NOTAS SOBRE QUEBRAR O SILÊNCIO – Assistindo Hotel Monterey e Three Landscapes

Por Gabriel Papaléo

Nunca houve ‘cinema mudo’, aliás, apenas um cinema surdo ao tumulto que se produzia no interior do espectador, no seu próprio corpo, quando este se tornava a câmera de ecoar as imagens; as do vento, por exemplo.

(Serge Daney, Cinemetereologia, 1982).

Um elevador à espera, seus passageiros entram e saem e preenchem e esvaziam o quadro, num fluxo cotidiano retesado, uma espécie de abandono construído através de uma imagem supostamente banal. Num dos planos mais marcantes de Hotel Monterey, o primeiro longa-metragem de Chantal Akerman, observamos a passividade do comportamento daqueles habitantes temporários do hotel do título, transitórios por natureza, solitários por contexto imagético, fantasmas pela circunstância. A disposição da diretora belga em mapear espacial e sensorialmente aquele hotel qualquer em Nova York parte de uma essência quase de exercício estruturalista para então alcançar uma cidade em transformação, vista por janelas e terraços, intuída, mas não necessariamente vista.

Na solidão dos corredores, a vocação retratista do imenso trabalho de Akerman já aparece viva, mas diferente do som ambiente da cidade em Notícias de Casa, sua obra-prima realizada três anos depois na mesma (não exatamente a mesma) Nova York, aqui não existe som algum; o filme é intencionalmente construído com ausência de banda sonora. Nos travellings austeros do corredor vazio mirando a janela, esse silêncio cria uma tensão claustrofóbica, como se aquele movimento fosse revelar algo que não está de fato lá; encenação criada através de ar rarefeito. Já no plano estático do elevado, a falta de som revela um mundo alienígena, sem contato com a realidade e estilizado justamente pela ausência dos diálogos e ruídos da cidade – não ouvimos o que se espera, o movimento sem contraparte, esgarçando ainda mais o tempo, um passo em falso. Mesmo a libertação espacial do final, ao acessarmos o terraço, soa sob retenção, uma visão descontínua de uma cidade que mesmo das alturas ainda soaria barulhenta.

Se em Hotel Monterey a ausência de som é angustiante pela falta da tapeçaria sonora rica da cidade e dos habitantes que entram e saem do saguão, dos quartos, dos corredores do hotel, em Three Landscapes, de Peter Hutton, o vazio é outro: estamos diante de paisagens majestosas da natureza, com poucos traços humanos, e que estão igualmente sem som.

Por mais que ambos tenham uma tenacidade especial em conjurar drama através do que é concreto e bruto, seja uma paisagem enigmática de um rio ou de Skagafjordur ou o rosto humano calejado de Delphine Seyrig ou Stenislas Merhar, a arquitetura da obra do diretor americano é bastante distinta de Akerman em um ponto específico, uma vez que suas operações foram através da ausência de banda sonora por toda a sua carreira; o silêncio total é sua contraparte visual por definição.

Three Landscapes tem no grão do 16mm dos maiores responsáveis por esse procedimento de tornar o espaço palpável, bitola essa usada por Akerman e Babette Mangolte em Hotel Monterey também; a difusão da luz e a textura da película dando um caráter documental aos dois supostos documentários. No entanto, no que Akerman é crua e concreta em registro de espaço, Hutton é místico e etéreo. Ambos lacunares, ambos misteriosos, mas uma através da aproximação sangrada do que entendemos por realidade, o outro através das distâncias secretas entre mundos – em a ausência de som em Three Landscapes realça também essa distância, porque por paisagens entendemos um som, intuímos ruídos distante, sons se propagando ao infinito, mas ainda presentes, um murmurar dos tempos.

O que acontece quando se propõe um som a essas duas obras tão aterradas no silêncio? Vamos às breves profanações: assisti novamente ambos os filmes ouvindo dois dos meus álbuns favoritos: comentando Hotel Monterey, ouvi Ravedeath, 1972, de Tim Hecker; comentando Three Landscapes, ouvi F#A#Infinity, do Godspeed You! Black Emperor.

O álbum de Hecker, gravado em 21 de julho de 2010 numa igreja na Islândia e lançado em 2011, parte de melodias esparsas tocadas no piano se proliferando pelo espaço, como reminiscências que se esgarçam até esbarrar no noise e no drone, um conjunto ambient melancólico sobre a decadência e destruição de um lugar desconhecido. Combinado com os corredores vazios de Akerman, a sensação de abandono ganha uma ressonância diferente, como se o algo à espreita sugerido pela diretora ganhasse uma ameaça, sem sublinhar suas articulações.

Na longa sequência do elevador, o plano fixo da câmera estacionada no fundo observa o saguão, depois a porta fechada, depois os corredores pouco iluminados, volta para o saguão, volta para os corredores, e todo esse trânsito constante de pessoas e lugares coincide com o segundo movimento de In the Fog, cujos ruídos em loop sujando a melodia do piano abafado tornam a repetição dos padrões da viagem ainda mais soturnos, a duração inquieta dos planos de Akerman tornando-se quase ansiosa. James Benning contou em alguma entrevista que fazia seus filmes de paisagem, extremamente pacientes e com ações comedidas, como contraponto e antídoto justamente de sua ansiedade natural; na guitarra que rasga os loops ambient do álbum de Hecker parece que acessamos uma ansiedade de Akerman, mais sublinhada e pontuada, menos sutil, tão agressiva quanto.

Já na combinação entre Hutton e GY!BE, o abandono social articulado pacientemente pelas imagens do filme ganham contornos de puro horror. O senso de estranheza espacial da paisagem é provocado tanto por imagem quanto som, e a banda canadense transforma a calma insidiosa do diretor em suspense contínuo, tensão em combustão crescente. Num dos planos mais impressionantes, três trabalhadores realizam alguma atividade em cordas suspensas, numa altura absurda e perigosa; a visão mais próxima com as lentes teleobjetivas se concentram no caminho da ação, nos homens a trabalhar; a visão mais distante com as lentes abertas ressaltam o perigo do trabalho e a vastidão majestosa do céu que os engole, ocupando o quadro e trazendo uma dimensão ainda maior para aquele trabalho aparentemente trivial.

F#A#Infinity é pontuado por gravações de vozes como se em transmissões piratas de uma rádio no pós-apocalipse, com depoimentos sobre destruição e sobre o fim do mundo. E enquanto se tem essa imagem dos homens, a voz no álbum fala: “this is the perfect place to get jumped”. O tipo de diálogo de sombras involuntário, como uma batida de portas na sessão de cinema na qual assisti ao filme acordar um dos rostos que dormia na tela no Sua Face de Tsai Ming-liang, que enriquece tanto a experiência de assistir algo que não era para ter conexão tão imediata.

Ambos os exercícios são reimaginações e interpretações livres dos filmes; não evoco a ideia de uma pureza de obra na forma que foi concebida pelos diretores, até porque assistir a esses filmes 16mm em 720p não deixa de ser também uma profanação enorme. No entanto, ressalto que são filmes afônicos por essência, e é fundamental que sejam apreciados também como tais. Filmes em um silêncio específico, com o espírito aberto da descoberta e da ventura que Chantal Akerman e Peter Hutton tanto encorajaram com seus filmes; o som de uma sala de cinema viva respirando, ou de um quarto aonde assistimos filmes, na nossa casa, com a cidade insistindo em entrar pelas frestas e comentar involuntária, e crucialmente, essas duas obras do silêncio nunca total.

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SILÊNCIO – É PRECISO QUE OS MORTOS FALEM

Por Chico Torres 

Aqueles que foram silenciados precisam falar. Aqueles soterrados pelos vencedores de um tempo linear e uniforme, precisam, ainda que mortos, falar. A morte, aqui, em sentido literal e simbólico, com o poder de representar tudo aquilo que produz o emudecimento, que demarca o lugar do vencedor e do vencido. É preciso, então, que esses mortos falem, que ressurjam dos despojos do tempo e que possam dizer o que precisa ser dito. 

No campo artístico, o cinema é uma ferramenta eficaz para cumprir com essa função política da arte, já que consegue produzir diversos jogos e transgressões no tempo e no espaço para que possamos vivenciar as suas histórias e fundamentar outras narrativas para a História.  Quero tentar explorar um pouco melhor essas questões através de um olhar sobre “Mato seco em chamas”, de Joana Pimenta e Adirley Queirós. 

 O filme amplifica as vozes das gasolineiras que trabalham, lutam e se divertem com o máximo de autonomia que conseguem obter naquela realidade pré ou pós-apocalíptica. Por outro lado, penso que o que aprofunda o sentido político da obra não é propriamente o seu perfil militante, mas a fusão entre ficção e documentário e a utilização de planos longos na composição da narrativa. Nesse sentido, quero pensar como esses elementos compõem o filme através de silêncios que a meu ver contribuem para o aprofundamento do caráter crítico da obra. 

É possível apontar duas formas de silêncio em “Mato seco em chamas”. O primeiro é o silêncio das vozes emudecidas, o silenciamento. Esse tipo de mudez se apresenta como a expressão mais militante da obra, ainda que suas imagens não sejam convencionais. O silêncio que se faz presente, por exemplo, na madeireira onde as mulheres passam a trabalhar depois da ruína do seu negócio, ou antes do sucesso da empreitada (o filme joga com essa temporalidade circular). É o silenciamento de uma realidade invertida, de quem não é mais dono do seu próprio trabalho e, agora, apenas responde a comandos aleatórios. É preciso lembrar que essas mulheres constroem uma base de extração de petróleo, produzem gasolina e vendem para motoboys da região. Todas as etapas de produção são realizadas por elas: extração, industrialização e venda. Depois de experimentar a autonomia de produzir, o silêncio se apresenta, portanto, nesse lugar da subalternidade e da exploração.  

Outro momento que se utiliza desse tipo de recurso, agora através de um efeito de choque dentro da montagem, é o ônibus que se converte em espaço de festa para logo em seguida, em um corte abrupto, transportar as presidiárias para a penitenciária, todas bem sentadas, uniformizadas e silenciadas. Há no filme, portanto, a construção desse contraste entre expressão e silenciamento. As gasolineiras se expressam de diversas formas, mas há sempre a presença da repressão que tolhe, simbólica e literalmente, a liberdade daquelas mulheres. 

A filmagem da vitória eleitoral de Bolsonaro é a realização extrema desse tipo de silenciamento advindo de forças externas, só que em um nível de drama coletivo que agora não afeta somente as personagens, mas também nos põem calados. O que o traveling de quase cinco minutos impõe é também o nosso emudecimento incrédulo, porque somos espectadores daquele passado recente e traumático. Ao nos impor de uma vez por todas os limites entre ficção e realidade, instaura-se na obra o efeito da distopia e sua presentificação. 

Uma outra forma do silêncio se dá através dos planos longos do filme, revelando aspectos mais imagéticos e contemplativos. Os planos se demoram naquilo que é mais prosaico nas personagens, nos dando o tempo necessário para conhecê-las por meio de suas peculiaridades, em uma dinâmica de contrastes entre imagens/situações. Mais do que acompanhar a trajetória das gasolineiras, nós a sentimos em suas subjetividades, adentrando nos detalhes de suas expressões, contradições, falas e pausas. Contemplamos os silêncios do cigarro, do posto de vigilância, do trabalho da extração do petróleo, das danças, andanças e lembranças que preenchem suas vidas. Todos esses momentos compõem as frechas por onde nós espectadores devemos adentrar de quando em quando para preencher a história das gasolineiras da Ceilândia. 

O interessante é que o heroísmo daquelas mulheres acontece através da junção entre o prosaico e o grandioso. São mulheres muito reais, mas ao mesmo tempo estão envoltas em uma pictorialidade mágica através da construção dos planos e daquela ambientação apocalítica de futurismo precário. E assim se desenvolve a lenda das gasolineiras: uma ultra ficção dentro de uma ultra realidade. Talvez esse seja o grande mérito do filme, sua capacidade de documentar e ficcionalizar de modo que esses elementos sempre se interpenetram e se complementam adequadamente. 

 Quando nos deparamos com a interrupção da narrativa por causa da prisão de Joana (Léa) e vemos essa própria interrupção se converter em elemento estético para o desfecho da obra, mais uma vez o peso daquelas representações recai sobre nós, porque estamos de novo diante da realidade que se apossa da ficcionalidade (ou seria a ficção se apossando do real?), impondo os seus limites e nos fazendo adentrar nessa atmosfera ambígua e politicamente poderosa. O filme, por fim, é silenciado, mas no limite da voz ainda se deve falar e essa fala vem como denúncia contra o emudecimento. Ainda que exploradas, presas, mortas, impedidas de qualquer maneira, as gasolineiras procuram falar, existir e se constituir como uma lenda brasileira, com o devido respeito que todas as lendas devem possuir. 

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PARA AQUILO QUE SOBREVIVE

Por Luiz Pretti

I play because it is one of the things that come out of my existence. 

