JEAN COCTEAU SE DIRIGE AOS ANOS 2020

Por Bárbara Bergamaschi

     Jean Cocteau previa que, nos anos 2000, os jovens artistas não estariam sentados e muito menos entre duas cadeiras*[1]. De fato esta parece ser a pré-condição de existência do artista no Brasil de 2019 (em breve, 2020). Hoje, mais do que nunca, vive-se sob a ponta dos pés em um constante estado de emergência, prontos para o devir-desvio da torrencial chuva de descalabros vertiginososo preferidas por um (des)governante digno de Ubu-Rei. Como pierrots tragicômicos, os artistas se equilibram de maneira peri-patética no ar, sendo lufados de um lado para o outro pelos furacões do mau-tempo. Os ataques convocam defesas, e assim vemos poetas – se me permitem uma imagem “ao estilo” da veia mitológica de Cocteau – com de escudos de Perseu, tentando lutar contra os monstro ctônicos contemporâneos.

            A retórica se baseia em um espelhamento, é preciso trabalhar dentro da lógica do “inimigo” que impera: justifica-se a existência da arte por números e cifras. É o que se vê na cartela de encerramento de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, por exemplo: ”Este filme produziu cerca de XYZ… quantidade de empregos, de renda, de lucro… Veja como a nossa arte gira a roda da economia!” Ora, não desmerecendo o mérito e o esforço do argumento, mas não haveria um perigo inerente à essa lógica? Filmes de baixo orçamento e que não mobilizam um grande número de profissionais e público pagante não tem valor para sociedade? Devem ser descartados? Não tem razão de existir?

            Tendo este panorama distópico em mente, me pergunto: como produzir algum tipo de pensamento sobre o valor da arte para além de um discurso da rentabilidade alinhado à lógica do capital? Em tempos de ataque à cultura e aos artistas, como pensar o trabalho de um poeta- para além das justificativas financeiras e industriais? Como produzir uma nova forma de pensar a  “economia das imagens”[2]?  É isso que investigarei nessa crítica do filme “Orfeu” (1950)  de Jean Cocteau, retomado recentemente no Brasil pela montagem dirigida por Felipe Hirsh da Opera-adaptação de Philip Glass, encenada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro no final do mês de Outubro desse ano.

Tudo que não invento é falso. – Manoel de Barros

            Jean Cocteau, o cineasta surrealista, representante mais notável da avant-garde francesa, dizia que sempre preferiu a mitologia à história porque: “a história é feita de verdades  que eventualmente se transforma em mentiras , enquanto a mitologia é composta de mentiras que eventualmente se tornam verdades”. O mito de Orfeu foi a narrativa privilegiada escolhida por Cocteau para servir de parábola sobre o papel do poeta na sociedade – e por poeta aqui entende-se todos aqueles que fabricam algo da ordem da aesthesis, obras que agenciam os cinco sentidos, em suma qualquer artista, aí incluso músicos, pintores e cineastas. Cocteau adapta o mito grego para o seu tempo na trilogia orféica composta por: Sangue de um Poeta (1932),  Orfeu (1950) e enfim no Testamento de Orfeu (1960).

            O mito original conta a tragédia do poeta e tocador de lira homônimo, que a todos emocionava com suas composições e cantos. Orfeu perde sua amada, Eurídice, e resolve descer ao Inferno para trazê-la de volta à vida. Após ultrapassar todos os obstáculos do submundo com sua cítara – sendo inclusive capaz de adormecer e amansar a temida besta-fera Cérbero, cão de três cabeças, guardião do portão do Inferno –  Perséfone, mulher de Hades e rainha do submundo, concede ao poeta à alma de Eurídice. Ela autoriza que retorne ao mundo dos vivos com sua esposa, desde que não olhe para trás durante o percurso. Orfeu não consegue manter sua promessa, pois no último segundo se vira para ver se alma de Eurídice o acompanha. Neste momento ela é rapidamente puxada de volta para o mundo dos mortos, sumindo em um piscar de olhos. Resulta em um fim melancólico a Orfeu que, desolado, termina despedaçado no rio Hebro pelas Bacantes (também conhecidas como Ménades), mulheres do séquito de Dionísio, que não se conformam com a indiferença que o poeta reserva à sua lascividade e erotismo.

            Na nova visão cinematográfica do mestre francês, o famoso poeta “Orfeu” (Jean Marais) encontra-se em uma fase madura, já reconhecido por seus pares e, por isso, vive enfastiado com sua mulher e vida burguesa. Em meio a uma briga de bar, apaixona-se de forma obsedante por uma personagem misteriosa, a rica Princesa (Maria Casares), patrona dos jovens poetas da cidade, que descobrimos se tratar, com efeito, da própria Morte. A paixão é reciproca, e a Princesa orquestra o sequestro do poeta para a dimensão dos mortos, arquitetando também a morte prematura de Eurídice (Marie Déa), esposa de Orfeu, por quem nutre um terrível ciúmes. Dividido entre o amor terreno e o etéreo, Orfeu se aventura nas profundezas do inferno, a princípio com a motivação de salvar sua esposa, porém, vê-se que sua real intenção é explorar o próprio inferno interior e por fim unir-se com o seu verdadeiro amor: a morte, que oferece-o vida eterna – desejo, em última instância, de todo poeta.

            Uma primeira indagação que o filme de Cocteau nos propõe é pensar a da figura do poeta. Afinal o que é um poeta? Para que existe? Qual sua função na sociedade?  Na Grécia antiga acreditava-se que os poetas eram aqueles que eram visitados (geralmente em seu sono) por uma das nove musas[3]. Nesse encontro mítico era o momento no qual ocorria o que hoje nós nomearíamos como a “inspiração”. Assim, o produto artístico chegavam aos homens como resultado da união do divino e do profano. As obras de arte eram, dessa forma, consideradas como algo da ordem do sagrado. Os poetas na Grécia, eram seres escolhidos pelos deuses, ponto de contato entre dois mundos, eram, portanto, extremamente respeitados. Na narrativa de Cocteau, esta função “relacional” do poeta é bastante evidente na misé-en-scène em que Jean Marais se torna obcecado pelo rádio que sintoniza a frequência do submundo onde mora Maria Casares. O rádio seria uma analogia para essa espécie de labor artístico. Como uma espécie de “antena” de sua geração o poeta estaria a todo tempo “a serviço”, conversando com os poetas do passado, desvendando  e atualizando as mensagens cifradas nos tempos presente em uma nova forma ou linguagem. Como uma espécie de fio que conecta as pontas do tempo, o mundo mítico ao mundo secular, em suma, o artista seria uma ponte entre a vida e a morte.

“O poeta é de certa forma um trabalhador, de um modo é mais profundo que ele mesmo e que mal conhece as forças que o habitam. Eu diria até: um esquizofrênico que habita a todos nós, e de que quase todos os adultos têm vergonha, de quem só os heróis, as crianças e os poetas não se constrangem. Os poetas são os intermediários entre esses  “esquizofrênicos” e o exterior, eles tentam tornar isso viável. (…) Não sou responsável por meus personagens e por meus poemas, sou apenas um intermediário, como um médium, uma mão de obra. Todos os poetas são pontes e trabalhadores braçais dessas forças misteriosas que os habitam” – Jean Cocteau em S’adresse à l’an 2000 (1962)

            Os poetas eram também conhecidos na Grécia republicana como aedos, aqueles que declamavam as tragédias e as comédias para um grande público, de forma decorada. O poeta eleito como vencedor pelos espectadores era aquele que conseguia imprimir melhor emoção às histórias que todos já sabiam de cor, ou seja, o valor de um poeta não residia na sua originalidade (lembremos que o “gênio criativo” é um mito burguês moderno) mas na sua capacidade de interpretação. Artista era portanto não apenas um mero “imitador”, mas sim um tradutor, quem melhor permitia que as expressões e paixões dos deuses chegassem aos homem de uma maneira inteligível.

