J.C Rousseau nunca está sozinho, seus termos de cinema não permitem. Em um regimento particular de criação, invariavelmente composto pelo realizador, um tripé, sua câmera e um gravador, forma-se a aliança de enfrentamento do acaso que perpassa quatro décadas de imposição fílmica. Enquanto sua linha sonora segue a lógica da exploração do tempo ulterior à gravação das imagens, seus enquadramentos se apegam ao presente do registro, o tempo impossível onde o agora é perpétuo caso produza encontros, formas e direções que satisfaçam o desejo por signos concretizados e brechas narrativas estipulantes. Ou seja, ao decorrer do tempo da bobina de filme que se concentra em imprimir um único plano do mundo (que só será cortado pelo fim da linha da película), dentro das preciosas limitações do espaço e dado o ponto de exploração irremediável do tripé, deve acontecer algo de cinético que, picotado ou não pela póstuma montagem do registro, esteja perfeitamente encenado.
Seria injusto e até desanimador pensar esse cinema como sendo um trabalho de empirismo, até porque não se trata de botar nada à prova de um mesmo método, mas também não podemos deixar de notar que em seus filmes há uma série de experimentos em andamento que caminham para resultados que, mesmo misteriosos, soam conclusivos. O que está acontecendo em filmes como Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre (1983) e o que acontece durante os 10 anos de filmagem de seu projeto mais extenso e complexo, La vallée close (1995) é uma conjuração de limites que, postos ao enfrentamento do registro (a bobina de filme que corre dentro da câmera), em um libertador processo autoritário de gravação, ordenam os elementos diante da lente para que suas particularidades se expressem como um cinema pronto, esteja a câmera enfrentando objetos tácteis (janelas, mapas, cadernos, lâmpadas, portas e espelhos) ou aleatórios (passantes, ruas, mares, árvores, nuvens).
Diferente de outros cineastas que colecionam registros, como Mekas ou Sonbert, ele não está interessado em uma certa espontaneidade presente nas gravações que perduram pela passagem de tempo. Pelo contrário, seu tempo é controlado pela sua encenação, e deles não se espera nada de espontâneo, e sim um cumprimento do que os seus limites impostos na imagem prometem. Em seu primeiro curta, Venise n’existe pas (1984), de 11 minutos, gravado com uma Super8 em um quartinho de hotel em Veneza, é possível desmontar um pouco de sua lógica misteriosa de expressão através de uma atenta revisão de suas poucas sequências.
É enfadonha a tarefa de transcrever um filme num texto, mas nesse caso não há escapatória. Venise n’existe pas pode ser visto como organizado em três partes. O primeiro enquadramento apresenta a janela do quarto, uma fixação recorrente do realizador devido às suas funções múltiplas: é tanto um objeto táctil que serve às encenações (ela abre, fecha, reluz e reflete), quanto um meio de controle da encenação do aleatório (o controle da luz do sol, como se fosse um enorme diafragma, além dos claros limites das bordas da janela que enquadram dentro do enquadramento, que fecham o aleatório da paisagem exposta dentro de uma especificidade irremediável, o que não poderia estar mais próximo das intenções do cineasta). Dessa janela, que reflete um pouco de luz em alguns móveis mas não o bastante para que foquemos no quarto, vemos um enorme barco que vai cruzando águas venezianas. Um barquinho menor cruza rapidamente a paisagem atrás desse barco maior. O som de seu motor vai dando lugar a uma canção em italiano que ressoa pelo espaço (ela vem do barco?) e que vai indo embora à medida que o barco vai sumindo pelo canto direito da janela. A tela fica preta por um instante, é o primeiro corte. Sem a música, ouvimos um trecho de áudio que parece gravado no meio de uma praça, onde som de carros e burburinhos de conversa se confundem. Ouvimos uma buzina. Ainda vemos o mesmo mar, do mesmo plano, e a música anterior retorna. De repente, um barco vem entrando pelo canto direito (seria o mesmo barco?), como se chamado pela canção repetida, e depois, pelo canto esquerdo, um barco menor também vem chegando. No momento em que parece que vão se chocar, a bobina de filme acaba, com a tela bege anunciando seu fim. A imagem retorna, e ainda estamos na mesma janela, com o mesmo enquadramento, só que com menos iluminação. As bordas do quadro, antes percebidas pelos poucos reflexos de luz, agora estão em um breu completo. Portanto, as bordas do quadro se tornam exclusivas da janela, tornando o enquadramento necessariamente vertical.
O que segue é a visão da água por esse quadro vertical que vai escurecendo aos poucos, picotando progressivamente a visão rumo ao entardecer. Vários barcos surgem na estreita paisagem, aparecem sem adentrar os lados, simplesmente se materializam na água, deixando claro que não estamos vendo o tempo escorrido, e sim retalhado. Esses barcos somem e aparecem da tela com certa rapidez, sempre aparecem no meio do caminho e desparecem antes que possam sair por um dos cantos da janela. O tempo não é mais o mesmo, mas o som se repete. Ouvimos a mesma canção (como se o barco do primeiro plano ainda ressoasse, ou deixando claro que o som não vinha mesmo daquele barco) e depois os mesmos burburinhos e os mesmos carros. Parece um loop de suspensão do tempo, onde todo o tempo é o agora, o passado não ecoa, ele se faz inteiramente presente no tempo como se nada realmente deixasse aquela permanência da câmera. A paisagem vai escurecendo até que os barcos se tornam apenas pontos de luz em uma escuridão imensurável. Quem está saindo do lugar primeiro: os barcos ou a janela?
Um filme acaba, entramos na tela bege e depois chegamos a um novo enquadramento. Agora vemos a janela fechada (é a mesma janela do primeiro enquadramento, mas a vista está parcialmente coberta por uma cortina). Com a luz clara vinda da janela e o distanciamento promovido pelo quadro, podemos ver um espelho, um armário, além da cortina, todos refletindo uma iluminação azul que dá uma continuidade torta e inventiva para a água do mar. O cineasta adentra o quadro pelo canto direito, de costas para a câmera, e caminha até o espelho. Seu rosto está distante e turvo, sua expressão não nos diz nada, ele é mais um objeto táctil (talvez seu corpo em tela seja o elemento mais controlado de todos, mais do que suas janelas ou seus móveis, seu corpo é um objeto de cena que o cineasta pode controlar totalmente a presença e as inflexões). Ele deixa de olhar para o espelho, adentra brevemente o quadro da janela deixando sua silhueta em contraluz, e sai pelo mesmo lado que entrou. O som é o mesmo que percorreu os diversos tempos do enquadramento anterior, a canção italiana do barco fantasma seguida pelos sons urbanos. Agora, acontecerá algo realmente chocante, um contraplano!
O contraplano mostra o resto do quarto: uma porta fechada ao lado de uma cama arrumada, modulados pelo domínio da luz azulada que vem da conhecida janela. O cineasta adentra o plano, novamente, pelo canto direito, e senta na cama. Ouvimos mais uma vez o mesmo som de carros e burburinhos. Toca a buzina. Nesse momento, ele interage com o som pela primeira vez, virando o rosto no momento em que a buzina toca. Agora está olhando para a janela, com o rosto iluminado, culpa dessa buzina perene que prova que o único tempo existente é o tempo do registro e, desde que esse registro soe, o tempo presente em que ocorreu nunca deixa de materializar-se. Ele deixa de olhar para a janela e deita na cama por alguns segundos. A canção italiana do barco volta a tocar. Ele levanta e retornamos ao enquadramento anterior. Ele caminha até a janela e abre a cortina com rapidez, mas assim que ela deixa de encobrir parte da janela, a bobina de filme acaba. Não ouvimos o som dessa cortina abrindo. Vamos para a tela bege e depois para a tela preta.
Em seu último pedaço, o filme se concentra em um único plano que abre desfocado. É uma imagem indecifrável e estática, uma paisagem borrada de cores e formas. Agora quem produz o som é o próprio cineasta. Ouvimos ele discar um telefone e desligá-lo antes que alguém atenda, seguido por um cântico que parece fazer com a boca fechada, uma série de assobios e a repetição da mesma negativa. “Non, non, non…”. Surge o som da cortina abrindo junto com o ato de focar a imagem, como se a janela da lente finalmente permitisse que a visão borrada se revelasse.
Agora vemos perfeitamente uma pintura de Veneza, dessas típicas de quarto de hotel, que retrata a paisagem mais turística possível (a ponte de Rialto) com uma estranha profundidade de campo e de texturas quase fotográficas. Pintada no topo, está algo que pode ser tanto a lua quanto o sol. A sombra do cineasta passa pela imagem, que volta a desfocar-se, contraindo todas as consequências da iluminação em que está submetida. Seu reflexo passa mais uma vez pela pintura, mudando mais uma vez a iluminação sobre ela e voltando a deixar a imagem focada. Ouvimos um som ambíguo, algo como uma avenida ou uma estrada, um som que não parece pertencer a nenhum dos elementos anteriores e que não pertence a nenhum dos outros sons que haviam estado em loop nos momentos anteriores do curta. Uma sombra se projeta sobre a imagem, umas luzes se formam sobre sua superfície, mas a pintura está permanentemente focada. Esse local de passagem que é o quarto de hotel, tão comum aos filmes do cineasta, é propulsor de criação por ser essa permanência breve e limitada, nada pessoal, que por si só já prepara toda uma série de limitações que são custosas ao seu modo de registro. Do táctil ao aleatório, o movimento se conecta pela imposição da câmera contra o tempo, pela força do breve e do limitado em se tornar perpétuo, como se o momentâneo fosse a única forma possível de presenciar o firmamento cinematográfico. Depois de encararmos a pintura de Veneza por mais uns segundos, a bobina se encerra, voltamos pra tela bege e então pra tela preta. Silêncio. Aparece escrito: “Venise n’existe pas”. Não é um título, é uma conclusão. O filme acaba.
Destruir e preservar: a morte cinematográfica e o Cinema da Morte.
Um homem com uma câmera na mão. Um homem com uma arma na mão. À primeira vista, pela língua portuguesa, as duas frases em questão possuem significados e significantes diferentes. Já no inglês, usa-se o mesmo significante — shoot —para ‘filmar’ e ‘atirar’. Um diretor de Cinema e um general de guerra dizem o mesmo para seus subordinados: point and shoot (apontar e atirar/filmar). Ora, filmar almeja a preservação eterna de um instante único e atirar (para matar) objetiva a destruição eterna de uma vida. Como podem ações tão repelentes serem representadas pelo mesmo significante em qualquer língua? Afastando-se de uma explicação etimológica em prol de uma aproximação simbólica da questão, no mundo material descobre-se que ‘atirar’ e ‘filmar’ (destruir e preservar), paradoxalmente, andam lado a lado.
Em Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1989), o cineasta Harun Farocki aponta para a existência, na 2.ª Guerra Mundial, de aviões de bombardeio que eram equipados com câmeras, de modo que no momento em que as bombas eram jogadas, uma foto também era tirada, preservando aquele momento de destruição para sempre. Já no campo da literatura, o filósofo Paul Virilio, em seu livro “Guerra e Cinema”, analisa a história das disputas armadas em paralelo à evolução tecnológica dos meios ópticos, observando como eles influenciam um ao outro e já assumiram diferentes posições de hierarquia entre si, ciclicamente. Em uma relação de retroalimentação, a guerra existe para fins cinematográficos e o Cinema também serve de instrumento na própria guerra.
No mundo contemporâneo, o drone pode ser visto como o representante máximo dessa retroalimentação entre Guerra e Cinema. Por ser um objeto que simultaneamente consegue disparar um míssil teleguiado como também filmar com uma câmera, a polissemia do shoot sai do campo linguístico para o prático. Fica uma dúvida: é possível estabelecer causa e consequência? As imagens existem porque devem gravar as mortes, ou as mortes existem porque precisam virar imagens? De qualquer modo, com a reprodução dessas imagens de aniquilação, a guerra se transporta para o campo imagético, com fins de dominação psicológica, nas quais a produção audiovisual bélica se torna uma forma de dominação e instauração do medo. Inclusive, consciente desta ambiguidade, hoje o Cinema já abre o território para explorar criticamente essa destruição-preservadora dos drones, como a francesa Eléonore Weber em Não Haverá Mais Noite.
Já indo para uma esfera mais simbólica, pode uma câmera se equivaler a uma arma? É aproximadamente isso que diz o cineasta David Dufresne, em O Monopólio da Violência, reconhecendo a possibilidade dos registros amadores de celular se tornarem uma espécie de armamento popular em detrimento do monopólio da violência do Estado. Ou seja, apesar do verbo filmar aqui não significar literalmente atirar, a câmera pode ser uma arma que a população usa legitimamente dentro da guerra urbana, ofensiva ou defensivamente. Ainda que capturar uma imagem não seja uma agressão imediata, pelo menos no campo mediato ela pode ser usada para constituir provas do crime. Ao empunhar o celular como uma arma para um policial, a pessoa estaria inibindo sua ação ao gerar o mesmo efeito psicológico de medo que estar sob a mira de uma arma.
As protagonistas de suas próprias mortes em Peeping Tom (Tortura do Medo)
Quando o objeto de destruição passa a se confundir com o de percepção ao longo da história, é porque, na verdade, existe uma associação do ato de olhar com um ato de violência. Em uma das passagens de Virilio sobre a guerra, ele diz que a sua principal finalidade é, antes de tudo, a produção de um espetáculo mágico, no qual abater um adversário é infligir, antes da morte em si, o pânico que vem dela. Ainda que sua história não passe num campo de guerra, os conceitos de Virilio são antecipados em uma obra de ficção de 1960, Peeping Tom, cuja tradução para Tortura do Medo na versão brasileira talvez permita uma maior captura de sua essência. Nesse filme dirigido por Michael Powell, um fotógrafo-assassino filma e mata suas vítimas, simultaneamente destruindo a existência delas no campo material e preservando suas imagens para sempre. Suas motivações se mostram menos pelo desejo da morte em si, mas para conseguir eternizar, em imagens, uma instante irreproduzível em qualquer outro momento: o medo e o desespero na iminência da morte.
Neste contexto, para o protagonista Mark Lewis, a destruição (morte) existe como um meio para um fim: se tornar Cinema. Citando outra passagem de Virílio, em Tortura do Medo, “a morte ganha fins publicitários, [..] pois antes da arma ser um instrumento de destruição, ela é percetível, afetando processos químicos e neurológicos sobre os órgãos do sentido”. Com a posse de uma arma que é uma câmera, é essencial para o assassino que suas vítimas percebam que estão prestes a serem mortas, sendo torturadas pela sensação de medo, já que só assim elas vão reproduzir a imagem desejada por ele.
Se filmar e matar se confundem, quando Lewis está conduzindo uma de suas vítimas para o abate, isso significa que, cinematograficamente, ela deve estar sob a perfeita posição, luz, ângulo e distância para ser enquadrada pela câmera. Em outras palavras, matar exige uma mise-en-scène, em que a cena do crime também se torna um palco ou um cenário, no qual a pessoa vira protagonista de sua própria morte. É exatamente isso que acontece na sequência que se passa no estúdio de Cinema, na qual a personagem da atriz, enquanto ensaia um número musical se movimentando pelos espaços, vai tendo seu posicionamento orquestrado por Lewis, sem que ela perceba algo de errado, até chegar na marcação ideal desejada por ele.
Na equivalência entre filmar e matar, Powell faz com que vejamos as sequências que conduzem ao assassinato a partir de uma câmera subjetiva, que é a própria filmagem diegética que o protagonista faz. Então, o resultado dessa escolha leva à uma confusão tripla do olhar, que envolve o diretor Powell, o protagonista Lewis e o próprio espectador. Nesse sentido, há um movimento pedagógico em dar luz ao próprio male gaze escondido pela indústria hollywoodiana. Segundo Anneke Smelik, em seu artigo Gaze, “nos filmes clássicos de Hollywood, o personagem masculino olha para uma mulher enquanto a câmera filma o que ele vê. Como a câmera filma junto com o personagem masculino, o espectador é convidado – ou melhor, forçado – a adotar uma posição masculina. O ‘male gaze’ é uma estrutura cinematográfica que combina um olhar triplo: câmera, personagem masculino e espectador.” Sendo assim, fazendo um movimento de tornar o simbólico algo literal, quando uma mulher é olhada e desejada pelo male gaze em Tortura do Medo, isso se torna igual a sua sentença de morte. Inclusive, Powell nunca mostra frontalmente os momentos de perfuração, sempre fazendo uma elipse, de modo que a última imagem daquelas mulheres não é a da penetração com a arma, mas do olhar apavorado para a câmera, predominando a ideia da morte pelo olhar do que pela morte física.
Só que Tortura do Medo não fala apenas do olhar masculino biológico, mas também de sua mediação pela câmera, cúmplice dele, e então uma outra consequência da pedagogia de Powell é a revelação do poder psicológico e bélico que está escondido no campo técnico de visão. Afinal, há uma grande diferença entre os planos que mimetizam a visão da câmera de Lewis com aqueles em que a decupagem da cena observa os acontecimentos objetivamente de fora, com Powell formando uma verdadeira dialética entre elas. Quando o espectador observa a cena pela câmera de Lewis, sua figura passa a existir no extracampo. Por não estar visível, ele deixa de ser apenas um homem comum e passa a se tornar uma figura que pode ser construída no imaginário de cada mulher de acordo com seus medos. Já quando o espectador consegue ver a figura de Lewis interagindo com as mulheres, a atuação de Karlheinz Böhm revela um homem de aparência frágil, com insegurança, que fecha os braços em volta de si mesmo, que tem ocasionais gagueiras, que não possui o menor tato social e é até amedrontado pela presença feminina. Ao fornecer a imagem de Lewis, Powell faz o mesmo que o protagonista faz com suas vítimas, levando-lhe a uma situação de vulnerabilidade justamente pelo fato de estar sendo enquadrado.
Por irem se acumulando repetitivamente ao longo da narrativa, toda vez que Powell usa o ponto de vista de uma câmera, cria-se uma antecipação de que a vida da pessoa que está sendo enquadrada corre perigo. De cena em cena, Tortura do Medo vai forçando uma associação de que quem é filmada, é morta. Portanto, vai se instaurando um mal estar toda vez que o espectador também está por trás da câmera, sentindo a violência daquele olhar que se torna uma violação por si só, mas que também é um incômodo por dar luz para sua cumplicidade (principalmente do espectador masculino, que compartilha daquele male gaze). Fora isso, existe toda uma similaridade visual da câmera que Lewis usa com a da mira de uma arma, o que dá ainda um maior simbolismo bélico para as suas filmagens voyeuristas, além de que a arma do crime, que é o tripé da câmera, também existe enquanto um objeto fálico. Em síntese, há uma dupla penetração do protagonista com aquele seu objeto, tanto física quanto do olhar.
Diante da própria incapacidade e medo do toque físico, Lewis encontra no voyeurismo e na cinefilia uma forma de compensar suas inseguranças, se tornando um dominador das imagens daquelas mulheres. Sobre essa questão, surge o termo freudiano da ‘escopofilia’, no qual o olhar é o fundamento da sexualidade humana e também o fundamento do próprio Cinema, pois na sua escuridão o espectador é um voyeur que pode olhar para a tela sem limites ou medo de ser punido por seu desejo. A partir deste conceito, percebe-se como Powell cria uma clara dicotomia entre o ‘encostar’ e o ‘olhar’. Se Lewis não consegue encostar nas mulheres (apenas com o tripé, que é a extensão da câmera), há entre ele e os objetos cinematográficos uma relação muito física e táctil. Praticamente em todas as suas cenas, vemos ele segurando e fazendo leves carinhos em sua câmera, assim como ele gosta de sentir com as mãos os rolos de filme; na cena com a sogra cega, chega a até literalmente abraçar a tela de projeção. Deste modo, o Cinema permite a ele uma distância segura para liberação dos seus desejos antes contidos pela culpa, já que tanto o olhar da câmera quanto as imagens finais são um olhar mediato e mediado, gerando um afastamento de sua parte.
A morte por suspeita de inanição da desertora norte-coreana de 42 anos Han Sung-ok e de seu filho de 6 anos de idade em Seul configurou um tipo de tragédia evitável que assume a forma de questões grandes demais e dolorosas demais para serem respondidas com prontidão. Uma das poucas informações sobre a identidade e o passado de Han Sung-ok (fornecida por quem pôde ter algum nível de contato com ela) é a de que ela havia deixado a Coreia do Norte em busca de melhores condições de vida. Mãe e filho só foram descobertos cerca de 2 meses após virem a óbito, pela pessoa responsável pela leitura do hidrômetro de onde moravam. O caso perturbador ocorrido em 2019 desencadeou uma série de questionamentos sobre a natureza solitária da morte por desassistência: “por que ela nunca disse que passava por dificuldades?”, “se ao menos ela tivesse pedido”, uma vendedora nas proximidades declararia. O fato é que, para além de questões culturais, quando penso na história Han Sung-ok, o que mais me aterroriza é a naturalização de um individualismo tão entranhado nas dinâmicas do neoliberalismo que uma crise gerada pela falta de recursos básicos passa despercebida num cenário onde o senso de comunidade há muito foi esquecido. E não digo isso apontando somente para os vizinhos de Han Sung-ok. Não é difícil constatar que se trata de uma postura tragicamente universal. A dúvida que fica é: quando e como foi que deixamos isso acontecer?