(Wadada Leo Smith)

Quando Pedro [Tavares] me convidou para escrever um texto sobre a influência do free jazz (música de improviso) no cinema, e também no meu próprio cinema, logo aceitei porque é um tema que me movimenta há bastante tempo e a oportunidade de levar essa conversa para a esfera pública não costuma aparecer. Nutro uma paixão duradoura pela música de improviso e uma inquietação enquanto realizador que me proporcionou certa experiência prática tentando encontrar formas de aproximar a realização cinematográfica do improviso musical, testando diferentes procedimentos de filmagem, descobrindo resultados estéticos variados. Vou passar por alguns experimentos e exemplos dos últimos 60 anos com o objetivo de mostrar a importância que essa expressão musical tem no cinema feito aqui e alhures, ontem e hoje. Não pretendo me deter em demasia sobre cada filme, mas a partir deles jogar luz nessa história pouco conhecida. Desejo ainda colocar alguns filmes dos quais participei, dirigindo, tocando ou montando, em diálogo com essa tradição. Falar um pouco de como temos trabalhado e pensado o improviso no cinema.

Podemos começar com alguns exemplos do que é possível ser feito colocando a música na trilha sonora. Lembramos rapidamente de Sarah Maldoror que pôs o Art Ensemble of Chicago em seu filme Monangambé. A música funciona como elemento dramático/psicológico para o que se passa com a personagem aprisionada e torturada, mas é também uma declaração política de Maldoror: se a revolução é um ato de radicalidade das pessoas que a constróem, a música revolucionária também deve ser um ato radical. Não é tão difícil de entender isso se ouvirmos, por exemplo, Albert Ayler ou Linda Sharrock, junto de imagens dos Black Panthers, façam o teste. Imagino que Koji Wakamatsu estava pensando nisso quando fez Êxtase dos Anjos. De um jeito menos óbvio e mais sofisticado Masao Adachi também devia ter isso em mente quando fez Serial Killer. Mesmo Ugo Gregoretti quando fez Apollon, una fabbrica occupata, devia estar levando isso em consideração, apesar da música mais reflexiva. 

Pelas bandas de cá pensamos logo em Alma no olho do Zózimo Bulbul onde ouvimos Kulu Se Mama tocada por Coltrane (a quem o filme é dedicado). Aqui também a música tem a função dupla de dramatizar e fazer uma afirmação política. Mas de Zózimo eu gostaria de lembrar um outro momento de sua cinematografia, o final de Abolição: primeiro vemos a estátua de Zumbi dos Palmares na Presidente Vargas, dois planos; ouvimos um sax furioso acompanhado de uma bateria não menos furiosa, baixo e piano; corta para uma imagem do centro do Rio de Janeiro, 1988, 100 anos após a suposta abolição da escravatura no Brasil, a câmera recua em travelling out e em seguida, num movimento de grua, desce revelando uma grade que antes não se via; a câmera estaciona e continua observando a cidade por detrás das grades; a música continua rasgando a imagem, sobem os créditos. De um lado, a música parece acompanhar a radicalidade revolucionária na figura histórica de Zumbi dos Palmares, que através de sua presença no filme faz oposição direta à data oficial da abolição. Por outro lado, a música grita o sofrimento que ainda assola a população negra no Brasil, nos dizendo que a luta segue, que as grades ainda precisam ser derrubadas. Esses poucos minutos parecem encapsular o que o filme estava dizendo até ali, e a música funciona como elemento intensificador, se adaptando, se transformando ao longo desses minutos.

Abro um parêntese, fugindo do assunto, para algo curioso que me chamou atenção. O final de Abolição parece diametralmente oposto ao início de Cidadão Kane, onde a câmera avança sobre a grade onde uma placa diz “não ultrapasse”. Para Welles, entrar pela grade é abrir as portas de um mundo misterioso que iremos conhecer, é começar a desvendar a figura de Charles Foster Kane. Já em Abolição não tem personagem a ser desvendado, o que temos é uma população inteira de desconhecidos que não serão desvendados. Coletivo x indivíduo. Opacidade x transparência. É possível que eu esteja viajando, é pura intuição essa interpretação. De qualquer forma, sobre Abolição e Zózimo Bulbul recomendo enfaticamente o texto de Bernardo Oliveira[1].

Para terminar o raciocínio em torno de Abolição, diria ainda que é elucidativo observar que na história do cinema brasileiro o cineasta que mais utiliza o free jazz em seu cinema seja um cineasta negro. Para além da linguagem musical compartilhada, ou seja, através da música falamos a mesma língua (Juçara Marçal aponta para isso em Delta Estácio Blues), essa constatação sugere uma relação umbilical entre o improviso, enquanto procedimento criativo (poderia dizer sobrevivência também) e a experiência diaspórica. Anos mais tarde Kbela[2], de Yasmin Thayná abriria uma nova página nessa história. Filme que retoma e dá seguimento a algo iniciado por Alma no olho, e, ao mesmo tempo, aponta para novos caminhos. No filme de Yasmin, a fúria do sax e bateria convive com o canto delicado de um ponto para Iemanjá. Um dos gestos mais radicais de nosso cinema recente, onde a música também exerce a função dupla de dramatizar e fazer uma afirmação política. 

Em The cry of jazz, de Ed Bland com música de Sun Ra, nos explicam que jazz é o grito de alegria e sofrimento do povo preto, uma música que só poderia ter sido inventada pela população negra, pois é a expressão musical de seu triunfo espiritual (poderíamos dizer o mesmo sobre muitos estilos musicais inventados nas diásporas africanas). Acho que isso nos diz muito sobre o uso que Bulbul e Thayná fazem dessa música em seus filmes. Me faz perguntar qual seria a presença da música improvisada, ou do improviso enquanto procedimento de realização, no nosso cinema, se ele fosse menos branco. O filme de Bland além de explicar o que é o jazz oferece um retrato da vida cotidiana negra, norte-americana, naquele momento. Penso que talvez o filme encontre um paralelo no cinema contemporâneo em Love is the message, the message is death, de Arthur Jafa, pois Jafa igualmente percebe e concebe sua arte como um grito de alegria e sofrimento. 

Sun Ra ainda nos ofereceu dois filmes importantes para a história da música improvisada com o cinema, o mais conhecido Space is the place, de John Coney e The magic sun, de Phil Niblock, que dirigiu esse filme, no entanto é mais conhecido por suas composições. Belíssimo filme em negativo, invertendo preto e branco, ressaltando o desenho das silhuetas dos instrumentos e músicos, acentuando através dos cortes os ritmos e texturas da música. Filme que talvez encontre um primo formal em New York eye and ear control, mais um belo e estranho filme de Michael Snow que termina com lindos retratos dos músicos que estão fazendo a trilha.

A princípio eu não ia me deter muito na história do cinema e nem em análises de filmes, minha ideia era dedicar a maior parte do texto aos trabalhos dos quais participei, em parte por ter mais intimidade com o assunto e me sentir mais à vontade de escrever, mas também por saber que esses filmes foram pouco vistos e que ninguém ainda se aventurou (ou se interessou) em escrever sobre a maior parte deles. No entanto, comecei diferente, então vou escrever sobre mais alguns filmes marcantes que podem nos ajudar a demonstrar como pode ser frutífera essa relação cinema-improviso. Dando certo, pode ainda servir como um pequeno panorama dessa história. Já sei que vou deixar muito de fora, então quem quiser conhecer mais filmes sugiro que leiam o artigo de Fabrício Vieira, Cinema e Free Jazz[3].

Step across the border nos oferece um exemplo de como a própria forma do filme pode incorporar uma lógica musical improvisada. A música deixa de ser elemento dramático e se torna o próprio objeto fílmico. Documentário sobre o guitarrista Fred Frith, concebido como um retrato do músico, o filme envereda por outros caminhos e resulta em uma obra regida por uma musicalidade livre que extrapola o gênero cinematográfico. Seguimos as andanças do músico por diversos países em um formato próximo ao road movie, como sugerido pelo título, gênero propício para se abandonar narrativa, pois o movimento do viajante cria a sensação de linearidade, mesmo quando inexistente. Através de cortes bruscos, saltos no espaço e no tempo, movimentos de câmera soltos, atenção aos detalhes na imagem, como por exemplo o efeito do vento nas coisas, e ainda o jogo constante entre as formas visuais e musicais, o filme se livra do formato didático, tão comum em documentários de personagens, e se apoia na força das performances enquanto espinha dorsal estruturante. Com isso, os diretores, Nicolas Humbert e Werner Penzel, conseguem criar a sensação de que estamos sempre no instante presente. Não importa a cronologia dos acontecimentos e sim a presença, no sentido de estar presente de corpo e alma. Desafio nada fácil e que talvez seja um imperativo para se filmar a música de improviso. 

Em muitos casos, a busca por essa presença parece conduzir a uma prevalência no uso do plano-sequência: a duração do plano como forma de garantir a integridade performática e musical. Podemos lembrar por exemplo da câmera flutuando pelo apartamento em The Connection de Shirley Clarke. Mas para falar sobre planos-sequências gostaria de ampliar o escopo do free jazz/improviso livre para o improviso em qualquer estilo musical. Isso porque eu gostaria de falar de alguns filmes brasileiros importantes que ao meu ver fazem parte dessa tradição e demonstram muito bem o que é a presença de quem escuta e vê. Esses filmes também servem como belos exemplos de como uma câmera e um microfone de cinema podem se comportar, participando do improviso, dialogando com a performance e com a cena. 

Partido Alto[4], de León Hirszman, feito com a colaboração de Paulinho da Viola, começa com o Candeia organizando, explicando e demonstrando o funcionamento de uma roda de partido alto. A câmera de Lucio Koldato passeia pela roda seguindo o compasso da música, tentando antecipar o que vai acontecer e acompanhar o caminho da fala de Candeia e o improviso entre músicos, cantores/as e dançarinos/as. A câmera precisa sambar se quiser participar. Depois, o filme vai a um encontro de partideiros. Mesa, comida, conversa, e a roda começa. A câmera continua zanzando em meio ao pessoal, os microfones fazem parte da cena. A única forma que a montagem encontra de cortar é fazendo uma elipse do dia para a noite. E a roda continua, momento lindo de cinema. Já todos bêbados, tropeçando nos versos, ouvimos em off a voz mansa de Paulinho “A roda de partido é um momento de liberdade, o partideiro mesmo tira o verso do improviso” e depois diz uma frase, que não poderia ser dita de forma mais clara, sobre a beleza da improvisação “A arte mais pura é o jeito de cada um e só partido alto oferecia essa oportunidade”.

Mais cedo no filme Candeia nos dizia “O samba de partido alto, em alguma forma, existe uma grande semelhança com a música nordestina, com repentistas nordestinos. Porque o samba de partido também tem aquela forma da improvisação, a improvisação que vai nascendo não só sobre o tema, refrão, mas também sobre ambiente, sobre um clima que vai se criando aos poucos”. 

A Cantoria[5], de Geraldo Sarno, documenta o encontro de dois cantadores de profissão, Lourival Batista e Severino Pinto, para um desafio em Caruaru. Aqui, o plano-sequência também prevalece como opção, mas ao contrário do que acontece em Partido Alto, Affonso Beato opta por manter a câmera fixa no tripé e observar a arte do improviso se desenrolar. Imagino que a decisão tenha sido feita a partir da própria forma como se dá a cena, os dois cantadores sentados, viola apoiada na perna, língua afiada. O público também permanece sentado ao longo da performance. No samba a câmera dança, na cantoria ela se senta.

Em dado momento no meio do filme a câmera usa o zoom que fecha o quadro e se aproxima aos poucos de Lourival e Severino, permitindo enfim uma quebra na rigidez fixa da câmera, nos colocando perto dos cantadores e gerando uma mudança na montagem que passa a cortar de um para ou outro. 

Sobre zoom vale ainda trazer uma cena que não é musical no sentido estrito, mas que esbanja destreza na relação da câmera com a cena. Fotografado por Dib Lutfi, O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla, nos oferece uma palinha da arte da sinuca com a participação de uma lenda do jogo, o sergipano Carne Frita[6]. Quis também trazer essa cena para o texto por exemplificar como a duração do plano-sequência é utilizada de forma a privilegiar as nuances da performance. Essa mesma cena cortada, utilizando vários planos, não seria capaz de abarcar a tensão a cada tacada e, mais que qualquer coisa, não seria capaz de capturar o pensamento vivo do Carne Frita. A presença da câmera consegue acompanhar as sutilezas das escolhas feitas pelo jogador a cada bola na caçapa. Dib consegue essa proeza se posicionando em uma altura acima da mesa, o que lhe dá um ângulo onde consegue ver tudo o que acontece no jogo sem que haja variação de foco excessiva, a uma distância que o permite fazer o plano geral com a lente aberta e o detalhe da caçapa com a lente fechada. Entre a movimentação do jogador e a da câmera ocorre um diálogo espontâneo que nos oferece algumas pistas do que pode ser um cinema aberto ao improviso. E como vocês podem ver, o resultado é de uma precisão que ultrapassa muita ficção controlada, onde filmar significa realizar o que está no roteiro. 