            A expressão “de “Cor”, no original do latim corresponde a palavra coração pois antigamente se pensava que o coração era o órgão da memória. Os poetas eram portanto aqueles que tinham as narrativas – ou, em grego, os mythos – guardados no coração. Eram os guardiões da história de um povo. Aristóteles inclusive, em sua Poética, afirma que o poeta seria mais importante que o historiador, pois enquanto o historiador apenas registra e produz documentos, o poeta organiza o tecido da memória, em um linha causal linear (com começo, meio e fim), dando enfim sentido à vida coletiva experimentada por todos os cidadãos. Ao contrário de Platão que desconfiava e via um perigo no potencial farsesco do poeta, para Aristóteles, a capacidade fabuladora do artista permitiria a criação de um princípio de identidade e coletividade, transformando-o em um ator social de suma importância para a polis grega.

HOLY MOTORS

            Há muitas interpretações possíveis para o fim trágico do mito de Orfeu. Em uma análise primeva poderíamos dizer que a moral da história é que não deve-se olhar para o passado afim de não perder o que se conquistou no presente. Uma outra leitura alternativa seria a de não se questionar as determinações divinas e do destino, questionar a autoridade e duvidar das ordem dos deuses é algo que não ocorre sem sofrimento e punições. Uma das interpretações que acho mais interessantes é a que está presente em O Banquete de Platão, em que Fedro discursa sobre amor usando como caso exemplar o de Orfeu:

“(…) A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e não ousava por seu amor morrer, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades. Foi realmente por isso que lhe fizeram justiça, e determinaram que sua morte ocorresse pelas mulheres; “.

            Orfeu, nesta interpretação, é punido pelos deuses por desconfiar do amor terreno dos homens. Assim, ao se virar para trás, expõe para si mesmo e para os outros que no âmago do seu ser não estava verdadeiramente compromissado com sua amada, não tinha fé no seu amor. Cocteau também expõem este lado perverso de todo artista, que no afã de adentrar a imortalidade, se sobrepõe aos outros “reles mortais’. O desejo de se preservar na História com H maiúsculo faz com que fique cego para o seu semelhante, a assim, se torna autocentrado, extremamente cruel e egoísta.  No filme, Orfeu não dá ouvidos ao ‘chofer’ da Morte – Heurtebise (François Périer) quando ele lhe revela que sua ‘Eurídice’ (Marie Déa) está prestes a morrer. Orfeu também não consegue perceber que a sua passagem para imortalidade está garantida e “ bem debaixo do seu nariz” – quando ele ignora todos os sinais de que Eurídice está grávida.

HOLY MOTORS

            O egocentrismo fatal do artista também se metaforiza na presença do espelho em toda a narrativa. Diz a Heurterbise: “vou te dar o segredo dos segredos. Espelhos são as portas através das quais a Morte vem e vai. Olhe-se no espelho por toda vida… e verá a morte trabalhando, como abelhas numa colmeia de vidro…”. É através do reflexo, do distanciamento de si e da conversão do artista enquanto imagem – ou seja, da visada de si enquanto figura pública, enquanto objeto – que o artista se aproxima da morte. Faca de dois gumes,o Ego é causa e fim do artista, razão de sua glória e decadência. Nessa hora vale lembrarmos do mito de Narciso, que comovido por sua própria beleza no reflexo do lago se apaixona pela própria imagem, e se esquece do real a ponto de se afogar. Na encenação de Felipe Hirsh, a tópica do espelho como porta acesso para o mundo invertido-  a la Alice – é o que orienta toda a movimentação dos atores em cena, pautada pelas saídas e entradas construídas por meio de um enorme paredão de espelho cenográfico fixo durante toda a peça.

            Cocteau, fornece, à sua maneira, uma releitura do mito, fornecendo uma nova chance de redenção de Orfeu, punido pelos deuses pela sua falta de amor ao próximo e pelo seu excesso de ambição. De certa forma, Cocteau busca restaurar a moral do poeta diante da sociedade. Como no filme, Elsa La Rose (1966)[4]  – documentário sobre a musa do poeta surrealista Louis Aragon – Agnès Varda busca demonstrar que a verdadeira imortalidade está nos pequenos gestos, banais e mínimos do amor “comum” e mundano. Este desejo transgressor de re-encantamento do mundo cotidiano seria o cerne do movimento surrealista que desejava utopicamente reestabelecer no coração da vida humana, momentos “mágicos” apagados pela civilização ocidental burguesa. Aos poetas nos cabe a revelação do divino-maravilhoso imperceptível mas ainda assim diante de nós.

[1] Me refiro a expressão idiomática: “avoir le cul entre deux chaises” que o diretor se refere no filme “Jean Cocteau s’adresse à l’an 2000”de 1962. Para ver o filme na integra acesse:  https://www.youtube.com/watch?v=–LR0nd67t8

[2] Segundo Marie-Jose Mondzain a “Economia” viria do conceito Oikonomia que significa justamente um pensamento e não uma prática. Economia se configura como um arranjo ou modo de uma sociedade se relacionar com “o que está em jogo”, uma palavra para se referir a um dispositivo ou um regime de visualidade. A “Economia das Imagens” portanto não reflete o que ela “mostra” pela semelhança mas sim pelo o que ela traz a tona, torna visível (e inversamente torna invisível), ou seja os discursos que ela engendra. Para mais ver o livro “Imagem, Icone e Economia” (2003) da autora.

[3] Sendo elas: Calíope, musa da Eloquência;  Clio ou Kleio musa da História; Erato, musa da Poesia Lírica; Euterpe, musa da Música; Melpomene, musa daTragédia; Polônia, musa da Música Cerimonial (sacra); Tália, musa da Comédia, Terpsícore, musa da           Dança; e por fim, Urânia,musa Astronomia e Astrologia.

[4] Filme disponível online: https://vimeo.com/97016643

FacebookTwitter

O CINEMA E AS FORMAS DO TRABALHO

Lumiere_saida de operarios

EDITORIAL: O CINEMA E AS FORMAS DO TRABALHO
Camila Vieira

ESTÁTICA E CINÉTICA, SISTEMA E INDIVÍDUO: JEANNE DIELMAN
João Lucas Pedrosa

OITO HORAS NÃO FAZEM UM DIA
Bernardo Moraes Chacur

NO CORAÇÃO DO MUNDO: CONTAGEM É O MOTHERFUCKING TEXAS!
Kênia Freitas

O LAMENTO NOSSO DE CADA DIA: TONSLER PARK
Pedro Tavares

IMAGEM-TRABALHO
Diogo Serafim

ATÉ EXPLODIREM OS PULMÕES
Felipe Leal

A ÉTICA DO TRABALHO INFINITO EM HOLY MOTORS
Gabriel Papaléo

DUAS CENAS DE PESCA: PAULO ROCHA E ROBERTO ROSSELLINI
João Pedro Faro

JUSTINE TRIET, UMA CINEASTA NO SÉCULO XXI
Lucas Saturnino

“A NEGRA DE…” E A ESCRAVIDÃO SILENCIOSA
Chico Torres

JEAN COCTEAU SE DIRIGE AOS ANOS 2020
Bárbara Bergamaschi

*

FacebookTwitter

Até explodirem os pulmões

Por Felipe Leal

1

No labor da conversa infestada de uma práxis do discordante intra-, entre– e além– dos planos de uma comunidade de camponeses sobrevivendo em isolamento da própria história e em regime de sub/autoexistência no pós-guerra italiano e no labor dessas técnicas de vida, de gênero e de relação com a natureza rolando dentro da palavra como infinito dissenso e enquanto razão da própria atividade política comunal. Unidade elementar tanto quanto o grão do alimento, Operários, Camponeses (Operai, Contadini, 2001) foi, para os Straub, a aparição – em hipótese alguma ler: “a origem” – da fala como lugar de desnudamento limítrofe do exercício de mediunidade entre a terra e o valor empregado à existência.

