaziguadora.

Cavalo tá pronto?“, “Ainda não, mas quer estar”. 

Interessante que tu escolhas mostrar a jornada com suas dificuldades, os diferentes tempos que se cruzam em expectativa e suspensão, e que o filme nos deixe ainda no começo desse caminho. Abristes uma janela para o quintal da tua avó. Mostrastes fotos, cartas. Essa pesquisa que faz parte do processo e que nos fala de como é difícil reprogramar para estar de volta por completo. Reaprender a ver é um exercício demorado, não é isso também que teu filme nos mostra?

Fui realmente pega por algo que dizes a certa altura: Mistério não cabe na boca e o que eu sinto no corpo, grita“. Alguma janela interior se abriu a partir disso, como enxergar para dentro. 

Me despeço aqui, torcendo por ti e pelo restabelecimento da comunicação entre tu e tua avó.

Beijos.

Geo Abreu.

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Filme Caseiro (O Dia Posse, Allan Ribeiro)

Por Luiz Soares Jr.

Os Walsh e os Ludwig do auge da era clássica nos deram instantes privilegiados, elegias encarnadas no lusco-fusco evanescente de tantas inolvidáveis obras de ourives; para os modernos, restou a desolação câmera na mão e atalhos de zooms descontínuos pelas crateras da cidade arruinada pela guerra: o neo-realismo e a nouvelle vague não falaram de outra triste Venise; e os pós-pós, aqueles que erigiram sua obra de linguagem sobre os escombros da obra diegética, acmé fascinatória e litúrgica quando clássica e cinema verdade ladeira abaixo quando moderna?

Godard, Kluge, Fassbinder maneirista, Kurt Kren actionista…inauguraram uma enlutada posteridade, nossa História aziaga do significante flutuante, do lugar de fala, do dispositivo e do simulacro; neste filme quase-caseiro mas com ambições narcisistas demiúrgicas (o seu ‘objeto’ Brendo, pelo menos, é devedor desta exaltação enlutada, desta excitação mortificada, desta paradoxal chama que nasce das cinzas do confronto com a ninfa Eco e em O dia da posse com a tela virtual da TV), Allan Ribeiro fala da percepção maníaco-depressiva dos BBBs desfolhados antes da primeira floração (digo: paredão) e dos presidentes tirados a fórceps do Poder antes do decisivo decreto’ para entrar na História, hebdomadária e mítica; não, não se trata de má poesia, de elegia avant la lettre ou de metáfora segundo o espírito, de metonímias desfiguradas pela totalidade que falta, pois aqui o objeto jamais vai ser reconstituído por inteiro, uma vez que, como o próprio sujeito da enunciação fracassada exprime, “quando diante de uma câmera jamais conseguiremos ser nós mesmos”; O dia da posse, que passou e transbordou de maniera povera por todos os codex do cinema pós-pós acima enumerados,  nos fala desta ruptura instransponível, desta falha, desta fratura, impossibilidade de ser que trafica o fantasma pelos meios assombrados da imagem documental de base, sua morada senão ideal pelo menos possível, à mão: a grande épica, como o kammerspiel intimista encantatório, jamais pertencerão a Brendo, porque, tardio dentre os tardios, é um personagem elaborado pela retórica niilista que sabe que o rosto jamais vai coincidir com a máscara e que a persona humana é a invenção a posteriori de plenipotências de teatro e de elocução, de gesto e de quadro encimadas por ninguém senão as miudezas de um microfone de lapela, uma câmera DV de baixa definição, um Dream’s factory de BBB, panteão consagrado de um último capítulo surrupiado à sua plenitude pelos fac-similes lívidos e canhestros da TV mofo numinosa do youtube; mas voltemos ao fulcro, ao centro, à ribalta do final de Cidade dos sonhos de Lynch: “… o que sei é que ninguém que é filmado por uma câmera jamais consegue ser ele mesmo”.