A primeira vez que vi algo a respeito de Arcadia de Paul Wright foi no blog de um estudioso de Mark Fisher que partia da premissa de que o conceito de “Comunismo Ácido”, desenvolvido inicialmente por Fisher no livro em que estaria trabalhando antes de sua morte em 2017, se relacionava diretamente com a obra de Wright. Arcadia foi um projeto encomendado pelos produtores John Archer e Adrian Cooper, tendo como proposta a realização de um longa-metragem utilizando imagens de arquivo do British Film Institute de modo que pudesse se operar uma reflexão sobre o passado rural dos britânicos e sua relação com a terra. Wright, que até então só possuía experiência com o cinema de ficção, vai conceber um “folk horror” que pulsa através de 100 anos de história em imagens para narrar as curvas e desvios tomados numa trajetória que tem início nas comunidades rurais, nas comunas, nas celebrações e ritos pagãos guiados pelas estações e colheitas, passando pelo deslocamento massivo da população para as cidades e pelas organizações sindicais, greves, festivais de música psicodélica, shows de punk e raves. Nesse sentido, é possível traçar uma relação entre o Comunismo Ácido de Mark Fisher, que vai mirar na contracultura das décadas de 1960 e 1970 para especular sobre a possibilidade de “um mundo que poderia ser livre” através da convergência “da consciência de classe, a conscientização socialista-feminista e psicodélica, a fusão de novos movimentos sociais com um projeto comunista” e o ruído provocado pelas redes relacionais que se estabelecem, ainda que temporariamente, no transe musical dos festivais trazidos em Arcadia e tidos ali como uma forma de restabelecer um instinto de coletividade perdido em algum ponto entre a instituição da propriedade privada e a exploração do trabalho.
A Arcádia, esse lugar mítico que aponta simultaneamente para os aspectos nostálgicos e utópicos de uma convivência harmoniosa entre homem e natureza, vai ser reimaginado como uma face obscura de um tempo pregresso. Na superfície, o horror do filme de Wright reside nas imagens que acessam um temor pelo desconhecido, na associação do incomum e do estranhamento ao ameaçador. Máscaras e vestes ritualísticas que simulam entidades animistas e outras criaturas, o frenesi da dança e da música (conduzido pela trilha de Adrian Utley do Portishead e Will Gregory do Goldfrapp), o encantamento, o fogo, a terra e a comunhão são elementos que, aproximados e articulados na montagem, capturam o espectro de um primitivismo assustador (pois distante, selvagem, logo, incontrolável), mas se resguardam ainda intocados por terrores maiores, que vão percorrer uma outra camada do longa, como o êxodo urbano e o esquecimento das raízes, o campo gradativamente se tornando um local reservado ao lazer de uma classe privilegiada, de casas de veraneios, jogos entre famílias abastadas – como a caça à raposa – e de um circuito exploratório dos trabalhadores braçais. Pensando para além dos recortes geográficos, históricos e culturais, a análise da sociedade britânica engendrada em Arcadia escoa para um âmbito mais amplo, de forma que minha pergunta inicial é retomada aqui enquanto uma das premissas dessa horrorificação: há um movimento contínuo de afastamento e negação da comunidade que cada vez mais nos lança a um futuro sombrio, aterrador?
“Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.”
A Trama, em O Fazedor, Jorge Luis Borges
O espectador no apocalipse.
Entre 2005 e 2009, o cineasta Phil Solomon construiu suas obras a partir de imagens realizadas nos jogos GTA: San Andreas e GTA IV, como parte de uma homenagem ao amigo Mark LaPore, cineasta experimental morto em 2005, após realizar com Solomon o primeiro dos filmes dessa série. Crossroad (2005), Rehearsals for Retirement (2007) e Last Days in a Lonely Place (2007) foram rodados dentro de San Andreas; Empire (2008) e Still Raining, Still Dreaming (2009) foram rodados no GTA IV. Os dois últimos, um remake longa-metragem do filme homônimo de Andy Warhol de 1964, e um curta de apocalipse como os três primeiros, são rodados em Liberty City, a versão de Nova York criada pela Rockstar, e não serão cobertos nesse texto pela distância geográfica (e por fins de coesão); me concentrarei nos filmes rodados no estado de San Andreas.
De início, há possibilidade de se questionar sobre as escolhas de “isolar” as imagens do jogo de contexto, no processo de alquimia de Solomon: GTA: San Andreas é um jogo tão divertido e carismático como tenaz e extremamente violento nas suas representações, uma obra que causa desconforto e discussão justamente pela especificidade de suas demonstrações de violência policial e do racismo estrutural impresso nas ruas dessa Los Angeles imaginária – e muito por isso ainda é a melhor representação audiovisual das tensões dos riots de 1992 pós-Rodney King, da cultura do gangsta rap como resistência, e como biografia não-autorizada (e bastante ficcionalizada) dos integrantes do grupo NWA. Solomon, por outro lado, toma a via do abstrato, do apocalipse motivado por um movimento quase incompreensível da natureza, dos fenômenos de destruição acontecendo ao redor sem que se trace explicações possíveis. Desconstruir contextos e ressignificar sentidos é quase um movimento inevitável das imagens encontradas e das modificações do material de origem delas (e Rehearsals for Retirement usa muitos mods e cheat codes para produzir imagens); o que importa é que se há “responsabilidade” no retrato da destruição, há em ambos. Ambos tratam de violência e ambos tratam do fim do mundo, ambos de forma política e ambos de forma experimental.
Em Crossroad, o primeiro dos filmes, nosso setting é na presença de um lugar abstrato, composto apenas pelo pedaço de terra, pela casa que mal acessamos, pelas árvores ao redor, e o buquê flutuante que faz companhia para o protagonista solitário. À beira do abismo, uma nuvem cinza infinita, carregando a chuva que não cessa, com relâmpagos ao fundo que sinalizam que o resto do mundo sucumbiu àquelas adversidades. Em um momento, um avião ocasionalmente passa, como se Solomon e LaPore sugerissem que existe uma luta humana (ou virtual) diante das tormentas eternas; notícias do apocalipse que não acessamos, digamos assim. O porto seguro de CJ, o protagonista de GTA: San Andreas e de Crossroad, é um local não-caracterizado, minimalista, cuja geografia abstrata não detalha um assentamento exatamente, mas sim um palco; a câmera aterrissou em uma simulação de realidade onde a ameaça está toda lá fora.
Há de se desconfiar dessa realidade, como há de se desconfiar de todas as realidades nos filmes de Solomon desde, pelo menos, What’s Out Tonight is Lost (1983), onde a textura radical de interferência na película transforma a impressão do real em uma animação destituída do plano físico naturalista, enveredando pelos céus tomados por riscos, paisagens de sonhos e também dos pesadelos. Em Crossroad a dúvida diante da realidade é diferente, com Solomon e LaPore evidenciando as diferenças físicas desse mundo comentado para o nosso suposto mundo; então a câmera atravessa o buquê, atravessa as árvores no longo loop da caminhada de CJ, interfere na materialidade dos objetos. Nesse extenso travelling, os diretores acompanham um corpo que não conhece limites físicos como os conhecemos – um tempo infinito que existe só dentro da unidade do plano. Partem do mais simples bug das texturas complexas e além do código comum de GTA: San Andreas para comentar a abstração desses símbolos colocados ali para emular o mundo com o qual estamos familiarizados no extra-tela.
Pela materialidade quebrada dos objetos, percebemos a curta extensão de terra desse porto seguro nas alturas. O movimento do código virtual começa a encontrar estabilidade no caos, no tédio demonstrado pelo gestual de CJ frente à tormenta à sua frente. Do alto de sua terra, existe um homem em ação reduzida. A realidade depende demais da materialidade, sem ela o corpo cansa e logo recorre ao repouso. Mesmo diante do fim do mundo, é preciso descer de alguma forma à cidade.
É nessa descida onde começa Rehearsals for Retirement, o segundo filme da série machinima de Solomon. A câmera passeia solenemente pela névoa da paisagem, no loop da programação do jogo, acompanhando a chuva torrencial. Nosso testemunho e do protagonista já começa na localização difusa de Los Santos, deteriorada pela realidade desfeita. Partir da névoa e da chuva constante para os desastres naturais interferindo nas criações humanas, na cidade: o fogo consumindo a matéria, sendo arrefecido pela água, para começar a queimar novamente. A Solomon interessam esses processos naturais porque é deles que extrai as texturas do apocalipse, como se a jornada desses elementos fora de controle fosse o pêndulo para a realidade se manter.
É um passo especialmente obtuso pensando na filmografia de Solomon porque, apesar das intervenções abstratas na superfície da imagem, uma das muitas heranças obtidas de Stan Brakhage, seu amigo e também por vezes mentor, é sobretudo um mundo dolorosamente concreto que o cineasta filma. E na virtualidade de Rehearsals for Retirement, Solomon acha um mundo cuja escala é grande o suficiente para que sua câmera possa voar, sendo ainda muito próxima de nossa realidade, para então tecer seu comentário sobre a textura física do luto, pela perda de seu amigo LaPore, e também simbólico, pela despedida ao mundo moderno do qual estamos diante.
Nessa narrativa as imagens misteriosas desencadeiam num uníssono como um feitiço, quase contemplando o mal sem explicações, dos aviões explodindo sozinhos no céu, do homem que testemunha aquilo impassível, do ruído da chuva e da neblina que a tudo toma. Vemos um carro preso ao trilho do trem, no túnel carregado de fumaça, exemplo claro do que no extracampo tanto interessa a Solomon; o túnel em questão é afastado da área urbana de Los Santos, no trilho do trem que liga o centro da cidade às áreas mais rurais. É um caminho de fuga que o estacionou ali? Quem o abandonou? Para onde foi o motorista daquele fim de mundo?
A câmera que voa, como uma alma pelos lugares que passa, em certo momento estoura a mesma cerca de madeira que vemos no térreo da montanha do primeiro plano do filme. Diferente de Crossroad, aqui Solomon experimenta a presença que se choca com a materialidade, que entra em contato com ela deixando consequências, sem a textura invisível que fazia o corpo do primeiro filme atravessar árvores. Não é sobre uma alma fora do nosso plano, um fantasma digital; a dor em Rehearsals for Retirement é de tentar reunir desesperadamente um corpo para sobreviver às texturas em colisão que tentam o atravessar.
Na realidade à beira do abismo, as imagens surreais se enfileiram, todas de objetos que tentam negociar alguma escapatória da fúria dos elementos. Um carro que se afoga, um buquê que vela algo que não vemos, a bicicleta flutuando com o avião ao fundo. A física foi exposta em suas mentiras e o fluxo do homem digital é de testemunho do ambiente destrutivo, impossibilitado de qualquer revide, retirado do controle que um jogador poderia ter em alguma jornada narrativa mais trivial (e voltaremos a isso mais à frente). Solomon acessa os signos das águas e do fogo para criar uma sinfonia particular de cidade, como o movimento da chuva de Regen (1929, Joris Ivens e Mannus Franken) sob a sombra à espreita, o fim próximo diante do consumo total pelo fogo. Se em Regen a água era assimilada pela cidade de Amsterdã, cuja arquitetura foi desenhada para conter de alguma forma as torrentes, aqui a água incontrolável luta contra o fogo interminável para se tornar refúgio apenas ao final – talvez Los Santos, diferente de Amsterdã, tenha sido desenhada para acabar.
O homem digital que uma vez foi CJ agora observa os pássaros na superfície do mar, na fuga de tudo o que as pessoas construíram, no poder de voar que cessou diante da calmaria da matéria. A destruição aconteceu além das nossas capacidades, mal tivemos chance como atuantes naquele apocalipse; nosso único poder concreto é o da observação, do espectador. Estaríamos passivos diante da cidade?
A mesma questão e a mesma destruição acontece em Last Days in a Lonely Place, o curta seguinte de Solomon, que dessa vez parece funcionar como uma história anterior aos dois: estamos na cidade ainda em decadência, prestes a ruir, mas ainda contendo signos e paisagens suficientes para nos relacionar com uma normalidade. A opção pelo preto-e-branco da fotografia, dessa vez mais enclausuradora e elegíaca, já antecipa todo o fim que iremos testemunhar; não que isso impeça Solomon de articular seu apocalipse sob meandros mais insidiosos, menos diretos. O que há são pistas, como em Rehearsals for Retirement, e é através da topografia de Los Santos que podemos entender um pouco melhor os sinais do apocalipse. Solomon indica mais deliberadamente a sua aproximação cinematográfica entre a Los Santos do jogo com a Los Angeles real; melhor, não a Los Angeles real, mas a Los Angeles imaginada tantas vezes no cinema. E para isso recorre a uma imagem em particular: um cinema abandonado.
O Legal Cinema, a sala retratada, é localizada em Vinewood Boulevard, no distrito de Market. No jogo, é um cinema de centro de cidade, no coração comercial de Los Santos. Não há qualquer reação pública expressiva a esse cinema vazio; ninguém passa na frente dele, não há letreiro indicando qual filme está em cartaz, ninguém parece ocupar a sala que exibe o filme. Quando um carro explode na frente do cinema, nada acontece; na área rural de Los Santos, quase que como consequência, a sala de uma casa começa a pegar fogo. Por essas sugestões desconexas entremeadas a essa imagem recorrente das chamas, sempre mediada pela presença ameaçadora de pessoas à distância, Solomon parece se aproximar da reflexão sobre os fantasmas que objetos e lugares guardam de traumas passados também trabalhado por David Lynch na terceira temporada de Twin Peaks – para citarmos outro realizador que filmou um país com traumas passados.
Repete-se também as imagens de abandono elegíaco, com o vazio urbano preenchido pela atmosfera surrealista: um carro está parado com uma pessoa na floresta, um homem está petrificado sozinho no seu quarto, outro alguém aguarda algo na chuva, uma pessoa diante do mar testemunha os trovões e raios sem reação; a obsessão com os anos 50, um marco sociocultural da suposta civilização que os Estados Unidos construíram para si, através da arquitetura e através do cinema. É quase natural que a imagem que abre o filme seja na réplica do observatório Griffith, não por acaso comentado por Solomon com os ecos de James Dean questionando a hora do apocalipse em Juventude Transviada (1955, Nicholas Ray). Porque Los Santos aqui é a Los Angeles falsa do cinema, a cidade como palco dos filmes que por ali foram rodados. A memória daquele lugar se confunde com o imaginário de cinema, como um conjunto de memórias do que foi aquela cidade antes do fim. E não há conjunto de hábitos enraizados em um lugar revisitado sob o código dos fantasmas e dos filmes, desses rastros imprecisos de memória, que obedeça a alguma ordem sustentável de tempo presente.
No clímax do filme, Solomon compõe um mini-filme estrutural com a imagem da câmera fotográfica virtual testemunhando o Sol em colapso, a bomba atômica do amanhecer. A mesma pan se repete incessantemente, repetindo o gesto de destruição consecutivas vezes ao ponto da anestesia – um apocalipse programado e modificável, artificial. De alguma forma soa mais desolador, justamente porque o movimento de retorcer texturas virtuais termina irresoluto, abandonando os lugares e personagens que retratou por frestas. O incêndio foi apagado no Legal Cinema e nada mudou.
A calmaria nesse epílogo, na modulação dramática de Solomon, faz parte de um movimento de entrega. Há a vitória da natureza, há também a vitória do mistério intransponível. Escorraçados pela realidade, personagens se fragmentam; alguém sente sua solidão sob as sombras do quarto vazio, alguém se resigna com a realidade ao observar a indiferença do mar. Novamente: estamos passivos diante do movimento anônimo da cidade?
O jogador no apocalipse.
Solomon pergunta isso com imagens que representam, supostamente, o oposto ao que se espera de um videogame como GTA: San Andreas. Ao andar por Ganton, ou dirigir por Vinewood, ou mesmo voar pela área rural de Red County – onde Solomon filma um dos trechos finais, no aeroporto poeirento de lá -, existe a sensação de liberdade e de tempo próprios, no controle total do jogador. Mas pensemos no modo história – o verdadeiro diferencial que torna o jogo tão influente e tão agressivo como comentário para as transformações de Los Angeles em 1992 diante da brutalidade policial, das guerras de gangue e do racismo explícito expressado na gentrificação da cidade. Ao longo de 30-35 horas, somos transportados àquele mundo, executando as missões que guiam a história sob nosso tempo e vontade, mas planejada sob obstáculos que exigem a completude dela para que se aproveite a extensão do jogo por completa: San Fierro e Las Venturas, as cidades vizinhas a Los Santos, só surgem conforme o modo campanha avança, áreas da cidade são modificadas conforme a história progride, locais são desbloqueados à medida que missões são realizadas. Pensando dessa forma, a tal “liberdade” dos videogames, mesmo dos jogos sandbox, é apenas um leque maior de atividades e do flanar no mundo proposto pelo jogo; não caracteriza de fato uma liberdade total para se criar o que bem entender, mas sim uma liberdade negociada com o total controle criativo e narrativo dos designers do jogo.
Teoricamente, a distância das imagens de Crossroad, Rehearsals for Retirement, Last Days in a Lonely Place e GTA: San Andreas se apoia no argumento da “atividade” dos jogadores da Rockstar diante da “passividade” dos espectadores de Solomon. Mas tendo em mente que ainda estamos, enquanto jogadores, desvelando uma realidade programada – e, mais importante, linear, porque liberdade está diretamente associada à tempo -, essa distância se configura de fato como algo coerente?
É onde entra a teoria de Jacques Rancière em seu ensaio O Espectador Emancipado, de 2008. O filósofo francês não adentra nos signos dos videogames (ao menos não aqui), mas cria toda uma ideia dessa dissociação entre passividade e atividade do espectador a partir de teorias teatrais. Rancière exemplifica duas vertentes ideológicas do teatro, a do teatro épico de Brecht em se propor “a trocar a posição de espectador passivo pela de inquiridor ou experimentador científico que observa os fenômenos e procura suas causas.” [1], e a do teatro da crueldade de Antonin Artaud, em propor que o espectador “deve ser desapossado desse controle ilusório, arrastado para o círculo mágico da ação teatral.” [2]. Brecht dialoga com o espectador sob os termos da dialética franca, do ator que comenta direta ou indiretamente seu personagem através de sua impressão, e do espectador que é convidado ao debate político do texto e da encenação sem que para isso seja posto sob o véu da imersão narrativa, da (suposta) ilusão. Já Artaud pensa nessa mágica da encenação, de um espectador que assimila experiências sensoriais sem a princípio racionalizar essas impressões. Com isso, é construído o argumento de que o espectador de Brecht é mais “ativo”, pelo seu convite à reflexão das obras, enquanto o de Artaud é mais “passivo”, pela ideia da escuta que não atravessa a quarta parede do palco.
A questão para Rancière é menos de como essas teorias são válidas ou não, até porque ambas foram aplicadas magistralmente por cada um dos diretores/dramaturgos, e mesmo a interpolação entre ambas é possível em qualquer ramo das artes: da mesma forma que Michael Snow parte do cinema de paisagem que data dos Lumière para o aliar à sensorialidade pictórica das fusões e da montagem focada no cinema estrutural em Wavelength (1967), ou as pinturas entre 1910 e 1920 de Giorgio de Chirico, que pôde partir do impressionismo francês e das paisagens holandesas para chegar ao “surrealismo” de sua obra – entre aspas, porque nem mesmo entre os surrealistas ele fôra classificado após se afastar da sua fase metafísica. Não é sobre as obras que Rancière fala sobre, e sim sobre o papel de quem as recebe. E a questão central é do porquê dessa estranha dicotomia entre espectador e letargia, ou “por que assimilar escuta e passividade (…)?” [3]
Para Rancière, tanto no teatro épico quanto no teatro da crueldade isso coloca espectadores e atores em direto confronto estrutural, porque é dessa forma que desqualifica-se o espectador porque ele não faz nada, enquanto os atores em cena ou os trabalhadores lá fora põem seus corpos em ação”. [4] No cinema isso funciona de forma razoavelmente similar, uma vez que também existe o véu da quarta parede – imaginária no teatro, palpável na tela de cinema – e também existe a falta de controle do tempo na recepção daquelas imagens. No cinema e no teatro, estamos reféns do tempo de seus criadores. Já nos videogames, quem recebe as imagens não é o “espectador”, e sim o “jogador”. Ao jogador é entregue o controle, as possibilidades de renovar os caminhos da narrativa, de ponderar e decidir como serão aproveitadas as opções programadas nos jogos, o tempo no qual a obra será jogada; em síntese, ao jogador é dada a escolha.
E isso é tratado de forma ferrenha por uma parte do público de games. Obras como Thirty Flights of Loving (2012, Blendo Games), e os mistérios criados pelo diretor David Cage, Heavy Rain (2010, Quantic Dream) e Detroit: Become Human (2018, Quantic Dream), entre tantas outras, desafiam o controle do jogador, o omite da ação em prol de decisões morais, ou dedica foco maior em narrativa em detrimento de uma jogabilidade mais clássica; é só procurar em fóruns, nos comentários da Steam ou algo similar, para vê-los sendo classificados pejorativamente como “filmes interativos”, ou nem mesmo isso. Há também os jogos focados em uma história que é traduzida diretamente na jogabilidade, mais “clássicos”, mas que através dos caminhos narrativos tomam decisões emocionais que despertam a sensação de “traição” no jogador. Tomemos dois desses jogos como exemplos, Bioshock (2007, Irrational Games), um shooter de ficção-científica especulativa em primeira pessoa, e Spec Ops: The Line (2012, Yager), um shooter de guerra em terceira pessoa.