Os cadernos dos atores com o texto original de “Mulheres de Messina”, romance de Elio Vittorini, explicitavam duplamente o caráter de interferência no texto (e do texto) nas atualizações das querelas históricas: rabiscos, setas, círculos, cortes de cor nas palavras acusando mais um trabalho de leitura do que de re-leitura: as frases se interrompiam subitamente, a última sílaba não só parecendo arfar para esperar, como a seguinte colocando os sujeitos do enunciado separadamente de fato; o quadro deslizava como se passasse a vez à réplica e assim “o dissesse”; um olhar desafiando o significado extensivo do horizonte ao mirar para baixo e denunciar a presença de uma página que não sabemos com segurança se está sendo lida. Pois que não nos recatemos em arriscar, essa atenção a um certo paladar do gesto de fala, não sendo apenas uma proliferação das formas que o cinema tem inventado para se elevar ao labor interminável que é reincorporar aquilo do texto que salta o seu (e qualquer) tempo, é também a preservação dessa torção que a palavra pode suscitar quando gira em torno de si mesma, atando poética e política, mas sobretudo, como disse Roland Barthes já ecoando Brecht, o imprescindível matrimônio entre prazer e crítica que, aqui, é passar a fala. E pensando o texto crítico – este, que interpela – como o risco mínimo, ainda que mínimo, de um prazer pela letra, como o invocam os atores, segue adiante um palpite que, em diversos sentidos, tenta prosseguir “a” obra.

2

Há sentenças – frases, aqui, mas ainda e decerto enunciados que se gravam como determinações laminadas – que, se bem operadas dentro de um filme, se estalando num timing tão preciso que é capaz de fazê-lo tremer em seu plano quase nos termos propriamente ideológicos da relação de quem vê e participa, há sentenças que, quando proferidas, perfuram dois tempos de existência e funcionam como máximas mitopoéticas: bifurcações automáticas no sentido e que não podem rodar na mente senão como perguntas sem fim. Em Humilhados (Umiliati, 2003), adaptação outra do mesmo romance, mas que centraliza o dissenso entre estado italiano e povo na argumentação assimétrica deste com alguns oficiais “da cidade” de competência institucional, ainda que esse fraseado eventualmente culmine em algo como uma pergunta cuja obviedade interrogativa antes infere sobre a autoinferência mesma da estupidez retrógrada dos camponeses do que abre espaço para uma resposta digna, sua descarga diante dos jogos entre trabalho, valor econômico, progresso e participação nacional é semelhante à subterrânea moral que funciona junto ao fabular quando este eclode.

Quando um dos carabinieri (braço das forças armadas italianas e ramificação das políticas de segurança com aparente e demasiada inclinação judicial, “corretiva”) se encontra em vias de ilustrar o retrocesso, o abismo do valor de peso de trabalho empregado por aquela comuna em relação à quantificação da produção e da subsistência a que assistem em retorno, não apenas estão violentamente introduzidas diante da vida geológica, ancestral e persistentemente reclamada, daqueles trabalhadores as noções de lucro capitalista e de labor como dispêndio máximo e exaustivo de energia, mas também a situação que lhe pede atravessamento para dar significado àquela exclusão é de um grau em que é possível, ainda que trágico, que se veja a humilhação enquanto técnica do apagamento de um povo: quando compara a situação econômico-ética dos camponeses à hipotética preferência de alguém por andar, andar logo quando já existe o trem!, ele não põe o modelo de preferências sob o parâmetro da redução das distâncias de x a y, mas diz, repuxando um estranhamento já integrante ao jogo de linguagem, que aquilo, que a permanência daquela retrogradação, seria “como correr a pé atrás de um trem”. Ante a casca de uma conclusão, sustém-se uma (das) pergunta(s): correr atrás do trem é a imagem do trabalho fútil, tornado inválido quanto mais rápido andar o veículo (que o realiza por mim)?, é a ardilosa arquitetura caricatural do camponês suando, em frangalhos, para alcançar o progresso (que ele supostamente recusa)?, ou seria ainda a mais trêmula prancha de piratas em que se subirá somente para ser empurrado à morte, uma vez que se feriu a moral da embarcação, uma vez que ou se está dentro ou se está fora?

Umiliati-20033-e1553868127464

E uma quarta, que bem recolhe a faísca de todas: ora, em que momento aquele que argumenta simultaneamente impõe – não se diz ‘partilha’, não se diz ‘devolve’ – o escopo a partir do qual é possível, não tão-somente argumentar, como dominar as bordas até as quais a linguagem terá direito ao funcionamento de reinvindicação? Porque é impossível responder a essa pergunta que encerra suas imagens e seus futuros de imagem. E poucas vezes um plano de coletividade terá parecido tão irresponsivo, poucas vezes um quadro aberto contemplará doze corpos como se não fossem nem atores nem aqueles a-pátridas de Vittorini, mas a relação entre sujeitos que beira o silêncio – e que nele cairia, não persistisse a história da Terra ululando a suavidade comunal de sua feitura conjunta à nossa. Porque antes que essa polícia “em nome do que é público” surja, o traço que distingue Operários, Camponeses deste outro (que pouco significaria, se lhe funcionasse só como “continuação”), o traço de uma dobradura da palavra que quer dissenso e conversa de forma ainda mais pujante, espaçada, vibrando em seu próprio intervalo, distingue também para reafirmar a magnitude da política de ameaça à extinção que virá logo em seguida.

O estrangeiro que debaterá antes dos três carabinieri, ele que esteve ali na vila, previamente, em nome de si mesmo, e que agora retorna para que sua ponte de sugestões sirva para provocar e instalar uma crença sub-repticiamente, num dado momento em que sucessivos cortes amalgamam cada elemento do que foi construído pelas mãos dos camponeses na ordem de reclamações seriais em defesa do que será apropriado pelo Estado, finge espantar-se e fala daquela operação – fraturada pela cesura da montagem à maneira de disparos dos lugares de fala – como se eles falassem todo ao mesmo tempo, restando que ninguém pode, afinal, ter seu dizer, e que estão todos fadados à permanência no mesmo lugar. O truque, que almejava interverter a proposição mesma de toda conversa, de uma conversa qualquer, e tentava fazê-los parecer menos comunitários ali mesmo onde a fala seguia a ordem plural de sua argila, é respondido à altura de um acontecimento que devolve à conversa-fiada o tremor daquilo que carrega seu dúplice. Acaso tem proprietários, o deserto que os nômades atravessam?, ao que se segue a interrupção sentencial e ambígua de um senhor sentado, erguendo uma das mãos em palma em direção ao estrangeiro. Que ele agora diga, que ali se cale, que aquilo seja um endereçamento ou um rasgo inevitável entre aqueles, pouco imposta: é a interpelação dizendo que interpela – labuta de quem presencia: ver é convocar(-se) a participar.

Se aos Straub era célebre o fator gestual da contenda entre povos e ideias, aqui ele recai com o invisível peso dos tempos conjuntos e dos tempos intempestivos, tempos sem métricas, tão sociais quanto míticos. Responde sem responder tanto quanto se encarrega de comportar uma ética, uma crença não mais como a solidez encurvada dos saberes restritos àqueles que os detém, mas como a suspensão e o inesgotável que é estar sempre apto a responder à volubilidade dos acontecimentos junto aos outros. É precisamente isto que os soldados não conseguem ver e que assoberba seu leque de “fatos” paradigmáticos que invariavelmente findam com o grande exemplo dos norteamericanos, isto que cimenta a lógica natimorta de suas proporções e faz de “dez operários produzindo em um mês aquilo que ‘eles’ produzem em um ano” a mais mesquinha afronta ao progresso: serão incontornavelmente incapazes de ver que suas condutas são prescritas (limitadas) pelo Estado, que serão pré-escritas (lhes antecederão tanto quanto delas não participam) por ele sem cessar, e que aquilo que lhes convém chamar de justiça, essa ideia sob a qual trajam espingardas e lenços vermelhos como cadetes, estes, sim, humilhados, não contabiliza, sobretudo, aquilo que eles não pararam de colocar como termo do meio: a terra. É-se justo com a terra quando ela é cercada, apropriada, estuprada, justo a terra, a única capaz de suster todos? Sua posse viaja, imantada, até a titulação fixa de “propriedade” somente porque aquele que a utiliza produz mais dela, e dela fabrica a imagem de um jardim? Produz para quem? Sua lógica é o logro da quantidade sobre um outro tipo de propriedade, aquela que distingue as coisas pelas particularidades que lhe dão, por exemplo, motricidade, produção ou função? Passemos ao que não tem tempo.