O documentarista pós-Coutinho, pós-Lanzsmann e Flaherty, pós-Annales, pós-Histoire(s) du cinema sabe que o seu objeto nunca é totalmente documental pois, desde a falsa ou secundária contraposição (desmascarada pelo Godard da boutade ‘fim de caso’ “Toda ficção é um documentário sobre a sua própria confecção”) entre Lumière e Méliès, sabemos nós também que a captura do Real pela câmera de filmar jamais conhecerá a integridade de um olhar sobranceiro que nos guia e significa senão com o auxílio da inervação fantasmática da ficção; e o que é o Fantasma, senão o arquétipo daquilo que se atualiza numa imagem, inervada, como em todo cinema, por mediações invisíveis (montagem, cadre adstringente, luz, raccord), ou pelo fora de campo? o Fantasma necessariamente vai desaguar numa Imagem, pois como ela o seu significado é consanguíneo a mediações infra e supra visíveis, à saturação pelo fora de campo; as imagens quaisquer, comezinhas “achadas” ou duramente resgatadas à lixeira do youtube de O dia da posse ( cadre do cadre do celular, vista à janela, corpo que flutua sobre as águas em plongée alucinatória, o corpo tumefacto e o gesto evasivo de Brendo falando direta, frontalmente para nós) são devedoras do Fantasma daquilo que Brendo persegue como um bico-de-pena ao gesto do sfumato de Da Vinci e Manet: à Fama, a mais irrisória das quimeras de nosso tempo, seu fetiche e obsessão; todos os filmes, infra ou supra ficcionais, de primeira mão ou superestruturados, primeiros e últimos, originários ou tardios, devem ao Fantasma a sua inspiração-mor, mas jamais a sua execução, que é sempre obra de um manejo ultra-mediado dos significantes e materiais; O dia da posse não aposta na sofisticação dos codex linguísticos do cinema do simulacro e da enunciação diferida, de perífrase ou citação, do dispositivo e do lugar de fala devedor de fora de campo, mas em sua simplicidade frontal e dialógica com o personagem que o obceca como a Fama ao garoto da periferia do Brasil ele nos ensina algo extremamente atual sobre a potência, comum às pessoas marginalizadas politica ou geograficamente, de se servirem da infra estrutura tecnológica para permitirem ao sonho um meio de se engendrar artefato, de se materializar numa imagem, talvez o meio mais poroso às fantasmagorias alucinógenas do devaneio que habita sob as armadilhas do desterro cotidiano; o que é afinal sonhar, pensava o Freud da segunda teoria das pulsões ( 1918), senão imprimir à experiência cotidiana rememorada segundo um continuum de significantes evasivos ou refigurados por ordem temporal outra, um diapasão frenético ou em câmera lenta, ao gesto uma beatitude extática, à causalidade uma tinta de delírio intempestivo, e assim atualizar todas as camadas superpostas do id massacrado pelo prático-inerte da necessidade e da utilidade do dia a dia, dando-lhe enfim a chance de advir à superfície? o sonho de ser ator de novela, BBB ou presidente da República é indiferente, pois depende, como pensava o Deleuze de Diferença e repetição e o Kojève que leu Hegel para os existencialistas, do delírio psicótico impresso no corpo do Desejo pela época (nossa época onívora de sintomas, de grandezas e diapasões energéticos suspeitosos necessita talvez desta tríade de poder para satisfazer seu élan megalômano), mas o essencial a se reter aqui são ao mesmo tempo a insistência sintomatológica de sua expressão ( expressa pela morosidade ou repetição de certos planos), a grandeza histérica do gesto e a simplicidade neutra da fala com que desejos que atingiram os cimos da volúpia do id em se apoderar do ego se apoderam agora do quadro e da frontalidade expositiva; os clássicos sempre foram frontais, simples ( jamais simplistas: o simples acumulou em sua trajetória a imensidão das mediações do percurso fenomenológico, arregimentou vertigens e potências), porque haviam passado pelo abismo e sublimado sua potência maligna, mas sem o abismo jamais haverá suprassunção; em um livro autobiográfico, Mankiewcz nos diz de seus personagens intelectuais, como na obra prima A quiet american, que quanto mais potente  a loucura mais espessa deve ser a máscara da razão; Brendo não é louco como o personagem de Redgrave no filme de 1958, mas um dia chega lá: o delírio de nosso tempo consiste em chegar à Fama sem passar pelo Trabalho, ou em termos filosóficos pela categoria hegeliana do Reconhecimento; desta erosão da experiência pelo delírio já generalizado demais para estar vivo de que Brendo é o intérprete e porta-voz Alan Ribeiro tira a experiência possível dos momentos em suspensão ( no tempo) e dos espaços prenhes de afetividade, como a mãe ao celular e os pés na maré que sobe; o personagem talvez não tenha olhos para ver, mas o diretor solicita ao espectador que complete o circuito invisível de uma vidência impossível ao campo estreito daquele rapaz um tanto deslumbrado demais para poder ver que o evento mais suntuoso de que será testemunha reside não numa tela de tv, e sim ao alcance de sua mão e de nosso olhar; a experiência, no cinema primeiro (guloso e escatológico) e no pós-guerra, sempre foi o ouro do pobre; as festas infinitas do plano sequência e locação ou o uso onívoro da profundidade de campo encapsulavam o presente num maravilhoso escrínio de tempo e espaços puros, a perder de vistas; um respingo desta oferta voluptuosa do milagre ao alcance da percepção cotidiana, agora um milagre para olhos que sabem finalmente ver (lembram-se da cega de Chaplin, ao final? “agora, eu posso ver”, ali eticamente, pois ela podia enfim adivinhar sob as vestes encardidas e rasgadas do vagabundo o grande homem que ele fora sempre) salpica a duração linear de O dia da posse com um rastro de revelações que certamente o post do Facebook ou a foto do Instagram já surrupiaram para o seu códex reminiscente, memorialista de registros hebdomadários efêmeros, mas que numa tela grande de cinema, arte monumental (monumento fúnebre, como nos ensinaram Godard e Daney, também está valendo, pois continua a ser um desvairado in memoriam), subitamente se reerguem das poeira citadina dos dias quaisquer (registrados por registros quaisquer,  e esta banalidade do mal arendtiana não nos deve escapar nunca da vista inocente dos registros cotidianos, pois a exceção do Mal, do delírio ou do sonho sempre habitaram o cerne da dita normalidade, uma vez que afinal com que material se engendraria a negação do Real senão com as hastes precárias e fecundas do próprio Real?) e se postam diante de nós; o encanto e a surpresa pelo encontro com rastros de vida vivida aqui e ali nos surpreendem talvez ainda mais por ser, como dito no início deste texto, um filme quase-caseiro, um filme registro, um filme que recupera o frêmito e o tremens do Real capturado tão sordidamente pelo cadre miniaturizado do celular; em sua pequenez e condensação, em sua negação senão frontal pelo menos subliminar da escritura em sua totalizante abdução da percepção nua, O dia da posse recupera recônditos tesouros perceptivos, que talvez mais do que idos e vividos estejam ainda por vir.