Bioshock começa com Jack, um protagonista sem memória que sobrevive a um desastre aéreo caindo no mar, e que busca refúgio em um misterioso farol no meio das águas. Lá descobre a cidade de Rapture, uma utopia subaquática moldada em volta do suposto livre pensamento e do espírito de ação, ideias promovidas pela literatura reacionária da escritora Ayn Rand. Ao longo do jogo, percebemos que aquela cidade uma vez próspera e ultratecnológica virou um apocalipse, com os habitantes tornados zumbis e ambientes destruídos por uma guerra civil. Nessa atmosfera de survival horror, uma voz nos guia para entender o que motivou o fim da cidade. Seguindo esses objetivos, vamos logo percebendo que a presença do protagonista ali é programada: sua (e portanto nossa) jornada é matar Andrew Ryan, o idealizador da cidade, que através de sua covardia em se blindar diante da ideologia de ação humana é assassinado por nós sem reagir, porque reagir seria interferir na escolha do jogador. Nossa ação é orquestrada por Fontaine, um político que confrontou Ryan e usou o povo, através da religião que antes era proibida na cidade, para questionar a utopia do magnata. Nossa queda na ilha era parte do plano para matar o rival de Fontaine, e o protagonista sofre uma lavagem cerebral para realizar tudo o que Fontaine manda. Claro que eventualmente o final do jogo é voltado na vingança contra o vilão que nos ludibriou, mas isso não tira um decisivo fator de Bioshock: enquanto jogadores, fomos enganados por 12 horas de narrativa.
Durante toda a história, faz parte da trajetória do protagonista que controlamos que ele funcione como um “vilão” não-declarado do jogo, que ele execute sua missão sem saber que a está realizando; com essa ferramenta controversa, o diretor Ken Levine busca uma reflexão sobre a suposta elucidação que as escolhas pregadas por Ayn Rand falam, e que não levam em conta a sociedade como um lugar de equidade e alguma justiça sociopolítica. Levine questiona o excepcionalismo nojento da escritora confrontando suas idéias na forma de Rapture, a cidade-fantasma destinada aos grandes feitos da humanidade mas que esconde terrível desigualdade social nas suas raízes; “escolha” não é um conceito que se aplica a todos nessa utopia. E com essa discussão, Bioshock fala sobre a própria ideia de escolha nos jogos: caso fôssemos avisados de antemão, talvez não houvesse narrativa alguma. Sofremos um direcionamento míope para melhor imersão na própria jornada emocional de Jack. Enquanto força trabalhadora, enquanto “operário”, a Jack não é dado o direito da escolha. E como jogadores percebemos que “jogar” não é sinônimo de “atividade”, ou de “escolha”; estamos no terreno pré-programado, imaginado, pelas escolhas das mentes da Irrational Games.
Isso é diretamente exemplificado também em um segmento de Spec Ops: The Line, brilhante adaptação de Coração das Trevas, que cito brevemente. Jogamos como Martin Walker, um soldado que, junto a dois outros fuzileiros, deve cruzar uma Dubai destruída por tempestades de areia para resgatar o capitão John Konrad, que ficou supostamente preso numa missão de resgate. Um dos soldados companheiros de Walker questiona sobre o uso de uma bomba fosforescente, uma arma química que derrete a pele dos afetados por ela. Ele diz que Walker “viu o efeito que essa bomba causa”, e que não deve usar. Walker então responde que “não tem escolha”, ao que o soldado replica que “sempre há escolha”. É quando o protagonista arremata: “não, não há”. E após essa cena o jogador é obrigado a jogar uma arma biológica terrível sobre seus inimigos, para mais tarde descobrir que matou dezenas de inocentes no ataque, em uma cutscene muito impactante e controversa.
Esse metacomentário de Walker, que diz com todas as letras que “não há escolha”, nos força a pensar, como em Bioshock, na essência de escolha atribuída a esses jogos. Nossa “impotência” diante dos eventos que tomam forma à nossa frente desvela explicitamente essa falsa ideia de controle do jogador. A questão é, como cito em Rancière anteriormente: essa “falta” de escolha significa passividade? Não estamos aproveitando uma experiência imersiva e sensorial baseada no nosso olhar e nossa reflexão? Essa distância, esse “controle”, é mesmo necessário para se ter uma relação frutífera com uma obra? Cabe aqui pensar então que é possível, também, a “emancipação” do jogador. Seguir um caminho determinado não nos impede de ter uma opinião sobre, de construir ligações com os signos ali apresentados. A emancipação do espectador proposta por Rancière passa por outro lugar, já que “começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir.” [5] Atribuir uma qualidade ao fato do jogador, diferente do espectador, ter esse “controle” que já se provou em muitos casos imaginário, é negar que a recepção de obras cinematográficas tem preceitos tão ativos quanto.
Nos filmes de Phil Solomon existe menos liberdade de fruição e interpretação, menos atividade de quem assiste e joga, do que em games como os Far Cry mais recentes ou Ghost Recon: Wildlands, jogos repetitivos e cujos objetivos de ação se restringem às mesmas missões ano após ano? Existe mais ação e atividade mesmo em um ótimo jogo como The Last of Us (2013, Naughty Dog), uma aventura linear cujos mecanismos narrativos são bastante definidos e pré-programados, cujo desenvolvimento de personagens se assemelha tanto a vários exemplos no cinema clássico-narrativo americano? O mesmo vale para o oposto: não existem menos interpretações, reflexões e ganchos emocionais em Bioshock como existem em Rehearsals for Retirement, e presumir isso seria trair o fato de que “o que está em ação é sempre a mesma inteligência, uma inteligência que traduz signos em outros signos” [6], que Rancière aponta no ensaio.
Essa ideia da liberdade do jogador diante dos games, sejam eles em mundo aberto ou não, soa diretamente como a falsa liberdade do espectador chamado à ação no teatro apontada por Rancière. A noção dicotômica permanece falha, e como o francês aponta, “caberia hoje reexaminar esses princípios, ou melhor, a rede de pressupostos (…): equivalências entre público teatral e comunidade, entre olhar e passividade (…); oposições entre coletivo e individual, imagem e realidade viva, atividade e passividade, posse de si e alienação.” [7]
Do espectador não é tirado o controle que um jogador teria; somos chamados a um novo tipo de fruição, tão complexa quanto a de alguém jogando, na atividade de um espectador buscando ligações sensoriais entre os planos, para que então possamos compor nosso “próprio poema com os elementos do poema que tem(os) diante de si.” [8]
A dialética das imagens propostas por todas essas obras, de duas artes aparentemente distintas, funciona sob a mediação do artista que realiza sua obra e que também escuta, de certa forma, o espectador/jogador, através das questões e reflexões dos espectadores, e da fruição interativa e interpretativa dos jogadores. Rancière levanta o quanto essa distância não deveria ser inquisidora, sob alturas distintas de argumentação, e sim uma troca comunicativa cujas transformações virão de ambos os lados, já que “a distância não é um mal por abolir, é a condição normal de toda comunicação.” [9] O escritor diz que “a distância que o ignorante precisa transpor não é o abismo entre sua ignorância e o saber do mestre. É simplesmente o caminho que vai daquilo que ele já sabe àquilo que ele ainda ignora, mas pode aprender como aprendeu o resto.” [10], e como tal, os jogadores precisam ir do ponto A, que conhecem, ao ponto B, que os designers do game conhecem; não existe hierarquia pejorativa, existe diálogo e dialética, e é dessa fricção que se gera conhecimento.
Em GTA: San Andreas, podemos vasculhar a densa e vasta topografia daquelas três cidades, supostamente com a liberdade da não-linearidade, da escolha; decisões de game designers que entendem que o jogo de aparência que envolve “liberdade” é uma convocação à exploração curiosa de um espectador/jogador precisamente limitado aos desejos e regras dos criadores da obra, mas sempre se reconhecendo como tal, sem ilusões; um jogador emancipado como o espectador de Rancière. Quando estamos diante dos filmes de Solomon, não é diferente: espectadores expostos a signos enigmáticos, abstratos, cujas imagens inspiram memórias e reflexões próprias que forçam o espectador a lidar com um objeto tão oblíquo e capaz de despertar reações emocionais tão diversas, através de seu desenho de som focado em noise e ambient como um fluxo constante, ou com a torrente de imagens cataclísmicas geradas por códigos virtuais e a inteligência do quadro e do corte do cineasta. Não existe relação de qualidade entre o espectador de Solomon e o jogador da Rockstar; ambos estão em diálogo constante e fluido. Como aponta o filósofo francês, “é nesse poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador. (…) Ser espectador não é a condição passiva que deveríamos converter em atividade. É nossa situação normal.” [11]
Quando se tira totalmente o controle das mãos do jogador, o suposto poder de decisão delimitado pela Rockstar, Phil Solomon escancara dois tecidos muito densos da realidade, mas que nunca soam contraditórios: estamos passivos na experiência cinematográfica de algo que nasceu na “atividade”, e ao mesmo tempo estamos conscientes como espectadores de podermos articular interpretações distanciadas que não teríamos caso estivéssemos sob a teia da imersão em terceira pessoa do agir no jogo; é demonstrado que somos capazes de produzir aquelas imagens porque estamos num mundo de recursos de ação familiares aos olhos, e simultaneamente nos é destituído o véu da missão, nos sobrando apenas o fluxo espiralado de confronto de uma natureza fora do (aí sim) nosso controle. No caos urbano de Los Santos, seja na versão oficial da Rockstar ou no mod cinematográfico concebido pelo tempo de Solomon, estar jogando ou assistindo são convites igualmente atraentes a quem está do outro lado da tela repensar o fluxo contínuo e anestésico do que significa agir.
Referências:
[1] – O Espectador Emancipado, Jacques Rancière, pág. 10
A narrativa precisa ter caráter (…), indicar o propósito moral (…). É por isso que argumentos matemáticos não possuem caráter, uma vez que também lhes falta propósito moral (…).1
Aristóteles, A Arte da Retórica.
Se forjássemos (…) máquinas de contar histórias (…), que funcionassem sozinhas, (…), elas funcionariam absolutamente como o Sr. Flaubert. Sentiríamos nessas máquinas tanta vida, alma, entranhas humanas, quanto no homem de mármore que escreveu Madame Bovary com uma pluma de pedra, como uma faca de selvagens.
Barbey d’Aurevilly, Le Pays, 6 de outubro de 1857
A originalidade da fotografia com relação à pintura reside (…) em sua objetividade essencial. Tanto que o grupo de lentes que constitui o olho fotográfico substituindo o olho humano se chama precisamente “a objetiva”. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação, nada se interpõe além de outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente sem intervenção criadora do homem, segundo um determinismo rigoroso.3
André Bazin, ‘Ontologia da Imagem Fotográfica’ em O Que é o Cinema?
A arma autoguiada da Segunda Guerra Mundial deu cabo de dois conceitos fundamentais da modernidade – o da causalidade e o da subjetividade. – e iniciou a atualidade como era dos sistemas técnicos. (…). Quer sejam digitais ou analógicos, os sistemas técnicos são sempre autônomos.4
Friedrich Kittler, ‘Unconditional Surrender’, em A Verdade do Mundo Técnico.
O registro impassível da realidade é historicamente associado à matemática, às máquinas e – como no caso de Flaubert – ao obsceno. Desde, pelo menos, Aristóteles, a falta de comentário, a ausência de um juízo claramente articulado, costumam ser interpretadas como lacunas retóricas e morais. Há pouco mais de cem anos, a fotografia e o cinema – pretensamente livres de subjetividade – vieram complicar essa discussão. Nas últimas décadas, sistemas automáticos passaram a afetar quase todos os aspectos de nossas vidas, tornando questões sobre neutralidade e despersonalização incontornáveis e cada vez menos claras. Qual é o caráter de uma decisão automatizada? Como decodificar discursos sem narração manifesta? E, em contrapartida, até que ponto devemos nos deixar convencer pelas intenções alegadas pelas interfaces e narradores em primeiro plano?
O Auge do Humano
Em O Auge do Humano (El Auge del Humano, Eduardo Williams, 2016) temos um estilo aparentemente neutro retratando um mundo supostamente impessoal. Caso ideal, portanto, para a discussão desses temas. Antes, no entanto, um breve histórico.
Retórica – limpando a barra do narrador
No segundo livro da Retórica, encontramos duas proposições: “o objetivo da retórica é formar um juízo” e “devemos atentar não apenas para que o discurso seja demonstrativo e persuasivo, mas também que o discursante demonstre possuir certas disposições (…)”. Sob essa ótica, o discurso não deve apenas descrever objetos ou situações, mas também estabelecer e resguardar a posição moral do próprio orador com relação ao que está sendo abordado.
Vale lembrar que, em suas primeiras décadas, era difundida a crença de que os que os filmes apenas registravam, sem comentar, as cenas que capturavam (um cinema de mostração, como dizem alguns estudiosos do período). Não por acaso, a nova mídia foi taxada muitas vezes como imoral. Poucos anos depois, a transição para o modo narrativo foi essencial para garantir a aceitabilidade social e viabilidade econômica das indústrias cinematográficas: contar uma história permitia propor uma moral da história (e de mundo).
O arco narrativo passou a funcionar como álibi: todas as ambiguidades e dissonâncias morais deveriam ser sanadas impreterivelmente até o final de cada trama. Mas isso nem sempre era o suficiente. Reagindo à acusação de que os filmes de gângster romantizariam o crime e os criminosos, Scarface (Howard Hawks, 1932) tenta abrandar seu conteúdo anárquico e “formar juízo” por meio de um texto introdutório, cuja condenação ao modo de vida de seus personagens é reforçada pelo subtítulo “Vergonha de uma Nação”. Podemos questionar o grau de consistência (ou sinceridade) desse alegado respeito aos bons costumes, mas o texto que abre Scarface integra uma longa tradição.
Texto introdutório de Scarface – A Vergonha de uma Nação. Criticando a indiferença do governo etc. etc.
Flaubert no banco dos réus
Em 1857, pouco depois da primeira publicação de Madame Bovary, Flaubert foi processado por ultraje à moral pública. O desconforto causado pelo romance costuma ser associado a uma descrição impassível de atos imorais, atenuando a voz do narrador em favor da perspectiva dos personagens. Nas discussões da época, o estilo do autor chegou a ser descrito como “fotograficamente exato”, comparando-o a uma tecnologia de produção de imagens considerada neutra e, portanto, amoral. O processo, contudo, foi decidido em favor do réu. Antoine Sénard, o advogado de defesa, contestou as acusações da promotoria afirmando que “o desenlace em favor da moralidade se encontra em cada linha do livro” (justificativa provavelmente tão suspeita quanto o texto que abre Scarface). De qualquer forma, a absolvição contribui para uma verdadeira jurisprudência interpretativa: o “caráter” da narração (para retomar o termo aristotélico) poderia estar subentendido e não precisa ser imputado exclusivamente à clareza enunciativa do narrador, dependendo igualmente do processo de leitura e recepção. Ironicamente, a primeira adaptação hollywoodiana do livro (dirigida por Vincente Minnelli em 1949) começa com uma versão dramatizada desse julgamento, enxertando assim a justificação moral que faltava à obra original, manobra necessária em tempos de Código Hays.
James Mason como Gustave Flaubert no início do Madame Bovary de 1949
O humano
É difícil atribuir intenções e juízos a O Auge do Humano. O filme (per)segue grupos de jovens em três países distintos (Argentina, Moçambique e Filipinas), em saltos espaciais sem motivação aparente. Em uma sinopse rasteira, poderíamos dizer que o fio condutor da ‘trama’ é a existência millenial em tempos da onipresença da tecnologia, mas essa sinopse é desautorizada por uma análise atenta. Várias das situações apresentadas envolvem falhas tecnológicas: falta de luz, celulares quebrados ou descarregados, internet inacessível – um colapso intermitente e sem explicação, que sugere um estado pós ou pré-apocalíptico. Na cena inicial, um rapaz emerge do escuro em sua casa de subúrbio, abrindo a porta para a rua alagada, talvez pós-diluviana (ou pós-colapso climático).
O Auge do Humano
Durante o primeiro segmento, esse mesmo personagem procura demoradamente por um local com acesso à Rede, mas quando finalmente o encontra, não parece precisar dela – dentro de um quarto fechado, em que rapazes nus ou seminus se exibem por dinheiro na frente de uma sexcam. O garoto que acompanhamos até então é o único a permanecer vestido e não participativo, sem parecer extrair, tampouco, estímulo erótico da cena em volta. A dinâmica se repete durante o segmento filipino, quando uma jovem procura um cybercafé no meio da selva, interpelando todas as pessoas com quem cruza pelo caminho, obtendo indicações que esquece ou desconsidera imediatamente depois, repetindo a mesma pergunta para os próximos passantes.
O Auge do Humano
Se O Auge do Humano é “sobre tecnologia”, como explicar que a maior parte de suas cenas envolva perambulações pelo espaço físico – periferias urbanas, mas também selvas e florestas? Como explicar a cena em que um grupo, sem motivo aparente, se reúne para conversar em um oco de árvore? Se é um filme sobre millenials, como explicar a sequência em que a câmera penetra em um formigueiro em Moçambique, espiona por cerca de cinco minutos a vida das formigas e cuja saída nos leva às Filipinas? Deveríamos recorrer a metáforas, os jovens como formigas, a internet como o formigueiro?
Seria o filme uma crítica à dependência tecnológica das novas gerações, sua passividade e falta de pudor? Ou deveríamos nos concentrar em uma leitura socioeconômica, considerando o estado de subemprego de boa parte dos personagens, mais bem recompensados se exibindo pela internet? A maneira como as cenas das sexcams são filmadas pode trazer um pouco de luz à discussão. Durante a primeira, na Argentina, temos um plano-sequência de cinco minutos e nenhum movimento de câmera, sem corte ou afastamento do olhar nos momentos em que os atos se tornam mais explícitos. Se o filme é um discurso moralista, porque não temos qualquer elipse, uma vez apontada a presença do ato condenado? Se, por outro lado, trata-se de um millenialexploitation, como interpretar a falta de ênfase e sensacionalismo?
O Auge do Humano
Já na segunda, os rapazes de Moçambique são espiados a partir de uma tela de computador na Argentina, que exibe várias janelas: a sexcam à esquerda e um artigo sobre corpos e anticorpos à direita. O artigo explicaria, por acaso, o sentido e o juízo da obra? É uma chave hermética ou uma pista falsa?
Ambas as cenas nos remetem a ‘A Mensagem Fotográfica’, artigo publicado por Roland Barthes em 1961. A cena argentina, a impassível, faz mais do que se abster do juízo: muito antes, parece chamar atenção para a própria abstenção de juízo, uma vez que “não há cena filmada cuja objetividade não seja em última análise lida como o próprio signo da objetividade”. Não estamos, provavelmente, diante de uma omissão ou ignorância retórica, mas de uma bem-articulada “resistência ao investimento de valores”. Aproveitando a definição barthesiana: “quando se quer ser “neutro, objetivo”, a gente se esforça por copiar minuciosamente o real, como se a analogia fosse um fator de resistência ao investimento de valores”.
Mas retomando dois termos usados por Barthes na passagem citada, se O Auge do Humano é “neutro” e anuncia a própria neutralidade, dificilmente poderia ser classificado como “objetivo”, considerando os seus já apontados elementos de obscuridade e non-sense. O que nos leva de volta à segunda sexcam, em Moçambique, inicialmente visualizada na Argentina e que serve de transição entre o primeiro e o segundo segmentos.
O Auge do Humano
Como já mencionamos, a janela que enquadra a performance dos garotos está à esquerda de outro navegador, em que consta um artigo sobre biologia. Barthes, ainda em ‘A Mensagem Fotográfica’, comenta sobre como as legendas são utilizadas para restringir o campo semântico de uma fotografia, desempenhando funções de explicitação e especificação. E, acrescenta, também podem produzir ou criar “um significado inteiramente novo e que é de algum modo projetado retroativamente na imagem”. Para além da projeção retroativa, há tentativas de contenção preventivas, como na já aludida abertura de Scarface ou em um dos primeiros intertítulos de O Nascimento de uma Nação (Griffith, 1915), cuja apologética ecoa questões levantadas por Aristóteles e durante o julgamento de Flaubert: a narração e o narrador devem se posicionar com relação à imoralidade que “retratam” ou arriscarem-se à acusação de cumplicidade.
‘Nascimento de uma nação’, intertítulo, fazendo exigências.
Não há, evidentemente, uma equivalência entre essas três práticas – legendas em fotografias, textos introdutórios em filmes e uma janela de navegador integrada ao mundo diegético – mas há um paralelo entre as situações: a inflexão – ou expectativa de inflexão – da imagem pela palavra escrita, especialmente como antídoto contra a dubiedade ou o vácuo de sentido. Mas no caso do Auge do Humano, encontramos, mais uma vez, ruído ao invés de esclarecimento: condicionados pelas convenções narrativas, esperamos que a imagem-texto exibida (o artigo sobre os anticorpos) contenha alguma relevância para a trama, hipótese que não é confirmada pelo restante do filme.