Conta o mito que Astreia, filha de Zeus e Têmis e marca-passo transicional da Idade de Ouro para as eras de declínio entre os humanos, horrorizada com um evento de roubo promovido por um mercador que visava extrair lucro através do engodo com uma balança, pede ao pai para fincar morada nos céus como estrela, desgostosa com a perversão à sabedoria e aos hábitos coletivos que pregava. O que a maior parte das narrativas, no entanto, relega ao olvido, é o último gesto performativo da chamada “virgem das estrelas”, pois que antes de ascender aos céus Astreia se reúne no cume de uma montanha para repassar toda sua sapiência a quem pudesse interessar-se numa vida simplificada, arranjando uma espécie de séquito de indivíduos dedicados àquilo que há de justo, bem como às atividades de caça e cultivo que garantiam a comunhão minimamente estável com o mundo. Que relação pode haver entre o simples e o justo e que faz a balança das entidades estar costumeiramente acompanhada de uma espada? É que o simples, longe do estigma pejorativo da coisa sem adorno ou limpa do intragável, é menos o oposto do complexo do que o trabalho de encontro com as propriedades mais adequadas, descobertas também por labuta, para tratar do bruto. E é – e será – preciso entrar numa contenda de valores e técnicas com essa ‘coisa bruta’, bruta na medida de sua singularidade mais ou menos velada, de sua particular propriedade, para com ela entoar um justo possível.

Umiliati-20034-e1553868138928

Se numa conta amalucada de transposições fosse possível dizer: é impossível à árvore participar do verbo ‘pedir’, uma vez que tudo que ela extrai inevitavelmente se desdobrará em fruto, em interação contínua com o ‘onde’ de onde ela puxa vida, tão despropositado é o gesto que encerra o filme. Assim como a árvore, ele É. Ele não encerra, não entrega as mãos à humilhação, não abre nem tampouco questiona. É um movimento voltado para si mesmo e cujo significado fê-lo bem não se traduzir, mas do qual não se pode dizer que não faz nada. A camponesa o pronuncia e cai no aparente repouso estatuário de um enigma, o horizonte recortado do quadro recaindo em sequência para mostrar dela o punho fechado e os pés sobre a pedra que inicia devidamente os contornos de sua habitação.

Durante todo o filme, os pássaros, o vento, as árvores e as águas perpetuarão seus cantos, seus ruídos, na intraduzível língua que cinde sujeito e natureza. Ou melhor: repartiria, não fossem gestos como aquele, palavras sacras e secretas que duram o suficiente para sublinhar a fixidez de uma impermanência: entre nós e entre-nós, há relações que não unificam e que não buscam a semelhança. Há aquelas que afastam e reiteram a comunidade daquilo que é fragmentado. Ali, uma mulher. Acolá, uma árvore. Uma fome, um fruto entre eles, mas ainda e sempre: uma mulher, uma árvore, um fruto e uma fome. Um, em seguida, outro. Nem tudo o que é sólido desmancha no ar. Algumas coisas explodirão, como pragueja o presságio do militar sobre os pulmões daqueles trabalhadores exaustos e que, de acordo “com ele”, não sabem sonhar – completamente desavisado de que a distância entre a ricota e aquelas mãos, entre o trigo e a contagem de bocas e estações, entre a energia elétrica produzida e os olhos turvos de labor e alegria, subsiste não uma proximidade que é preciso explorar, mas a mais indubitável das distâncias que eles aprenderam a respeitar e estipular empunhando a justiça com a terra: que cultive e deixe viver aquele cuja sabedoria seja, e não sirva a, ainda que por dez mil anos, o comum. Disparatado, inconcebível, o pensamento que formula a um povo ser necessário produzir mais do que necessita? Inconcebível, decerto, mas vivemos sob seu regime, e a terra também descobre suas maneiras de gritar.

FacebookTwitter

O lamento nosso de cada dia: Tonsler Park

Por Pedro Tavares

Se eu tivesse escutado a minha mãe, estaria em casa agora.

David Perlov

HOLY MOTORS

Uma postura corriqueira na carreira de Kevin Jerome Everson: assumir a ambição de construir, pela observação, o diagnóstico geral de uma nação. Em oito de novembro de 2016, Everson registrou em closes o curso das eleições presidenciais em Charlottesville, Virginia. De certo que o olhar de Tonsler Park é dos seus mais frontais e diretos acerca do separatismo americano, até então mais silencioso que os dias atuais e utiliza do trabalho para este comentário incisivo.

Em entrevista ao Jornal do Brasil em março de 1993, o crítico Ismail Xavier comentou sobre como diagnósticos gerais abrem campo para o privilégio das alegorias e como este reducionismo é arriscado: “(…) permite condensar muitos aspectos da experiência em poucas figuras e situações”. O questionamento de Everson resvala nas bordas da afirmação de Xavier. O que se vê é, pela estrutura, na repetição de gestos do trabalho manual, como a esperança se esvai conforme a experiência torna-se mais intensa – quanto mais tarde fica e quão perto está o terror. Nos corpos negros que mantém a ordem para que a votação corra nos conformes, fica nestas poucas figuras, justamente, o desconforto da postura daqueles que votam e que levará a América a um novo rumo social e econômico.

HOLY MOTORS

Este pensamento de 80 minutos está sob molduras, o limitando a um período, como um recorte para o estudo do todo. Por outro lado, é um filme de transparências óbvias que sinaliza na reiteração da ordem o passado dos Estados Unidos. Cabe o pensamento de Hal Foster ao comentar o “erro” de O Estádio do Espelho de Lacan:

No entanto, esse sujeito blindado e agressivo não é simplesmente qualquer ser da história e da cultura: é o sujeito moderno na condição de paranoico e até fascista. Pairando nessa teoria está uma história contemporânea que tem no fascismo seu sintoma extremo: uma história de guerra mundial e mutilação militar, de disciplina industrial e fragmentação mecanicista, de assassinato mercenário e terror político. Perante esses acontecimentos o sujeito moderno se blinda contra a alteridade interior (…) e alteridade exterior (para o fascista isso pode significar judeus, os comunistas, os gays, as mulheres); todas essas figuras do corpo despedaçado, do corpo entregue ao fragmentário e ao fluido ressurgem. Esta reação fascista está de volta? Chegou a desaparecer?

Seguindo o protocolo da edição, chama atenção no pensamento de Foster, fora o óbvio manifesto, o do funcionamento industrial. De volta ao filme de Everson, o trabalho aqui está além dos gestos mecânicos: o olhar daquele que espera na fila é imperativo e para aquele que o acompanha desde o início do dia ganha um valor completamente distinto. É na simples troca de palavras que a força histórica se constrói, a pensar no resultado da eleição. Se para a equipe filmada seus gestos são puramente funcionais e protocolares a serviço da nação, é evidente que para Everson o caminho é oposto. Como pode a ordem manter-se no ápice dos gestos políticos?

HOLY MOTORS

George Orwell, em artigo escrito em 1940, vê Jonas, o personagem bíblico que é engolido por uma baleia como um homem moderno, inquieto, impolítico e que busca abrigo da realidade na barriga da baleia. Embora o voto nos Estados Unidos não seja obrigatório, o mecanismo que reside no ato registrado por Everson é latente:  carrega em si questões morais direcionadas ao sujeito em si e não ao país como unidade, ou seja, uma fuga da realidade. O “fazer sua parte” não está no campo da serventia à pátria e sim ao patrão, enquanto aqueles que controlam o espaço para que a moral seja exercida estão jogados ao contexto histórico a cada voto.