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Mostra de Cinema de Tiradentes: O Dia da Posse

Por Geo Abreu

A tradição do encontro com personagens documentais comuns e extraordinários, que muito deve ao cinema de Eduardo Coutinho, é resgatada por O Dia da Posse, de Allan Ribeiro. O cineasta nos apresenta Brendo, rapaz de fala fácil que cruza diversas referências pop em suas preleções, indo desde pronunciamentos políticos a discursos de eliminação em reality show, alimentando assim um sonho de infância: ser presidente do Brasil. 

Ribeiro e sua câmera tiram partido do confinamento ao expor uma das características desse período: a crescente importância da relação com telas na vida da cidadã comum. Tevês, monitores, telas de dispositivos móveis, visor de câmera, olho mágico, janelas. A imposição desse regime de economia da atenção traz consigo a necessidade de manter uma imagem íntegra de si para ser mostrada, enquanto os rostos de Allan e Brendo expressam a dificuldade disso. A vida entre frestas e a imposição desse contato mediado por telas como as únicas possibilidades de comunicação com o fora nos últimos dois anos. 

Nesse ponto é que se misturam dispositivo e personagem, com Brendo mostrando desenvoltura diante do confinamento e do excesso de exposição frente às diversas possibilidades de enquadramento, como alguém que passou a vida inteira sendo treinado pela cultura audiovisual até este momento. 

O diretor desempenha bem o papel de provocador, estabelecendo alguns jogos para que Brendo ganhe desenvoltura e, brincando, produza discursos dignos dos personagens que deseja ser. Ele conta histórias de quando se descobriu pobre ou de como pretende cursar medicina, logo após a graduação em direito. Esse gancho é puxado a partir do encontro da câmera com vestígios de uma pequena cirurgia de extração de dente feita pelo próprio Brendo no apartamento em que ambos estão confinados. 

Entre os blocos de apresentação e adensamento do personagem principal, o diretor também se expõe, em tomadas na praia, construindo assim episódios que promovem uma quebra na narrativa, suavizando a monotonia da locação única. Marcando o caráter de externalidade desses trechos em relação a linha

narrativa principal, Ribeiro elabora jogos de dentro/fora, mostrar/esconder, a partir dos quais reforça a diferença entre as subjetividades expostas no filme, mantendo o foco e o zoom no rosto de Brendo, enquanto brinca na areia sozinho com sua câmera. 

Entre o experimental e o vídeo caseiro, duas categorias que o próprio filme aventa sobre si, Ribeiro explora as possibilidades dessa multiplicação de telas. O comportamento de Brendo, que parece ter nascido pronto para o momento em que – quase – todas as casas tenham se tornado o palco de um show com transmissão via web,produz pontos de contato com o filme Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi, quando, por exemplo, o vemos despedir-se de seu pequeno Palácio da Alvorada e de todos nós, ao fim de um mandato curto e ainda assim marcante. É nesse ponto também que (re)conhecemos um cineasta maduro, capaz de tirar um filme do bolso como quem brinca de fazer cinema.

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Diário remoto de Tiradentes – Parte 2

Por Natália Reis

Tendo em mente que “panorama” é um termo que diz respeito à vista privilegiada de uma paisagem, ou ainda uma visada geral do entorno, a Mostra Panorama, que teve início neste domingo, dia 23, configura uma espécie de cartografia diversificada das manifestações cinematográficas emergentes em território nacional. Reitero a definição da proposta curatorial porque o que se apresenta para nós nessa primeira sessão são obras que se relacionam intimamente com a geografia dos locais onde foram desenvolvidas, e com os sentidos de existência de indivíduos nesses territórios. 

A começar por Transviar (2021), de Maíra Tristão, um retrato, realizado em película, de Carla da Victoria, artesã e mulher transexual residente de Vitória, Espírito Santo.  De maneira sensível, o filme de Maíra vai lidar com questões que perpassam as relações familiares recondicionadas pela transexualidade e o trabalho manual enquanto um dos fatores constituintes da identidade. No processo intrincado de fabricação de panelas de argila, Carla se pergunta sobre o lugar que ocupa numa tradição compartilhada já por quatro gerações de mulheres da família, ao passo que o rio e o mangue se abrem como cenário acolhedor para essas e outras indagações. 

Em Dois bois (2021) de Perseu Azul, Joana retorna à casa da família após a morte da mãe para encontrar um lar hostil e um irmão atormentado pelo comportamento nocivo do pai. Ambientado no pantanal matogrossense, Dois Bois busca desenvolver uma ideia de insurreição feminina que se perde em meio a personagens planificados e situações derivativas que não vão além das oposições arquetípicas (feminino/masculino, autoridade/insubordinação) retratadas como mero jogo de força bruta. Ainda que possa contar com uma fotografia apurada e um entendimento extensivo das articulações da linguagem cinematográfica, o filme de Perseu não consegue ser feliz na direção dos atores e muito menos no desenvolvimento da alteridade dos seus protagonistas, que não conseguem ir além de uma trajetória limitada, feita de heróis e vilões.