Quando fizemos Os Monstros em Fortaleza queríamos a princípio fazer um filme que fosse em si uma improvisação livre. Passamos um tempo debatendo o que seria um filme-improviso e depois de algumas ideias amalucadas desistimos. Mas de qualquer forma, decidimos que a última sequência do filme seria um improviso de guitarra e sax de bambu (Ricardo e Luiz) gravado pelos dois personagens técnicos de som (Guto e Pedro), cada qual com seu gravador, pois são instrumentos igual ao sax e a guitarra. A câmera é o quinto elemento e mais um instrumento musical participando do improviso[7]. Foi essa a direção principal que passamos a Ivo Lopes Araújo. Juntos entendemos que o plano-sequência com a câmera na mão seria a melhor opção. O filme já estava estruturado, na sua maior parte, por planos-sequências, às vezes fixos, outras com movimentos em panorâmica usando lente zoom e algumas poucas vezes com a câmera na mão. Filmamos essa cena em dois dias diferentes até acreditarmos que um diálogo entre nós havia realmente acontecido.

Essa experiência com Os Monstros foi de certa forma um ponto culminante de algumas outras tentativas de colocar música improvisada nos filmes. Gostaria de dar um panorama. 

O primeiro filme que Ricardo e eu fizemos em Fortaleza, também o primeiro da Alumbramento, nos mostrava tocando violão e flauta, respectivamente. O filme se chamava Às vezes é mais importante lavar a pia do que a louça, ou simplesmente Sabiaguaba. Antes mesmo de ir embora do Rio de Janeiro para o Ceará eu havia tocado o sax de bambu em um filme chamado Amador. Em Estrada para Ythaca fizemos uma cena onde os quatro personagens corriam em uma estrada de terra enquanto passavam a câmera de mão em mão: acaso controlado que é outra forma de dizer improviso.

Uns anos depois, no filme Com os Punhos Cerrados, optamos por uma tela preta enquanto se ouvia a Barry Guy New Orchestra. Tirar a imagem e deixar as pessoas ouvirem a música. Pode ser mais uma forma de levar a música para as telas, porque não? Na mesma cena, Uirá dos Reis participa de uma entrevista que concebemos como um improviso, reminiscência de uma das ideias amalucadas para Os Monstros. Na época, estávamos influenciados pela entrevista de Carlos Castello Branco feita por Antonio Pitanga em Idade da Terra, de Glauber Rocha, filme que considerávamos repleto de boas soluções para a pergunta de como trabalhar o improviso no cinema. 

Em O Porto[8], realizado por Clarissa Campolina, Julia de Simone, Ricardo Pretti, além de mim, levamos dois solos improvisados para o filme: Paal-Nilssen Love, baterista que costuma tocar com músicos brasileiros e Mats Gustafsson tocando um saxofone barítono gutural e angustiado sobre a estátua de Pereira Passos.

Alguns anos depois fomos convidados, Ewerton Belico e eu, por Ricardo Aleixo e Marco Scarassatti para participar de um encontro/performance/filme em torno de Exu a que chamamos de padê-improv e demos o título de Vira a Volta que Faz Nó[9]. Marco e Ricardo não queriam um registro da performance, mas que nós fizéssemos parte dela. O plano-sequência com a câmera na mão também foi o caminho escolhido, mas dessa vez havia uma diferença em relação a Os Monstros. Ricardo e Marco se movimentam muito, dançam e andam pela casa. O comportamento da câmera e do som precisavam entrar nesse baile. Aqui optei por manter a lente sempre fechada e me concentrar nos movimentos que me chamavam, evitando a armadilha de querer dar conta do todo e assumir meu olhar na condução da imagem. A gravação feita na casa de Ricardo em Campo Alegre fez parte do Improfest, festival brasileiro dedicado à música de improviso, existindo há anos sem praticamente nenhum apoio. 

Fizemos dois encontros, às segundas-feiras, logicamente. Essa versão do Improfest contém um desses encontros. Sentar, conversar, uma cachacinha, cozinhar, tocar, gravar, sentar de novo e conversar um pouco mais. Ritualizar e improvisar. 

No ano seguinte, também a convite do Improfest, me juntei com Francisco César, Natália Reis e Fáio Janhan para fazer Lava[10]. Também concebido de forma ritualística, evocamos a forma água, em suas diversas consistências e intensidades, enquanto imagem, enquanto som, para fazer uma lavação. Algumas palavras escritas e dispostas em um papel guiaram a tocada. Chico e eu gravamos a música, sax tenor e piano, e só depois enviamos para a Natália fazer o vídeo a partir da música, invertendo a ordem que costuma acontecer em produções de filmes, questionando a primazia da imagem sobre o som, desierarquizando essa relação. Alguém pode até se perguntar: isso é um filme? 

Enquanto escrevo percebo que precisaria de muito mais fôlego para conseguir falar de tudo que gostaria de falar sobre cada filme e cada experiência. Serei forçado a ficar na superfície das coisas, mas espero que o texto atice a curiosidade de quem chegou até aqui. De meu lado, fica o desejo de que essas palavras estimulem outras incursões no assunto.

Mas para finalizar um pouco sobre o que aponta para o futuro. Em duo com Marco Scarassatti seguimos buscando outras formas de seguir desvendando as possibilidades nessa relação entre performance musical e câmera. Dá pra dizer que é uma pesquisa contínua, sem o objetivo claro de gerar obras. Tem mais a ver com o jeito que queremos viver.

Em outra frente, fizemos uma mostra a convite de Samuel Marotta, programador do cinema no Minas Tênis Clube, em que a exibição dos filmes era acompanhada por uma trilha sonora tocada e improvisada ao vivo. Convidamos musicistas da cena local para participarem[11]. Preciso dizer da importância da QI: Quartas de improviso, que há mais de dez promove temporadas de improvisos entre musicistas e pessoas das mais diversas expressões, artísticas ou não. Atualmente lutando para obter recursos mínimos para viabilizar o projeto, as quartas de improviso seguem acontecendo com a curadoria de Henrique Iwao, Patrícia Bizzotto e Marco Scarassatti. Cine Improvisado: música das luzes, não existiria se não houvesse um evento como esse na cidade. Estar na sala de cinema, repensar seu uso, me faz atentar para soluções possíveis que nos ajudem a driblar, um pouco pelo menos, a dificuldade que encontramos com a exibição de filmes na atual conjuntura. 

Por fim, vale dizer que essas experiências influenciam também os filmes que não abordam tão diretamente a música de improviso ou o improviso enquanto método, pois o que se aprende ali é levado adiante e testado em outros contextos, afinal com as condições que tive até hoje só se faz cinema improvisando (e não seria exagero dizer que isso serve para a maior parte do cinema brasileiro, mesmo que não queiramos admitir). Bom, outros filmes foram feitos, estão sendo feitos e serão feitos. Mesmo que no meu caso, a esmagadora maioria das vezes sem recurso algum, infelizmente. Seguimos.


[1] Disponível em https://www.cinelimite.com/post/abolicao-o-cinema-atlantico-de-zozimo-bulbul

[2] Assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=LGNIn5v-3cE

[3] Disponível em http://www.freeformfreejazz.org/2022/08/cinema-free-jazz.html

[4] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=wmYhNYyUpCI

[5] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=iY05I-2qQn8

[6] Cena disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ckXfu4C-Vm4

[7] Assista aqui: https://vimeo.com/488090151

[8] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=m46Cqp1oTas

[9] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=aw0IP37e3Zc

[10] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=C9e7-GYMCfY&t=57s

[11] Disponível em https://minastenisclube.com.br/noticias/cultura-cinema-improvisado/.

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ISSO E NADA MAIS: SO IS THIS (Michael Snow)

Por Waleska Antunes

Letter to Jane (…) presents a critical analysis of a still single image, subjecting the photograph to an intensive ideological interrogation, completes a historical cycle. In so doing, it once again frame the question: when is a film a movie? Or: what is cinema?

(Annette Michelson, The Art of Moving Shadows)

A unidade primordial do cinema é, de toda forma, a noção de movimento, seja este da ordem do diegético, como um bebê a almoçar em primeiro plano, ou da ordem do mimético, com o vento farfalhando as folhas ao fundo. Porém, narrativo ou não, silencioso ou não, todas as histórias dentro do cinema possuem uma característica peculiar: em algum momento, a palavra se fará presente. É impossível que um filme não passe por qualquer vocábulo incólume, desde a sua concepção até à sua exibição. O ato de editar ou montar um filme exige um léxico imagético. Façam as coisas sentido ou não, ordenar, classificar e estruturar é uma espécie de sistematização do pensamento. Ou seja: por bem dizer, nenhum filme é, de fato, silencioso, no sentido amplo da coisa: mesmo quando não há som ou ruído, algo está sendo dito, na ordem do discurso.

Porém, mesmo que por via de regra a junção de imagens como um todo componham um filme e nós damos a ela sentido enquanto espectadores, unindo as narrativas cinematográficas e, através do princípio da montagem, criamos associações. Parece simples. Hollis Frampton defende que o filme é uma máquina de imagens, e nisso ele não está de todo errado.  Mas aqui falamos da junção de palavras. Palavras em grupos podem formar imagens e grupos de imagens podem formar palavras.

Mas o que se pode fazer com a palavra em si, enquanto elemento isolado?

As palavras, em teoria, não se movimentam. São seres estáticos e nós tentamos dar a elas movimento e ritmo com representações visuais (com as artes, plásticas ou não, e na literatura, como os poetas concretos faziam) ou com discurso. Mas a palavra em si não se move.

Logo, um filme composto de palavras é um filme?

É uma representação de discurso?

Afinal de contas a palavra não se move. Quem move ela somos nós.

Retornemos ao questionamento de Annette Michelson sobre Letter to Jane (1982), de Jean-Luc Godard, um filme sobre uma única imagem: Pode um objeto estático isoladamente em um plano cinematográfico ser um filme? Isso é cinema?

Que é possível se fazer um cinema sem som já se sabe. Mas e o oposto? É possível se fazer um cinema somente composto de palavras isoladamente e criar uma voz?

A good thing about reading words and not hearing voices is that you can’t accuse it of being male or female. Also, it’s pleasant not to having a voice yakking (about a film they’re going to make, for example). 

(Michael Snow, So Is This)

O pensamento de Michael Snow em termos de linguagem está no cerne de sua obra. Sejam em filmes como Wavelength (com a narração de quatro eventos no decorrer de um dia em uma sala e um glissando de uma onda sonora ao ponto de se confundir com a representação da onda do mar), Back and Forth (com a ida e a volta de uma câmera, e adição e subtração de elementos) ou no ápice da verbivocovisualidade (se é que tal palavra existe), com Rameau’s Nephew by Diderot (Thanx to Dennis Young By Wilma Schoen) onde as palavras se confundem com as imagens e suas enunciações, sendo um experimento mallarmaico pautado no acaso, uma espécie de lance de dados. Porém é em So Is This (1982) em que o elemento fílmico é reduzido a um só: um filme de uma palavra por vez em tela. 

So Is This é um filme estrutural e estruturado de maneira simples: cada palavra é exibida em um período de tempo, criando uma narrativa ao seu fim. Não temos ali um filme que conte uma grande história, mas sim um filme que questiona sua própria materialidade: faz-se um filme para falar que a palavra é a unidade individual da escrita e o frame é a menor parte constituinte de um filme. O que Snow propõe não é nada novo; ele mesmo o diz convocando nomes como Su Friedrich, Richard Serra e Drew Morey. Porém, é possível ir até a gênese da questão – afinal de contas, Sergei Eisenstein propôs isso trazendo à baila o princípio ideogramático para a construção de sentido na montagem, onde duas palavras formam uma terceira, e o mesmo se aplica ao ato de montar o filme – porém, ele o faz de maneira muito mais astuta: em um filme composto de uma palavra por vez, ele propõe exercícios discursivos de ritmo, voz, silêncio para além da simples narratividade. A palavra é a unidade significante, e é o que faz com que o filme se mova com esse objeto estático. 

Parece complexo, mas Michael Snow nos diz: esse é um filme que “não vai falar sobre si mesmo” (o que é mentira e torna Michael Snow um ‘narrador não-confiável’, um conceito muito caro à prosa como um todo), esse filme já foi feito por outras pessoas, este filme não é para crianças (representando palavras ‘proibidas’ rapidamente), pode ser censurado (ele o descreve como uma violência sexual e verbal, uma orgia de palavras!), esse filme pode ser recontado a quem está chegando (e mais de uma vez e em mais de uma forma), este filme é a junção de todas as cores em luz em uma tela negra, este filme pode ser odiado por quem não entende uma palavra de inglês ou por quem detesta quem lê sobre os ombros: afinal de contas, há uma voz que lê uma palavra por vez em vários ritmos e tonalidades. Você não vê essa voz. Ela é quem te vê. 

Em um filme onde cada palavra se expressa unicamente na tela, há a expressão do silêncio, da pausa e da risada por elas mesmas – a palavra Silence, Pause e até mesmo a representação do riso por um ‘Ha Ha Ha Ha’ – conseguem dar o tom em algo tão material quanto a palavra por si só. Snow conta piadas, uma palavra por vez, assobia insistentemente e propõe que se cante internamente, sem mover os lábios, a canção Somewhere Over The Rainbow, bate palmas, ri de maneira funesta e, sem dizer um “A” (com o perdão do trocadilho), ainda por cima questiona os limites da linguagem cinematográfica e da linguagem e sua representação, citando a proposição de Magritte em La Trahison des Images, de Magritte: ceci n’est pas une pipe.

