A Invenção de Hugo Cabret (Martin Scorsese, 2011)

Por Daniel Dalpizzolo

A história de amor entre Martin Scorsese e o cinema não é mais uma novidade. Se a nouvelle vague francesa, de Godard e Truffaut, é considerada hoje o primeiro grupo de cineastas declaradamente cinéfilos, filmando obras assumidas em uma consciência que ao mesmo tempo reverenciava e refletia as preferências cinematográficas dos autores, Scorsese por sua vez é, entre os cineastas da geração anos 70 do cinema norte-americano, talvez o que mais abertamente tenha declarado sua devoção pela sétima arte – seja nos filmes realizados ou em entrevistas concedidas sobre o assunto.

Em A Invenção de Hugo Cabret, o diretor expõe abertamente estes sentimentos e traz o amor ao cinema e ao poder da imaginação como força motriz da trama e de sua bela encenação. Do primeiro ao último minuto, vivenciamos uma fábula que, com seu visual embasbacante e seus impressionantes efeitos 3D, somente poderia existir no cinema, numa fantasia que se constroi em um mundo à parte da nossa realidade. A Paris do filme, de tons alaranjados e crepusculares, é apresentada como cenário fantasioso e impossível. Cada plano da capital francesa é uma imagem da cidade que você nunca mais verá, a não ser em A Invenção de Hugo Cabret.

Neste cenário próprio da ficção, Scorsese nos situa pelo olhar do menino Hugo Cabret, um órfão miserável que vive em uma estação de trem. A primeira parte do filme surge como uma fábula dickenseniana passada toda dentro da enorme e minuciosa estação (lembra sem muito esforço a mais famosa obra de Dickens, o clássico da literatura infanto-juvenil Oliver Twist). É notável a habilidade do diretor ao construir este cenário e nos posicionar no centro dele junto do protagonista, complementando-o com um grande número de personagens secundários que auxiliam a compor uma ambientação abrangente e imersiva.

Cada detalhe da estação, dos corredores às enormes engrenagens dos relógios nos quais Hugo se abriga, é composto com esmero, tornando-nos íntimos do espaço em poucos minutos. A exemplo do filme anterior de Scorsese, Ilha do Medo, em que o diretor dedicava parte considerável da narrativa para que o personagem de Di Caprio simplesmente explorasse a ilha-sanatório em que estava preso, aqui Hugo percorre todos os cantos da enorme estação, e a câmera de Scorsese, com uma decupagem leve e fluída, persegue o garoto por sua realidade sofrida e pouco entusiasmante. Em seguida, rompe esta realidade com o surgimento de uma garota e da aventura em que se metem, levando-os ao centro dos interesses do filme: a ode à magia e ao encantamento do cinema.

O grande trunfo de A Invenção de Hugo Cabret em sua segunda metade, que homenageia o precursor da ficção e dos efeitos especiais no cinema, o mágico e cineasta francês Georges Méliès, é equilibrar seu encantamento declarado pelo cinema de forma ao mesmo tempo emocionante e levemente didática, tornando possível que tanto os cinéfilos mais ardorosos quanto aqueles que mal conhecem a história da sétima arte possam se encantar com a homenagem de Scorsese. Ao resgatar às novas gerações a essência do trabalho de Méliès, o diretor naturalmente faz de seu filme uma viagem pelo que há de mais essencial nos mecanismos da fábula, que se vale da construção de novas realidades para fazer-nos esquecer a nossa por algumas horas – e, também por isso, é justamente ao fazer seus personagens sentarem numa sala de cinema para contemplar a restauração das principais obras de Méliès que o filme se encerra.

O momento final é tão simbólico que mesmo a falta de sutileza de algumas sequências anteriores torna-se um problema menor diante do expressivo significado deste ato – que propõe um olhar para o passado, para a gênese da magia artística, valendo-se da beleza proporcionada pelos recursos tecnológicos do cinema digital. O cinema, a arte que salvou Scorsese da violência do bairro em que cresceu, das drogas e da depressão, é também a arte que salva Hugo da solidão, Méliès do esquecimento e da decadência, e frequentemente a nós, espectadores, dos tantos problemas que nos acometem diariamente. É sobre este poder de resgate do cinema que fala A Invenção de Hugo Cabret, um filme dedicado inteiramente à magia dessa arte tão encantadora e envolvente, e filmado de forma tão apaixonada que se torna praticamente impossível não nos entregarmos a ele.


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