Uma embarcação avança pelas águas esverdeadas de um rio parcialmente dominado pela vegetação costeira. Mais à frente, avistamos uma casa sustentada por colunas que se elevam sobre a maré. De lá desponta uma criança uniformizada segurando com cuidado os sapatos e o material escolar. Na cena seguinte, um grupo de alunos na faixa dos 8 anos de idade, já reunidos no interior do barco a motor, interagem animadamente. São alunos do 3º ano da Escola Sítio Porto Alegre, situada no pequeno município de Curralinho, na Ilha do Marajó. Uma escola no Marajó (2021) é o nome do belo documentário de Camila Kzan que acompanha a rotina diária de uma pequena escola de comunidade ribeirinha. Valendo-se de uma abordagem um tanto wisemaniana, Camila observa com primor as dinâmicas institucionais que contribuem para a estruturação desse espaço (como a preocupação da diretora com o combustível do barco fornecido pelo governo e as limitações de transporte), vez ou outra flagrando instantes encantadores de brincadeiras e interações das crianças entre elas, e entre a turma e seu professor. 

Em Curupira e a máquina do destino (2021), de Janaina Wagner, a noção de progresso defendida inescrupulosamente pelo regime militar na construção da Rodovia Transamazônica faz parte de uma história de fantasmas e outros ecos de um tempo distante. Se no filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna Iracema é uma prostituta de 15 anos entregue à sorte, aqui ela retorna como uma aparição nas estradas que levam à cidade de Realidade (AM), numa busca constante pelos mistérios ancestrais que habitam a mata. Partindo de um ritmo desacelerado em que imagens pujantes se arrastam, Wagner vai nos contemplar com a promessa de redenção do passado e do futuro resguardada no encontro da entidade sobrenatural “a curupira” e a menina Iracema, que invoca sua presença como quem chama uma velha aliada. 

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Cinema, dinheiro e marmitas

Por Geo Abreu

As condições do país-brasil se (con)fundem com as condições do cinema brasileiro na atualidade.

Trilhando um trajeto particular pelos programas de curtas da Mostra de Cinema de Tiradentes – e assumindo sem pudor que escolho os filmes realmente curtos – emendei sem pensar muito a respeito: Ácaros, de Samuel Marota, Dinheiro, de Arthur B. Senra e Sávio Leite e Corre de Marmita, de Luiz Pretti e Phillipe Urvoy. 

Apesar da escolha ao acaso, executar os filmes nessa sequência fez muito sentido. Algo de continuidade em movimento ascendente, tanto pelo ritmo imposto pelos filmes quanto pelas temáticas conjugadas. Em Ácaros somos apresentados a uma imagem sem definição, “pequena”, “ruim”. O movimento da imagem é intenso, sugere trabalho, conhecimentos específicos, ação. Na saída daquele fosso acompanhamos um belo movimento de câmera que revela a grandeza de uma sala de cinema em ruínas, metáfora concreta dos dias que correm. Trabalho arqueológico de história do tempo presente executado em quatro minutos. As salas de cinema de rua minguam no mundo neoliberal, cujo tempo liso escorre em enxurrada, fazendo de tudo ruína.

E qual o papel do dinheiro nessa história? Uma convenção tão antiga e agora, mais do que nunca, espiritualizada por códigos digitais e transferências em tempo real? Em Dinheiro, somos apresentados ao histórico do papel que passou a representar um índice de troca entre entidades de naturezas diferentes. Várias versões do papel moeda brasileiro, seus brasões, generais, ditadores, cidades, índios – como na capa de um álbum do Sepultura – completamente deslocados como escala de valor em relação à sua representação numa nota de mil cruzeiros. Vibrando na tela, notas de dinheiro e notas fiscais servem de moldura para frases icônicas sobre o capital e suas contradições. Outros quatro minutos densos em que a montagem impõe o ritmo, e através dele se conecta ao filme que escolhi na sequência.

Corre de Marmita é ágil como a urgência que sugere. Seus onze minutos transcorrem como o pensamento acelerado que é necessário para se equilibrar na cidade: entre celular, deslocamentos e sobrevivência. O curta conta a história das pessoas envolvidas numa ocupação urbana no centro de Belo Horizonte que, em meio a luta pela permanência da ocupação, produzem ações de assistência à população em situação de rua distribuindo marmitas. No contexto da pandemia de Covid-19 o filme fala de direito à moradia, insegurança alimentar e outros arranjos de vida. Seguimos o grupo por andanças nas ruas e coleta de doações, enquanto a montagem do som atua sobre as diversas conversas que se cruzam, produzindo um mosaico de opiniões não-jornalísticas sobre o período, sem moralizar escolhas e temas. Além de uma visão sobre redes de solidariedade, Corre de Marmita fala sobre criação/manutenção de redes na luta por alternativas à comidificação do dia-a-dia. A dificuldade que é escolher cair fora e tentar viver sem ser esmagada pelo rolo compressor do capitalismo neoliberal e seus esquemas de produção de escassez é um tema que instiga. Observar o crescimento do número de pessoas em situação de rua e a precarização dos profissionais do audiovisual (e das artes em geral), ambos fenômenos que espelham o mesmo processo, e notar o aparecimento de filmes que sejam sintomas disso é usar o cinema como ferramenta dialógica, como instrumento da história do tempo presente, a catalogar os agoras. Esse conjunto de três filmes consegue sintetizar e pôr em movimento entendimentos sobre brasil-mundo e cinema-brasil.