Isso não é um cachimbo. 

Mas o que é isso? Isso é um filme? 

Isso é a representação de um filme? Isso é um espectro de Michael Snow falando por entre os ombros? Essas palavras se movem e falam conosco? O que é o Isso (ou o this ou o ceci), no fim das contas? O Isso plurivocal pelas tipografias e ritmos de montagem mas, ao mesmo tempo, silente e material da palavra em Michael Snow, constituem um universo de possibilidades discursivas e imagéticas por meio de algo estático e concreto, sendo anterior ao próprio cinema: na mais antiga das histórias se diz que, no princípio, há o verbo.

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ENTREVISTA: LEWIS KLAHR

Por Pedro Tavares

English version

Desde a década de 70 o prolífico realizador americano Lewis Klahr une técnicas de animação ao cinema vanguardista que através dos últimos anos ajudou a recontar e reler a história americana moderna. Dono de um trabalho único, Klahr passeia por pilares da cultura pop americana como os quadrinhos, pulp fiction, o film noir e tem uma relação estreita com o som – ou a falta dele. Conversei um pouco com Lewis sobre o seu trabalho de modo geral, e, principalmente, sobre sua relação com o silêncio, a dessincronia, a ausência, o ruído, trilhas etc.

Oi Lewis, obrigado por aceitar o nosso convite. Esta edição da revista é sobre cinema e silêncio.

Hmmm…Acho que o silêncio no filme ainda é um som altamente específico. Por exemplo, recentemente completei a trilha sonora de um novo filme intitulado Thin Rain. Inspirado no Film Noir, Thin Rain conta a história de um protagonista amnésico que perde a memória após ser atingido na nuca pelo cabo de uma arma. Antes desse ataque, a trilha sonora tem música sinfônica. Uma vez que o protagonista perde a memória a música acaba e é substituída pelo ruído branco de um faixa óptica analógica de 16 mm em branco. Chamamos isso de “branco” óptico, mas está cheio de som: estalos, arranhões e assobios!

O silêncio foi algo que me chamou a atenção quando vi um de seus filmes pela primeira vez em um cinema. Acho que foi Sixty-Six.

Eu uso principalmente o silêncio em Sixty-Six como um separador convencional do filmes individuais, um limpador de palato de curta duração (5-10 segundos). Mas o curta Ambrosia, que ocorre na última parte de Sixty-Six, é mudo e exigia um sequenciamento cuidadoso para posicioná-lo efetivamente porque obter um filme mudo seguir efetivamente um filme sonoro é um desafio estético. Os filmes em Sixty-Six que precedem diretamente Ambrosia precisavam gradualmente acalmar para ter algum sucesso. Considerando que, o filme que se seguiu Ambrosia e voltou a ter som, teve uma flexibilidade muito maior em termos de o que sua trilha sonora poderia conter.

Sixty-Six.

Eu gostaria, se possível, que você falasse um pouco sobre a relação de duplicidade imagem-som, já que suas imagens envolvem um caminho que sinto que é de emancipação justamente pelo uso do som.

Eu não descreveria minha relação com som e imagem como “dúplice”, mas esse é um pensamento interessante. Eu não estou muito claro sobre o que você descreve, mas tentando adivinhar o que eu suspeito que você queira dizer, eu raramente estou interessado em criar uma paisagem sonora “realista” ou completa. Muitas vezes minha abordagem resulta em um uso limitado ou focado de som em que apenas algumas partes do som que uma imagem pode sugerir são representadas auditivamente. Partes da imagem que não são representadas permanecem silenciosas e visuais.

Nos seus filmes costuma haver uma quebra de silêncio muito consistente, como o seu filme mais recente A Rosa Azul do Esquecimento, que me lembra um musical e logo se encontra na confluência do silêncio e de uma narrativa em signos fortíssimos.

Em A Rosa Azul do Esquecimento (The Blue Rose of Forgetfulness, 2022) acho que o exemplo mais claro do que você está perguntando sobre ocorre no quarto filme da série – Blue Sun. Este filme utiliza como material de origem imagens de uma história em quadrinhos do Agente Secreto da final dos anos 1960. Usei uma caixa de luz para iluminar os dois lados da história em quadrinhos e revelar sobreposições. Em minhas filmagens, procuro então colher o mais interessante dessas sobreposições. A trilha sonora de Blue Sun tem 3 seções diferentes, sendo a primeira a tocando ao contrário de O cisne de Tuonella, de Sibelius. Após 8 minutos a peça termina e esta exuberante música orquestral dá lugar a um ultra mundano som de paisagem urbana que registrei de pássaros cantando e carros passando que dura por aproximadamente 5 minutos. Depois disso, apenas nos últimos 30 segundos de imagens, há um silêncio que cria uma espécie de vazio, ou uma ausência, como o ar a escapar de um balão. A atenção total do espectador agora é brevemente dada às imagens. Todas as 3 abordagens ao som alteram significativamente à forma como o espectador experimenta a imagem. Essa mudança de envolvimento do espectador ao longo de toda a minha filmografia é uma parte importante de seu envolvimento e estruturação estética para mim. Concordo que posso ser descrito como fazendo “musicais”. No nível mais óbvio quando uso músicas pop como trilhas sonoras, as letras geralmente contam uma história e muitas vezes agem da mesma forma que o diálogo ou a narração de voz em um filme narrativo. Mas, assim como no cinema narrativo, em que o roteiro não é o filme, as letras também não são o filme aqui. Minhas imagens alteram, contradizem e também apoiam as letras. Por exemplo, em meu filme de 2010, Nimbus Smile, eu uso a icônica música do Velvet Underground, Pale Blue Eyes, como trilha sonora. No entanto, a mulher dos quadrinhos que estou usando como protagonista claramente tem olhos negros, não olhos azuis. Isso levanta questões sobre se ela é a mulher sendo cantada sobre. Simultaneamente a encenação é preenchida com imagens que contêm diferentes tons de azul. Espero que o público perceba e pergunte por que esse deslocamento de cor do azul dos olhos da protagonista feminina na letra está ocorrendo e o que ela pode expressar.

A Rosa Azul do Esquecimento

Em Prazeres Circunstanciais (Circumstantial Pleasures, 2020) não é uma mudança para o silêncio que acontece, mas uma grande mudança que ocorre de forma diferente através de uma viagem de trem com os sons de avisos e do próprio motor. Como você pensa sobre esse tipo de composição?

Prazeres Circunstanciais difere da maioria dos meus outros filmes porque é preocupado em descrever o mundo contemporâneo e apenas o muito recente passado. High Rise, o filme de trem que você mencionou acima, é o único filme da série inteira que não usa música para sua trilha sonora. É uma ação ao vivo, filmado no meu telefone na China durante o verão de 2016 em alta velocidade no trem viajando para Pequim. Filmado em um plano contínuo de quase dois minutos são as torres de passagem de um enorme complexo de apartamentos que está sob construção. Este complexo de apartamentos não tem som audível. O som de sincronização ouvido em High Rise é do espaço fora da tela dos trilhos do trem e do vagão de trem interior em que estou viajando. Este filme fornece uma forte contraste com os outros filmes que o precederam na série, já que nenhum deles são de ação ao vivo e todos usam imagens de colagem de quadro único. Mas uma coisa engraçada acontece – os prédios em construção são tão caricaturais como em aparência que vários membros da audiência me perguntaram o que exatamente eles estão vendo – se High Rise também é uma animação e não um filme de live-action.

O que me fascina nos seus filmes é que existe esse tipo de deslocamento, mas ao mesmo tempo há uma ligação muito forte com um período de tempo específico, como o Film Noir. Suas trilhas sonoras reforçam uma jornada no passado, mas o que você faz com o silêncio é um trabalho que se baseia na contemporaneidade a meu ver, principalmente quando falamos de cineastas experimentais. Você acha que há algum sentido nisso?

Sim, é uma percepção interessante. Ser um pensador associativo e montagista –  pretendo muito criar experiências que possam ser compreendidas simultaneamente de várias maneiras diferentes, mesmo que pareçam contraditóras ou paradoxais. Eu também incluo anomalias visuais em meus filmes de imagens atuais para deixar claro que meus filmes apesar de serem historicamente descritivos estão sendo feitas no presente.

Prazeres Circunstanciais

O som do cinema experimental tem alguma influência no seu trabalho?

Sim, claro. A influência mais óbvia é o meu uso da música, tanto pop e clássicos. Sou especialmente grato aos filmes de Kenneth Anger, Bruce Conner, Jack Smith, Ken Jacobs e Harry Smith. A maneira como todos eles usaram a música como fonte de material de colagem e também como elemento essencial de sua montagem foi seminal para mim como desenvolvimento para ser um cineasta. No entanto, acho que vale a pena notar que quando decidi as trilhas sonoras tão centradas na música como têm sido nos últimos 30 anos, isso foi considerado uma escolha muito inaceitável pelo mundo do cinema experimental. Lá era essa ideia (menos predominante agora, mas ainda existente) que ser music-centric estava fora de moda e era uma abordagem muito fácil – como se estivesse trapaceando (risos). Que ser centrado na música era algo que o filme experimental havia superado e deixado para trás, ao invés de ser uma escolha de gênero com um rica e fértil tradição e história própria com altíssimos padrões de eficácia assim como qualquer outro gênero.

E logicamente, seus filmes são intrínsecos à experiência de leitura de histórias em quadrinhos junto com a projeção que pode ser composta por trilha sonora ou não.

Meus personagens costumam falar na palavra balões das histórias em quadrinhos. às vezes o que eles falam não é para ser entendido e é por isso que as palavras são riscadas ou as frases são interrompidas. Esses balões de fala servem apenas para indicar que a fala está ocorrendo – há muitos momentos semelhantes em filmes narrativos onde o diálogo é inaudível. Além disso, às vezes eu corto um personagem de quadrinhos e deixo em anexo algumas palavras que eles estão falando na história de onde foram tiradas. Essas palavras raramente se relacionam com a história meu filme está dizendo. No entanto, essas palavras sugerem claramente a história dos meus personagens apropriados. Eu quero que o público pense sobre esta história do contexto original em que meus personagens existiram. Meus personagens falando em balões de palavras em quadrinhos raramente falam em voz alta. Eu realmente gosto desse tipo de deslocamento de ter o som aparecendo visualmente. A especificidade desta visualização que tento fazer como algo preciso e possível. Por exemplo, há um momento em Alceste, outro filme de A Rosa Azul do Esquecimento, onde a personagem-título tem um orgasmo e ela diz “Oh, Oh, Oh”. Isso é escrito à mão em caneta, enquanto normalmente, quando Alceste fala, aparece como palavras digitadas em balões de fala. A caligrafia transmite tanto a intimidade quanto a individualidade desse momento.

O quanto você quer controlar a interpretação do significado do seu filme e se isso é uma consideração para você durante o processo de criação?

Sim, considero a recepção do espectador ao fazer meus filmes. Por exemplo, a descrição do diálogo em Alceste que acabei de falar pode ou não ser compreendido por um público. Muitas vezes estou dizendo a mim mesmo uma história em minhas escolhas estéticas que sei que serão apenas parcialmente compreendidas pela maioria dos meus espectadores. Através de uma longa experiência de trabalho desta forma, eu tenho aprendido que cada espectador irá montar as imagens para especificidades idiossincráticas de seus interesses, experiências e subjetividades. Em efeito, muitas vezes inventam sua própria versão da história que tem pouco a fazer com o que estou tentando transmitir. Estou confortável com esta abertura de interpretação e considero isso um ponto forte da minha narrativa.

Falando especificamente da A Rosa Azul do Esquecimento, como você criou a trilha sonora do filme e como foi trabalhar com essas músicas como dispositivo dramático? Há um uso muito interessante de dessincronização [de-sync] nele.

Ao criar a sequência [de filmes] para A Rosa Azul do Esquecimento, encontrar o fluxo da música e do som tornou-se a prioridade de como os filmes me permitiriam sequenciá-los. Fiquei chocado com a especificidade desse fluxo. É provavelmente o sequenciamento mais forte dos meus filmes sonoramente que eu já criei. Eu sou especialmente satisfeito com o fluxo dos primeiros 4 filmes – Monogram, Swollen Kisses, Capitulations Promise e Blue Sun. Isso não é algo que eu intencionalmente defino para realizar, mas descubro como uma essência/aspecto desses filmes enquanto eu tentava sequenciá-los. Foi muito surpreendente para mim – eu nunca teria pensado em sequenciá-los do jeito que eu fiz. Por exemplo, eu imaginei que Capitulations Promise, o filme com a música da Lana Del Rey, nunca poderia seguir o filme Swollen Kisses com as canções de Julie London. Eu pensei que precisariam ser separados por causa de sua semelhança de sentimento e humor. Em vez disso, descobri a eficácia de sua proximidade intuitivamente através de um árduo processo de tentativa e erro que exigia múltiplas visualizações de diferentes sequências de teste. houve uma grande crueldade e honestidade necessárias para acertar. Trabalho muito duro! Quanto ao que você está chamando de “de-sync”, nunca ouvi esse termo antes e gostei muito! Eu mantenho a exigência muito alta em termos de ter motivos para usar uma determinada peça de música, especialmente canções pop. Muitas vezes é importante que a imagem entra e saia de sincronia com a batida da música para criar um contraste e contraponto ritmicamente. Como já disse,  estou muito interessado em mudar o envolvimento do espectador com a imagem à medida que o filme avança – então passando da música para o silêncio ou efeitos sonoros, muitas vezes produz uma significativa mudança que altera a forma como as imagens são absorvidas e compreendidas por um espectador. Eu também costumo editar imagens para serem muito ativas e rápidas em uma breve pausa silenciosa na própria música. Minhas edições estão continuando o ritmo e também criando um som silencioso que preenche visualmente essa lacuna auditiva.