Temos, portanto, uma primeira cena cuja neutralidade estilística ostenta a própria neutralidade retórica e uma segunda cena que destaca um elemento comumente semântico (o texto contíguo à imagem, o texto na imagem), utilizado de forma assignificativa. Todo esse preâmbulo serve de advertência para a parte final deste texto: O Auge do Humano é um filme resistente à atribuição de sentidos, mas ainda assim iremos utilizá-lo – arbitrariamente – como contraponto a algumas proposições do teórico da mídia Friedrich Kittler, reunidas na coleção A verdade do mundo técnico.
A verdade…?
Escrevendo em 1997, Kittler defendia que a análise dos sistemas de poder era inseparável da investigação sobre a lógica dos sistemas técnicos – uma interpenetração entre tecnologia e formas de organização humana:
Em primeiro lugar, deveríamos tentar conceber o poder não mais como função da chamada sociedade, mas construir a sociologia a partir das arquiteturas do chip. À primeira vista, parece lógico analisar os níveis de privilégio de um microprocessador como verdade daquelas burocracias que incentivaram seu desenvolvimento e realizaram sua aplicação em massa. Existem razões pelas quais a distinção entre supervisor level e user level na Motorola, e entre protected mode e real mode na Intel, ocorreu nos anos em que os Estados Unidos começaram a construir um sistema impermeável de duas classes. (…); num império cuja população só vê o resto do mundo na tela do televisor, pensar em algo como política se torna um privilégio governamental. (Kittler, 2017, p. 363)
Essa configuração teria se instaurado desde (pelo menos) a Segunda Guerra Mundial, com o início do processo que “substituiu tubos, indutores e capacitores por placas de circuito impresso” (p. 349). As mudanças introduzidas extrapolaram em muito o simples upgrade de armas e equipamentos. Tecnologias de telecomunicações, burocracias estatais e corporativas, prioridades de pesquisa científica e o Estado de Vigilância – todos remeteriam diretamente ao período. Mas Kittler propõe uma inversão da causalidade esperada: foi a revolução técnica que serviu às necessidades do conflito ou, pelo contrário, a Guerra e o seu desenlace foram condicionados pelo desenvolvimento irrefreável da Técnica? Findo o combate, a evolução tecnológica prosseguiu imperturbada, apesar da eventual troca de supervisores e usos (envolvendo a transferência de um enorme contingente de cientistas alemães para os poderes Aliados). As pesquisas nazistas de desenvolvimento de foguetes permitiram o nosso atual sistema de satélites, enquanto os esforços de contra-inteligência britânicos criaram os primeiros computadores (lembremos da citação de Aristóteles que abriu esse artigo: “argumentos matemáticos não possuem caráter, como também lhes falta propósito moral”). A convergência de ambos viabilizou tanto a Internet quanto a NSA:
Seus satélites de espionagem interceptam a telefonia, a telegrafia e a telecomunicação por micro-ondas, ou seja, o correio de todas as regiões da Terra, seus computadores decodificam eventuais máquinas de codificação intercaladas, scrambler etc., arquivam automaticamente a mensagem e detectam automaticamente palavras-chaves suspeitas. O resultado disso é que 0,1% de todas as telecomunicações do planeta é absorvido pela inteligência artificial da NSA. Ninguém sabe o que acontece com isso. (…) (Kittler, 2017, p. 328)
De forma não literal, O Auge do Humano ilustra a ubiquidade quase invisível desse olhar eletrônico e especialmente a sua inescrutabilidade. Há uma tentação inicial de vincular as imagens do filme ao exibicionismo e aos registros do cotidiano postados no Youtube, Instagram ou Tiktok, mas na maior parte do tempo, os personagens ignoram que estão sendo filmados (às vezes o pressentindo: “Não sei se tu consegues ouvir”, diz um dos moçambicanos em plena savana, “sinto que alguma coisa está a espiar-nos”). Williams trabalha com uma combinação de movimento e rigidez: imagem estática quando os personagens estão em ambientes fechados, móvel enquanto perambulam. O distanciamento entre câmera e atores introduz uma perturbação, quase os deixando escapar, apenas para recaptura-los logo depois. Mesmo uma interpretação voyeurística parece inadequada: nas cenas de sexcam, os garotos interagem com métricas virtuais: os dólares acumulados e a quantidade de usuários on-line, que varia de acordo com uma lógica obscura. Sequências terminam antes da ação tornar-se inteligível, como se obedecendo a um desapaixonado critério de amostragem – dois personagens planejam entrar sorrateiramente em um estabelecimento (loja?), mas não descobrimos nem as razões nem o resultado da tentativa. Há, portanto, uma causa adicional de ansiedade: nada indica que a inteligência que nos vigia seja reconhecivelmente humana.
O Auge do Humano
Essa inacessibilidade é a marca do “ideal criptográfico” e das “funções de mão única” (p. 357), a barreira de cognoscibilidade interposta entre usuários e código. Se concordarmos com Kittler, suas ramificações não se resumem à vigilância, pautando igualmente a nossa organização socioeconômica. Pelo menos dois personagens perdem o emprego ao longo do filme, mas não há patrões à vista em O Auge do Humano – a única interação entre as partes ocorre via telefone celular. A última cena do filme se passa no ambiente asséptico de uma fábrica de tablets nas Filipinas e a única voz ouvida provém de um aparelho de checagem, validando o trabalho do grupo de funcionários. Aqui, os computadores não somente “assumem sua própria reprodução” (p. 303), como também supervisionam os trabalhadores da linha de montagem. Podemos interpretar Kittler literalmente e acreditar em um já instalado domínio das máquinas ou apontar interesses totalmente humanos por trás dessa forma de organização do capitalismo tardio. Ou, ainda, pressupor qualquer combinação entre esses dois pontos de vista. De uma maneira ou de outra, os sistemas técnicos se tornaram parte inescapável de nossa realidade e são – recorrendo uma última vez à terminologia aristotélica – ou amorais ou silenciosos quanto a seus verdadeiros juízos e disposições.
O Auge do Humano
A retórica, a literatura, as teorias do cinema e da mídia já lidam há muito com essas perguntas: o que constitui a neutralidade na narrativa e na ação? Como se estabelece um posicionamento e juízo diante do mundo? Como podemos acessar níveis de significado inescrutáveis, talvez ausentes? Essas questões não se limitam à esfera dos equipamentos, mídias e instituições, mas concerne igualmente ao polo oposto – nossa existência enquanto leitores, espectadores e consumidores de tecnologia, como sugerido pela passagem (e imagem) a seguir:
Numa era que há muito se despediu dos fantasmas do criador ou do autor, mas, por bons motivos financeiros continua a defender o direito autoral como efeito histórico desses fantasmas, o ardil se tornou uma fonte lucrativa. Os súditos da Microsoft não caíram do céu: como todos os seus precursores histórico-midiáticos – os leitores de livros, os frequentadores de cinema, etc. –, eles foram produzidos. O único problema é como essa submissão pode ser ocultada dos sujeitos para então dar início à sua conquista mundial. (Kittler, 2017, p. 358).
Mais um intertítulo de Nascimento de uma Nação. Produzindo súditos/consumidores
Agradeço ao Pablo Gonçalo por ter me apresentado ao Kittler e à Juliana Fausto que me deu valiosos toques há uns anos, quando escrevi uma primeira versão deste texto. Agradecimentos especiais a quem quer que tenha tido paciência para ler esse artigo inteiro.
Referências e fontes:
ARISTÓTELES. The Art of Rethoric. Tradução de Hugh Lawson-Tancred.Londres: Penguin Books, 1991. Tradução nossa para o português. O trecho específico foi extraído da página 253.
BAZIN, André. Qu’est-ce le cinema? Paris: Éditions du Cerf. 2011.
KITTLER, Friedrich. A Verdade do Mundo Técnico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017.
Os trechos sobre o julgamento de Flaubert retirados de:
JAUSS, Hans Robert, Toward an Aestethic of Reception. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982
Sobre os comentários sobre as primeiras décadas de cinema e transição para o modo narrativo: COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema – Espetáculo, Narração E Domesticação. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
Os desktop movies se popularizaram nos anos 2010 junto com a internet. Já as ferramentas de captura de tela estão disponíveis desde 1960, surgiram junto com os primeiros computadores. Os screenshots são fotografias instantâneas de tela. Mas entraram para o cotidiano como prints. Pedimos prints o tempo todo e não paramos de printar.
Os prints são imagens bidimensionais que quase sempre trazem em si elementos do app em que foram capturadas: abas, janelas, barras, botões. Possuem, como toda imagem, uma capacidade narrativa que independe da resolução, nitidez e do contexto original. Ao mesmo tempo, são fragmentos das vidas que vivemos on-line, imagens de imagens que se acumulam vertiginosamente nos dispositivos que acessam as redes. Fotos e vídeos aleatórios, conversas, lembretes, recibos, memes, figurinhas de WhatsApp, etc, etc, etc.
Mas são as capturas dos movimentos que acontecem nas telas que permitem o surgimento de filmes que se passam inteiramente no ecrã – os desktop movies. Ao invés de se parecerem com o que foi, se parecem ao que está sendo. Janelas de janelas que se combinam uma atrás da outra, uma sobre a outra, uma ao lado da outra. Imagens heterogêneas que se acumulam, se repetem, se reproduzem, se multiplicam, se excedem, se chocam e constituem sentidos diversos. Elementos divergentes que se combinam em uma sequência de disparates que já não produz qualquer estranhamento, porque assim também se convivem imagens e textos cotidianamente nas telas dos computadores pessoais.
A estética cotidiana dos excessos e da heterogeneidade pode ser exagerada. Em Grosse Fatigue (2013), de Camille Henrot, esqueletos de peixes, aves empalhadas e arquivistas do Museu Smithsonian Nacional de História Natural se misturam a vídeos de cientistas no youtube, janelas do google, imagens de livros e tentam reconstituir a história do universo pela sobreabundância e pela confusão, com um ritmo frenético e uma voz em off que guia o espectador no meio do caos. Em Noah (2013), de Patrick Cedeberg, o fim de relacionamento abusivo se dá entre conversas de skype, invasão de facebook, sites de pornografia e troca de músicas. Em Proxy Reverso (2014), de Guilherme Peters e Roberto Winter, dois jovens tentam encontrar documentos que possam provar que as eleições presidenciais do Brasil em 2014 foram fraudadas, enquanto fofocam no Skype, trocam vídeos do youtube, discutem teorias da conspiração e baixam filmes piratas. Em todos esses filmes muitas coisas acontecem enquanto a narrativa avança e as distrações são parte essencial do ecossistema de imagens.
Vivemos uma parte enorme das nossas vidas conectados. Os desktopmovies se ocupam desses acontecimentos que são mediados pelas telas e o fato de que ainda que tentássemos fugir, não haveria para onde. O mundo off-line incorporou as telas, as imagens, a estética e a lógica das redes, desejando parecer com o mundo on-line e já parecendo.
A c41ix4 pr3t4 p3rm4n3c3 f3ch4d4
# O recurso da captura de tela funciona como uma câmera que fotografa para dentro de si, mas nada revela sobre si mesma. # # A superfície e a profundidade se encontram numa tela só. # # # de deep, só web.
1$$0 é um4 1m4g3m
Ainda que o cinema experimental tenha incorporado os bastidores há décadas – [Funeral de Rosas (1969), de Toshio Matsumoto], [Cabra Marcado para Morrer(1984), de Eduardo Coutinho] –, nem sempre a parafernalha estava em cena. Esse recurso lembrava ao espectador absolutamente imerso na projeção, de repente, que ele estava diante de uma imagem. Nos filmes ficcionais, era também uma maneira de tensionar os limites entre os elementos ficcionais e documentais que construíam a narrativa.
Já nos desktop movies, a parafernalha deixa de ser hard e se revela soft(ware), é a própria estética digital. A mesa de trabalho, aplicativo, google, maps, chrome, e-mail, whatsapp, facebook, twitter, zoom, meets, avisos, pop ups, abas, youtube, pastas, hd, e, sobretudo, o m0u$e. O mouse conduz o espectador em meio a narrativa, é a manifestação do personagem e às vezes do narrador. O mouse abre programas, seleciona links, destaca textos. E mesmo quando não vemos indícios de tela, suas especificidades estéticas nos lembram que ela continua ali. Por isso, o dispositivo é parte essencial e incontornável destas narrativas.
Se por um lado o espectador não esquece a tela, pode esquecer daquilo que separa seu íntimo desktop, do que nele se vê: um filme. (Por isso, me assusto repetidas vezes ao ver clicks em minha tela que não são meus). Nesse momento, de total correspondência, não nos projetamos no personagem ou no narrador, nos confundimos completamente com ele.
Talvez por isso Chloé Galibert-Laîné não disfarçou sua alegria ao lançar seu filme Forensickness em meio à pandemia. Muitas pessoas assistiriam o filme em seus computadores pessoais, uma tela, em quase tudo idêntica àquela em que o filme foi rodado.
De forma que o dispositivo de visualização, poderia se parecer exatamente ao dispositivo de captura.
rod4r n4 t3l4 ou fod4s1 o or1g1n4l
O original e o apropriado quando vistos em uma mesma mesa de trabalho parecem por vezes idênticos. É difícil encontrar algum elemento capaz de diferenciar as imagens filmadas por Kevin B. Lee para o Transformers: the Premake, daquelas que os – outros – fãns de Transformers capturaram com seus próprios celulares e postaram no Youtube. Em tudo coincidem: ponto de vista, qualidade, estética, amadorismo. Ainda assim, Lee decide marcar uma – suposta – diferença entre original e apropriado – mostrando a pasta “My footage”, em que guarda os vídeos que ele mesmo gravou, antes de “dar o play”. Afirmando nesse gesto, a indistinção entre umas e outras.
Camille Henrot, em Grosse Fatigue, adota uma estratégia diferente. Captura suas próprias imagens a partir do arquivo do Smithsonian Museum e trabalha para reduzir as diferenças entre as imagens que ela produz e aquelas que usou da internet. Tenta aproximar a imagem autoral da apropriada, se aproveitando da capacidade dos desktops igualarem uma à outra. As imagens capturadas em alta resolução, brilhantes, sedutoras, fascinantes, são dissolvidas no desktop, no excesso, no acúmulo, na velocidade e na proximidade com as imagens apropriadas, descarregadas, sem nitidez ou resolução. (Ou pelo menos assim pareciam na cópia pirata do filme).
[…] é sobre circulação em enxame, dispersão digital, temporalidades fracturadas e flexíveis.
Hito Steyerl
3st3tic@ p@nd3333mic@
No auge do distanciamento social provocado pela pandemia da COVID-19, a vida passou a se parecer com um desktop movie. Muito do que acontecia, acontecia na tela. (Nunca as mortes, nem as contaminações). Mesmo a população que não teve direito a quarentena, mudou sua relação com as redes e os dispositivos de acesso a elas. Aulas, cursos, palestra, festas, textos, notícias, imagens, pornografia, conversas aleatórias e aplicativos diversos dividiam o mesmo espaço e ocupavam muito tempo. Ainda que os primeiros filmes de captura de tela sejam muito anteriores à pandemia, nesse período sua estética se difundiu através dos recorrentes compartilhamentos de telas.
Mais de dois anos depois, a pandemia não acabou e a vida segue híbrida. Uma série de eventos se mantém on-line e on-line devem continuar. De repente, nos damos conta que o mundo como existia antes, já não existe mais. Assim como aconteceu com outras tecnologias, não dominamos as telas, ao contrário, elas sim é que nos dominaram. Apesar de um cansaço difuso do excesso de conexão e telas, não temos escolhas. Paradoxalmente (ou obviamente) em meio a essa exaustão, os filmes de captura de tela avançam rumo ao mainstream. Talvez um indicativo de que não vemos escapatória para o convívio full time com as telas e as redes, talvez apenas indício de que algumas histórias não podem prescindir destes dispositivos como parte da narrativa.
Ch4ts
Esse texto recupera questões levantadas por Anselm Jappe, Jacques Aumont, Jacques Rancière, Hito Steyerl, Kevin B. Lee, Vilém Flusser e Dora Longa Bahia. Os filmes e vídeos que mencionei estão linkados no próprio texto. Agradeço a Multiplot! pelo convite, a Bruno Ferreira e a Taiani Mendes pelos comentários e sugestões. Se quiser saber mais, recomendo as seguintes leituras: AUMONT, Jaques… et al. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995. JAPPE, Anselm. Guy Debord. Editora Vozes: Petrópolis: 1999. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. STEYERL, Hito. Em defesa das imagens pobres. Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Faculdade de Belas Artes. Universidade do Porto, s/a.Disponível em: https://alix.fba.up.pt/em-defesa-das-imagens-pobres acesso em: 13 set. 2021. ______. Capítulo 11: A internet está morta?In: Hito Steyerl: Três capítulos de Arte “Duty Free”: Arte na Era da Guerra Civil Planetária. Tradução: Carolina Eiras Pinto. ARS, ano 18, n. 3, p. 291 a 308, 2018.
Segundo Walter Benjamin, o flâneur é aquele que exerce a percepção distraída, ou seja, quem percebe o mundo sem tomar o tempo necessário para olhá-lo. Por sua vez, o oposto dessa atitude seria a contemplação – por sua vez, a dedicação da percepção dos sentidos no tempo. Discutido pelo autor em 1935, a aplicabilidade inicial do flâneur se referia a quem se perdia pelas ruas, passando o olho por carros, pedestres e prédios, mas sem se fixar em nenhum deles. O flâneur está sempre em movimento e reconfigurando suas percepções, conforme apreende novas imagens. Contudo, com a passagem do tempo e a transformação dos meios tecnológicos, as formas do olhar também mudaram. Nos anos 60, já se começava a dizer que o flâneur não estava mais nas ruas, mas sim nos sofás, se tornando o “zapeador de televisão”. Atualmente, fala-se no flâneur digital, aquele que navega no espaço virtual dos celulares e computadores, interagindo com suas redes de informações infinitas.
Como o flâneur é alguém que absorve naturalmente diversas imagens sob a percepção distraída, Benjamin defende que ele pode adquirir novos hábitos de maneira inconsciente. Por isso, o autor acredita que o Cinema pode ser a arte ideal para moldar novos costumes, uma vez que seus espectadores estão distraídos com o filme em si. Em resumo, essa é a ideia apresentada por “Flânerie 2.0”, curta ensaístico da pesquisadora e diretora francesa Chloé Galibert-Laîné. Ao versar sobre o flâneur digital, Chloé já adiantava um tema fundamental de sua filmografia, que perpassa pelo formato de desktop movie.
Uma peculiaridade do espaço cybernético é a sua própria contradição interna. Por um lado, nunca se teve tantas informações (imagens, vídeos, textos, dados…) à disposição do usuário. Por outro lado, esse acúmulo significa uma própria negação da percepção, já que o ritmo com que as informações chegam é sempre maior do que a velocidade que o ser humano consegue absorver. Ou seja, com a necessidade de dividir a atenção entre as diversas sobreposições que se dão no campo do olhar, olha-se tudo, mas nada se enxerga. Consciente dessa contradição do cyberespaço, Chloé realiza em seus filmes uma espécie de curto-circuito informacional: nunca há apenas uma informação em tela, mas excessivos elementos que vão interagindo simultaneamente. Abas de internet são postas lado a lado, um vídeo aparece ao lado de um texto ou de outro vídeo, uma narração surge em cima de um texto, e desse jeito continuam os diversos choques. O enquadramento do plano é totalmente saturado, impossibilitando a distinção entre o que é informação principal e secundária. Captando fragmentos do todo, o espectador de um desktop movie é engolido pelo próprio sistema, à medida que percebe informações sem conseguir se fixar em nenhuma delas – tal como um flâneur.
Se não há como a percepção humana resistir contra o ritmo imposto pela máquina, Chloé mostra saber hackear as regras do jogo e faz da limitação humana a força de seus filmes, seguindo o fluxo das ondas informacionais e mantendo o movimento. Ao assumir a característica de uma flâneur, o próprio ato de vagar pelos espaços digitais se torna mais importante do que o destino de suas investigações. Conforme Bergson e sua ideia sobre o Novo, a essência de uma coisa sempre aparece no curso de seu desenvolvimento. E assim se dão as buscas de Chloé: passeando entre diferentes abas, surfando entre links, se permitindo errar no caminho, curtindo o labirinto que é a internet, e até caindo em digressões que pouco têm a ver com sua pesquisa inicial. Talvez seja por isso que o tema conspiratório seja tão caro à sua filmografia, já que o próprio impulso investigativo é uma forma de brincar com essa ideia de se manter em movimento, seguindo pistas e se perdendo por elas, criando novas direções sem saber o destino, e cada vez mais entrando numa espiral sem fim. Como mostra Forensickness, a internet é um convite à paranoia; o usuário que nunca se deixou ser contagiado por uma pulsão conspiratória, que atire a primeira pedra.
Por mais que no cinema “narrativo” o espectador normalmente seja conduzido a criar uma identificação com a/o protagonista, o desktop movie acaba por evidenciar ainda mais diretamente essa confusão entre ambos. Ao compartilhar seu processo de pesquisa com transparência, ao invés de eclipsá-los, Chloé não se coloca numa posição de vantagem em relação a quem vê seu filme, mas faz com que se sinta em um processo de aprendizado conjunto, gerando um sentimento de recompensa e confiança mútua. São nessas variáveis que o cinema de Chloé Galibert-Laîné se mostra uma verdadeira pedagogia da imagem.