Tonsler Park, portanto, é a observação do não-ordinário costurado pela rotina: a eleição não acontece diariamente, mas a desigualdade de todos os dias segue estampada no quadro. Esta duplicidade carregada de lamento coloca o filme como o ápice de um movimento do dia-a-dia, tão inconsciente quanto acordar, levantar e trabalhar. E para isso Everson tem uma resposta mais certeira: “Este é o meu trabalho. Trabalho de 40 a 50 horas semanais fazendo filmes”.

FacebookTwitter

Estática e cinética, sistema e indivíduo: Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles

Por João Lucas Pedrosa

Discorrer sobre Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, envolve inevitavelmente discorrer sobre a permanência (e a derrocada) de um sistema que constitui os alicerces do filme. Um sistema, sobretudo, de trabalho. Segundo a Física, o trabalho existe quando uma força exercida sobre um corpo gera o seu deslocamento. A força exercida durante esse deslocamento é a que conhecemos por “cinética”, cuja raiz etimológica é a mesma de “cinema” (kinema, “movimento”; kinein, “mover, deslocar”). Tratar de cinema é, portanto, tratar do movimento, desse deslocamento cujo trabalho aparece como fundamento-motor, como a força que faz mover. Essa força pode tratar-se da vida mesma que passa pelo ser, coisa ou lugar captado pela lente, como pode também tratar-se da força mecânica da câmera que registra os efeitos da força misteriosa primeira, e a obra fílmica surge primordialmente como produto do choque entre essas duas forças.

Em filmes como Um Homem Com Uma Câmera (1929) pode ser estabelecido um preciso contraponto estrutural e histórico a Jeanne Dielman. Em meio à exaltação da industrialização soviética e da consequente articulação entre homem e máquina (como aponta o título de sua obra), Dziga Vertov desenha em cerca de uma hora o funcionamento do dia de uma cidade, guiado pelo percurso de um cinegrafista que registra cidadãos em trabalho e/ou atividades rotineiras, máquinas e construções. A montagem estabelece entre os componentes uma harmonia operacional, como células de um grande organismo, que é a metrópole. Quando os cidadãos repousam, toda a cidade o faz, e a grandiosa geometria dos edifícios reflete o repouso dos corpos dormentes na cama, nos bancos da rua. O despertar é igualmente compartilhado e, numa das sequências iniciais, o enquadramento da chegada de um trem é justaposto a planos-detalhe da agitação de uma moça na cama de sua casa, que eventualmente desperta com o balançar do plano anterior. Os dois eventos tomam lugar em diferentes espaços, mas a edição permite o agito contagiar um espaço indeterminadamente distante. A edição estabelece uma ligação metafísica entre homem e máquina. O que os une é a força do movimento, sendo o filme o campo dessa troca sinérgica.

Imagem-1

A metalinguagem é muito presente em Um Homem Com Uma Câmera e associa o trabalho cinematográfico-criativo aos demais: o filmar e o editar não são diferentes do dirigir caminhões, do lavar roupas ou do costurar (ação, esta, justaposta com o “cerzir” da montadora). O fazer cinema faz parte do fazer a cidade,

faz parte da atividade coletiva que constitui a metrópole mesma. As máquinas trabalham para as pessoas que para elas trabalham (por isso as cadeiras do teatro abrem-se sozinhas para a acomodação dos espectadores que chegam na abertura do filme) e daí se dá o funcionamento coletivo do organismo comunitário soviético. O trabalho funciona aqui como cinética combustível do mundo, como energia vital de um espaço do operariado, que funciona pela e para a operação laboral. Eis a construção da União Soviética como um grande corpo-nação, em que o labor é a entidade que rege o mundo.

Se a obra prima de Akerman e a obra prima de Vertov funcionam como exemplares opostos, é principalmente por serem oriundos de momentos e motivações histórico-estéticas diametralmente diferentes. Na União Soviética de 1929, Vertov procurava desenvolver um cinema independente das demais artes, livre do roteiro e da noção de narrativa. Seu projeto envolvia registrar principalmente acontecimentos ao invés de encenações (salvo exceções como a moça acordando), e ressaltar, dentro da obra, o artifício cinematográfico, lembrando todo o tempo que estamos assistindo a fragmentos deliberadamente ligados, ao que registrou uma câmera, (articulando a emancipação da sétima arte a ambos o entusiasmo construtivista da época e a exaltação operarial da URSS leninista). Já Akerman, na Bélgica de 1975, influenciada pelo movimento feminista e por um crescente ideário da emancipação individual da mulher, trata não do sistema coletivo de trabalho, mas de um microcosmo laboral invisibilizado por séculos de costume: o doméstico, ao qual associará a escravização do corpo feminino. Ela se apropriará dos acontecimentos para criar uma diegese narrativa profundamente imersiva, reduzindo as ações ao mais bruto e banal pela duração quase absoluta do filme.

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles acompanha três dias na vida da protagonista que dá nome ao filme, quase todo passado dentro da casa cujo endereço também constitui o título (mulher e casa são nele cooptados como homem e câmera em Vertov). Os dias são preenchidos por atividades domésticas: fazer a cama, cozinhar as batatas, botar a mesa, servir a janta, tirar a mesa, fazer a cama do filho. As ações são registradas em tomadas estáticas, geométricas, com profundidade de campo e na integralidade de sua duração, intervaladas por espaços vazios que precedem e sucedem a entrada, ação e saída de Jeanne em cena. Ela se prostitui a um homem por dia, ação que é elipsada: o enquadramento corta seu rosto do queixo para cima, ela pega o casaco do cliente na sala e o pendura na parede, acompanha-o até seu quarto no fundo do corredor e fecha a porta. Um jump cut que baixa as luzes do cenário sugere um lapso temporal no qual teria acontecido o programa. Mesmo as elipses são posicionadas estrategicamente no intuito de manter a sensação estagnada da rotina da personagem ao preservar a duração integral de cada atividade doméstica. Ivone Margulies, em seu capítulo sobre o filme no livro “Nada Acontece”, associa essa escolha estética a uma descrição cumulativa

inspirada na literatura hiperrealista: a dinâmica dos cortes entre longos blocos de ação funcionam como conjunções aditivas, em que ações são enumeradas e empilhadas, e delas é bloqueada qualquer dimensão simbólica ou evasão metafísica. O aqui e agora da rotina de Jeanne é tudo o que há em seu amontoado alienante de tarefas.

Segundo também ressalta Marguiles, é muito caro a Akerman o movimento do cinema estrutural nos EUA dos anos 1960 e seu projeto de centralizar a forma do filme, no qual a narrativa tem importância marginal. Neles, um objetivo formal específico guia a obra (em exemplos mais claros, como em Wavelength (1967) um lento zoom in de mais de 40 minutos, ou em Back and Forth (1969) o movimento de ida e volta da câmera, ambos de Michael Snow), de forma que a encenação narrativa surge de modo fragmentário, no momento em que a câmera, no meio de seu obstinado dispositivo, acabou captando. Voltamos à dupla do início do texto: a força da vida que move o evento prefílmico e a força mecânica que move a câmera que o registra. No cinema estrutural, cada uma tem seu movimento independente friccionado, e o filme, como faísca, surge dos seus atritos e esbarrões.

Em Jeanne Dielman, entretanto, Akerman inspira-se nesse movimento para criar um corpo fílmico que ande em paridade com a narrativa e cause um impacto dual no espectador, construindo tanto uma harmonia sensorial que o embala quanto uma distensão temporal da ação que permite a reflexão sobre ela enquanto acontece. A rígida execução do sistema formal é necessária para que, na metade do filme, ele seja totalmente corrompido. Na noite do segundo dia, Jeanne queima as batatas da janta de seu filho após um programa que demorou um pouco demais, afetando as convenções de seu deslocamento pela casa (num momento de ansiedade e confusão, ela leva a panela de batatas queimadas ao banheiro) e, em consequência, o sistema formal que o rege. A retórica do filme sempre girou em torno do deslocamento (a cinética) de Jeanne pelo espaço, pois são seus passos que preenchem os vazios entre as ações domésticas dentro do plano, seja entre o ato de pegar o café do armário e botá-lo no moedor, seja nos espaços vazios entre os blocos de ação, quando aparecem em extracampo. Desde o início, esse movimento atrita com a estagnação do dispositivo linguístico que a registra. Jeanne desloca-se constantemente, num labor higiênico obsessivo (que Margulies associa à tentativa de limpar os vestígios de sua profissão, “obscena” moral e cenicamente). Uma inquietude estrutural habita as profundidades de seu ser, uma inquietude que era apenas domada pela rotina. Com o queimar das batatas, essa energia não tem mais direção. Ela esparrama-se pelos cantos e causa rachaduras no que estava cimentado pela utilidade. Apenas o acaso que invade essas fendas poderia quebrar o automatismo da rotina de Jeanne e abrir caminho para sua subjetividade como agente das ações. A força primeira (vida) ataca a força segunda (mecânica) e empurra a protagonista em direção à sua emancipação.