Falando mais em de-sync, como você torna isso uma opção em seus filmes?

Swollen Kisses é um bom exemplo de como trabalho com o que você chama de de-sync. Criei um mash-up de músicas da Julie London onde ela é literalmente cantando consigo mesma. Tive a ideia de fazer isso porque estava atento ao fraseado de Julie London e o tempo claramente excessivo que ela pausas nas entrelinhas da letra. Esta pausa silenciosa foi longa o suficiente para permitir que outra letra de uma música diferente de London fosse cantada. A justaposição resultante das letras de 2 baladas românticas cria uma nova versão alternativa de ambas as músicas. Há uma abertura narrativa, poética oferecida por esta abordagem que encoraja a interpretação do espectador – um novo e terceiro fluxo que contém continuidades e descontinuidades assim como minhas imagens.

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QUATRO FILMES CURTOS

Por João Pedro Faro

Trata-se de um problema crônico, em geral. Surge da insistência por determinados experimentos e encontra, nos entraves da realização, um aprofundamento pela problemática crônica, pelo que resiste na persistência por determinada imaginação fílmica e pela posterior determinação de sua duração em tela. Nos pedaços de película revelados por uma câmera digital, ou em camadas de imagens pixelizadas sobrepostas por outras dezenas de camadas, inscreve-se a busca pela formação de uma imagem que seja inédita aos próprios registros que a produziram, a revelação de um organismo interior que consiga ser capturado através do rearranjo de suas formas originais. Podemos falar em termos de uma pequena expedição arqueológica de achados crípticos, típicos das profundezas e catacumbas, onde exista similar valor entre cavar e enterrar. 

Em sua cadeia de produção individual, Vinícius Romero estabiliza uma rede variada e particular de cinema, protagonizada por composições materiais de diversos processos cinéticos. Comenta-se, a seguir, quatro filmes inéditos.

Neste ar, de onde chega um fabuloso marinheiro para ocupar o seu lugar entre as esferas (2023) é um filme gerado por trabalhos de remontagem ao longo dos últimos dois anos. Nesse caso, as imagens acontecem por modulações de caráter superficial, são sobreposições entre registros digitais e filmagens em VHS que ressaltam as camadas superiores da tela. Flores, paisagens e atores de cinema, em balanço de potências, escorrem pelas suas cores saturadas, são liquidificados pela fricção dos meios de registro, a filmagem que filma a filmagem de outros filmes, despejos de pixels sobre grãos que formam correntezas de movimentos sobre as imagens. Mas o efeito não é apenas gráfico, torna-se fílmico na montagem, por composições fragmentadas de tempo onde as imagens escapam com rapidez. Algumas retornam em aliterações, outras se diluem por entre as variações temporais que montam uma sequência concisa (ainda que imprevisível) de formas. A montagem de Neste ar também deve ser notada, dado o uso do VHS, pela atribuição dos glitches em seu arranjo, que alterna planos como alternativa ao corte seco, uma colagem integrada aos efeitos, dividindo as cores, derretendo formas. Os glitches aparecem como uma atribuição orgânica da ferramenta de registro, dentro de um projeto soterrado pelas possibilidades múltiplas da artificialidade, o analógico convulsionado. 

Neste ar é um curta silencioso, com uma breve trilha musical protagonizando os momentos finais. Esse artifício é uma recorrência dentro dos filmes do Vinícius, quando um trecho sonoro aparece rapidamente após vários minutos imagéticos. É um efeito de razões esclarecidas, comum a quase todo tipo de cinema, o abandono e a presença do som, mas o que vale ressaltar são as variações específicas do método em suas diferentes reescritas internas. 

Nesses filmes, de caráter rítmico muito denso, comumente relacionado ao musical, a presença da música acaba por comentar-se de maneira inevitável. Em Los dias. Sálvame. Las noches. Hueco (2023), a estrutura é arranjada através dessas variações sonoras. Dividido em “movimentos”, propriamente determinados pela pontuação dos diversos títulos que existem dentro do título, trechos fílmicos são apresentados com recortada trilha sonora. As partes do filme são separadas por algumas telas-preta silenciosas (longas “pontuações”, reticências), que adensam o nível do efeito proposto por cada trecho de imagem e som. Los dias… consiste em seu trabalho por cima do fotograma digital aliado à dimensão de uma lente analógica, seus registros espaciais e luminosos que surgem de atravessamentos cotidianos, o problema crônico aparecendo através das crônicas. Os saltos entre os fotogramas unidos truncam a fluidez, não são imagens onde a abstração escorre pelo registro, ela é moldada por movimentos retilíneos.

O grande momento está na parte final, quando diversos cruzamentos entre luas passam pela tela preta. A lua faz diagonais aceleradas pelo quadro, muda de tamanho, se multiplica e desaparece. Um trecho de programações mais simples, estabelecidas em um efeito objetivo na reorganização astral, que demonstra não apenas sua qualidade temática como também trabalha por possibilidades mais raras da sobreposição, buscando por imagens que, amontoadas, se dissipam ao invés de aglutinar.

Ruler of the great heavens, are you so slow to hear crimes? And so… / Hieronymo está louco de novo (2023) é um caso contrário ao anterior. O curta, dividido por duas cartelas de texto que apresentam outro título fragmentado, é de fixações por textura e suas ocorrências abissais. São rearranjos multidimensionais de natureza obscura, ondas intensas de texturização que apontam para choques entre diferentes movimentações internas. Alguns rasgos luminosos atingem a superfície do quadro, outros giram tridimensionalmente. As imagens sem som variam através do corte por seus modelos de estrutura material, mesmo quando desprovidas de uma forma fixa. Podem ser vistas como ferrugens ou infecções, são imagens que se alastram pelos cantos e para dentro de si mesmas, constituições caóticas de luz. E a conclusão é novamente sonora: em um último plano nítido, um pôr do sol visto do mar é sobreposto por um trecho de canto, um deslocamento final que dialoga com todos os outros.

O Quarteto de Dante (2023) é outro tipo de variação sistêmica. O título e a estrutura do filme comentam Brakhage, mas seu processo caracteriza sua particularidade esportiva de apropriação (que pode ser tanto lúdica quanto cínica, dependendo do espectador). Ele usa a revelação de película através da câmera digital como uma unidade de movimento vertical, o atravessamento dos frames pintados em uma coluna contínua que se movimenta no quadro, de baixo para cima (o que já  o diferencia de Brakhage, cuja colagem entre pinturas se dá por cortes de variação molecular frame-a-frame). A tela é divida em quatro, aproximada, afastada, mas todas as mudanças se dão em níveis de enquadramento, enquanto a película segue a trilha da coluna vertical. As texturizações da tinta na película variam pelo relevo, se espalham em dimensões rasas, ramificam-se por envergaduras coloridas ou reluzem como superfícies plásticas endurecidas. A luz, processo mais custoso às revelações materiais que possibilitam qualquer filme, é outra protagonista do processo que rearranja suas capacidades. Quarteto de Dante protagoniza a luz mais constante de todos os filmes comentados anteriormente, no fundo branco que reluz o frame para possibilitar a revelação da película e que, constantemente, escapa pelas frestas das pinturas como um segundo plano.

Essas projeções comentadas revelam permanências experimentais aliadas a um esforço de atribuições. Nesse terreno fertilizado com sal, interessa ser percebida certa constância obsessiva por ideias a serem testadas por seus próprios limites, em uma corrente afirmativa de problemas. Uma série de realizações cuja maior preocupação sugere ser o efeito da dissociação através de diversas associações, composições onde o registro se torna a forma, esculpe a si mesmo até perceber o que permanece e o que se desfaz.

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À SOMBRA DA SAUDADE

Por Gabriel Moraes

Antes mesmo do início, um aviso nos informa de que o filme foi intencionalmente não legendado. Já de partida, estamos diante de um distanciamento da palavra falada que supõe uma estética que se faz sobre uma certa forma de silêncio, que se faz com uma linguagem de hipervalorização dos espaços, corpos e objetos em quadro; uma estética que leva ao limite a fisicalidade como premissa de construção tanto do impacto sensório quanto das estruturas de significado da diegese. Se a palavra é um dos instrumentos mais eficientes para a elaboração discursiva de um filme, para a engenharia de um projeto de ideias que tende a se valer do texto para orquestrar a própria hermenêutica na qual procura operar, caberia, a partir desse disparador, avaliar quais pontos de acesso um filme que resigna abertamente esses caminhos pretenderia conceber.

É certo que levantar uma questão dessa ordem implica pensar problemas de espectatorialidade, e ainda que a essa altura seja um assunto muitas vezes desgastado e infestado de lugares comuns, Dias (2020) age diretamente sobre princípios epistemológicos e empíricos do ato de espectatorialidade. Narrativamente, o filme não poderia ser mais simples: a sinopse de duas frases que se encontra por aí basicamente resume a totalidade da história. Há uma cena de planos longos em que um personagem realiza tarefas de casa – lavando a salada e descascando legumes – à qual é impossível assistir sem pensar em Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman. Em muitos sentidos, não é por acaso, porque em Dias, assim como também muito se falou do cinema de Chantal, “nada acontece”.

Levada literalmente, é claro que a expressão é uma falácia autoevidente, mas o seu teor pejorativo parte não de um lugar genérico, mas específico: é uma resposta de uma espectatorialidade arraigada sobre um modelo narrativo institucionalizado que atravessa a história do cinema americano. A questão, portanto, não é exatamente que “nada acontece”, mas que não acontece nada do que deveria acontecer. O ponto de ruptura está na noção de que, para Chantal – tal como para Tsai Ming-liang –, a maneira com que um conjunto gestual se dilata no tempo é definidora da matéria histórica e dramática que articula os significados de um corpo no mundo. Para a narratividade de um cinema americano informado por “escolas de roteiro”, drama e história são problemas de estrutura narrativa mais do que de imagem; são questões de encadeamento de causa e consequência entre blocos narrativos mais do que de desenvolvimento da ação no plano.

A aproximação entre Dias e Jeanne Dielman não pretende assumir que os significados da dilatação entre os dois filmes são os mesmos, já que a viscosidade dos dias para Tsai, por exemplo, é muito mais melancólica do que opressiva – como é o caso para Chantal. O sentido da comparação está em como, apesar dessas e outras diferenças, ambos estão similarmente localizados diante de uma certa expectativa narrativa e estética. Tendo estabelecido esse parti pris é preciso, no entanto, investigar a especificidade de Dias em relação a esse terreno, caso contrário o argumento se bastaria indistintamente para qualquer filme de planos longos sem amarrações convencionais de roteiro.

Se o filme de Chantal parece sempre reconhecer tacitamente – e lutar contra – a força gravitacional dessa normatividade narrativa, temporal e estética na epiderme de suas imagens, de tal modo que a densidade atmosférica que transcorre Jeanne Dielman sob a chave dos seus conflitos de gênero é também uma metáfora sobre os regimes de visibilidade implicados nos instrumentos de um fazer cinema hegemônico, fazendo com que o filme ocupe ativamente o lugar da disputa, Dias, por outro lado, é uma espécie de travessia sobre o pathos da solidão contemporânea das cidades, que existe em uma dimensão estética alternativa, pós-narrativa – se pensada em termos convencionais. Enquanto para Chantal importava tensionar as estruturas simbólicas hegemônicas atacando suas fronteiras, para Tsai o movimento está mais ligado à criação de um arsenal estético autônomo – ou seja, cujos significados não se organizem como terceiros da oposição entre duas estruturas simbólicas, mas nos seus próprios termos.

Assistir a Jeanne Dielman é como assistir a dois filmes em um: em primeiro plano, aquele no qual “nada acontece”, e em segundo plano, o regime de visibilidade no qual todos aqueles filmes em que as coisas “acontecem” estão sublimados no reconhecimento de que o que existe entre as suas elipses é a matéria mesma de construção do filme de Chantal. No caso de Dias, temos o inverso: o filme é como uma ilha esquecida pelo tempo cujos referentes simbólicos naufragaram em terras distantes e agora o que resta é o mergulho nas águas profundas de uma cosmologia soberana que avança sobre si mesma a todo vapor. Em outras palavras, é um filme de imanência radical do plano: só o que importa, só o que há, é o que está na superfície da imagem. É um filme sobre o qual não se poderia dizer que algo está à flor da pele, porque a fisicalidade não é circunstancial: à flor da pele é um ser e não um estar, é uma condição de existência das suas imagens.