Com uma estrutura baseada em uma relação tríplice, encontra-se sempre em seu Cinema um padrão de três camadas. Há uma imagem pré-existente, a da investigação de Chloé sobre ela e a interpretação do espectador, que é tanto sobre a imagem quanto sobre a investigação. Filiando o espectador ao seu olhar em um primeiro momento, a realizadora faz questão de gerar uma quebra posterior, botando em dúvida sua própria figura enquanto narradora confiável e ativando uma paranoia naquele que assiste. Se aparentemente isso contradiz a ideia de “pedagogia” no Cinema de Chloé, na verdade, essa sua atitude só reforça como ela busca ensinar o seu “aluno” a desconfiar daquilo que ele recebe, exigindo que se saia de um estado passivo para uma percepção ativa.
Em Watching the Pain of Others, que analisa as imagens do filme Pain of Others (de Penny Lane), a diretora inicialmente leva o público em uma direção, se perdendo no seu flânerie, apenas para romper com ele no meio. Inserindo uma informação que reconfigura tudo que fora apresentado até aqui, ela se evidencia como manipuladora e criadora de uma narrativa. Essa enganação é o suficiente para ativar o espectador, que se sente duplamente traído (por Penny e por Chloé), passando a questionar todas as imagens que está vendo. O que importa não é descobrir qual é a opinião final da diretora sobre o tema que permanece em aberto, mas sim que as imagens e suas narrativas sejam postas em dúvida. Similar procedimento é realizado em Forensickness: tendo como base o filme Watching the Detectives, Chloé questiona a hiperanálise das imagens na era digital, que chega ao nível mínimo dos pixels e rapidamente vira uma paranoia coletiva. Ao mesmo tempo, em uma aparente contradição, o que a própria faz é hiperanalisar Watching the Detectives com Forensickness. Com muito bom humor, ela mesma reconhece ter caído no estado paranoico do filme.
Diante dos dois exemplos, chega-se a duas conclusões. Primeiro, que Chloé percebe uma ideia de viralidade no cyberepspaço, o que acontece quando ela adquire a paranoia de Forensickness e quando ela acha que está com a doença discutida em Watching the Pain of Others. Segundo, que ela cria um método para sua pedagogia, consistindo em mimetizar com autoconsciência aquilo que ela busca criticar – inclusive estando disposta a sacrificar sua credibilidade com o espectador para plantar dúvidas nele, por entender que a contradição ativa a percepção de processos antes escondidos. A cada clique que abre uma nova página, uma porta se abre para um mundo desconhecido a ser explorado, uma possibilidade de anular e reconfigurar todo o espaço anterior com suas informações. Assim, seus filmes se tornam uma investigação do que significa a própria atitude de investigar, uma autofagia metalinguística, evidenciando as características do desktop movie ao mostrar seus próprios processos.
Nesse sentido, é possível enxergar a influência do cineasta alemão Harun Farocki para a formação de Chloé, uma vez que revelar os meandros dos processos também sempre teve um papel central em suas obras. Por exemplo, ao mostrar as etapas dos bastidores de um ensaio pornográfico (Ein Bild, 1983) e um publicitário (Stilleben, 1997), o alemão faz o espectador refletir sobre a natureza farsesca das fotos que ele costuma consumir no dia-a-dia sem consciência dos seus processos. Tal como Farocki, Chloé também joga luz em cadeias produtivas invisíveis. Em Watching The Pain of Others e outros de seus filmes, ela mostra no programa de edição, por meio de blocos coloridos, como Pain of Others divide seu tempo entre as três protagonistas. Já em Forensickness, ela imprime três quadros da película do filme e bota um debaixo do outro, descobrindo que há uma continuidade das linhas que os cruzam. Ao refazer o caminho inverso de pegar um filme-produto e voltar para as etapas fragmentadas de sua cadeia produtiva, Chloé revela estruturas de montagem antes escondidas.
Tanto em Farocki como em Chloé, há uma herança de Bertold Brecht e seu teatro político. Busca-se o engajamento do público, que deve tomar parte do processo analítico das imagens, adquirindo uma atuação despertada. Há aqui uma aproximação que também passa pela ideia exibicionista do Cinema de Atrações, termo cunhado pelo historiador Tom Gunning para falar de parte do Primeiro Cinema que rompia o mundo ficcional ao solicitar a atenção do espectador. Sendo o poder único do Cinema a capacidade de “fazer as imagens serem vistas” (Fernand Léger), Chloé e Farocki fazem do invisível algo visível, o que significa uma “experiência que consiste em examinar indefinidamente uma determinada imagem, encontrar um sentido ao que, à primeira vista, parece um caos de forma sem significação” (Paul Virilio).
Falecido em 2014, Farocki teve sua carreira marcada pela investigação do avanço tecnológico e as suas formas de representação, atravessando a história vista por fotografias tiradas de aviões de reconhecimento, imagens televisivas e amadoras, câmeras de segurança, simuladores virtuais e videogames. Logo, um caminho natural que o cineasta poderia ter seguido, caso ainda estivesse vivo, seria o da exploração do cyberespaço através do desktop movie. Sem jamais saber como seria esse futuro hipotético, hoje é possível olhar para o presente e enxergar Chloé Galibert-Laîné como um dos nomes mais promissores na continuidade ao legado farockiano, uma precursora no enfrentamento crítico dessa nova tecnologia que deve ser desbravada e colocada sob interrogatório.
“Dante, maravilhado, soube por fim quem era e que era e abençoou suas amarguras. A tradição relata que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar, nem mesmo vislumbrar, porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens”
(Inferno, I, 32 – Borges)
Introdução (… Minhas memórias de Godard)
Recentemente para um documentário exibido em uma grande mostra sobre Jean-Luc Godard no Rio de Janeiro a primeira experiência com a obra do cineasta Jean-Luc Godard foi-nos interrogada. Uma memória de um primeiro contato com a obra do cineasta franco-suíço. De pronto, sem titubear e já com certa dúvida – que beira sempre a memória – uma resposta: o filme de 1968 sobre os The Rolling Stones, “Sympathy for the devil” ou “One plus one”[1]. Essa aparente ambigüidade, envolvendo a certeza e a dúvida, parece tanto legitimar a relação entre cinema e arte de lembrar e esquecer quanto a ímpar importância das imagens e do imaginário godardiano para a cena do obscuro e complexo contemporâneo de homens simples como Godard, você e aquele que deu aquela resposta.
Parece surgir na teoria do cinema uma espécie de “mnemocinema” que passeia pela mente quando somos perguntados sobre um filme, em particular sobre um filme de um cineasta tão inventivo, intrigante e intenso como Godard. Ao mesmo tempo como o artista insiste em parte de sua obra, pensando o cinema como música[2], por exemplo, lembrar como primeira experiência um filme permeado por uma canção que tem em uma de suas versões o título de uma famosa faixa da banda de rock The Rolling Stones pode significar que o cinema como bradou sinestesicamente Abel Gance é mesmo música da luz.
A relação entre cinema e memória – que vem ocupando parte de minhas pesquisas – que aqui converte-se em ensaio foi recortada por outro criativo cineasta e ajuda, a guisa de introdução, a entender sobre essa obra de Godard a partir de uma música de uma banda de rock. Sobre a memória, observa Andrei Tarkovski que ela é “algo tão complexo que nenhuma relação de todos os seus atributos seria capaz de definir a totalidade das impressões através das quais ela nos afeta”. (1990, p. 64). Esse afeto, no caso do cinema de Godard, beira uma simpatia. Gostamos ou simpatizamos com a obra de Godard se estivermos abertos a ultrapassarmos essa totalidade de impressões em busca de uma caleidoscópio de sensações, superar essa completude de impressões ou esse mal de arquivo, que Derrida se refere por vezes à memória. Permitir que Mnemosyne, essa musa que, segundo Jean Pierre Vernant, “preside, como se sabe, à função poética” (1990, p.72), adentre nossa relação com o cinema, e, mais ainda, penetre ritmicamente, musicalmente nossos sentidos. Isso nos parece de certa forma a compreensão da proposta de cineastas como Godard. Arte como musa, museu de mundos e memórias.
Duas ou três coisas que sei sobre ele (JLG)
Ao menos algumas informações sobre o cineasta são importantes para esse momento antes de passarmos ao filme, antes de analisarmos ou ensaiarmos com Godard não somente uma gravação de uma música, mas uma ode aos acontecimentos de maio de 68, a contracultura, a liberdade, uma leitura dos media e luta (inglória) como motor da historia. Um breve trecho de Jacques Aumont aparece no sentido de pensar essas duas ou três coisas que são relevantes para compreender Godard:
De início, haveria a reflexão sobre a montagem, tema teórico principal do jovem Godard. Entre seus primeiros artigos, um afirma que não existe decupagem clássica, caso entendamos por isso um modo de filmar constituído e congelado de uma vez por todas, “tal ponto que equivaleria a um modo de pensamento autônomo, aplicável a qualquer tema com igual sucesso”. O que existe é a direção, isto é o estilo, a ser redefinido por cada cineasta e até por cada filme; é o conteúdo que faz a forma e não uma forma gramatical que enquadra e transmite o conteúdo. Um outro artigo precisa que a direção às vezes pode assumir a forma da montagem, porque dirigir é exercer o domínio sobre o espaço, ao passo que montar é exercer esse domínio sobre o tempo. “se dirigir é um olhar, montar é um bater do coração…” (AUMONT, 2004, p.54-55)
Uma grande miríade criada pelas imagens e sons que Godard montou ou dirigiu interage com e a partir de lembranças e esquecimentos. As camadas e bricolagens de Godard em seu flerte com o vídeo ou as montagens em jump cuts e a gagueira dos primeiros filmes, essa gagueira ou “dupla captura, nem uma reunião, nem uma justaposição, mas o nascimento de um gaguejar, o traçado de uma linha quebrada” (DELEUZE, 2004, p.20) são memórias do cinema e de um mundo gago, convulsivo em eternos embates e eternas enchentes…
Em memórias vivas, nascentes em camadas audiovisuais, em acúmulos de experiências com o som e a imagem. A memória como reino da exploração cinematográfica se torna terreno da imaginação. O cinema ao dialogar com o próprio cinema ou, como afirma o primeiro parceiro de Jean-Luc Godard, François Truffaut, ao pensar que todo filme deve exprimir uma visão de mundo e uma visão do próprio cinema nos faz pisar nesse terreno mnemônico único e das multiplicidades, individual e coletivo. Parmenídico e Heraclitiano. Cinematográfico e anticinematográfico. Ambíguo.
As referências ao próprio cinema (como artifício da memória) que passeiam na nouvelle vague de Truffaut e Godard entre outros surgem primeiramente em “Acossado” (À Bout de Souffle, 1959); referências, por exemplo, aos gêneros, aos atores, ao próprio cinema; e mais tarde em “Alphaville” (1965), no qual a memória aparece no próprio computador ou nas categorias criadas e recriadas por Godard. “No caso de Alphaville, são três categorias: “o controle ou o cinema de ação (típicas do cinema americano), a memória e o cinema da imagem afeto […] e o amor e o cinema da imagem-tempo cinema do pós-guerra” (PARENTE, 2009, p.103). Intercambiáveis essas categorias funcionam a nosso ver sempre partindo da memória. Seja em “Sympathy for the devil” objeto de nosso ensaio, arquivando a contestação e a música dos anos 60 ou mesmo em seu último filme “Film socialisme” (2010). Godard com uma preocupação arquivística coleciona momentos do cinema ao longo de sua longa carreira. E coleciona como Benjamin problematizou a obsessão do colecionador: “toda paixão confina com um caos, mas a de colecionar com o das lembranças” (2000, p.228).
Sobre a sintaxe de Godard em “Sympathy for the devil” (… ou “One plus One”)
Mostrar o processo de uma música sendo gravada com toda seu liveness, sua radical e reforçada presença, esse ato se fazendo a partir de uma ideia de Mick Jagger é a forma como Godard começa a mostrar o processo de realização do seu próprio filme, do ambiente que um filme em 1968 também vivia. Na obra “Sypmapthy for the devil” esse acontecimento de uma gravação se desdobra em outros. Se uma banda de ingleses brancos faz som ou tenta fazer som do blues negro, Godard problematiza a questão do racismo colocando os Panteras Negras desfilando armas e conceitos dos criadores dos Black Panters LeRoi Jones e Eldridge Cleave em um ferro velho abandonado. Uma sintaxe sonora sedutora, sensorial, sexual. E a partir daí desdobram-se fragmentos da letra de Jagger para discutir a questão do feminismo, da indústria cultural e da contracultura nos anos 60.
Intercalando o processo de gravação – a música vai ganhando novas nuances a cada bloco que Godard cria para o filme – com planos de pichações em muros, carros, lojas que mostram a criação de palavras como Cinemarxism ou Sovietcong ( contrações e junções de termos e expressões, videoescrita ou cinepalavra), o filme é narrado revelando algumas vozes para a partir da música falar dos problemas que maio de 68 estava imerso. Essas vozes não veladas, não veludosas são a da música, a das leituras de textos escolhidos a esmo, a da luta dos líderes negros, da mulher entrevistada e a todo tempo negando a própria entrevista, do vendedor de revistas e a do próprio Godard, como um maestro. Não como um produtor, jamais como um produtor, pois os produtores do disco dos Stones “Beggars Banquet” que contém a música título do filme, são ironizados, captados em planos sem importância, de lado, entre as baias do estúdio. Um filme entre baias e barricadas, entre música e palavra. Entre, Godard sempre entre entradas.
O artista rege essas vozes dirigindo um filme sobre o processo de criação e ao mesmo tempo mostrando o seu processo de criação. O plano final talvez seja o grande exemplo que Godard usou para pensar o cinema aplicando sua conhecida frase: “Tudo o que é preciso para se fazer cinema é uma mulher e uma arma”. Nesse plano Godard entrega seu cinema para o espectador, com uma mulher supostamente atingida por uma bala sendo levitada por uma grua, toda essa concepção processual se conclui elipticamente. Talvez, o filme só faça sentido se for assistido em loop[3] (talvez Godard seja o cineasta mais circular da história do cinema, talvez, talvez, talvez…) Nesse momento a música muda e os 90 minutos que a música Sympathy for the devil foi executada cede lugar para outra canção. Godard costumava dizer que descrever é observar mutações. E o loop é o primado do mesmo na mutação ou a diferença na repetição, o eterno retorno do diferente.
Com as mudanças na condução da música, Godard vai mostrando as mudanças no mundo, as mutações de sua concepção do próprio filme que ora nos enclausura em estúdios, quartos de hotel ora nos libera pelo verde de uma floresta ou pela água do mar. “Dada uma imagem trata- se de escolher outra imagem que induzirá um interstício entre as duas. Não é uma operação de associação, mas de diferenciação” (DELEUZE, 2005, p.217). O “entre” surge novamente. Essa diferença se dá nos contrapontos entre os processos de realização musical e cinematográfica e no processo maior a vida e sua potência. Imagens salvando a honra do real que Didi-Huberman tão bem lê em Godard no livro “Imagens apesar de tudo” estudando as imagens de George Stevens da abertura dos campos de Auschwitz que nos chegaram.
“Assim, em Godard, a interação de duas imagens engendra ou traça uma fronteira” (DELEUZE, 2005, p.18). É o próprio corte que nos guia, inconscientemente pra transpor as diferentes sintaxes que Godard cria. As fronteiras em “Sympathy for the devil” ou “One plus one são menos densas como por exemplo em “História(s) do cinema” ( onde a prática de um bricolleur, de um arquivista beirando o caos dão as cartas) e mais densas de serem transpostas do que em “Weekend à francesa”, filme em que a dica (“isso não é sangue, é vermelho”) nos conduz num road movie godardiano sobre a condição humana desgastada, desvelada e desbravada.
Em Sympathy são as junções de palavras, de texto-música-imagem que nos fornecem pistas para a proposta de Godard de um filme sobre uma banda. Também a própria contracultura e indústria da cultura servem de signo para compreender que o que está por trás do filme é a criação, o pensamento fazendo filme, o filme como o próprio pensamento. Como Deleuze observa “Godard gosta de lembrar que quando os futuros autores da nouvelle vague escreviam, não escreviam sobre o cinema, não faziam uma teoria dele – era já, a sua maneira de fazerem filmes” (2005, p.331). Num filme com diferentes níveis de texto como esse sobre os Stones, Godard continua (re)escrevendo. Essa ideia de sempre produzir, seja como editor de textos, videoartista, cineasta pode ser lida no filme em questão e em ensaio através da ideia de produzir uma música.
Tentando mostrar o invisível a partir do que se vê, a música sendo composta, recomposta e decomposta, entendemos porque o “próprio Godard diz várias vezes que é bem disto que se trata: é preciso “ver um roteiro”, ou seja “ver como se passa do visível ao invisível”” ( DUBOIS, 2004, p.160). Godard nos faz ver por entre o cenário e objetos do estúdio, o real de uma época. Frequentemente quando se referem ao filme dizem que Jean-Luc Godard ficava menos no set de filmagem (o estúdio em Londres) e mais na França ainda repercutindo e agindo nos movimentos de maio de 1968. Cineasta-crítico, crítico de ser cineasta.
Das poucas críticas que ficaram sobre o filme uma das mais curiosas está num livro sobre cinema e rock. Garry Mulholland exalta o filme, sintetizando-o, se isso pode ser concebido como possível.
Sympathy for the devil é uma película maravilhosamente filmada sobre os Rolling Stones, compondo, ensaiando e gravando as evocações mais dançantes do mal, intercaladas com sátiras surreais de Godard sobre o tema da revolução contracultural de 1960 e, ironicamente, a voz de velha guarda de Sean Lynch lendo material sobre pornografia e a guerrilha. Não é nem um documentário, nem uma obra de ficção linear, mas um discurso ambíguo, irritante e hipnótico sobra a nova política de esquerda da época. Os Stones, nesse sentido são apenas adereços, não são entrevistados e não têm falas, a não ser coisas chatas com a banda em ação. (MULHOLLAND,2011, p.107)
Nesse breve texto encontramos a questão da simpatia que esse ensaio de um ensaio tentou dar conta também brevemente. Uma simpatia pela imagem e pela memória da música, da poesia e do arquivo, no caso as referências aos textos dos fundadores dos panteras negras, a dissolução do intelectualismo ironizando como no exemplo da entrevista com Eve democracy, interpretada por Anne Wiazemsky, com os produtos das industria cultural, revistas e quadrinhos na sequencia dentro da loja de revistas.
O que era pra ser um rockumentary se transforma em uma questão da memória. Como afirmou Godard, “quando filmamos uma paisagem que apreciamos, lembramos; fazemos uma citação: uma casa, uma árvore, uma cidade. Tudo no cinema é uma questão de memória”. Como a memória é uma constante dança entre lembrança e esquecimento[4], nos Stones de Godard convergem os infinitos loops de gravação e os esquecimentos que marcam as mudanças de andamento, a perplexidade de um Brian Jones que parece nunca se lembrar da música em contraponto a um ativo Keith Richards criando e solando entre as sessões, gerando a música e esquecendo as versões passadas de uma música original simples que se transforma ao longo da criação em uma das peças mais importantes do disco e da carreira dos Stones. Conflui a invenção com o inventário que Godard já parecia antever para o seu cinema (e que só iria anos depois concretizar com seus trabalhos em vídeo) evidenciado nos blocos que parecem compor uma lista poética de temas dos anos 60 e só há lista poética, nos mostra Umberto Eco, “porque não somos capazes de enumerar alguma coisa que escapa às nossas capacidades de controle e denominação” (ECO, 2010, p.117).
Convidado por ser o mais inventivo cineasta da época para fazer um filme sobre uma banda de rock, que poderia ter sido os Beatles, Godard faz aquilo que ainda nos causa tanta reverência: Funde linguagens, sobrepõe ritmos e figuras para mais uma vez mostrar os deveres de um autor, o compromisso ético com o espectador, sem abrir mão da estética de uma hiperestética como polemizou McLuhan (1964). O compromisso mais que verbal, mas visual com justo uma imagem, uma caricatura dos caricaturáveis Jagger, Richards, Jones, Watts e Wyman. Uma imagem justa.
Num filme sobre uma banda, Godard é um caso a parte. Ao botar a banda à parte, usá-la como adorno, Godard é adorniano ao, de certa forma, propor um filme como forma, atestando que “o ensaio se recusa a deduzir previamente as configurações culturais a partir de algo que lhes é subjacente, acaba se enredando com enorme zelo nos empreendimentos culturais que promovem as celebridades, o sucesso e o prestígio de produtos adaptados ao mercado” ( ADORNO, 2003, p.16-17). Não adaptado ao mercado fonográfico, nem mesmo cinematográfico, Godard com uma simpatia radical pelo outro (ou pelas histórias dos outros) cria um filme que dentro de sua obra soa estranho como acreditar em diabos nos indagando sobre que diabos pode o homem simples acreditar.
Esse texto foi originalmente escrito para a mostra Expo(r) Godard: Viagens em utopia com curadoria de Dominique Païni e Anne Marquez Aída Marques. Uma versão mais sintética foi apresentada no teatro da Maison de France ao lado de José Carlos Monteiro. Ele comentava “Je vous Salue Marie” e eu “Sympathy for the devil” em 03 de junho de 2013.
Referências
Adorno, Theodor. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.
BAL, Mieke. Setting the stage: The subjective mise en scène. In: DOUGLAS, Stan; EAMON, Christopher (eds.). Art of projection. Ostfieldern: Hatje Cantz, 2009.