Imagem-2

Naturalmente, a quebra desse sistema de contenção existencial envolve o caminho inverso da cooptação homem-aparato de Vertov, à medida que os objetos domésticos passam a recusá-la, a cair das mãos da protagonista (a escova que usa para engraxar os sapatos de seu filho, a colher que acabou de secar e precisa lavar novamente). O rompimento entre Jeanne e sua rotina doméstica se reflete nesse trabalho opositivo ao seu, realizado tanto pelos elementos pontuais desse mundo (os utensílios) quanto pelo mundo em si (no terceiro dia, ela chega à padaria ainda fechada pois acorda uma hora mais cedo). A dinâmica individual é uma, a do trabalho e da cidade é outra. Cada pequeno descompasso que consuma essa cisão indivíduo-sistema gera uma suspensão, gera a antecipação de algo mais extremo à frente. A imersão no fluxo bem sucedido das ações é tão intensa, que os seus transvios tornam-se a chave do drama, ainda que haja um arco narrativo proeminente (que Margulies identifica como tipicamente melodramático). É na dimensão material da narrativa que o drama do filme toma forma.

Para o sucesso dessa empreitada estrutural, Akerman construiu uma série de acontecimentos em benefício de uma experiência diegética fortificada. Como indica Margulies, quando Jeanne/Delphine “descasca as batatas e lava os pratos, as batatas ficam descascadas e os pratos ficam limpos”. Esse pacto de aceitabilidade pelo espectador em relação à consumação real do evento prefílmico cria o choque do desfecho trágico encenado. Ao longo do terceiro dia, Jeanne tem uma hora sobrando (ela acordou muito cedo) e desliga-se totalmente de sua rotina, saindo para procurar um botão que seja o mesmo do tipo que caiu do seu casaco canadense (não encontraria, o fim é sempre o movimento). Quando chega, abre o presente de sua irmã que chegou do correio (mais uma camada para o título?) e é pega desprevenida quando chega o cliente do dia. A câmera agora entra no quarto com ela e vemos num longo take estático o cliente deitado sobre Jeanne, movendo-se muito pouco. Ela se incomoda, agita-se na cama e, em determinado momento, tem um orgasmo, do qual se envergonha. No plano seguinte, sentada de frente para o espelho da penteadeira, ela veste a blusa, pega a tesoura, com a qual tinha aberto a encomenda, e mata o homem deitado em sua cama. São as únicas vezes em que uma ação passa de acontecimento para encenação no filme, mas são ainda homogeneizadas na estrutura do filme (conectadas cumulativamente): Jeanne fez café e abriu o presente de sua irmã e recebeu o cliente e gozou e o matou com uma tesoura no pescoço. Todas as ações são atos de emancipação de Jeanne ao indicarem a ativação de seu corpo como agente de si, e cada ato antecipava o outro pela eficácia da rigidez estrutural do filme e dos seus respectivos glitches. Foi tecida uma rede de subversões que remonta à dinâmica foucaultiana da microfísica do poder, em que um pequeno evento leva a uma teia de outros eventos que desembocam na grande mudança estrutural. A estrutura do filme, assim, faz com que o pequeno evento estopim dessa rede de alterações não seja um motivo psicológico (uma relação edipiana com o filho, presente no filme: ele não suporta pensar nela com outro homem), mas um erro material que descompassaria a estrutura de trabalho doméstico por definitivo, levando ao grande contra ataque de Jeanne ao patriarcado que a construiu. Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles precisar valer-se da precisa construção de um sistema formal e laboral para ser um filme anti-sistêmico por excelência.

O último plano do filme tem sete minutos corridos de Jeanne sentada à mesa da sala, repousando com as mãos ensanguentadas. A queda dos utensílios das mãos de Jeanne, suas hesitações, seus devaneios silenciosos e suas ações-digressões da rotina eram os bloqueios gradativamente mais agressivos do fluxo cinético laboral que se consuma quando seus desejos tomam conta das decisões de seu corpo. A estagnação do último plano não mais briga com Jeanne, mas com ela descansa, na ação mais subversiva possível num sistema do movimento compulsório: o repouso.

Imagem 3

FacebookTwitter

Mar calmo não faz bom marinheiro: O Farol (Robert Eggers, 2019)

Por João Pedro Faro

75419049_608402159696058_5457143712100384768_n

Algo começou a dar errado a partir da quinta temporada de Bob Esponja (1999-). O criador do desenho, Stephen Hillenburg, deixou o time de roteiristas da série, que pareceu desandar completamente em seus rumos criativos. O que antes era uma das maiores inovações televisivas da época, marcada por personagens originais e um humor único, tornou-se cada vez mais um bizarro exploitation escatológico no pior sentido possível, apelando para episódios onde a única comédia parecia surgir das quão nojentas e violentas eram as situações que a turma da Fenda do Biquíni tinha que enfrentar. Juntando esse mesmo sentimento de uma escatologia pouco recompensadora com as tendências do cinema de horror dessa década, nos aproximamos da experiência de O Farol, segundo longa de Robert Eggers.

As semelhanças do filme de Eggers com as temporadas tardias de Bob Esponja não ficam apenas na tendência pontual pelo gore e pela mitologia marítima: ambos compartilham um mesmo apreço pelo enfadonho. O conto alucinógeno de dois zeladores de um farol numa ilha remota, interpretados por Willem Dafoe e Robert Pattinson, insiste em uma curiosa construção do gênero de horror onde o que prevalece é a exaustão. Tudo começa quando as barrinhas laterais da tela vão se aproximando para formar um reduzidíssimo aspect ratio que, aliado ao preto e branco, emulam algo de um cinema “de outra época”. Não é muito claro, nem para o próprio diretor, o que está por trás desse efeito tão rígido, porque o cinema visto em O Farol é o mais contemporâneo possível, dos movimentos de câmera que acompanham os personagens em seus mínimos gestos até os raccords que colam sequências por movimentos de grua rebuscados. Se essa estética deveria apontar para Lang, Dreyer, Murnau, ou até mesmo, em uma escala ainda mais pop, os mais baratos seriados americanos de terror dos anos 50, ela fracassa e apenas reforça um sentimento de irritação. Sentimento esse que piora toda vez que a genérica trilha sonora transforma algumas cenas possivelmente interessantes em momentos típicos de qualquer teaser trailer.

O jovem faroleiro interpretado por Pattinson é a maior vítima do filme, tanto na narrativa quanto no próprio formalismo rasteiro de Eggers. Seu personagem passa quase duas horas entre vômitos, diarreias, masturbações e possíveis criaturas monstruosas. Pattinson é genial, sempre foi, e seu nível de disposição ao ridículo oferece ao ator momentos fortíssimos em praticamente todo papel que maneja. Aqui não é diferente, consegue bater de cabeça com o Dafoe e ainda ser a melhor presença do filme inteiro. O problema é que o formato 1.19 esmaga parte de seu brilhantismo. Não há espaço para o que Pattinson e Dafoe tem a oferecer, restritos a alguns momentos genuinamente hilários e entregues a outros essencialmente vazios.