Em Dias, os elementos que compõem uma imagem cinematográfica – corpos, espaços, objetos, cores, movimento – não formam uma estrutura de representação, não reportam a uma realidade exterior os seus significados. O filme é uma experiência estética que testa os limites do exercício sensório que se dá entre um corpo e uma imagem no ato da espectatorialidade, e é aí que precisamos retomar a questão inicial do texto. A cena da massagem no hotel, ponto-chave, a partir do qual tudo parece orbitar ao redor, lida intensamente com diversas camadas da experiência estética. Ela tem um efeito hipnótico que dialoga com o ASMR – no sentido de suscitar uma atração sensorial pela audiovisualidade. A cena também leva ao paroxismo a elaboração de intimidade e tesão como elementos estéticos, a partir da qual, inclusive, faz-se uma relação de expectativa e catarse que é inerente à própria composição do plano, com uma masturbação em extracampo que dobra a aposta na economia de atenção que se pretende gerar sobre a superfície.

Se a relação entre excitação e gozo é a de um processo constante de estímulo rumo a um extremo de prazer, a cena da massagem é uma tentativa de produção do gozo estético, ou, dito de outro modo, como criar uma dimensão de fisicalidade, a partir de ferramentas audiovisuais, que se aproxime em intensidade o máximo possível de uma experiência sexual. Por isso, a espectatorialidade é um problema importante para Dias: não é sobre ver um filme, mas sobre literalizar a premissa de experienciar um filme, como um ato de corpo e alma. A imagem cinematográfica como esse evento que se faz no modo com que um corpo sente o atravessamento de uma audiovisualidade.

A cena em si é de uma potência acachapante, porém o que verdadeiramente define a sua força é o contraste com todas as outras que existem ao seu redor: imagens geladas, cheias de espaços negativos no plano e afundadas em sentimentos de solidão. Dias é como um grande experimento kuleshoviano de dilatação. Da mesma maneira que, para Kuleshov, o objetivo era compreender os resultados durante um processo de montagem entre A, B e A no qual A apareceria reconfigurado a partir do contato com B – ainda que se tratasse da mesma imagem –, para Tsai, é como se a cena da massagem no hotel fosse B e todo o resto fosse A.

Por mais que, ao pé da letra, não se trate da mesma imagem relida por uma nova chave de significação, a possibilidade de aproximação com Kuleshov está dada porque a diferença de narratividade entre as imagens, entre o que está acontecendo em cada uma, se o personagem está andando na rua, observando a paisagem ou fazendo tarefas de casa é bem menos decisiva do que as experiências sensíveis que elas conseguem produzir a partir da solidão. No fim das contas, outras situações poderiam estar sendo encenadas. A coerência entre elas é estética mais do que narrativa. O fluxo e a continuidade que devem ser gerados são da ordem das sensações, dos sentimentos, das sensorialidades.

O que faz a cena da massagem no hotel agir sobre o filme como um deslocamento de placas tectônicas não está ligado a processos de identificação e construção de personagem, ao contraste com lógicas narrativas de solidão, situações específicas de melancolia, e sim o contraste com mais de uma hora de imagens plasticamente pensadas para alimentar um certo estado de espírito, uma certa paisagem emocional, um certo terreno de sensações. É emblemático, inclusive, que o primeiro e único contato entre os personagens se dê também plástica e não narrativamente. Vemos Kang (Lee Kang-sheng) sentado na cama do hotel, corta e no plano seguinte já estamos na massagem. Não há cena de contato prévio, ligação, não há contextualização narrativa alguma. A causalidade é secundária em comparação à imanência do encontro entre dois corpos no plano.

Ao fim do filme, os dois retornam à solidão de uma rotina que vai permanecer inalterada. Na prática, o encontro não muda nada na vida deles, é uma mesma imagem que se repete, mas os significados dessa melancolia tornam-se drasticamente distintos. Enquanto imagem vista, mero registro de espaços, corpos e gestos, é uma repetição. Tal como em Kuleshov, a reconfiguração da imagem não é visível, mas sensível. A caixa de música, presente que se torna um pequeno artefato de transcendência do encontro, dá um lastro no tempo para uma intimidade efêmera que vai para sempre ressignificar a penitência de vidas que um dia viveram o paraíso, e que agora estão fadadas a revivê-lo como miragem para o resto dos dias.

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DESCRIÇÃO SILENCIOSA: REASSEMBLAGE (Trinh T. Minh-Ha)

Por Georgiane Abreu

Enquanto estudante de antropologia, muitas questões éticas e delicadas passam pela cabeça a respeito do encontro e das trocas com os chamados “interlocutores”: é possível construir relações simétricas? Quais os limites entre a curiosidade comum e o modo curioso invasivo? Não sabendo como responder a estas questões, escolhi como interlocutores, um arquivo e uma série de documentos.

Convivendo com o ressentimento de poder ser classificada como antropóloga de gabinete, esbarrei com uma cópia de Reassemblage em um curso sobre arte como imaginação política e que boa surpresa esse encontro: um documentário produzido por uma mulher e que, apesar de realizado há 40 anos, apresenta questões muito próximas às minhas. Foi como encontrar um tesouro obscuro, capaz dessa identificação mágica que só os filmes atemporais carregam. 

A tal descrição silenciosa a que me refiro no título do texto diz respeito à maneira como a multiartista vietinamita Trinh T. Minh-Ha pensa a forma discursiva de seu filme, expressa pela conjunção entre as escolhas formais e políticas que vão da captação das imagens à densidade produzida pela montagem, com jogos de transição em cortes rápidos. Privilegiando a opacidade e o rompimento com a descrição verticalizada dos acontecimentos, a diretora utiliza a camada sonora como aquilo que move o filme. 

No caminho contrário de alguns documentários recentes, em que o voice-over fica entre a autoficção e o egocentrismo disfarçado, em Reassemblage o documentário etnográfico ganha uma camada ensaística com as intervenções em voz da realizadora, um voice-over econômico, sussurrado.

Essa economia no discurso falado parece uma forma de respeito pelo que está acontecendo à sua frente: a vida das pessoas senegalesas que Minh–Ha acompanha e que ganha movimento fílmico a partir de uma observação muito atenta às camadas sonoras, produzindo um silenciamento inverso ao esperado e que, de maneira delicada e ativa, busca por um lugar menos assimétrico entre a observadora, a estranha, aquela figura chegante e as pessoas locais.

Não pretendo falar sobre, apenas falar por perto.

Na sequência do letreiro inicial, com o título do filme e o nome da realizadora, a tela preta indica lugar e tempo – Senegal, 1981 – e é preenchida por música, um código localizado, com suas batidas ritmadas. Depois de uma sequência muda, com imagens de pessoas de todas as idades, a diretora finalmente fala: I do not intent to speak about, just speak nearby. Suas intenções estão condensadas nesta frase.

Ao aportar numa África, tantas vezes visitada e categorizada por estrangeiros, inserindo-se num espaço já consagrado dos documentários, que descrevem e sedimentam o outro como o africano, o primitivo, o elo perdido das civilizações, Minh-Ha chega falando baixo e ouvindo bem, ainda que não domine as línguas que encontra pelo caminho.

Ao falar por perto daquelas pessoas, que também a observam de longe – com a desvantagem de não poderem ativar o zoom -, a diretora vai tentando responder a uma pergunta que lhe fazem: 

– Um filme sobre o que?

– Um filme no Senegal.

– Mas o que no Senegal?

A beleza da não resposta a essa pergunta faz com que experimentar aquela aldeia seja nosso único compromisso ao embarcar no fluxo das descobertas do filme. Coordenar o ritmo da música com o ritmo do trabalho na comunidade; a capa azul do senhor que aparece produzindo corda me remete a Noir Blue (2018) e os movimentos ritmados de Ana Pi; o corpo está presente e ativo em tudo naquela comunidade senegalesa.

“Criatividade e objetividade parecem correr em conflito. O observador ansioso coleta amostras e não tem tempo de refletir sobre a mídia usada. ”- foi como consegui traduzir uma das falas de Minh-Ha, que escolhe pensar criticamente sobre o seu papel ali, ao invés de descrever o que vê. A imagem por si só já não serviria como descrição? “Para muitos de nós [antropólogos], uma maneira de ser neutro e objetivo é copiar a realidade meticulosamente. Falar sobre. ”

A certa altura a diretora diz “A realidade é delicada” e cruzar essa realidade com os conhecimentos que adquirimos ao longo da vida nos leva a produzir significados sobre tudo que experimentamos. Uma nota no caderno de campo de Trinh T. Minh-Ha e os significados que ela deve ter produzido e escolheu guardar para si mesma. 

Um atravessamento de significações que a diretora compartilha fala sobre o calor e a escolha de usar um chapéu para proteger-se do sol, fato que vira chacota entre as mulheres locais. A pesquisadora assinala o fato de se perceber observada. Porque acreditamos que somos os únicos com o olhar ativo numa relação como esta? Será a câmera? Lembrar que está sendo vista também te deixa desconfortável? Voltamos ao filme. As mulheres pilando e um zoom no seio descoberto, plano que dura segundos. “Um filme sobre o que, meus amigos perguntam”. Sobre ser mulher no interior do Senegal? Talvez. Também. 

Interessada, tomei esse filme como aula e uma das lições mais preciosas diz respeito a forma como a diretora define o que aconteceu enquanto esteve naquela comunidade: “O que vi foi a vida olhando para mim”. Escolher a forma de dizer e mostrar isso é o que torna tudo mais interessante. 

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RUÍDO E SILÊNCIO – NEAR DEATH (Frederick Wiseman)

Por Bernardo Moraes Chacur

Com quase seis horas, Near Death (1985) é o documentário mais longo realizado por Frederick Wiseman. É também um dos seus filmes de foco mais restrito, quase não se afastando de uma UTI em Boston. Ao longo de sua duração, as situações se alternam, mas uma certa dinâmica se repete: a comunicação evasiva que se estabelece entre a equipe do hospital, de um lado, e pacientes e familiares, de outro. São diálogos sempre à beira do colapso, limitados pelo jargão e pela constante fuga da responsabilização jurídica, de um lado, e pela incredulidade e limitação física, de outro.

É uma barreira condicionada, em parte, pela nossa relação com a medicina moderna, de quem sempre esperamos prognósticos de salvação. Alguns dos doentes mostrados no decorrer do filme convivem há anos com uma rotina de internações e pioras, mas demonstram uma nítida dificuldade em compreender que as chances de recuperação finalmente se esgotaram.

Mas a julgar pelo que assistimos em Near Death, a responsabilidade por essa incompreensão recai principalmente sobre a linguagem médica, repleta de fórmulas retóricas e eufemismos. É uma dificuldade ressentida pela própria equipe do hospital e verbalizada em mais de uma discussão interna, um embaraço que advém do sofrimento das famílias, da desigualdade de conhecimento e das complicações que surgem na relação entre pessoas e uma instituição. A exemplo de outros trabalhos de Wiseman, vemos profissionais aparentemente bem-intencionados em situações nas quais transparecem algo de absurdo e revoltante, um elemento cuja origem e extensão escapam a qualquer explicação fácil.

Há ainda outros limites: pacientes praticamente incapazes de falar, de quem os médicos precisam extrair sinais de entendimento. Ou a imprecisão do conhecimento clínico, quando melhoras e pioras desmentem previsões que haviam sido longamente debatidas.  E, em meio a todo esse quadro, há um silêncio significativo:  o dos responsáveis pela limpeza, transporte de material e de pacientes, vários dos quais negros, movimentando-se na periferia da imagem ou observados em seus afazeres em cenas rápidas e sem diálogos, em claro contraste com a verborragia da equipe médica.

Finalmente, um outro elemento marcante é a racionalização dessa experiência extrema: vale notar a leveza – real ou dissimulada – com a qual o corpo médico encara a própria rotina. Entre esses dois elementos – a comunicação vacilante e a negação da seriedade da morte – Near Death explora como o inevitável se torna praticamente indizível.

Agradecimentos a Gabriela de Sousa Nunes e aos editores e colegas da Multiplot.

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THE BROWN BUNNY OU AS FLORES NA ESTRADA

Por Gabriel Papaléo

(…) e enfrentar, sem mais, não a vida, que é muito grande, mas a frágil armadura do presente”

Alejandro Zambra, A Vida Privada das Árvores, 2007.