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Mostra de Cinema de Tiradentes: Germino Pétalas no Asfalto

Por Gabriel Papaléo

As redes de apoio, o conforto para facilitar, melhorar, e tornar mais visível a convivência com pessoas trans e travestis, são fruto da escuta e da vontade de grupos que abraçam sem desmedidas a franca ação direta. Como no curta Corre das Marmitas, também presente na Mostra de Tiradentes, Germino Pétalas no Asfalto faz do retrato de ações sociais o seu panorama de resistência contra o desgoverno atual. No filme de Ricardo Pretti e Phillipe Urvoy, o elogio experimental ao poder do movimento; aqui, no filme de Coraci Ruiz e Julio Matos, a opção pela escuta na câmera, pelas entrevistas e relatos. É um campo já coberto anteriormente pela diretora ao retratar em Limiar a transição de gênero de seu filho Noah, aqui também presente como um dos amigos do protagonista Jack, um menino de 15 anos que tem seu processo de transição filmado pelos diretores por anos. O que promete no seu primeiro plano uma investigação do amadurecimento, de um corpo e de uma personalidade, se torna um coral de demonstrações de afeto para se fazer presente diante de quem precisa de apoio ao tomar escolhas que infelizmente ainda soam tão incômodas a uma sociedade retrógrada.

É um filme que propõe o olhar para as alternativas, para as formas de organização e união que surgem como parapeitos para pessoas que são rejeitadas nos meandros mais normativos sociais no Brasil – religião, política de situação, relação afetiva, família. Nesse campo, visitamos um encontro mediado por Victoria, personagem que se identifica como “travesti feiticeira”, e que cria rodas de conversa e escuta para compartilhamento das experiências, suas e alheias, sobre sua identidade e como ela se insere no social. É através dela que o filme se permite passagens mais performáticas, focadas no misticismo dessa nova religião travesti, uma revisão de ícones de religiões outras para propor visibilidade diante do apagamento. É um jogo narrativo tendendo a transgressão mas que é montado como causa e consequência das mais básicas, mesclando essas alternativas afetivas com a violência do bolsonarismo e seus tentáculos, o que sublinha demais as ideias propostas pelos diretores.

O detalhamento na estética do cinema observacional, mais atento aos processos e comportamentos, acaba conflitando com a disposição pontual de criar uma disparidade com a violência dos relatos trans e homofóbicos dos homens da extrema direita que têm seus palcos nas igrejas e nas sessões parlamentares. Essa disparidade é reforçada até a exaustão, tanto na montagem quanto nos grafismos que volta e meia tomam a imagem, animações que propõe uma “sensibilidade”, uma “pureza” desses gestos que se espalham pela cidade (como o título propõe), mas que acabam domesticando e trivializando um tanto essas ações de pertencimento. Os glitches na imagem, que surgem como dizendo que as representações estéticas estão em crise, também soam gratuitos e afirmam mais ainda que o forte do filme é na temática e nos personagens que retrata.

Em certo momento, uma pessoa toma o microfone no encontro da UNA para falar sobre como a pós-modernidade aceita que as mudanças de estrutura social podem ser feitos dentro do próprio sistema heteronormativo, e como ter essa visão é algo perigoso e insuficiente para dar conta das vontades e anseios da comunidade que representa. Essa fala não apenas evidencia bem toda a disposição do filme em focar nos rituais alternativos, uma questão moderna por excelência e que serve bem ao senso de coletividade despertado por essa transformação pessoal de Jack e seus amigos, como também preenche lacunas que o filme infelizmente deixa, ao apostar mais num panorama um tanto genérico das trocas necessárias para se confrontar essa dura realidade de enfrentamento.

É complicado pensar nos termos de forma e conteúdo em filmes como esse, não só porque seria um reducionismo estético separar as duas margens que nunca deveriam soar dissociadas, como também se argumenta que fazer isso é cair no binarismo que a própria natureza temática do filme critica – mas a desconexão entre as boas intenções e a articulação estética sobre elas fica bem evidente. A câmera parte de um relato de amadurecimento, das incertezas e da identidade na formação de jovens, para se contentar com o que se espera do registro afetuoso tantas vezes vistos sob temas sensíveis e atuais – não por acaso presentes com frequência em Tiradentes. Fica a torcida por um alcance maior de público para elucidações acerca do tema; é a limitação e a vontade de Germino Pétalas no Asfalto.

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25ª Mostra de Cinema de Tiradentes

DIÁRIO REMOTO DE TIRADENTES – PARTE 1 (Natália Reis)

GERMINO PÉTALAS NO ASFALTO (Gabriel Papaléo)

SESSÃO DE CURTAS: CINEMA, DINHEIRO E MARMITAS (Geo Abreu)

O DIA DA POSSE (Geo Abreu)

DIÁRIO REMOTO DE TIRADENTES – PARTE 2 (Natália Reis)

FILME CASEIRO: O DIA DA POSSE (Luiz Soares Jr.)