BORGES, Jorge Luis. O fazedor. São Paulo: Cia das letras, 2008
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas Vol II. São Paulo: Brasiliense, 2000.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.
ECO, Umberto. A vertigem das listas. Rio de Janeiro: Record, 2010.
MULHOLLAND, Garry. Popcorn. Sao Paulo : Seoman, 2011
PARENTE, Andre. Os três regimes deleuzianos da imagem cinematográfica em Alphaville. In: FURTADO, Beatriz ( ORG.). Imagem contemporânea Vol.1. São Paulo: Hedra, 2009.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990.
[1] “One plus one” é a versão do diretor para “Sympathy for the devil” rodado em 1968, após a querela com a produção do filme. Godard no lançamento da versão com a qual ele não concordava invade o cinema com um cheque para reembolsar o público e um convite para que assistissem a versão que ele batizou como “One plus one”. Os filmes completam 45 anos e esse ensaio é também de certa forma uma homenagem a eles.
[2] Em “Para sempre Mozart” Godard explicitamente diz ter partido de sons para concepção da obra. A ideia era fazer uma sinfonia visual. Ainda podemos refletir sobre esse tema com as observações de Deleuze sobre filmes como “Carmem”, obra na qual “as atitudes do corpo jamais param de remeter a um gestus musical” ou “Salve-se quem puder (a vida), onde a música “constituía o fio condutor virtual indo de uma atitude a outra, “que música é esta?”, antes de se manifestar por si mesma, no final do filme” (2005, p. 233-234).
[3] Em síntese a repetição de sons e imagens, ou como sintetiza Mieke Bal: “A cada momento que o giro de qualquer número termina eu digo a mim mesmo: “Mais uma vez” E é invariavelmente durante uma dessas repetições que eu fico sensibilizado, por ver repetidamente, pela teatralidade do que acontece na(s) tela(s) em relação com o que é narrado. Teatro, luz e rebites: eles podem ter uma relação intrínseca entre si?” (BAL, 2009, p.167. Tradução nossa).
[4] Nietzsche é o responsável por reintroduzir o esquecimento nos estudos de memória. Não se trata de tudo guardar, mas de ter espaço para as perdas. “Bem-aventurados os esquecidos, pois desfrutam até dos próprios erros” é uma referência a Nietzsche no belo filme sobre a memória “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”.
“Certamente, se falamos de máscaras, é necessário antes pensar que elas dissimulam faces”.
George Steiner, Real presences: is there anything in what we say?
“Pour saisir la verité, il fault jouer la comédie!”
Albert Camus citado por Paul Vecchiali na epígrafe de Femmes femmes (1975)
Canyons paisagísticos foram a situação essencial (cadre, décor, eixo de câmera, e é claro pv) daquela gesta clássica por excelência do western; a panorâmica, tropo elementar do sub species, mimetiza o olhar do pioneiro sobre as extensões a percorrer e as tribos a abater, da distância do canyon-loggia-stand; aferia-se topograficamente os entes que a cavalgada armada se incumbiria de amealhar, pois foi segundo a Bild metafísica da perspectiva de Alberti que o cinema clássico conheceu o mundo: representatio. De alguma maneira, podemos pensar que o in loco de suas investidas tópicas, telúricas – fiquemos no western como paradigma respectivamente de Bild-representatio topográfica e loco-nunc telúrica, reflexão e ação coordenadas segundo uma mesma vontade de potência onívora- foi a máscara de um projeto totalitário de possessão do ser aí (da-sein) pelo pensamento, que de Aristóteles a Hegel e de Hegel a Griffith e Anthony Mann foi Una; e avancemos mais um tanto: a julgar pela relevância da panorâmica no western clássico e pela preeminência do ponto de vista ‘plongée de Deus’ a que o cowboy se identificava das alturas de seus desfiladeiros de eleição, a stylo mortuária que vimos em ação no projeto filialmente moderno da nouvelle vague já experimentava seus tentáculos de apreensão do mundo pela representação no seio do cinema clássico: não apenas o portrait de uma experiência, mas um experimento-experienciado na tela.
O Bonitzer de Decadrages, Daney, Biette, Deleuze e Schefer já haviam, aliás, nos alertado que a ‘janela para o mundo’ clássica projetava menos o mundo como conjunto de fenômenos e relações fenomênicas que se dão para o homem do que como um cosmo urdido, entalhado, estruturado pelos asseclas do próprio homem. E quais seriam estes? Proporção, simetria, causalidade, Arché e teleologia, por exemplo; How green was my valley (Ford), Only angels have wings (Hawks), High tension (Dwan) já nasceram infectados pelo selo da pata de Cain do Logos, dívida para com a linguagem que Biette, falando de Eyes wide shut de Kubrick(!), designava com a lapidar fórmula La distance post-morten est son nombre d’or.1 Os clássicos, porém – razão da suspeição ideológica da Cahiers maoísta para com suas obras -, nunca revelaram enquanto tal este déficit para com o significante, preferindo antes rejubilar o espectador com a jouissance da identificação supostamente mimética e secretamente metafísica da “janela com o mundo”: les mots et les choses, les mots sont les choses.
Em 1982, ao final desta história, reencontramos talvez o seu começo sem porém sair do lugar. Acalmem-se, que já me explico e retifico. O plano final de Loin de Manhattan, filme realizado pelo supracitado Jean-Claude Biette em 1982 no cadre de produção da Diagonale de Paul Vecchiali- empresa de cinema que para mim nos deu nossos mais consequentes, ponderados, ruseiros espécimes de cinema tardio- realiza o prodígio de sincretizar estas trajetórias que historiadores do cinema preguiçosos ou lenientes haviam nos acostumado a julgar opostas e mesmo irreconciliáveis: de Pais (clássicos) ou de Filhos (modernos). Sonia Saviange, que se decide a abandonar o seu ‘mundinho’ diletante, pequeno-burguês de marchands e consumidores de arte para finalmente experimentar uma paixão por um artista clássico, desses que pintam paisagens que carregam na alma e que antes preferem a companhia dos campos de miosótis que dos homens in vitro, demasiado credores do julgamento: sim, desses que pintam paisagens in loco, que ainda acreditam na identificação entre aquilo que é e aquilo que se representa, como um dia os clássicos…e Biette nos dá um plano genialmente sintético, tinto de ironia crepuscular para ilustrar este imbróglio genealógico; la Saviange abandona o ‘jardim de Versailles em miniatura’ que é o décor central de deambulações do mundinho ‘tardio’ e, enfim neo-clássica, toma um revelador atalho para reencontrar o campo de miosótis onde seu amado pinta óleos fidedignos à obra da Natura: ela desaparece detrás de um muro pintado com uma natureza-morta um tanto mais do que naïve, com sua indefectível janela (para o mundo) enleada por trepadeiras e rés de mato ralo; da linguagem não se foge, foi-nos ensinado dos rabinos de Hilel a Hölderlin, mas os artistas tardios experimentaram-experienciaram com particular acuidade este espinho na carne que, como o de São Paulo, foi obra daqueles que chegaram tarde demais, uma vez que a Infinitude da Presença ficara com a Promessa dos profetas da Israel pretérita.
Sim, uma natureza-morta…para introduzir esta blague final, onde os neo-clássicos são desmascarados da forma mais classicamente nonchalante deste mundo, Biette dá-nos uma crônica leggera, cheia de piparotes humorísticos, poses e perfis fecit de ‘ plano sequência, luz natural e locação”, cinema de ação cerrado por onipresença da fala- variamente divertida como meditativa sibilina, ‘rugosa tartamuda proletária’ (Lemoine, saído das Belas maneiras de Guiguet) ou ‘cínica-lapidar-bourgeoise’(Delahaye, Bouvet e Bouvet) como oracular-rêverie-diva (Laura Betti)-, atenta às paisagens como aos homens presentes mas infiltrados pelos jogos de linguagem (a assinatura bietteana por excelência, aliás), contracampos de desaparições e substituições mèlierianas, e discurso ainda, como paisagens e cachorros a nos assistir assistindo…Longe de Manhattan é um filme festivamente idiossincrático, modulado pela impressionante empreinte de e documentado pela féerie elementar, cujo paradigma foi dado pelo Aroseur arrosé, de que o espetáculo mais fascinante da vida consiste em ver alguém chegar ou partir do campo, e que o novelesco mais digno de ser encapsulado em um portrait ( de conjunto) cinematográfico consiste na captação das reverberações mediúnicas destas chegadas e partidas, vagas estas que o discurso, talvez a empreinte de primordial, cristaliza exemplarmente, como raccorda ao mais-que-perfeito do imaginário e ao pretérito imperfeito da rememoração. Mas sistematizemos um itinerário tão prenhe de bifurcações, gioco exuberante onde a secreta dívida clássica para com o Logos se revela mais brincante, criticamente fascinante como fascinantemente conhecedora.
Van Gogh dizia em uma carta ao fiel Théo que queria pintar cafés onde houvessem sido cometidos crimes; o gouache negro mercurial da paleta de Van Gogh já é suficientemente conhecido para que me perca em digressões impressivas aqui, mas o que devemos reter é que René Dimanche, o pintor de quem se fala frequente, obsessivamente em Longe de Manhattan– centro manifesto e ocluso de todas as interlocuções do filme, seu leitmotif e moto perpétuo-, se considerarmos para fitos esquemáticos o pintor dos girassóis como um expressionista, seria o anti-Van Gogh. René, por exemplo, recusa de maneira atrabiliária que críticos e la Saviange (aspirante a discípula e sedutora ocasional) interpretem seu silêncio criativo de 8 anos em termos existenciais, passionais, ‘efeito de uma desilusão amorosa que lhe ocasionou este bloqueio terrível”. Não; Dimanche não é expressionista, romântico, devedor de ‘casos’, estudos de caracteres e inspirações; ele é um artista classicista, e isto, de Wörringer a Heidegger significa uma arte que exprime mundo (paradigma clássico ühr: Giotto; paradigma neo-clássico-moderno, com quem podemos identificar Dimanche: Cézanne). Mais precisamente, de que mundo se trata? Certamente não aqueles com que aprendemos, desde meados dos 1800, a identificar a obra: o mundo interior, Ego imanente ou transcendental, pático lírico ou patológico, “To be or not to be” ou “Je est un Autre”, de que a obra é a expletiva manifestação; trata-se antes daquele mundo ‘Logos da res’ que, de Fídias a Michelangelo, de Michelangelo a Rafael, de Rafael a Corot, de Corot a Courbet e de Courbet aos impressionistas frequentou a pintura como seu objeto privilegiado de punctum aurático: a paisagem. Mas não começamos o filme com as montanhas (sim, esta é a atual fase de Dimanche) ‘naturatas’, e sim com estes monumentos naturans (processuais, históricos) com que os homens se apoderaram da Cidade, disseminando seus possessivos índexes de presença sobre seu planalto escarpado, aliás como ontem as caravanas dos westerns pioneiros: é um terraço de onde se veem terraços, varandas, telhados pontiagudos e varais endomingados; percebem o sentido da analogia com que comecei este texto? dos canyons de desfiladeiros do western às coberturas da burguesia aisée, temos esta mesma distância de apreensão totalizante- sim, uma Bild de-, para quem os entes se dispõem em um circuito de meios para obter fins (e o Fim ürh: o segredo de Dimanche, como ontem o sangue Comanche); tardios, porém, aqui tudo deve ser trivialmente elíptico, ‘smooth mas de arestas aceradas’ pelo corte em stacatto: exatamente, esta é a maniera deste neo-clássico de ser tardio: incisões, mas no seio do marasmo hebdomadário; rupturas de tom, mas emasculadas pela digressão casual; intempestivos raccords, porém da ordem dos significantes, já que estamos diante de um filme clássico americano, além de uma sonatina francesa, afinal: ainda somos clássicos, pois elegantes (“O classicismo é uma arte da elegância”, Jean Renoir).
Paulette Bouvet, mãe de Christian (nosso crítico obcecado em conseguir uma entrevista com Dimanche e ator do mesmo nome) conversam, mas ela também pinta ocasionalmente, entretida em reproduzir talvez a curva em L da chaminé; e Biette, sagaz sem alarde como ruseiro sem máscara estará sempre cá, ainda lá para flagrar o maquiavelismo sinuosamente felino de Chistian em telefonar, providenciando ‘ficções’ e pessoas para chegar a Dimanche, mas igualmente bocejar em dó reticente e exercitar os dedos dos pés em um suntuoso close de metacarpos convulsos pela irresistível coceira; ainda retoma-se a mãe, e num contracampo fulgurante, que sem dúvida surgiu da revisão na Cinemateca daqueles tantos filmes em que Mèliès interpretou o Diabo, reaparecem ambos com outros traje ( cor de roupa, enquadramento, talhe de), papo outro e casualidade ‘chá das cinco’, apenas para ao cabo de minuto tudo retomar-se em Dimanche, ‘como se nada’. A chegada de Sonia Saviange à cobertura, diva ataráxica de perfil angelical- physique du rôle adequado à sua função primeira no filme de musa e isca neo-clássicas de Dimanche- será carnivoramente intensificada por uma citação do Modot em L’âge d’or: Christian devora as mãos untuosas da Melusina envelhecida.
Mas permanecemos ‘smooth and soft’, pois nada deve abalar o pace fluido de Biette senão as turvas pinceladas da stylo do próprio Biette, sempre compensadas no próximo contracampo por uma retomada do pace regular, bassocontinuo de calmaria descontraída. Este será o movimento serpenteante de todo o filme: imprevisto e concertante, necessário e ondulante, retamente fatal, de curvilínea embocadura; um metrônomo corrigido pela graça ática tão francesa! Biette nunca nos deixará deduzir ou depreender um sentido estável para o filme porque haverá sempre no itinerário de Longe de Manhattan fiapos e estilhaços de gestos, conversações pegas no último minuto, trama canora de pássaros e espessura de fá imprevisto de mulher para impedir a cristalização do filme em uma Summa orgânica, e sobretudo fechada: como os melhores espécimes do cinema tardio de que tenho notícia (Corps à coeur, Une sale histoire de sardines, Das nuvens à resistência, Les cinéphiles, trilogia folle de Rivette e Out 1, Love streams, a obra de Monteiro e o Godard de Passion e depois), Longe de Manhattan antes flutua e reverbera que fixa e ordena: estratos de ( histórias do cinema, tropos, inflexões de atuação), jamais inteiramente integrados, jamais exatamente estabilizados pela soberania autocrática do auteur (aliás, um auteur.…?) Lembram-se do texto panegírico a Rohmer (mas também a Straub, Griffith, Pagnol), A borboleta de Griffith? “Os maiores momentos dos filmes de Rohmer são menos aqueles onde ele desenvolve sua acuidade psicológica única (…) do que aqueles em que capta, para além da linguagem falada, nos rostos mudos, nos olhares, no espaço, na natureza, o movimento quase invisível do mundo”.
Sim, o ‘movimento invisível do mundo’ é este contexto generoso de presença que farfalha, irisa e ondula os movimentos dos homens e das palavras em Longe de Manhattan: cachorros que nos contemplam partir, efeitos sem causa evidente e palavras sem nexo flagrante, ao vento outonal de uma festa que finou-se antes do apogeu, além deste ultra-close gourmandise do pé de Bouvet são, por exemplo, alguns dos espécimes que nos acompanham pelo itinerário do film in progress; mas esta onipresença do mundo também comparece tematicamente, por exemplo quando daquela misteriosa cena em que Saviange, pé avanti no caminho da clareira e do Dimanche entusiasmado por ‘flagrá-la’ in loco e pé atrás com a enervante possibilidade de que “tenha alguém nos seguindo”, reconcilia-se enfim com seu próprio passo ao ouvir a resposta do pintor: “Sim, o mundo está cheio de presenças; vento, luz”…mas será que ouvi bem? Rebobino o vídeo e rejubilo-me a confirmar que René também se interessa por pássaros: sim, um filme cheio de andorinhas e scherzi de Schubert.
Quando Biette, no texto sobre Rohmer, evoca-nos o ‘movimento invisível do mundo’, não lhes parece também um elogio enviesado a, respectivamente, Helena Blavatsky e Jacques Tourneur? Exato: de médiuns. O melhor de Biette é, como no melhor de Tourneur e de Rohmer, questão de mediunidade; mas para fazer justiça à ‘letra’ do filme, pensemos mais apropriadamente segundo a metáfora musical que é devida ao musicista Biette, e elejamos como o metrônomo de tudo a figura do interstício cromático, se auscultarmos com atenção o diapasão de sua montagem impressionista, feito de prolongamentos quietistas e intrusões vertiginosas, como o belicoso vento noturno numa maré feita para a placidez da manhã; se Biette, em um judicioso texto sobre o Bassin de John Wayne de João César Monteiro, falava com enfático de Revelação num certo Teatro do plano 3, o découpage de Longe de Manhattan invoca-nos antes a musicalidade, entrecortada e oscilante, da sequência, pois os planos do filme aspiram menos à autonomia antinômica do coup que à sua integração devaneante num espiral de minutos; reparem bem ( como ouçam): Longe de Manhattan é uma tempestuosa sinfonia de Bruckner – chiados de cigarras, volutas de Haydn, sombras e passos e frases soltas – , finamente retrabalhada para caber em uma sonatina de Busoni; aliás, precisamente lembram-se de ouvir Bach rearranjado por Busoni? Sim, tantos temas e variações de catedrais sempiternas, agora ‘reenquadrados’ em um terceto camerístico para salões de chá burguês: Biette, o miniaturista (arte tardia novamente: Paradjanov relendo os vitrais-Summa medievos segundo escrínios infinitamente pequenos ‘palma da mão e lente de celular’, em A cor da romã).
Esta não será a única duplicidade- no caso, cromática- do filme; ao longo de Longe de Manhattan (antes dizia-se, e bem: arcabouço) há a sua difração em uma dupla embocadura serial: antes de tudo, a linha causal ‘melodramática, mise en scène e cadre’ do Complot ( aqui, para abordar Dimanche e saber a razão de seu silêncio); mas esta será sempre percutida e tamisada pela linha ‘casual intempestiva ‘plano sequência e locação’ – sim, repito-me, como no Parto de Mozart -, do fá imprevisto de mulher, do ‘chá das cinco’ e do passeio das sete; lembremo-nos, para este propósito ilustrativo, da extraordinária cena em que Bouvet finalmente desce de sua cobertura ‘de Alberti’ e tenta convencer Saviange a seduzir o pintor para, a qualquer custo, descobrir a razão de sua inatividade de oito anos. Reparem neste plano (captura acima) arguto, ardiloso em que o mascaramento da personagem de Saviange, que nos furta o rosto neste eixo ligeiramente enviesado, abre o filme a uma insuspeita vertigem hermenêutica; thrillers de suspense, investigação sigilosa, sugerido terror se deixam inervar por este rosto que se nega; é pelo minimalismo genial de Biette (leitor da litote clássica, em situação agora completamente dessaturada de aura, casual-jornalística) que o espectador, co-partícipe suis, penetra no filme; mas em um mesmo movimento – e isto vocês não podem ver, mas perturba-nos e enleva-nos em off no filme -, o som direto nos presentifica uma tarde semi-chuvosa nos arredores de Paris depois do chá das cinco tomado em porcelanas de Sèvres! são bandos de andorinhas à espreita desses personagens exilados de thriller, e o plano recende ainda a fio elétrico desencapado de ruas ensopadas da chuva recente; na calçada, ressoam os passos de um homem de rosto turvo (gim barato? dívidas a resgatar?) e expedito beat de lord decaído, que conversara com Sonia minuto antes, distanciando-se para pegar o próximo trem; e não ‘podem ver’ que na vizinhança de ambos uma schubertiana invicta encontra um haydniano apóstata (dedica-se a Pergolesi, quando bêbado) para falar de Mozart?
Eu gostaria francamente de ler o que Proust, fenomenólogo eminente, teria a nos dizer sobre este plano extraordinário, infra e supra percutido por vastidão de impressões fugidias mas não menos incrustadas em nossa perceptivo reminiscente; sabemos que o fora de campo, segundo uma função herdada por exemplo da metonímia literária, pode presentificar-se por efração fantasmagórica no plano, da dimensão ominosa-cognitiva da câmera que se aproxima dos ombros da vítima no filme de terror (para” avisar ao espectador” do perigo iminente) à chã-desconstrutivista de um movimento abrupto de câmera onde se revela malgré lui a presença da câmera e artefatos de filmagem; mas o que Biette consegue ‘sem conseguir aqui’ (é esta precisamente a sua tática encoberta: fascinantemente crítica como vice-versa) é realmente extraordinário: a vida geral e a particular da Cidade, corpo movente e fremente de sinais; a presença dos ares molhados de chuva e dos passos crepitantes de pressa, como os stacatti sussurrados da schubertiana invicta.