Uma moto num circuito, uma moto no deserto, uma moto no escuro de uma caçamba. A imagem forte de uma moto sendo domada pelo movimento de alguém anônimo debaixo do capacete é a eleita por Vincent Gallo para personificar toda a fuga física e psicológica de seu personagem em The Brown Bunny, seu último longa-metragem lançado antes do sumiço autoimposto de Promises Written in Water, e a subsequente aposentadoria do diretor. Uma imagem simples e arriscada, nada trivial, como costumam ser as imagens de Gallo. No começo a moto está em círculos, disputando contra os outros pilotos até a dilatação do tempo transformar essa experiência de catarse em melancolia imersiva; no deserto de sal do Vale da Morte, é uma miragem distorcida pelo campo de visão do calor insuportável, distante e perdida aos poucos, numa fuga e numa dor que não sabemos acessar. A voz calma, serena, conduz a estrutura do filme na estrada entre as corridas do piloto, pontuada por promessas descumpridas e assentamentos silenciosos. A intensidade maníaca do olhar de Gallo e seu rosto angustiado guardam um filme solitário e extremamente furtivo sobre o abandono.

Como nos contos de estrada de Kelly Reichardt e nos retratos de trânsito de Jem Cohen, para ficarmos em dois cineastas contemporâneos a Gallo que também se interessaram pela solidão de quem viaja para fugir, o ambiente esvaziado reverbera uma trama fantasma, de histórias outras que ocupavam aquele espaço antes e nunca vemos, mas percebemos pela melancolia impressa no ambiente e no rosto dos atores. Não por acaso os três diretores costumam trabalhar com a película em 16mm, a matriz visual de The Brown Bunny; o registro entre o documental e o místico que a latitude imprecisa e o campo de visão enevoado da bitola dá uma intimidade maior à distância entre a câmera e as paisagens, entre a lente e o rosto de Gallo. O grão mais forte e as luzes mais estouradas são fundamentais para a costura do filme, na disposição hipnótica para o arco dramático do personagem.

Wendy e Lucy e Chain, dois outros excelentes filmes de estrada de Reichardt e Cohen, respectivamente, são rodados nesse mesmo 16mm que embaça o ambiente e captura os lugares como se fossem reminiscências, memórias frágeis, envoltas ao abandono social que acomete as duas protagonistas de cada filme; existe um comportamento acossado pelo capitalismo e suas entranhas mais perversas, mesmo que exposto por sentimentos mais soturnos e internos, mais reféns de uma inevitabilidade estrutural, e daí tiram suas forças. Diferente de ambos, a malaise de Gallo é mais individual, menos reflexiva sobre o Estado, mas tão sócio-política quanto. A violência dos signos masculinos que rodeiam o filme são sentidas sem a menor necessidade de comentário sublinhado, porque tem seu ataque perverso fundado nos traumas de imagem e de orgulho, uma culpa de morte surgida da impotência de um parâmetro impossível e egoísta de ser cumprido.

É nessa dimensão da estrada, nessa calmaria e melancolia dos entreatos, que a van de Bud atravessa – e nisso o papel da trilha sonora na captura desse sentimento é fundamental. Composta inteiramente de músicas selecionadas por Gallo, a trilha entra em três momentos chave de trânsito no filme, três preparações para encontros centrais, fugidios como tudo o que o personagem toca aqui. O folk de Gordon Lightfoot e Jackson C. Frank preparam outras flores da estrada, na contemplação da estrada silenciosa embalada pelo motor de som baixo da van que cruza os Estados Unidos, e demonstram o apreço do diretor pela voz mansa, o tom secreto, a voz e violão de homens melancólicos que cantaram sobre a solidão do personagem em seus discos três décadas antes da jornada trágica de Bud. Já o murmúrio de Jeff Alexander em Come Wander with Me, distinto em forma mas não em tom, é pregresso ao encontro com os pais de Daisy e o seu coelho marrom, essa responsabilidade suspensa em vida interrompida por uma desgraça não-contada. Gallo suprime a letra da música e mantém apenas o instrumental e o murmurar da voz, antecipando algo familiar, quase uma cantiga, instaurando com economia um mal-estar que não fica totalmente claro até a revelação final.

O embalo letárgico que conduz e atravessa The Brown Bunny origina justamente desse trauma suspenso; sua estrutura dramática é remontada quase como seu próprio oposto, um evento transformador que é primeiro sentido para só depois ser compreendido, um convite do diretor às sensações simples e honestas pelas quais já declarou ser seu majoritário interesse. Suas capas letárgicas encontram paz no trânsito, mas sem soluções, sem dilemas esmiuçados; mais como paliativo dessa dor.

A sequência do encontro com Lilly, uma das melhores do filme, representa esse tratar momentâneo das angústias. O silêncio, a dinâmica estabelecida só pelos olhares, sem diálogos claros ou passados dramáticos, mapeia todo aquele ambiente de beira de estrada, um espaço de trânsito, sem possibilidade de escolhas ou futuro, um não-lugar. Esse silêncio se estende na cuidadosa mixagem do som baixa nos poucos diálogos, mais interessada em contemplar os sons ambiente das paisagens que as palavras – e mesmo em diálogos importantes para a trama, mais próximos do final, Gallo não abre mão de os deixar difusos, em meio à guia sonora do ambiente, porque as vozes baixas fazem parte da consciência de Bud e da forma que esse universo se articula.

O som das músicas também é estilizado, mixado não como se tivesse tocando no rádio, embalando a viagem, mas como se tocasse atrás da cabeça do protagonista, escondido em suas memórias, sem reverberação. É um movimento similar ao álbum musical When, lançado por Gallo via Warp Records dois anos antes de The Brown Bunny, na disposição pelo acústico distorcido pelas ondas da guitarra, guardando a voz suave do diretor confessando seus estados mais complexos; o ruído da produção em lo-fi e a simplicidade das letras funcionam como um complemento sensorial do filme, como a trilha que Bud comporia para sua dor. Mas como a operação de Gallo é na furtividade, nunca se cai numa autopiedade ou numa crise de consciência masculina banal; é na voz abstrata e persistente da ferida que não se regenera onde adentramos.

O que culmina invariavelmente numa catarse dramática: dois amores perdidos, se enfrentando pela última vez, trancados num quarto. Num filme tão calcado nos silêncios e na atmosfera, é surpreendente o controle de modulação dramática de Gallo nessa sequência, um expurgo total de passados insuficientes e escavação de erros e mais erros. A duração da briga do casal é sentida nas minúcias, se estende no abandono que viram xingamentos que viram compreensão que viram afeto para virarem abandono novamente. E mesmo quando se conduz pelos diálogos, é à furtividade que Gallo retorna: o segredo no ouvido de Bud e Daisy no final, que não ouvimos, para dar conta de um lugar rarefeito de um sentimento mais etéreo ainda, de uma alma perdida e um coração sem rumo, presos para sempre num quarto anônimo de hotel.

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A MELODIA MUDA DO DESTINO: O SILÊNCIO (Mohsen Makhmalbaf)

Por Felipe Leal

É a princípio enigmático, diríamos até “incompreensível”, este Silêncio que intitula o filme (Sokout, 1998) do iraniano Mohsen Makhmalbaf, posto que, mesmo na condição de cega, a criança que protagoniza sua itinerância demonstrará ter domado todos os outros sentidos, do paladar ao tato à própria “visão”, justamente nos ouvidos, sendo ademais afinador de instrumentos enquanto vocação e por necessidade ainda em tenra idade, visando ajudar a mãe solteira pagar as contas depois que o chefe da casa, seu pai, fugira à Rússia.

Na vida do pequeno Khorshid não há senão tremor, intensidades, aliciamentos advindos dos choques sonoros. A gênese da obra, então, doce gentileza, coloca-nos a natureza de SEU jogo com o silêncio, filme à sua maneira tão caro à palavra “perspectiva”: três ressoares de um punho batem à porta, ao que duas figuras despertam e iniciam, ainda anônimas, seus ritos de “introdução ao mundo”, como nascessem a ele tanto quanto a nós através da persuasão específica daquelas reconhecíveis notações externas. A mulher, que logo perceberemos ser sua mãe, atende à porta com gestos hábeis, enquanto o menino profere uma oração para que (cert)a abelha que ouve “zanzar” encontre seu caminho, à luz do dia, livre de maus presságios.

Ao longo dos 76 mins. desse elogio à vida como arranjada pela música (que é, por sua vez, através da criança e também ao nosso deleite auditivo, uma espécie de supra-faculdade do verdadeiro-ouvir-das-coisas), o trabalho técnico-sonoro do filme enfatiza sua faixa de estridências avolumadas como que para torcer o real, co-enxergado ao lado dos olhos de Khorshid, e fazê-lo legítimo quesito das especificidades de cada percepção. Percepção produtora de estímulos físicos (dentre os quais é possível selecionar, a depender da orientação, o rumo superior dos esforços vitais). Logo: corpos designados OU NÃO por caminhos que são entendidos como suas “MÚSICAS” (próprias).

Todos os dias o menino deve proceder, então, ora com os ouvidos diligentemente tapados pelos próprios dedos, ora com chumaços grossos de algodão sobre a cavidade auricular, para que não ceda à musicalidade invasora da rua e se perca, uma vez que poucas pessoas sabem de sua particular des-orientação distraída, rumo aos sons de belas canções. Sua vida requer dupla delicadeza porque lhe acomete, cotidianamente, aflorar o mecanismo de prazer que os ouvidos representam. A força embriagada, contraditoriamente compositora, de uma cítara ou bandolim “ocasionalmente passando”, introduz em seu corpo um universo mais revelador e convidativo, mais puro e verdadeiro, mais SILENCIOSO e falante que qualquer regra ou comando de qualquer superioridade. Mas se tal “faculdade” o amaldiçoa com uma segunda errância, ela também presenteia com uma sobrenaturalidade que extrapola o poético. 

Ao escolher romãs ou enfileirar-se ante as vendedoras de pão à rua para vir à escolha do mais saborosos, ele balança o interior das frutas, buscando ouvi-las rente à bochecha, ou seleciona a ambulante com a voz mais encantadora, pondo a magia (re)encontrada na garganta sobre a expectativa das mãos que fabricaram o alimento. Gradativamente, o “silêncio” a que a obra remete passa a ser não só uma “disciplina” de entendimento profundo com as propriedades intrínsecas de cada matéria presente nos ritos da vida, redobrando-os em tal potência de sabor inegociável, como uma ética de conduta cuja destinação, cuja “utopia” (finalidade), é a da entrega a um festim cada vez maior à liberdade corpórea, a ele redenção e não menos entidade máxima a ser compreendida em orquestra, sob aquela mesma rigidez que o singulariza.

O que é lido externamente como “excentricidade vadia”, a saber, uma vida “menor” pois dedicada e deliciada ao êxtase musical e às “essências das coisas”, esta mesma vida que os bandoleiros cantarão, próximo ao garoto, nos mercados, em oposição ao destino do sábio, colocando ambos em polos distantes, mas pertencentes a mesma linha de loucura – será feito louvor milimétrico.

Se Yasujiro Ozu colocou o plano-tatame à excelência (plano à altura da elegia confessional de seus personagens domésticos, enraizados de joelhos à tradição), Makhmalbaf desloca a predileção testemunhal à região boca-nariz-ouvidos. Ele faz do território essencialmente experimental da infância, ali onde surge a fixação dos primeiros gostos e reconhecimentos, uma insurgência minuciosa dos AFINAMENTOS propícios entre “viver” e “instrumentar”. Inúmeros planos do filme são close-ups dedicados ao comando da menina Nadereh, exímia bailarina e ajudante de Khorshid, sobre o próprio pescoço, assertivo voto de Minerva sobre a finalização exata do refino dos instrumentos em confecção.          

Quando há transe nas cerejas, que esta pequena sacerdotisa porta nos ouvidos, é que “há música no instrumento”, ainda que ali subsistam, em teoria, os seres menos experientes (infantes!) para tal avaliação. Que o estopim moral da até então existência do menino seja a acusação dos moradores da vila de que os instrumentos musicais do comerciante não possuem qualidade, verdadeira gota d’água ao que tem a alma nos ouvidos, é um debate passível de remediação somente se o bardo que outrora lhe encantou os ouvidos e fê-lo se perder pela “incontagésima” vez puder testemunhar a favor da musicalidade contida naquele ouvido, aos olhos do mundo suas mãos e voto. Makhmalbaf será novamente sábio ao não fornecer o “destino esperado” à canção… nem ao roteiro qualquer tipo de comprovação da falta-de-poética do indivíduo mundano.

De encontro com a trupe de bardos, Khorshid vive o primeiro presente encomendado quando o locatário acaba por despejar sua mãe e pertences da casa: despossuído de “tudo (o que é material) ”, ele pede que seja tocado “o galope do cavalo”, pois “está partindo para muito distante”. Terá encontrado O SILÊNCIO interior com o último acorde-lembrete da vida que nunca lhe interessara possuir? Como “ouve” a água e “enxerga”, nela, a mãe flutuando num barco com nada mais que três itens em mãos, é ali que decide por seu golpe de independência, naquela similitude entre poética (permitida) e realismo (roubado)?

Quando perdido pelo acaso dos dedos que destamparam as orelhas, ele se perde…, mas na realidade se encontra. Indomável por natureza, como pode então, por sentido social, assentir ao rumo daqueles que de olhos abertos mesmo assim não veem? Suas lições aos instrumentistas e artesãos do ferro, do barro e da casca soam, afinal, delírio… até que, quando é preciso convidá-lo à orientação por entre as vielas, um dos artífices que havia lhe negado o “sermão musical” segue o protocolo previamente sugerido pelo garoto. A música apaixonada, entoada, en-tocada, embalada de sinceridade com a matéria é “quem” o recobra os sentidos. A pureza o reconduz “ao lugar”, salva-o de uma perdição que já não sabemos nós mesmos onde pode desaguar. O feitiço que o acomete será, com precisão, sua cura.