MEU SANTOS SAÚDAM TEUS SANTOS: CARTA A RODRIGO ANTÔNIO (Geo Abreu)

SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS (Natália Reis)

AVÁ: ATÉ QUE OS VENTOS ATERREM (Gabriel Papaléo)

ANOTAÇÕES SOBRE UMA PACIÊNCIA SELVAGEM ME TROUXE ATÉ AQUI, DE ÉRICA SARMET (Geo Abreu)

OS PRIMEIROS SOLDADOS DE RODRIGO DE OLIVEIRA: OS DEUSES CHEGAM PARA MORRER (Luiz Soares Jr.)

BEM VINDOS DE NOVO (Marcos Yoshi, 2022) (João Lucas Pedrosa)

PANORAMA (Natália Reis)

GRADE (Lucas Andrade, 2022) (João Lucas Pedrosa)

SEIS PARÁGRAFOS SOBRE CINCO FILMES (Geo Abreu)

SESSÃO BRUTA (Natália Reis)

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Diário remoto de Tiradentes – Parte 1

Por Natália Reis

A 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes começou deixando um gosto agridoce na boca de quem foi pego desprevenido com a notícia, quase às vésperas do festival, do cancelamento das exibições presenciais. Entre momentos preciosos da abertura transmitida no Youtube – como uma homenagem à colossal Elza Soares, que nos deixou essa semana –, a presença da montadora Cristina Amaral comentando sua relação com Adirley Queirós e as vinhetas rememorativas realizadas a partir de antigas entrevistas com figuras essenciais da mostra (como um muitíssimo jovem Francis Vogner dos Reis), sobra ainda espaço para o lamento pela inevitabilidade de uma situação pandêmica que violentamente nos priva de instantes tão recompensadores quanto a conversa acalorada na mesa de bar após uma sessão, ou ainda, tendo em conta a classe dos realizadores, a possibilidade de ter seu trabalho atravessado pela experiência coletiva de uma plateia reunida em frente à tela grande do cinema. Se por um lado o formato virtual representa uma forma de democratização do acesso e de priorização da saúde pública, por outro é bem provável que ele pode ainda facilitar certos processos dispersivos e de carência das condições ideais de exibição. Parte desse lamento reside no fato de que não há muito, na verdade quase nada, a se fazer. Resta celebrar à distância a persistência de um evento que há 25 anos oferece um espaço único de acolhimento e florescimento do cinema brasileiro, apesar de tudo. 

No primeiro dia de festival, decidi focar nas três sessões independentes de curtas-metragens: Mostra Regional, Mostra Foco Minas e a Mostra Temática: Cinema em Transição. Seguem as obras (diversificadas entre trabalhos de veteranos e iniciantes) que mais ressoaram por aqui:

O que eu gosto de fazer é ter nascido no mundo (2021)
de Monique Rangel – Mostra Regional

No filme de Monique, conhecemos Maria da Conceição Rangel, Aparecida Rangel e José Rangel, três familiares que realizam juntos um gesto de imersão nas memórias de um antigo centro de umbanda na cidade de Leopoldina, outrora regido pela matriarca da família já falecida, e hoje uma espécie de depósito de imagens sacras que perecem pela ação do tempo. A relação com a diretora (que compartilha do mesmo sobrenome) não é posta de maneira clara, mas é notável a cumplicidade que ela exerce enquanto ouvinte que acompanha atentamente os relatos dos protagonistas, pontuados por temas que envolvem fé, misticismo e questões de raça. A crença em milagres, as lembranças narradas de um lugar de assombro e a confiança mútua que vai permitir a abertura e o compartilhamento sincero faz com que O que eu gosto de fazer… se concretize como uma experiência encantadora, que deixa claro ainda o papel da história oral na superação da morte e do tempo.

Ácaros (2021)

de Samuel Marotta – Mostra Foco Minas

O curta-metragem é um formato que por si só pode garantir experimentos interessantes, que ultrapassam a simples necessidade de concatenar uma ou mais cenas em um curto espaço de tempo. No caso de Ácaros, em pouco menos de 5 minutos Samuel Marotta realiza um jogo de revelação que se vale de exercícios concretos de escala, aproximação e distanciamento para desvelar uma imagem maior e assustadora. É um filme sobre ruínas que podem abrigar outros mundos (ou seres vivos, além de ácaros), e nada mais certeiro que o uso da trilha de Rebeldes do Deus Neon de Tsai Ming-Liang, um cineasta que, entre outras coisas, sabe localizar e trazer à tona a pulsão de vida que emerge das paisagens decadentes. 

Corre de Marmita (2021)

de Luiz Pretti e Philippe Urvoy – Mostra Foco Minas

No filme de Pretti e Urvoy uma câmera dinâmica acompanha e assimila o “corre” envolvido na coleta e doação de alimentos e materiais de higiene pessoal pela Kasa Invisível, uma ocupação anticapitalista e autônoma de Belo Horizonte cujas áreas de atuação se estendem a ações de cunho social como a distribuição de marmitas para a população em situação de rua num momento de grande vulnerabilidade como a pandemia. A montagem acelerada, os enquadramentos fragmentados de braços, mãos, corpos sem rostos e as vozes determinadas dos integrantes do coletivo condicionam uma fisicalidade e movimento a Corre de Marmita que nos cabe reconhecê-lo como um elogio da ação direta. 