Perdoem-me deter-me um tanto nesta sequência, mas o sonso de tudo merece uma inspeção com detida lupa; Bouvet fala para Saviange (toca-lhe o rosto com este expedito-descontraído que é o gesto mascarado por excelência do primeiro Biette, mas aqui intumescido com o mau-humor sestroso tão típico de Bouvet) que ela “deve tirar esta mancha negra do olho; ele não deve gostar daquilo, porque é o tipo de coisa que deve indispor o homem”; para leitores ‘do espírito’, devemos poder ler que Dimanche, pintor classicista, não deve suportar traço, franja, rusga de expressionismo na cara de sua iminente discípula: deve ficar claro para nós que o expressionismo é lido aqui como índex de máscara, e logo Dimanche reconheceria sob o angelical ataráxico de Saviange a máscara de uma demoníaca Musidora, que o queria devorar! é assim em Longe de Manhattan; grandes, decisivas questões do ser e do pensamento roçam a epiderme do mundo, mas esta deve permanecer intacta para que o fascínio ainda seja possível: não se pode aprofundar nada (elogio clássico da superfície, naturalmente) porque é o Mistério do que é que merece ser preservado; tudo aparece-nos de relance, ‘casual-descontraído’ e como se nada; não lhes parece ser este um método ideal para reconciliar a Jouissance clássica e o melancólico para-si moderno? Tudo saber, mas como se nada, brincando ainda? Para mim, sim.
Eu falei de Mistério? Perto do final – vocês se lembram, antes da festa funebremente irônica onde se celebra um livro escrito sobre Dimanche -, Biette nos oferece um monólogo revelador, pois se dá num plano médio onde dialogam com Sonia Saviange, perdida em si mesma, as folhas e o vento ao fundo; ela não está mais maquiada, travestida (Musidora?), ‘encenada’, , ou pelo menos esta máscara não lhe cola mais na pele, pois abandonou o thriller “Segredo de René Dimanche” e acedeu à vita contemplativa (aliás, praticada fervorosamente por alguns artistas a que admiramos), vita esta a que se dedicou com empenho grande parte do cinema moderno; como dizem aqueles pastores protestantes, que se fazem de mais ingênuos do que são para um público realmente ingênuo, Sonia agora é uma Outra, pois a palavra (o gesto do pintor) a revelou para si mesma. E em que consiste esta Revelação? Numa ascese mística. Ela narra para Bouvet (que a escuta, num contracampo de close violentíssimo, onde nada se vê senão o nariz atrabiliário do investigador) que enquanto Dimanche desenhava sentiu-se num “deserto, num deserto de nuvens, onde se perdeu; (…)”; e que deste deserto de nuvens, onde nada via senão a si mesma, ela talvez tenha visto o que Dimanche via; e que neste mesmo deserto de nuvens onde tudo, menos este mundo, se via, Sonia viu o seu mundo passado: o seu marido coronel, com quem tinha sido tão bonito viver, antes que se tornasse atroz viver; lembrou-se de seu filho morto, de seu filho que era tudo para ela…sim, neste deserto de nuvens, onde também vivia (e via; sobretudo via) René Dimanche, ela também pôde ver. Bouvet abruptamente a interrompe, encimado por aquele close violador, onde a função policialesca do conceito sobre aquilo que é (como? o que? O Segredo de Dimanche!) se figura literalmente: “Você deve esquecer tudo isto; tudo é passado; o seu presente é outro; haverá outros amores; haverá outras histórias”. Mas para a experiência de Presença que Sonia como Dimanche tiveram não existe Presença senão Una; a Eterna? Conhecemos o final desta história; Sonia deixa para trás o circuitinho ‘diletante-esclarecido’ dos marchands, dos jornalistas bisbilhoteiros e dos conceitos inefáveis, que se despedem de nós naquela festinha desolada em que se cruzam (sem nada significar), extravios de passos trôpegos e réplicas sem replicante; acompanhada por esta panorâmica ‘de parada’ com que Biette (assistente de Pasolini, herdeiro de Tourneur e de Rossellini) nos delineia o percurso de uma conversão, Sonia Saviange abandona o in extremis mundano da supra-significação pelo in extremis naturans da epifania; sabemos, como lembrado no início deste texto, da ruse da natureza-morta pintada, e que portanto a crença íntegra, como o raccord diretivo-causal, não são mais totalmente possíveis; o mundo e seus entes, porém, permanecem aí como no Princípio, e o cinema, arte da Revelação, estará também para atestar a empreinte cabal desta presença.
Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até o tempo do Fim. Muitos andarão errantes, e a iniquidade aumentará.
Daniel, 12: 4
Todos os estágios do conhecimento devem ser buscados no seio da Natureza.
Leon Battista Alberti, Della pittura
O resort climatizado, o hotel cosmopolita são vetores de jouissance gregária através dos quais o nosso tempo prolonga e sistematiza a mais-valia luxuosa dos tempos privados de férias em uma espécie de kairos global e multicultural, experimento in vitro vorazmente aterrador em seu simulacro de acolhimento tépido da diferença, porque a tudo integra mais eficientemente ao mesmo: sob o cartão-postal asséptico da praia de Tempo, sub jaz um laboratório-panóptico que enfeixa o filme como o experimento do experimento, como aquilo que deve ser desconstruído em seu arremate como simulacro mabusiano diabólico (sim, de uma origem que nos solicita novamente no fim, como em toda genealogia digna de seu destino), cujo objeto ontológico é a experiência humana, de que somos mais e mais deficitários em tempos virtuais. Este é apenas o clímax, em matéria de narrativa, de cenário e de estrutura, de um processo subterrâneo de erosão, agora mais evidente em obras como Tempo, do sujeito e da experiência significativa de que este é tributário, em suma, de elisão da possibilidade, candente mesmo em tempos de uma arte de tecnologia extrema como o cinema, de contar a própria história: é esta impossibilidadeo objeto do filme de Shyalaman.
A experiência aqui é para um outro tecnológico, central e registro computacional behavorista, talvez o arqui-dispositivo por detrás de tudo. Tempo é um título sintético e sincrético, pois com os personagens decaímos antes do apogeu, e portanto não possuímos mais o tempo de uma experiência teleológica progressiva, de uma experiência propriamente dita: a caducidade de uma obra muito nova, já que encimada por uma cúpula modernista (o olho en abîme do cineasta M. Night é para você, e isto apesar de jamais abandonarmos o plateau do filme, apesar da fissura diegética que só nos entreabre outra dobra da mesma narrativa refratada),e ao mesmo tempo muito velho, porque atravessado de coordenadas modernas, a tardia e nascitura anáclase do cinema de Shyamalan.
Para modus operandi de sua compreensão mais estrutural, Tempo coteja trabalhando dois partis pris pós-modernos (o simulacro, o dispositivo, ou a praia vigiada e o laboratório) sem jamais abandonar as coordenadas do cinema moderno, cinema para o qual aliás o tempo, tematizado exclusivamente enquanto tal por Tempo, foi o rincão, o privilegiado projeto de descrição (um cinema mais descritivo de estados de coisas e de almas que narrativo, como nos mostraram as caminhadas videntes dos personagens do Rossellini da guerra pelos escombros da cidade desolada, embora finalmente virgem de valores para uma primeira vez). Com uma complicação suplementar, essencial à face de Janus complementar e reciprocamente implicante do filme: a experiência do “cinema moderno” agora é, mesmo que de maneira endo-diegética, aberta às escaramuças do simulacro, do poder vivissecante do significante, da ronda vertiginosa da interpretação do espectador, na medida em que o filme solicita a memória,a percepção e a inteligência nossas (como igualmente a dos personagens e isto em uma mesma rota unívoca) para saber recordar e integrar à diegese in memoriam uma “garrafa lançada ao mar” que será essencial na compreensão de tudo, em sua decifração espectatorial; em que sentido escrevo endógena-diegética? No sentido de que Tempo jamais abandona a abóbada do próprio filme, interditando a exterioridade radical, tão comum em obras mais assumidamente pós-modernas, do trabalho crítico integrado à configuração da própria obra, como parte constitutiva de sua matéria imaterial; porque jamais saímos de dentro de Tempo para intentar uma supra-análise crítica de seus conteúdos, mesmo e sobretudo quando a infração suprema ao codex clássico se encena expressamente para nós,quando da revelação do simulacro pelo próprio diretor, agora personagem: há ainda um terceiro e decisivo ato de arremate para que o contrato da crença clássica, apesar da fresta entreaberta pela presença da câmera e do olhar de M. Night para o espectador, possa ser reconstituído no laboratório com que o jogo do encoberto e do desvelado se encerra, deux ex-machina que ao princípio reencontra a origem diegeticamente, na mensagem cifrada e agora salvífica da criança para a qual tudo converge e solicita enfim reconciliação; aliás, é para este esconde-esconde típico de obras que permanecem na Origem que o filme encontra um norte decisivo: um filme sobre o cronos entrópico do fim reencontra o Kairos sintrópico da origem e na metade de Tempo já vamos sapiencialmente aprender a morrer, como o casal protagonista nos ensina à beira da fogueira e ao lado dos filhos, decalque do leito de morte com candelabro na mão e chiaroscuro no fundo dos Greuze e Fragonard da história da arte para um cenário de cinema moderno; no máximo, o que é exigido ao espectador e à estrutura do próprio Tempo é decifrar a mensagem abscôndita da infância, e não o engendramento de estripulias intelectuais com que se deleitaria por exemplo um Peter Greenaway ou Lars Von Trier.
Se Tempo pode ser considerado uma obra modernista como estou fazendo aqui é apenas na medida em que M. Night é antes de tudo o intérprete de um destino-herança (Schicksal) do cinema moderno, mas só o é legitimamente na medida em que seu cinema também se mostra atento aos usos e leituras da contemporaneidade, em que se justapõem e implicam esta herança e seu herdeiro futuro, agora presente; Tempo tão cedo não vai correr o risco de ser um espécime caduca ou anacrônica de leitor de seu tempo, ultrapassado por este, porque sabe equilibrar a justa balança de ser o lugar de um apelo do passado que se engendra no presente de sua substância atual, e por esta razão solicita o cinema in extremis do nosso tempo apenas na medida em que sabe sopesar a ideal medida de ser o locus de acolhimento do passado, um tipo oposto em matéria de paradigma à experiência intempestiva do aprendiz de feiticeiro de Goethe, que desencadeia e leva à emergência da superfície fórmulas de abracadabra e forças mágicas que ele não sabe controlar. Esta, aliás, talvez seja a falaz virtude de que Tempo possa vir a ser objeto, para um espectador do futuro do imperfeito (alguém para quem o passado conta como impressão de fantasma sobre o futuro): seu excessivo refinamento de autocontrole estrutural pode vir a perdê-lo, porque são aqueles cineastas que menos recuam e eclipsam (menos semeiam elipses, para o fora de campo do espectador preencher ou enervar), que mais manietam o filme em nome de um projeto artístico que o suplanta em direção à totalidade da obra ou a fatalidade da herança, que podem sofrer a ação de um processo de envelhecimento, um tanto ironicamente aqui porque à imagem e semelhança do aceleramento ontológico perverso sobre o qual Tempo se debruça; esta é apenas uma hipótese de trabalho, a que farão jus ou não os pósteros do filme de Shyamalan.
Em um de seus textos, Jean-Claude Biette, a propósito de um panegírico a um dos últimos filmes clássicos fecundos em termos de enunciação- e talvez não por acaso se trate de uma obra de fantasia, como em Shyalaman de fantástico, “nosso último Logos”: o díptico indiano de Fritz Lang, falava desta língua universal, mas oca que se substituira à linguagem comunicativa do cinema clássico, língua esta que não fala muita coisa de autêntico senão do esvaziamento do sujeito/auteur em nome de um vernáculo informatizado, com a consequente vitória do algoritmo sobre o emblema da experiência, o significante/plano de cinema, que o cinema havia paciente e sistematicamente urdido desde os anos 30: “(…) a língua do cinema internacional é uma espécie de compromisso estético entre a modernidade dos hollywoodianos e a dos europeus das recentes gerações. Uma língua que toma emprestado ao mesmo tempo à eficiência do telefilme americano, ao pragmatismo preguiçoso do audiovisual europeu (de que Rossellini foi o infeliz predecessor) e às novas línguas restritas e referenciais do comércio (pubs) e do espetáculo (clips), para se constituir em pretenso instrumento de comunicação universal , enquanto que não passa de uma retórica oportunista, prestes a capitalizar não importa qual nova técnica”. E esta língua sem horizonte nem espessura realmente comunicativos, sem objeto ou conteúdo senão o seu próprio balbucio asséptico avaro de sentido – e, portanto, sem compromisso com a verdade outrora habitante de um “plano de cinema”, com todas as suas mediações contidas/conjugadas -, língua esta de que o clip constitui a forma de representação mais pertinente, possui hoje seus objetos aclimatados, e ei-los objetivamente encarnados nos dois cenários complementares/superpostos de Tempo, o simulacro e o dispositivo: a praia e o laboratório, representações respectivamente do paraíso (reencontrado porque perdido: a impossibilidade de contar esta história, rápida demais para ser capturada pela palavra humana) e do inferno para-si do laboratório a partir do qual, no rewind da experiência reconquistada do vídeo, tudo se reconstrui; no primeiro caso , a praia é um corpo que nasceu decrépito, pois oculta en abîme uma dobra tecnológica e distóptica pensante, que só ao final será completamente desarmada: seguindo à la lettre a reflexão de Biette, Madonna ou um rapper famoso poderiam ter lançado neste hotel seu novo clip, aqui todo o bric à brac da indústria cultural bem assentaria seu palco e bastidores, como assenta diegeticamente no filme, mesmo que no arrière-plan a ser desvelado num final grandiloquente no qual o Tempo como dispositivo se revela e se desarma, se engendra e se encena todo experimento inumano, pós-humano em nome da humanidade sofredora, cooptação pelo julgamento moral da dualidade de que o filme de M. Night é debitário: aqui, a mise en scène eugenista do nazismo e a inefabilidade da bella figura clássica deságuam com propósitos humanitaristas perversos, mas tudo é prestidigitação para manter intocável a estrutura à parte do filme de experiência/experimento clássico, neste caso é claro com uma essência de fantástico que melhor encobre para tudo suturando ao cabo advir à cena: o des-cobrimento espetacular do dispositivo final pouco serve para legitimar os encobrimentos e retoques de que os travellings indexados inseridos por Shyamalan com propósito de desmascaramento subliminar (a princípio, a câmera com a stylo dos travellings apenas aponta ou sublinha, deixando em geral entrever de forma sub-reptícia que no próximo contracampo vai advir algo de monstruoso ou aberrante, enquanto que no découpage tudo corre escorreito e lábil, pelo menos até que a ameaça onimosa no fora de quadro se revele claramente) estabelecem.
Tempo precisa deste mecanismo de refração, em que o filme de experiência/experimento moderno, com um cenário epersonagens articulados como se partes do mesmo corpo exangue, na verdade encobre um dispositivo pós-moderno que em nada deixa a dever aos seus espécimes mais turbulentos ou histéricos, só que agora à la Shyamalan: uma superfície íntegra apenas em aparência, pois se estimulada pelo bisturi do olho do espectador em seus pontos vitais vai descobrir uma ferida profunda e candente, que estrutura o filme e consequentemente a recepção; Esta é a estrutura-mater indispensável a filmes como Tempo e A visita, este é o destino do cinema que Shyamalan trabalha e legitima, fornecendo uma resposta fecunda, mas sempre provisória (a dimensão experimental de seu cinema, que subjaz à arquitetura neo-clássica) à questão endereçada pelo passado: o filme de gênero é um simulacro que encobre o verdadeiro simulacro, manipulação virtual do panóptico áudio-visual televisivo como aqui ou a telinha do celular em A visita. Não por acaso M. Night escolheu para sua alegoria transparente de febre do inferno, alegoria distópica de ficção científica filmada enquanto tal (as condições da representação, que assolam à cena do filme no final: o laboratório, a câmera de registro e o aparelho de edição, o staff da filmagem e o clin d’oeil não extra, mas infra-diegético do diretor para a câmera) sobre o fim dos tempos ou o tempo do fim – término da experiência como re-conhecida pelo ocidente até então, pela lógica “aceleração de partículas” do travelling lateral extemporâneo ou travelling avanti de insert-, estes decores terminais de uma civilização que já não sabe morrer senão aclimatada pelo labirinto vítreo e customizado de suas galeras de prisioneiros da caverna cuja sombra foi usurpada por uma tela plana, uniforme e portátil de celular que nada reflete senão o seu próprio e outro vacuum: qual a relação precisamente entre a entropia ontológica- o éden virado ao avesso descrito pelo filme, em que a velhice praticamente coincide com o acme da juventude, em que tudo se torna contemporâneo e hodierno, anulando-se a experiência teleologicamente orientada do princípio, meio e fim – e a assepsia pós-moderna de um décor e uma língua que já não precisam falar pela mesma cartilha do humano para serem identificados como pós-modernos? Sim, M. Night nos oferece um filme sobre a pós-modernidade sem abandonar nenhuma coordenada da narrativa, figura e fundo clássicos, com a exceção dos sublinhados acima descritos (os travellings ilusórios de um Méliés que integrou o ethos da transparência dos 40 às suas estripulias de proscênio…).
Tempo é um filme sobre o pós-moderno, o pós-humano (admitindo-se a modernidade filosófica como aquele movimento cujo princípio coincide com o grund do sujeito da fenestra aperta de Alberti e do espelho de Brunelleleschi, que subsume a todo ente sob seu olho onisciente) sob o ponto de vista de uma margem ainda clássica onde o homem não coopta e domina tudo das alturas de sua manipulação representacional, e sim ainda é um ente criado ( ens creatum, segundo Leibniz e Lumière) ou personagem diegético da ficção endógena do filme: os devires acelerados mas perceptíveis enquanto tais apenas se cotejados com o movimento realista de um corpo humano que se desloca pelo espaço do plano de cinema, o fondu au noir onde se susta a cronologia diegética da jouissance e se gesta uterinamente um tempo da danação, o plano frontal mas atento aos deslocamentos paralelos que acompanha os movimentos e os coordena entre si e contra o fundo do décor: M. Night filma Tempo a um só tempo, uma experiência e sua antítese – pós-humana, pós-sujeito e portanto pós-moderna de dentro da praia diegética, de coordenadas clássicas e subjetivistas do grande décor absorvente de fascinação dos tristes trópicos entrópicos.
Não precisamos ser talmudistas ou filósofos da diferença francesa para pensar, segundo o Louis Marin de A palavra comida (La parole mangée), semiólogo e crítico de arte terrorista inspirado pela gramática de Port Royale, que talvez não haja melhor palavra senão o oxímoro para exprimir o paradoxo onde a verdade, dádiva infinita, se experimenta outra e se revela integralmente numa partícula finita: começamos com o sol negro de Rimbaud,e por que não terminar com o Inferno tropical do panóptico rigidamente manipulado, ‘audiovisual’ com que se encerra Tempo? Por que não imaginar termos e coordenadas a partir dos quais o apocalipse, o fim dos tempos, nos apareça sob a face consetudinária das férias de verão- um tempo a mais, esvaziado ou pleno, segundo o ponto de vista mediatório do trabalho ou da fruição integral-, e a máscara onimosa de sua demanda de morte coincida com uma oferta surpreendente de jouissance oferecida pela instituição predatória capitalista por excelência, ao lado do banco? Um experimento, certo, legitimado a posteriori pelo fito salvífico de abreviar o sofrimento humano, mesmo que o quid da experiência, cuja essência especular é o tempo, seja o mais precioso dom a ser aqui cooptado e desperdiçado; sob a égide do Divino, pelo menos enquanto este existiu (fase serena, acidentada aqui e ali apenas ao custo de reecontrar-se una ao final , mas sobretudo teleologicamente orientada da estética clássica, inspirada pela crença onto-teológica numa entidade superior que asseguraria, ao cabo e portanto ao princípio, sentido a tudo), os homens foram submetidos a experimentos semelhantes, mas estes concidiam com a urdidura do próprio filmes e jamais virariam a câmera de volta para nós: aqui, é Justamente M. Night quem se incumbe de representar este papel de revelador en abîme, sem que no entanto o filme enquanto tal, repartido de parte em parte com uma estrutura endógenamente auto-centrada, sofra jamais o estilhaçamento tumultuoso de tantas obras mal polidas e desorientadas da pós-modernidade: este diamante cindido e cerzido em dois pelo para-si do panóptico “diegético” do arremate de Tempo se parece, em sua polidez e cerzi-dura (excetuada a resolução final, que precisamente o cinde em dois) com outro espécime neo-clássico de sua carreira, o The Happening (Fim dos tempos), que não por acaso tinha como objeto um devir igualmente crepuscular, lá talvez mais espetacular, mais propriamente apocalíptico, talvez porque não objeto de um experimento científico controlado sob condições de temperatura e pressão. Mas isso é objeto especulativo para outro texto.
De te fabula narratur (A Fábula fala de ti): este conto do avarento monstruoso de Horácio nos repugna pelo que há de Mesmo na alteridade do monstro (eu, tu e o monstro: questão de grau, sempre) em cada um de nós, como pensavam igualmente o Freud das pequenas diferenças e o Sibony de Sobre o anti-semitismo; todas as fábulas falam incansavelmente de nós – e talvez as alegóricas sejam as mais adequadas para as crianças, porque lhes oferece um organograma opticamente expressionista à grandeur de vue sobre os labirintos da vida, como Tempo o é para o espectador mainstream -, mas como são obras clássicas, feitas de filtros e filigranas, já que o classicismo foi uma arte da absoluta discreção, o fazem grunhindo com a máscara do Minotauro ou reluzindo pedra lazúli com o escudo com que Teseu venceu a Medusa; De Esopo a La Fontaine, de La Fontaine a Lewis Carrol e de Lewis Carrol a Jodorowski a fábula foi este conto necessário para instilar um julgamento moral em seres ainda inocentes mas que precisavam ser precavidos dos horrores do mundo, já que até então tinham unicamente à sua disposição as ofertas epifânicas daquiilo que é, como as crianças que escalam o canyon e se banham no mar sem saber que já não cabem nos braços da mãe; as fábulas nos injetavam anticorpos, porque segundo o mecanismo vitorioso da vacina precisamos cultivar um que de atroz da alteridade em nossa própria derme, para que nosso encontro com a mesma não nos seja fatal; não é isto o que Old faz, não nos instila anticorpos contra um uso falaz e histérico da pós-modernidade, espécimes de que nos vemos circundados como em uma arquibancada de neo-bárbaros sem noção da herança a que nós, contemporâneos, temos antes de tudo de prestas contas e préstimos?