Inextenso de alegria, num novo enigma cênico, ele envenena todos os mercadores de um êxtase embalado com as mesmas mãos que sempre empunha à frente do próprio corpo, fazendo-se lido não pela cegueira, mas pela hiper-visão. O gesto repetido revela seu avesso. Um fator messiânico extrapola da montagem, pois que nosso olhar se esgueira, não mais buscando o “som correto” (justo, preciso, musical) tão-somente no ar que regurgita a corda da viola, mas numa eletricidade que possa existir entre aqueles dispostos à dança. O ritmo é sua humanização e socialização e descobrimento. Um raio de vocação o atinge – aliás, o confirma -, em meio à baderna, que nenhum passante sequer (e literalmente) se detém para ouvir: isto é, para entender como manifestação não-deliberada.

No interstício do perceptível, o silêncio grita uma re-ligião. Trata-se de um filme espiritual, não poético, como outrora se pensara. Uma re-ligação encabeçada por criança “muda” aos olhos de muitos. Indiferente, ela, com o mesmo fervor, à multidão.

Pois em busca dos ouvidos.

Em busca de uma canção imprópria.

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OBITUÁRIO: WILLIAM FRIEDKIN

Bêbado de azul e vermelho: William Friedkin está vivo

Por Rubens Fabricio Anzolin

     A função cinematográfica se mostra então eminentemente
favorável à obra inovadora do demônio.

(O cinema do diabo, de Jean Epstein)

O olho. A testemunha, a chave de acesso por onde entra o demônio, o portal que permite transformar-se em outro. Os olhos arregalados de Max Von Sydow em O exorcista, o desatino fulgurante de Al Pacino em Parceiros da noite, a fúria sombria de Benício del Toro em A caçada. O gesto de olhar: atingir algo, fitar um objeto, absorver e ser absorvido. Tudo começa no olho — depois do olho nada mais é igual. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre o olhar.

O corpo. Corre desmedidamente. Sua, agita-se, dobra-se e retorce, tal qual uma massa de modelar. O corpo é uma plataforma, que zanza incessantemente por todos os lados, rápido e arteiro, mas também frágil e sensorial. É um sintoma do meio: o corpo adere àquilo que está ao seu redor, é o instrumento pelo qual instala-se a selvageria, o caos, o conflito. O corpo possui e é possuído. Tudo no cinema de William Friedkin é uma questão de possessão.[1]

As coisas. Deslizam. Às vezes ligeiras demais. Às vezes lentamente.  Chocam-se até se converterem em rastros pelo ar. As coisas pegam fogo, tornam-se pólvora, viram partículas de guerras interiores e exteriores. É difícil capturar as coisas, elas se alternam rapidamente, trocam de dono, de aparência, de usabilidade. As coisas são para o bem e as coisas são para o mal. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre como filmar as coisas, como dar movimento à matéria do mundo de modo que até o mais estático dos enquadramentos adquira uma energia caótica.

A topografia. Localiza cada um dos personagens em um breu, radiografa seus sentimentos. Não se trata de uma mera questão de geografia, é sobretudo um estado de espírito: Comboio do Medo e Parceiros da Noite são filmes terrivelmente azuis; O exorcista é embalsamado, fosforescente e esfumaçado, composto de neblinas; Viver e Morrer em Los Angeles queima a pele, é indissociavelmente vermelho, como também o é Possuídos, mas dessa vez com um vermelho diferente, um vermelho cristal, refletido, quase branco. Caçado é gelo. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre ficar embevecido de cores e estágios mutáveis de sensações, é sobre um estado de espírito dominante, avassalador, quase homogêneo.

Os homens. São braços do estado, da instituição, do status quo. São também a ponte para que cada um desses órgãos, da polícia ao FBI, da Igreja ao exército americano, sejam corrompidos pela indissociável, mágica e cruel realidade do mundo real. Os homens de William Friedkin — e seus filmes em boa parte são sobre isso, homens — são frágeis e indeléveis. Eventualmente podem ser cruéis, mas são sobretudo frágeis, carcaças quebradas de um mundo mecanizado que sucumbe aos seus próprios traumas e mistérios. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre traumas e mistérios, sejam eles do corpo, da carne ou do sobrenatural. Nenhum de seus personagens passa ileso a eles.

A madrugada. Foi onde conheci os filmes de William Friedkin. Suas obras me educaram no calabouço das madrugadas quando não havia nada que poderia parecer mais aconchegante e desafiador do que uma imagem de dois carros se chocando vertiginosamente pelas ruas de Los Angeles ou Nova York. Não haveria nada de mais enigmático que o rosto celestial de um jovem Willem Dafoe sob o bálsamo de uma magnânima luz vermelha numa câmara de revelação de fotografias. Afinal de contas, colocar fogo em todas as coisas sempre foi uma opção das mais razoáveis, e ele fazia isso como poucos. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre colocar fogo em todas as coisas, ativar aquilo que foi esquecido ou deixado de lado, dar à matéria outra significação que possa parecer a destruição total ou o acendimento de uma nova partícula de força sob a luz das chamas. 

Se William Friedkin está morto, coloquemos fogo em suas vestes, para que ela possa transformar-se então em outra coisa, para que o sujeito possa ser possuído pelo outro tal qual seus próprios personagens. Não poderá haver inércia, é tudo movimento.

William Friedkin está morto: ele está mais vivo do que nunca.


[1] Luiz Fernando Coutinho escreveu um texto exemplar sobre possessão no cinema de William Friedkin. Algumas de suas ideias estão neste parágrafo. https://limiterevista.com/2021/03/30/a-possessao-no-cinema-de-william-friedkin/

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CINEMA E SILÊNCIO

EDITORIAL – CINEMA E SILÊNCIO

Chico Torres

MAL TROPICAL: O RASTRO DO RASTRO

Luiz Soares Jr.

DO SILÊNCIO ÀS PALAVRAS DOS OLHOS: DISINTEGRATION LOOPS 1.1.

Pedro Tavares

DÉPAYSEMENT: SILÊNCIO E RECUSA EM LA NOIRE DE

Ana Júlia Silvino

ANOTAÇÕES SOBRE QUEBRAR O SILÊNCIO: ASSISTINDO HOTEL MONTEREY E THREE LANDSCAPES

Gabriel Papaléo

É PRECISO QUE OS MORTOS FALEM

Chico Torres

PARA AQUILO QUE SOBREVIVE

Luiz Pretti

ISSO E NADA MAIS

Waleska Antunes

ENTREVISTA: LEWIS KLAHR

Pedro Tavares

QUATRO FILMES CURTOS

João Pedro Faro

À SOMBRA DA SAUDADE

Gabriel Moraes

DESCRIÇÃO SILÊNCIOSA: REASSEMBLAGE (Trinh T. Minh-Há)

Geo Abreu

RUÍDO E SILÊNCIO: NEAR DEATH (Frederick Wiseman)

Bernardo Moraes-Chacur

THE BROWN BUNNY OU AS FLORES NA ESTRADA

Gabriel Papaléo

A MELODIA MUDA DO DESTINO: O SILÊNCIO (Mohsen Makhmalbaf)

Felipe Leal

OBITUÁRIO: WILLIAM FRIEDKIN

Rubens Fabrício Anzolin

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Festival ECRÃ: Vermelho Bruto (Amanda Devulsky, 2022)

Outros caminhos

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Deve ter sido bem dolorido para Alessa, mãe de Raquel, 9 anos, tentar acalmar a filha, que “queria ter virado o voto do vovô”, quando a menina se deu conta da eleição de Jair Bolsonaro. É um dos momentos mais tocantes — e mais transformadores — de “Vermelho Bruto”, primeiro longa-metragem de Amanda Devulsky, tanto pela comoção de uma mãe que, com a voz embargada, tenta acreditar ao dizer que nem tudo estava perdido quanto pela potência que esta cena encontra dentro da escolha formal da diretora: num documentário que apresenta as histórias de quatro mulheres, raramente vemos os rostos destas personagens.

Com origens, classes sociais e estruturas familiares diferentes, Alessa, Eunice, Fabiana e Jô têm em comum o fato de terem sido mães ainda adolescentes, em Brasília, no período da redemocratização do país, entre 1985 e 1995. Projeto antigo da cineasta, o filme se apóia basicamente em duas matérias-primas: imagens de arquivo destas mulheres e registros feitos por elas mesmas ao longo de 2018, ano-chave para a captação do conteúdo. Justamente o momento em que a democracia brasileira entrou em crise. Um ponto de partida que parecia traçar um estudo sociológico, já que o filme aborda rejeição, machismo, responsabilidades antecipadas e dificuldades econômicas.

Mas as escolhas são bem diferentes. Quando decide, num documentário de personagens, que essas histórias serão contadas só por suas vozes, sem o ponto primordial de reconhecimento de alguém, o rosto, Devulsky assume o risco da falta de identificação e é mesmo difícil estabelecer quem é quem nos primeiros relatos do filme. Além disso, os trechos de voice over são intercalados por uma terceira gama de imagens, abstratas, poetizadas por filtros, zooms, recortes e sobreposições, retiradas dos arquivos ou dos registros que as personagens fazem do cotidiano. O efeito desta dinâmica pode ser frustrante para quem acredita que um documentário precisa ter um recorte efetivo, mas liberta o filme de um cárcere formal.

“Vermelho Bruto” pode ser associado a um cinema de fluxos que tem ganhado muitos e diferentes exemplares nos quatro cantos do mundo. Um cinema em que o não dito tem tanto ou mais importância que o dito e, inclusive, o completa, projeta e distorce. Por isso, é tão simbólico quando, num filme que parte de histórias individuais para representar um estado de espírito, um incômodo, uma condição, algo muito mais amplo e impalpável, se recorra repetidas vezes às imagens de fungos que, vistos de tão perto, parecem composições estelares. Se foge ao desenho mais íntimo de cada uma destas mulheres, Devulsky, numa escala dilatada de espaço e tempo – quase 3h30 de duração -, discute a existência, feminina ou não.

Um caminho curioso para a coautora das comédias dramáticas cheias de ironia de Marcus Curvelo. Mas, como responde Jô, num dos vários momentos em que o filme se abre para a intimidade de suas personagens, tudo é sobre por onde seguir:

Tá sumida!

Eu não, percorri outros caminhos.

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Festival ECRÃ: SINF0N14 (Raúl Perrone, 2022)

Amor pelas imagens

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Na sequência final de “SINFON14”, atração do Festival Ecrã, o veterano argentino Raúl Perrone parece tentar desconstruir seu filme. A trama, se é que alguma obra do cineasta pode abrigar esse conceito, já acabou e numa cena de bastidor, em preto-e-branco, ele conversa com seu protagonista, Edgardo Cozarinsky. Entre várias outras coisas, diz que as imagens mais belas que ele já captou são aquelas em que seus atores mal sabem que estão sendo filmados. Registros espontâneos de beleza pura. Pode até estar sendo fiel a seus sentimentos e ao que enfatiza (“imagens que captou”), mas se há um diretor atual que consegue fazer artesanato em seus filmes, este é Perrone. “SINFON14” é a prova disso.    

Como em “Casanova e a Revolução”, os personagens, nobres aristocratas, dividem uma carruagem, mas ao contrário do longa de Ettore Scola, em que uma fotografia clássica ilumina rostos conhecidos, aqui o cenário é noturno e a viagem, profana e lisérgica, ganha tons e representações fantasmagóricas. Em praticamente todas as cenas, Perrone explora essa atmosfera sobrepondo imagens, distorcendo, dilatando e multiplicando rostos, criando pinturas em composições exuberantes ao longo de todo o filme. É um caminho curioso porque esses quadros que partem da deformação, como se simbolizassem a perversão sexual daquelas pessoas, encontram resultados que se não negam, complementam a busca do diretor. São registros construídos, mas de beleza pura.

Essa construção reforça uma obra que se move entre onírico e o herege, que não tem intenção de ser decifrada, que existe pela força das imagens que consegue produzir.

A busca por dar significados extras às imagens é o motor de outro filme presente na programação do Ecrã, o colombiano “Testemunhas Silenciosas”. Neste caso, as imagens dos filmes são “roubadas” de outras criações, obras da época do cinema silencioso que o também veterano Luis Ospina decidiu resgatar sob a ideia de criar uma narrativa completamente nova a partir delas. Com sua morte, Jerónimo Atehortúa Arteaga assumiu a tarefa, adicionando uma nova camada de resgate ao projeto. Enquanto Perrone cria imagens para estabelecer o ambiente de seu filme, Ospina e Arteaga reagem a imagens criadas por outros para transformá-las e, em algum nível, honrar sua própria memória. Em ambos os casos, são dois filmes que olham para a matéria-prima no cinema apaixonados pelo poder que ela tem.

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