Rua Ataléia (2021) 

de André Novais de Oliveira – Mostra Cinema em Transição

O cinema de André Novais é um cinema conhecido pelo tratamento dado à intimidade e cotidiano familiares como catalisadores do extraordinário que por vezes percorre subterraneamente o ordinário. Nesse filme, gravado há mais de 10 anos e só agora recuperado, Novais mergulha na escuridão total de um apagão na rua para encontrar seu irmão e seus pais como habitantes de uma noite infinita, respingada por uma ou outra fonte de luz. A textura granulosa da imagem que deixa os contornos tão turvos, não restando nada além de cabeças flutuantes, parece enviar uma mensagem codificada de algum lugar do passado: a memória é essa coisa viva que vai tentar se fazer visível quando menos se espera, nesse caso, em uma brincadeira de reconhecimento de fotografias de um antigo álbum de família. 

Yãy Tu Nũnãhã Payexop: Encontro de pajés (2021)

de Sueli Maxakali – Mostra Cinema em Transição

A realocação de aproximadamente 100 famílias tikmῦ’ῦn-maxakali da reserva de Aldeia Verde em decorrência da pandemia é o motivo que norteia o filme de Sueli Maxakali. Mas, sem se ater aos aspectos práticos que envolvem o deslocamento e o isolamento da aldeia, a diretora traz, por meio de cenas absolutamente poderosas de conexão imediata com a terra e de celebração com cantos e danças, um vislumbre da força vital que transborda de suas imagens: a ritualização da esperança. 

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IMAGENS FANTASMAS

TODA HISTÓRIA DE AMOR É TAMBÉM UMA HISTÓRIA DE FANTASMA (OU SOBRE MINHA EXPERIÊNCIA COM CONTOS DA LUA VAGA)
Natália Reis

DESTA PARA UMA MELHOR: COW (ANDREA ARNOLD, 2021)
Pedro Tavares

A IMAGEM OFERECIDA: O CINEMA DE RICARDO ALVES JR.
Rubens Fabrício Anzolin

A LIBERDADE DAS IMAGENS MORTAS
Chico Torres

FISIONOMIA DO APOCALIPSE (A MÁQUINA INFERNAL, 2021)
João Paulo Campos

À SOMBRA DO HÍBRIDO BIOLÓGICO MECÂNICO
Geo Abreu

EXORCISMO PERMANENTE
João Pedro Faro

A DANÇA DOS PIRILAMPOS
João Lucas Pedrosa

PARIS NOS PERTENCE
Gabriel Papaléo

HOMEM-APARELHO: ENTREVISTA COM WILSON OLIVEIRA FILHO
Pedro Tavares

UM LUGAR IDEAL PARA FANTASMAS-BANANA
Geo Abreu

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Desta para uma melhor: Cow (Andrea Arnold, 2021)

Aqui o objeto é simplesmente isolado, qualificado, extraído do ambiente, projetado em um novo mundo; o pedaço de real não tomado para ser confrontado com as partes manuais da obra, ele é tomado “para ser tomado” e não adquire essa virtude, essa eficácia singular senão pelo fato de ser destacado do resto. [1]

Michel Leiris

Por Pedro Tavares

Resumido como um retrato íntimo de duas vacas, o documentário de Andrea Arnold produzido pela BBC traz dois caminhos conflituosos acerca do objeto e o espectro que o circunda. O isolamento claro e simples em um curral e como Arnold o descontextualiza. Este destaque/isolamento segue a norma de Leiris, de um destaque para a convenção e com ela os fantasmas do senso de falseamento tomam a tela.

Primeiro em uma escada voyeurística numa espécie de câmera-olho (um pouco longe da versão vertoviana e próxima da literalidade) por muitas vezes grudadas ou muito próximas aos animais. E em segundo, conforme o registro de uma rotina óbvia de tratamentos e funções primeiras relacionadas à produção de leite, o filme de Arnold distorce os objetivos dos animais filmados. Como Michel Leiris diz acerca do objeto escolhido, “do fato de ser destacado do resto” traz “eficácia singular do objeto fabricado”. O corpo-tema segue tanto pela ideia de uma eficácia singular (a do destaque) quanto a de um objeto fabricado. A manobra de Arnold que não se dá pela proximidade da câmera e sim pela montagem, é como nos aproximamos destes animais durante o registro rotineiro.

E neste caminhar de repetições de tarefas que o falseado é corroborado como um filme de observação, de distanciamento, de destacamento. Rupturas simplórias sobre o valor dos gestos de seus cuidadores, das ações mais simplórias quanto as mais tenácias sobre a “função” do objeto, ao menos em tela. Quando Serge Margel comenta as palavras de Leiris sobre o isolamento do objeto, ele diz: “Isso já é a descontextualização ou deslocamento do objeto, que perde seu valor de uso, que se separa de seu produtor, de seu lugar de origem, de sua função primeira, para não ser por ele mesmo”.[2]

No caso do filme de Andrea Arnold, conforme se isola estas duas vacas do restante pelas bordas da imagem ou no registro atividades que necessitam apenas de seu cuidador e o animal – como o cuidado com as patas ou até mesmo um parto – mais deslocados eles estão no sentido de seu valor e mais inseridas no contexto afetuoso, seja pelo esgarçamento da narrativa com ações repetidas que o filme ganha ares de uma proto-narrativa, de uma personagem estabelecida a criar uma representação clara para quem a assiste.