74614114_419934045322707_7517155712552665088_n76959421_327269474811119_2309311899679850496_n

Esse vazio em O Farol não é por sua despreocupação temática, algo que, em princípio, não há problema algum. Por mais que algumas leituras impositivas tenham buscado encontrar qualquer comentário que seja sobre a tal “masculinidade tóxica”, não há nada em O Farol que não reforce seu prazer pelo desprezível (parece não ser mais possível que alguém faça filmes sobre pessoas tenebrosas sem a cobrança de que ocorra um julgamento quase jurídico de seus personagens). Talvez esse total descompromisso com qualquer coisa além do próprio filme seja o fator mais reverenciável de Eggers, Farol tem um financiamento justo pelo já arcaico prazer da narrativa e do absurdo.

O que cai por terra é como Eggers não tem muito interesse em se aprofundar cinematograficamente em suas jornadas de direção até aqui. Assim como em seu primeiro filme, A Bruxa (2015), o diretor trata arquétipos do gênero como teses de conclusão de curso. Para Eggers, o mistério, tão crucial a qualquer incursão pelo horror, é tratado como mero academicismo. Seus títulos já parecem evidenciar uma linha de personas do terror devidamente teorizadas: temos a bruxa, o capeta, o farol, o marinheiro, o cavaleiro… Esse clima de ensaio sobre o que já esperamos de cada uma dessas mitologias vai se confirmando à medida que Eggers vai listando esses arquétipos em cada cena (a sereia, os tentáculos, a maldição, as gaivotas, o navio fantasma) sem uma entrega própria acerca do que joga em tela.

Passando por cima do que O Farol não consegue oferecer, a dupla principal segura o instigante surto cartunesco que o filme converge em ser. Perseguições destrambelhadas, brigas ébrias e escatologia declarada não apenas retornam ao Bob Esponja como também a excelente animação As Trapalhadas de Flapjack (2008-2010). Flapjack, assim como Farol, aposta na perturbação típica da mitologia do marinheiro sujo e no clima de madeira podre de um cais, com incursões hipnóticas que garantem momentos verdadeiramente tenebrosos que duram pouquíssimos segundos mas deixam imagens marcantes (mais tenebrosos em Flapjack do que em Farol, mas tenebrosos de qualquer forma).  A maior surpresa do filme é que Eggers, na tentativa de fazer um revival expressionista, acabou montando um episódio de desenho animado. Por bem ou por mal, isso é ocasionalmente divertido de assistir.

Todas as principais escolhas formais e narrativas de O Farol evidenciam seus próprios limites. No melhor dos casos, é um encontro raro entre dois atores que graciosamente tentam se engolir em cena e escapar dos cantos de seus enquadramentos. No pior, fica apenas como um experimento acadêmico desesperado em deixar sua grife no mundo, não oferecendo muita coisa além de algumas esboçadas e um sentimento de escorbuto no céu da boca.

73346530_1403904736400634_8446708608183304192_n

FacebookTwitter

Espelho na bacia das almas: Ad Astra (James Gray, 2019)

Por Pedro Tavares

Todo os estudiosos e viajantes são invariavelmente tomados de admiração por uma certa característica das formas de pensamento primitivo, completamente incompreensível para o ser humano habituado a pensar por meio das categorias correntes da lógica.

Sergei M. Eisenstein

58441307_426121234831605_3585998603522408448_n

Há em Ad Astra um serviço muito singelo sobre o conceito de justaposição de aparências: eis um homem só transformado em discurso visual. O filme de James Gray se assume como metáfora já no trauma de um nascimento, também passível de interpretações sobre o re-nascimento e assim pavimenta conversas sobre enunciados.

O espaço sem fronteiras como antro de uma crise existencial inevitável – caberia igualmente num deserto ou numa floresta – serve como um método literário de transformar suas escolhas alegóricas, incluindo as mais simplistas, como um denso sinal de uma existência rompida. Nos resquícios dos processos mentais como o stream of consciousness e no embate direto com o exterior, Roy McBride (Brad Pitt) revisita o caminho feito em Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979) ou olha atentamente o apocalipse de Lessons of Darkness (Werner Herzog, 1992) como organicidade de seu próprio caos; organicidade esta que não escapará da visita ao espelho como forma de encontro com o divã.

58441307_426121234831605_3585998603522408448_n

Ad Astra se costura com base nesta pedagogia de representações e como a psicologia toma proporções diferentes mesmo como um pilar intacto visto à distância. Desta maneira cria-se um embate de poder entre protagonista e sua própria noção de existência. Dois espectros, um homem, um espelho. Como redoma, a crença imutável que é o córrego mais impactante como associação aos dados antropológicos, de camadas que são passíveis do incomodo por seu perfil caricato ou morno, como a clássica associação dos closes à densidade dramática. Mas…como circular ou reelaborar um filme, ou melhor, um homem, como reflexo industrial da história?

Mediar este homem através dos cortes como um processo social ou apenas um justo lamento da solidão coloca Gray na antiga posição de Deus que o cinema emula discutida com veemência no início do século passado. Este Deus que não julga antes do tempo correto para tal e dedica-se à proteção da cria como se a sobrevivência e encantamento flutuassem com objetivos análogos, de tal maneira que a ressurreição de Roy, um homem de largos tentáculos no andar do tempo e nos avanços tecnológicos, porém, sem controle emocional, seja colocada em cheque – pelo Deus-câmera e pelo próprio astronauta.

58441307_426121234831605_3585998603522408448_n

Desta forma, o domínio que se vê indo aos ares é o eixo de concessão de Gray para examinar de maneira mais frontal seu personagem/matéria-prima: são os pensamentos primitivos (citados por Eisenstein) a respeito da família e de um sentido de plenitude que lhe é tomado pelo seu próprio suporte de vida; a estrutura de vida que foi roubada através do tempo o faz desejar um retorno imediato no qual Gray usufrui de detalhes paralelos como reforços filosóficos e não menos visuais – a exemplo da forte presença de um primata em uma sequência. Arranjos como este levam Ad Astra a um  método específico de pensamento, que transformará o âmago de Roy em uma estrutura e não no caminho explicitamente sensorial, como a exclusiva jornada de auto-descobrimento de um astronauta.

Por esta definição que o espelho torna-se considerável ao conflito arredio de um homem que obtém a alcunha de herói e vilão concomitantemente a cada corte ou close. Do conforto à destruição, Gray possui o suporte primário da autoanálise independente da rota que a Terra tomou. No reflexo, o homem há de se analisar e enfrentar-se além de seus pensamentos primitivos.

FacebookTwitter

Singularidades de uma assassina loura: Anna (Luc Besson, 2019)

Por Felipe Leal

Imagem-02-1

É simultaneamente anedótico e “conceitual”, pedra lapidada de um estilo para que o posado revele certa dimensão do espírito, que Robert Bresson tenha preferido modelos para compactuar na composição de seus elencos. Que tenha chamado seus atores de modelos e os posto numa práxis de tamanha mecanicidade disfarçada, que aquilo de autômato chega a exibir mais vida que a própria pele que acusa a carne. Mas não precisamos da máxima de Valéry – aquela diz da pele que este é o órgão mais profundo – para chegar a conhecer as fissuras e engodos inevitáveis ao corpo como um todo, pois ainda que haja atores e haja modelos separadamente, para além de suas fusões, é também sabido que a cada um serve de ferramenta valiosa certo empréstimo das técnicas físicas do outro: àquele posando para uma objetiva ou enfileirado num catwalk excessivamente assistido, é útil que saiba absorver dons de transformista, que aceite incorporações; ao sujeito em cena, mostra-se frutífero que entenda da pose, de congelamentos, das variações corporais para um enamoramento com as lentes. “A câmera ama você”, ouvimos entre os disparos que desejam que nunca fique exaurida a fotogenia de algumas relíquias da moda. Mas dentre as múltiplas singularidades que os diferenciam, aquela que melhor risca uma transversal no ofício do corpo é a sapiência do “saber-se visto”, a consciência erótica de emular, na pele, a devolução do olho que sabem que os observa. Na filmografia de Luc Besson, pois, Anna – O Perigo Tem Nome (Anna, 2019) representa esta transversal de desvio.