Não um panegírico a priorístico do passado, pois isto equivaleria a uma obra passadista, masturbatória-idealista e anacronista, mas um reconhecimento de que sem este não haverá futuro, de que tudo percorre a mesma e outra linha de destinação de que o homem é o agente testemunhal e o promotor de criação; assim, Tempo não foge desta lógica paranoica que desconfia do homem no comando da representação daquilo que é, porque esta é a lógica de nosso tempo, na política, costumes ou artes: a fábula é um panegírico ‘desconfiado’ do encantamento do mundo que no fim de uma era ( em tempos, como se diz, de modernidade líquida) vem solicitar também nossa atenção e nosso dedo em riste para os perigos de uma cooptação do encantamento do que é pela tecno-ciência, tentáculo vastamente urdido com o propósito de estancar as fontes apofânticas do que nos aparece, de dar à sua fruição uma destinação algorítmica, à experiência um telos semiótico, encobrir o ser com a teia e tela dos conceitos e dos registros, dos teoremas e das sistemas; o éden paradisíaco do avesso onde a experiência sofre um golpe fatal em Tempo poderia ser um simulacro de Lars Von Trier ou desaguar num dispositivo de Peter Greenaway, mas o cinema de M. Night contém ainda e sobretudo a fascinação dos solilóquios, o eudaimonismo dos gestos últimos em família, o combate sempiterno entre o antagonista racista e seu inevitável destino, os tormentos da vida em grupo e a comunidade que só pode ser empreendida a partir destes tormentos (sapiência dos deslocamentos e intumescência dinâmica dos planos de conjunto) , a condensação do crepúsculo e a rarefação da aurora, formas ontológicas de resistir num plano de cinema ao reino fantasmático das imagens pós-modernas da melhor maneira para se fazer isso: perversamente, se servindo do simulacro e do dispositivo da modernidade líquida para triunfar sobre seu sepulcro; para mim, a vitória do plano de cinema sobre o algoritmo do clip ainda é uma batalha a ser ganha, e Tempo é certamente um belo espécime para pensar esta contenda salvífica para toda uma História do cinema que ainda está aí à porta para nos desafiar.
Se eu pudesse nomear dois padrinhos para o momento da concepção de Sessão Bruta, eles seriam Marlon Riggs e Hélio Oiticica. De um lado, a investigação poética de trajetórias, corpos, gêneros e sexualidades à margem da margem. De outro, a noção de vida e arte como vetores indistinguíveis entre si e a experimentação cinematográfica como forma de se manter no limiar do cinema, no quase-cinema. Se Oiticica falava da necessidade de assumir uma condição “subterrânea” para trilhar a produção artística no Brasil, o coletivo mineiro LGBTQIA+ “As Talavistas” vai reinventar o conceito pela via da “clandestinidade”, parte constituinte das identidades radicalizadas de suas integrantes e força motriz que faz com que o próprio processo de produção do filme se afaste de qualquer normatização.
Sessão Bruta vai abrir com uma cena totalmente adorável: no aconchego de um quarto cor de rosa, um grupo de amigas conversa através de uma caixa de som potente com a assistente virtual do Google. Em alguns momentos as perguntas (sobre drogas, terrorismo, etc.) feitas à inteligência artificial vão gerar respostas incoerentes, equívocos, falhas engraçadas; em outros, a voz feminina robotizada simplesmente prefere se calar e é desafiada pela sua interlocutora a se retratar. A situação toda é guiada por um humor provocativo, do tipo que faz você querer conhecer melhor essas personagens igualmente adoráveis. E é exatamente isso que vai acontecer nos próximos 80 minutos de filme.
Através de depoimentos, performances, discussões acirradas sobre gênero, classe e raça e momentos escrachados de diversão, o longavai se estruturar como uma espécie de apresentação do coletivo, explorando ainda histórias individuais e as possibilidades de cor, texturas e ruídos oferecidas pela manipulação de imagens de arquivo captadas por uma câmera Mini-DV e distribuídas pelo intervalo de cerca de quatro anos de registro. Ao partir de uma ideia de obra em transição ou “um filme por fazer”, a montagem tenta empreender uma fragmentação intuitiva que nem sempre consegue se ater à proposta experimental que a articulação do material bruto pode oferecer, caindo por vezes em cenas puramente didáticas e arrastadas que acabam prejudicando o dinamismo e a força das demais. Ainda assim, o filme é um interessante exercício de reflexão sobre o próprio processo da experimentação coletiva como fortalecimento das redes e existências clandestinas. Muita coisa, coisas maravilhosas e poderosas, estão acontecendo sem que tomemos nota, e Sessão Bruta é um convite para abrirmos os olhos a elas.
Sobre cinco curtas visto em Tiradentes 2022 que continuarão comigo por um tempo.
Por Geo Abreu
A discussão sobre as vantagens e desvantagens de acompanhar um festival de cinema online tem sido recorrente e esse texto não traz novidades a respeito, apenas a constatação de que mergulhar numa sessão na sala de cinema é sempre uma experiência mais rica, de corpo e atenção envolvidas. Apesar disso, seguem abaixo os curtas que, mesmo vistos na tela de um computador, conseguiram permanecer por aqui ou talvez queiram ser mantidos por perto.
Ladeira não é rampa – Antônio Ribeiro e Sandro Garcia
Na quarta revisão e ainda descobrindo detalhes que mantém o filme em movimento ascendente. Belford Roxo tinha cinco pistas de skate públicas que foram desativadas e nenhuma sala de cinema. Desafiando os carros, Antonio desce a ladeira com seu skate. Usando calça e camisa social, enrola um pouco de camomila para fumar enquanto pensa sobre a próxima ação. O filme não dissimula, não apela para nenhum salto de fé ou suspensão da descrença: “Onde ele vai ser exibido?”, é a pergunta feita a certa altura. Ao respondê-la, a história executa uma manobra perfeita, um giro sobre si: amanhece descendo a ladeira e anoitece sendo exibida num cineclube, com crianças, cerveja e realizadoras presentes. Onde os equipamentos públicos são sucateados por pura ganância, a política do “faça você mesmo” floresce em coletivo e, nesse caso, atende pelo nome de Baixada Cine.
Manhã de Domingo – Bruno Ribeiro
Tem sido um prazer viver na mesma época que Bruno e seus curtas, acompanhar o amadurecimento de um realizador tão jovem e já tão afinado na regência: a história de Manhã de Domingo vibra a partir do piano de Gabriela, nos mantém atentas, nos atira contra a dor daquela perda, a angústia que antecede o primeiro grande recital, a repetição da história da criança prodígio que tem ouvido absoluto. A economia da forma existe para que o som preencha tudo e assim nos aproxime do que a protagonista não diz, ou diz através de sua música. O rigor da professora que no recital se atira sobre o instrumento, fazendo com que ele fale por vias incomuns é também o incômodo da filha que se mantém de pé mesmo perturbada por uma grande saudade. Um belo filme, de movimentos elegantes e fortes, seja ao piano, na expressão da atriz ou na quebra de expectativa após uma cena gigante.
Não Vim Ao Mundo Para Ser Pedra – Fabio Rodrigues Filho
Atravessando a relação estabelecida entre o personagem épico criado por Mário de Andrade e o ator Grande Otelo, responsável pela interpretação de Macunaíma no cinema, o filme de Rodrigues Filho se debruça sobre o livro mais do que sobre o filme, em busca de homenagear o ator e seu talento frente aos papéis que lhe eram confiados. Baseado em pesquisa e reativação de imagens de arquivo, o curta inventaria gestos – modulados entre altivez e preconceito – e discursos que fortalecem a relação entre ator e personagem, até quase descobrir-se que o personagem tenha sido feito de encomenda para aquele grande ator. Grande Otelo chega a pontuar ser preciso voltar aos arquivos de um certo jornal em busca de crítica escrita por Mário de Andrade e anterior a publicação do livro. Prova de que o autor tenha descoberto o ator e vislumbrado Macunaíma? Mais do que reavivar essa história através da pesquisa e da montagem, o filme também emoldura a trajetória de Grande Otelo, uma homenagem delicada e merecida. Ao fim desse parágrafo me sinto devedora da beleza que ilumina este filme.
Olho Além do Ouvido, Bruna Schelb Correa e Luis Bocchino
Assim como a discussão sobre festivais de cinema online, as características de filmes pandêmicos ou filmes de pandemia – aqueles que vem sendo realizados em condições de isolamento – tem sido outro ponto de interesse da crítica. Olho Além do Ouvido faz parte da Trilogia do Papelão, pesquisa desenvolvida por Bruna Schelb e Luis Bocchino em torno das condições de produção de filmes durante as restrições exigidas pela pandemia, em que o papelão é utilizado como elemento narrativo. No caso específico de Olho Além, as diretoras produzem uma fábula baseada no teatro de sombras para falar de um mundo onde se escolhe abordar a realidade de olhos fechados, até que uma garota que resolve questionar isso. Apesar de acompanhar as produções pandêmicas em vários aspectos como equipe reduzida, revezamento de funções e locação única, Olho Além do Ouvido encara as contingências, como diria Roberto Santos, transformando a falta de condições em elemento de criação. Reelaborando objetos do cotidiano e trabalhando o jogo de luz e sombras cenicamente, o filme discute temas como desinformação programada e a pesquisa de fontes confiáveis de crítica sobre o mundo de maneira lúdica. A narração de Bruna dá o tom de oralidade, roda de contação de história, e embala as aventuras da menina curiosa que muda o seu mundo.
Tito, uma videopera pop do cerrado mineiro em chamas – Fernando Barcellos
Enquanto muitos filmes se baseiam no textão e na vontade de lacrar maiores que o desejo de filmar, Tito consegue articular seu discurso a partir de batalhas de dança e dublagem, transpondo para o cinema os realities shows e séries, populares justo pelas performances e figurinos, mas também pelas personagens que apresentam. Shakespeare é evocado e reconhecido por todo som e fúria, em meio à figuração de violência, para lembrar quão agressivo é o mundo para alguns corpos, representados em cada ato do filme: homossexualidade e negritude, heterossexualidade compulsória, mulheres masculinizadas e os homens afeminados, todes juntes disputando espaço para respirar e performar suas verdades, muitas vezes precisando guerrear entre si para se afirmar e se por em evidência. No fim, o número ao som de Marina Lima apazigua temporariamente as diferenças. Divertido e embalado por uma trilha de sucessos, Tito e sua videopera pop lacram demais, entregando entretenimento e audiovisual de qualidade.
“O gosto camp atual apaga ou contradiz frontalmente a natureza. E a relação camp com o passado é sentimental ao extremo”. É certo que o “atual” camp discorrido por Sontag era o dos anos 1960, oriundo de outra realidade. Acaba sendo sempre tortuoso discorrer sobre o tema por conta de consistir numa forma específica de sentir (ao invés de estetizar) objetos e pessoas, e por haver confusões, quando não uma convergência direta, entre ele e um maneirismo estético. Mas acredito que muitos pontos levantados pela autora sobre essa forma de sensibilidade – encontram-se com a recente obra de Lucas Andrade exibida na Mostra Aurora da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
“Grade” acompanha vários internos da APAC, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, em São João del Rei. É um tipo diferente de centro penitenciário, em que os prisioneiros organizam os recintos e as atividades, lavam sua louça e sua roupa, administram a própria segurança. Basicamente, são os próprios policiais. É um cotidiano rígido, com hora obrigatória de oração e trabalho. Existe hierarquia entre os condenados, e alguns que estão há mais tempo e ocupam posições mais elevadas de chefia. A escolha por estar lá é facultativa: assine um papel e volte para a prisão, se assim preferir. Interessantemente, há quem prefira; lá é mais hostil, mas tem-se outras escolhas (como a de não rezar o tempo todo). Há espaços de debate e solução de atritos pessoais (picuinhas individuais) e coletivos (brigas pelo tempo de televisão), mas os conflitos nunca chegam ao físico pelo recorte de Andrade. Se surgem por fala, são solucionadas com um terno e sorridente abraço entre os dois brigados. A APAC é, necessariamente, um espaço inteiramente masculino, dado que é prisão; mas é, interessantemente, apresentada por Andrade como um espaço onde parece predominar uma sensibilidade mais feminina, onde as pulsões de violência, e até mesmo de sexualidade, quase nunca citada em filme (mas chegaremos à forma que é citada), são sublimadas não só por atividades laborais, mas também artísticas: tricô, canto, pintura. O fim que justifica os meios é uma decisão pessoal pela mudança de vida, de comportamento. Isso envolve, naturalmente, a mudança de postura para com o mundo.
Onde entra, nisso, o camp? O longa começa numa sorte de cinema observacional, de câmera parada, com enquadramentos de profundidade. Tudo indica que o filme seguirá um convencional realismo psicológico e se fará de mosca na parede (como em algumas outras sequências procurará operar). Então, em determinado momento, um dos prisioneiros aparece voando sobre um tapete mágico, sobre uma paisagem claramente de chroma key, acenando e mostrando o dedo do meio para o mundo abaixo (pode haver um joguete com a prisão convencional, que eles costumam chamar de “lá embaixo”; mas pode também ser literalmente “o mundo todo”). A partir daí, inúmeras outras esquetes escritas e interpretadas pelos internos aparecerão de quando em vez, às vezes só inseridos em surreais – como no fundo do mar, ou dançando com outros colegas de prisão no campo -, mas, muitas vezes, performando um outro papel – um dentista carniceiro, uma irmã cafajeste, um padre adúltero, um marinheiro prestes a cair de um navio em mar revolto. Todas sempre humorísticas e, muitas vezes, cenicamente afetadas. É o que Sontag chamaria de “Ser-Como-Interpretar-Um-Papel”: no caso, papel e cenas que eles mesmos escolhem interpretar e, por meio deles, apresentar seu senso de humor, sua corporalidade performática em descontração. É um furo mais que bem-vindo (já iniciado em empreitadas mais antigas como A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa,ou A Cidade É Uma Só, de Adirley Queirós) num estilo que procura restringir indivíduos da camada popular ao “realismo”, acorrentá-los ao concreto da condição do entorno, despido de contradições, sonhos, fantasias, afetações.
Mas as esquetes também começam a contaminar as cenas de suposto “cinema direto”, quando alguns momentos cotidianescos apresentam ostensivas quebras de eixo, takes estilizados, conectam-se com as esquetes (o homem que faz o marinheiro tem na esquete um amigo embriagado sem condição de se segurar em meio à tormenta; após um corte para ele despertando, o que faz a cena parecer um sonho, sai procurando o amigo pelos dormitórios). Mesmo algumas sequências dramáticas começam a soar um pouco encenadas. Desconfiamos do realismo, do que é encenado e do que é captado enquanto acontecimento. Como não sabemos exatamente o que é escrito ou não pelos homens filmados, há beleza e tristeza em imaginar que a sequência de um deles desabafando com um padre no pátio da APAC sobre a rejeição da família seja de sua própria escolha.
Eis que a forma de “Grade” se alimenta desse conflito em que a consciência da encenação infecta os momentos em que ela não é exibicionista, em que supostamente “se vê aquilo como é”. Ela liberta os prisioneiros por meio dos excessos cênicos guiados pelo arbítrio deles mesmos, emanando uma essência sua que só poderia ser acessada pela autoparódia em sua mais pura ingenuidade, e trazendo a descontração como tom geral de um filme que poderia ser bem mais pesado. Mas, claro, é um filme que quer ser sobre um grupo de homens, não sobre um grupo de prisioneiros.
Um dos conceitos explorados pelo pesquisador e realizador Jean-Louis Comolli nos seus estudos a respeito do cinema documentário é o da auto-mise-en-scène. A ideia parte da constatação de um gesto inerente ao objeto filmado, que, ao tomar consciência da câmera, passa a empreender uma forma de ficcionalização do próprio comportamento e da maneira como se porta e se coloca no mundo. Para Comolli, é quase inconcebível acreditar que um indivíduo ao ser observado nessas condições não entre também no jogo da representação. Em Panorama, documentário sobre a gentrificação que engole cada vez mais uma comunidade de mesmo nome no bairro nobre Jardim Panorama, no Morumbi, o diretor Alexandre Wahrhaftig vai se valer da articulação da auto-mise-en-scène manifesta no depoimento dos moradores da região para traçar um mapa territorial e memorialístico de um espaço que existe sob a constante ameaça de desaparecimento pela especulação imobiliária.
Aqui, os relatos de figuras veteranas da favela tomam a dianteira da narrativa, pendendo ora para o naturalismo ora para a artificialidade de situações claramente propostas pelo diretor. O que, ainda que não interfira na pulsão nostálgica do filme ou na explicitação da relação dos moradores com o estatuto da incerteza no futuro, deixa de fora algumas informações que poderiam complementar a força desses momentos. A imagem geral acaba sendo um tanto difusa, enfraquecida, perdendo-se numa estrutura simplista e num tratamento da linguagem documental que não busca em nada se afastar dos lugares-comuns, mas ainda assim podendo reservar instantes de beleza singela, como uma caminhada de dois velhos amigos pelos labirintos de construções (abandonadas? ainda inacabadas?) e vielas, a revisitação de um álbum de fotografias da juventude e as letras dos raps feitos anos atrás, que são evocadas entre uma conversa e outra numa constatação de que os sentimentos de pertencimento e incerteza sempre estiveram presentes na vida de quem habita o lado oculto do Jardim Panorama.
Roberto e Yayoko Yoshisaki, pais do diretor Marcos Yoshi, voltam depois de 13 anos morando no Japão, onde trabalharam como operários de uma fábrica para poder sustentar a educação dos filhos. É se alimentando da súbita aproximação após essa abismal ausência que parte “Bem Vindos de Volta”. Os pais que apareciam apenas por imagens (VHS de viagens passadas, fotos e vídeos que eles mandavam periodicamente), agora são corpo presente. O que fazer agora? Criar as próprias imagens. Mas as imagens criadas não se apresentam como uma invenção ou molde dos pais segundo um sentimento prévio, alimentado pelos anos. O que existe é o vácuo, e é o que a produção tenta preencher: a câmera como desculpa para deles se aproximar demais e, assim, re-conhecê-los. Entender sua anatomia, seus olhares, as reações, as rugas, os poros. Como o dedo mindinho do pai sempre se levanta ao segurar algo; como as articulações das pontas dos dedos da mãe ficaram permanentemente inchadas por conta do trabalho. O trabalho, esse grande sacrifício em prol de um bem maior – a subsistência -, e que aparece tanto como salvador (utilitário) e assassino (afetivo). O labor braçal em longas jornadas surge hereditariamente, desde o pai japonês de sua vó, emigrado na época da guerra, chegando até Marcos e suas irmãs, que precisaram trabalhar por uns meses como operários no Japão quando o pai passou por uma retirada de tumor na cabeça. Foi quando entenderam que seus pais renunciaram na expectativa da formação dos filhos mais que a relação com eles: abriram mão da própria vida. 12h de trabalho manual para voltar a um quarto pequeno, desconfortável. Sobreviver o necessário para que o futuro dos filhos esteja garantido, mas o deles se mantenha instável. E o futuro, prometido na imagem das suntuosas, divinas montanhas japonesas, é uma ideia muito velha que, hoje em dia, se manifesta, mais que tudo, como um fracasso do presente.
E o fazer cinematográfico aparece como uma resistência ao trabalho. A câmera de Yoshi não entra na fábrica, pois o labor aqui é vilão, e a ela interessa o contato humano que os intervalos do fim da jornada permite. O poder olhar. O cinema possibilita que esse olhar se estenda, pois ainda que corpos presentes, a sombra da ausência dos pais (passada e futura) se mantém, como um espectro. Inventariar os pais como no “Katatsumori”, de Naomi Kawase, em que a diretora põe a câmera numa proximidade invasiva do rosto da avó (que a criou) e fica tocando-o, acariciando-o; a vó questiona e ri estranhando, mas a câmera não sai de perto. Porque, se pudesse, Kawase talvez a engoliria, para mantê-la sempre perto de si. Filmar para aproximar, filmar para não afastar. Filmar pelo pavor da partida.
Eis que numa cena Yoshi pede ao pai para inventariá-lo com as próprias mãos. “Posso tocar sua cabeça?”, e o pai de primeira entende que ele quer falar uma verdade para mexer em sua opinião. Ia permitir isso também, mas estava nervoso, e é meio nervoso que recebe as mãos do filho nos ombros. Eles se olham fixamente, e Marcos começa a tocar a cabeça do pai. As mãos do filho, enfim, conseguem burlar a prisão laboral. O pai fecha os olhos e relaxa, recebendo o toque como afago. Provavelmente o único momento em que relaxa no filme.