Porém, há um escape em Cow: se o filme se desenhara por toda sua duração como uma questão sobre o objeto, seu deslocamento, seu valor e transformara tudo em fantasmagoria, deste mesmo falseado cria-se a subversão. Destrói-se o afeto rapidamente numa ação fria e que traz o fantasma do sentido benjaminiano[3] mais para perto. A vaca, que recebe o nome de Luma, deixa de ser Luma, mãe de um bezerro, produtora de leite e transforma-se no que Arnold filmara por todo o filme. Um objeto assombrado, que se destaca do resto para a produção capitalista e também para a moldura da imagem. Luma é uma tag de identificação presa ao corpo e, antes de tudo, um fantasma.


[1] Artes e ofícios de Marcel Duchamp, 1992.p. 131-132.

[2] Arqueologias do fantasma (técnica, cinema, etnografia, arquivo), 2013.

[3] O conceito de fantasmagoria surge no século XIX, como resultado das mudanças fundamentais nos modos de produção e no modelo econômico.

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Um lugar ideal para fantasmas-banana

Por Geo Abreu

The day Carmen Miranda died
They put a photograph in the magazine
Her dead mouth with red lipstick smiled
And people cried, I was about ten
But today, but today, but today, I don’t know why
I feel a little more blue than then

Pintando o céu do Aterro do Flamengo com tons de rosa e amarelo, um feixe de luz passeia
em busca de pouso. Em meio a arquitetura moderna tardia, um círculo de concreto que
mais parece um olho chama atenção: do centro do olhar brota um enorme coqueiro, como a
coroa de um abacaxi perdida no espaço.

Carmen Miranda finalmente encontraria ali um lugar para descansar. Seus despojos,
devidamente imantados de energia caótica, ocupariam um lugar naquele estranho
mausoléu ao ar livre, onde os fantasmas eram livres para brincar.

Luisa Marques e Darks Miranda, dupla de cineastas e performers, se ocupam do encontro
entre projetos modernistas brasileiros em Maldição Tropical, curta que opera o cruzamento
entre a ambiciosa construção do Aterro do Flamengo e a chegada – sempre apoteótica – da
memória de Carmen Miranda ao lugar.

Construído sob os escombros de dois morros, Castelo e Santo Antônio, responsáveis pelo
aterramento da região em que o complexo foi erguido, o Aterro apresenta assim uma dose
de desespero e fantasmas próprios: as histórias soterradas em sua construção ainda
pairam por lá, pesando a beleza do lugar mais até do que as construções em concreto que
a compõem.

Misterioso e lânguido, o espaço é composto por uma intrigante mistura de vegetação
exuberante, como os abricós de macaco e palmeiras gigantes que, vivos em meio a
paisagem urbana e hoje antiquada do centro do Rio de Janeiro ganham um aspecto
extrínseco e antinatural.

A partir de aproximações produzidas pelo encontro com materiais de arquivo e imagens de
Banana is my Business, documentário de Helena Solberg, as diretoras conectam espaço e
personagem como duas pontas soltas de projetos modernizantes e passadistas de Brasil.

Impressionantemente conectada a esses aspectos de pouca naturalidade e exteriodade que
o parque apresenta, também a Pequena Notável, cantora portuguesa que assumiu o Brasil
como seu e que acabou aprisionada por essa personagem coroada de frutas e balangandãs
paira sob aquele espaço até finalmente escolher um lugar para se fixar.

Assim, o Museu de Carmem Miranda, com seu olho-palmeira, mais do que serve ao
propósito de conjugar mais esta camada de informações ao complexo do parque onde
estruturas mudas e geométricas ajudam a acumular versões mal acabadas da história
desse ex-país do futuro.

Apesar de todo concreto e verde usado na construção do Aterro, Luisa Miranda trabalha a
cor do céu em tons e mesclas entre rosa e amarelo, desconectando o horizonte azul e
adaptando espaço aquele fantasma já bastante distante da figura original a que se refere.
Bailando ao redor do museu, a performer executa movimentos suaves e divertidos
singularizada apenas por uma coroa-abacaxi que imediatamente nos conecta aquela
espécie de Barbie Carmem que ganha vida ao sair de uma caixa do museu.

Jogando com memórias que evocam a história do país mas também do cinema – Uma Noite
no Rio, Banana is my Business – e atualizando o fantasma dessa figura icônica em relação
ao maior parque urbano do mundo à beira mar, Luisa Marques talvez tenha produzido
aproximações de materiais distintos de igual grandeza, explicitando a natureza de parque
de diversões fantasmas daquele espaço lindo e hipnótico.

Ao apresentar o cadáver e a máscara mortuária de Carmen Miranda, o filme também liberta
a mulher por trás daquelas roupas e saltos da prisão de imagem fadada a replicação. Alegre
e melancólico, o fantasma de Carmen se diverte livre pelo Aterro, equilibrando sua pequena
coroa em decomposição, em companhia de espectros os mais variados, principalmente o
fantasma sempre atualizado de Brasil-mundo.

Pelo dito aqui pode não parecer, mas essa é uma das mais belas homenagens a essa figura
icônica de bananas e abacaxis tropicais. Um salve à filha da Chiquita Bacana, que nunca
entra em cana porque é família demais. Puxou a vovó, não cai em armadilha. E distribui
banana para os animais 🍌

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