Besson filmou Natalie Portman, Bridget Fonda e Scarlett Johansson, evidentes “estrelas”, mas não havia ainda captado de uma modelo propriamente dita esse estojo dúplice de ferramentas de uma mulher que não apenas estourou grifes a nível Chanel e Versace, como fez de seu caminhar de dançarina com leveza de vento e postura de imperatriz a imagem de uma das modelos mais bem pagas do mundo. Que seu regente tenha duplicado o tema é apenas uma ignição sorrindo às escondidas. Anna (Sasha Luss) oscila entre a miséria mal cicatrizada da subserviência aos homens e acidentes e a coreografia inflamada de uma percepção que lhe faz o cheiro das ofensivas anteceder a própria visão das dezenas de seguranças e chefões que assassina. Nenhum objeto é im-passível, digamos, de lhe servir como arma para uma chacina, assim como nenhum homem será capaz de devolver-lhe uma liberdade que aliás nunca esteve entre as mãos. Besson arquiteta um grã-fino restaurante russo como a cenografia mais propícia a um terceiro olho cujas investidas são os círculos, a frontalidade e as costas que multiplicam o inesperado, os pontos da arena de batalha: pratos se partem em discos dentados, suportes cilíndricos de balcões de bar perfuram troncos como lanças, garfos e extintores amassam a guarda protetora como a carne que são, como se às suas mulheres extraordinárias as habilidades mais perniciosas fossem a antecipação e a adversidade. Para essas vidas a que só resta o próprio corpo-máquina, a subtração ensina.

58441307_426121234831605_3585998603522408448_n

Mas antes mesmo que a escultura angelical retire os casacos para liberar um demônio ágil, a sagacidade do metteur-en-scène transmuta um dos recursos mais vomitados e possivelmente detestáveis “do” cinema em espirais cuja semelhança com o próprio dispositivo cinematográfico é um contínuo – e, aqui, hilário – lance numa mesa já disposta e na qual sentam, de um lado, aquilo que não se viu, e do outro, aquilo que ainda não podia ser visto. O truque simples do flashback irrompe a partir de cortes sob a lei do “previamente…”, em que a mulher é repassada entre os pontos de vista das disputas políticas, e o filme incessantemente retornará meses, às vezes anos atrás, com o aditivo da cena re-completa para duplicar uma quase-liberdade sempre adiada pelo que a assassina guarda de valioso: é bela ao ponto do magnetismo, é mortífera na medida da falha impossível, e portanto lhe restarão sempre duas opções com as quais, mais tarde, terá de romper: morrer de vez, e de certo modo estar liberta, ou oferecer seus serviços após negociações velozes – e mais uma vez ter a liberdade empurrada e falsificada em nome das pátrias e dos homens.

Ora, o que é automático que se sinta perante a técnica do retorno ao passado? X em Y textos (e bocas) dirão que ele, o recuo, é atormentado pelo didatismo, e bem sabemos que a primeira incógnita chega a quase tocar a segunda. Uma rápida mudança de temas explicitaria melhor o problema, posto que a um professor ou a um cientista, na maioria dos casos, vem a ser menos simplista do que profícuo se lhe apraz ter exercitado isto que se chama de “didática”. A questão não seria, portanto, antes a qualidade dessa instrução? Retornemos à Anna, pois se os rodopios dos flashbacks inserem detalhes, microcâmeras, contextos de miséria, observadores em apartamentos circunvizinhos, não é tanto para que os twists expliquem, confirmem ou sedimentem os eixos de passagem da uma arma nacional em forma de bailarina, mas antes para emprestar ao último deles um sabor de um aprendizado que só a partilha extensa entre personagem e espectadores pode elevar ao grau descaradamente familiar que ele carrega. Anna aprende a arte da burla, da ultrapassagem, como uma primogênita que saboreou desde cedo cada milimétrica jogada no teatro repulsivo dos barões. Seu único passe é também sua tragédia: ser uma mulher tão bela que o único ponto de infiltração nos quartos dos economistas e traficantes é também sua prostituição.

58441307_426121234831605_3585998603522408448_n

Trata-se, aliás, de uma questão tão teatral quanto cinematográfica, sendo precisamente aqui o espelhamento escandaloso de que a obra se serve para ressuscitar e escancarar aquilo que as bordas do visível mais velam sobre os passes de mágica. Onde as câmeras de hotéis não podem captar a vigilância dos espiões, há êxitos, bem como armadilhas. Mas também: o contexto cênico no qual a continuidade se fratura, e neste último Besson isto se fará abusadamente, a negociação sobre a(s) vida(s) é uma economia dos ensinos da antecipação ardilosa. À clara exceção daqueles para os quais a exposição do aparato é útil, costuma ser interdito ao cinema que se desvelem as condições da feitura de sua “naturalidade”. Regime de transparência, como já o chamou Ismail Xavier, não fosse o caso, aqui, precisamente outro: não tão-somente uma potência do falso: junto a ela se arrasta, sorrateira, a invasão à surdina do detalhe. Um close, um objeto caído por displicência, o corte de uma faca à maneira característica da KGB, e o caracol de cuidados, trapaças e falsas promessas arrisca se dobrar mais uma vez. A subjetividade da mulher por vezes ingênua, por vezes angustiada e distante, corriqueiramente opaca, toma o corte entre cenas como um impulso para que o ofício de atriz/modelo rebata a perspectiva do corpo em direção ao mundo que o compõe conjuntamente a ele. Seu aprendizado não é uma ciência da adaptação biológica tanto quanto uma chave que singulariza a loura pelo “esporte” cerebral no qual ela é imbatível.

É através do xadrez, nesse tabuleiro de projeções sobre o lance do Outro e de si, nessa disputa enquadrada que requer uma totalização (semi)impossível do olho-acima-do-espaço, como acontece por detrás das linhas de um tableau, que Anna articula o joguete capaz de fazer de Besson quase um comediante sutilizado dentro da ação. Num café de praça, espaço típico dos rendez-vous parisienses, reduz os dois agentes especializados e, por que não dizê-lo, tolamente enamorados, à condição de fantoches sobrelotados dos próprios fios que vêm à exposição. América e Rússia dividindo um espresso e endividados com uma órfã. Das promessas e abusos, tornam-se contornos assustados na iminência do embaralho absoluto daquilo que é da ordem da missão patriótica e daquilo que os faz cachorros apaixonados por um dono impossível, como se não só o aprendiz tivesse superado o mestre, mas também o feito de bobo por sua suposta maestria acumulada. É este o seu logro: imprensar as adversidades num mesmo espaço para saltar dele como os volumes e mais volumes de uma boneca russa.

Não espanta que à beira de sua dúbia liberdade ela consiga repuxar uma penúltima boneca justamente onde parecia ter restado a mais minúscula de todas. O artefato icônico comporta sua titulação, justifica por fins e meios que o último lance grafe seu nome de uma vez por todas e no paradoxo de um arquivo deletado: ela não existe mais, precisou se apagar por um dos elementos que mais singularizam isto que dizem ser uma mulher para soçobrar ainda mais imortal que nunca. Heroína conquistada, ou os dois países de estrutura continental vêm à baixo. Saltamos ao outro lado da mesa, ou ainda tomamos a posição do lustre, da sombra abaixo dela, das árvores que a contornam. É o preço da sua negociação ser esquecida para que o mundo não entre em colapso. Megalomania tipicamente americana de tomar as proporções do planeta como a medida de distinção do herói. Gracejo russo de multiplicar a pintura e compactá-la até que a última surpresa seja quase igual a primeira. Assim diríamos, se a paixão de Anna pelo que é livre fosse tão facilmente redutível ao dúplice – e porque uma modelo sempre sabe que é assistida. Cabe-lhe tomar a posição da câmera e esbofetear o fotógrafo: eis seu último desfile sangrento antes da liberdade.

FacebookTwitter

Bacurau: desequilíbrios e assimetrias

Por Kênia Freitas

Antes

Uma das bases das discussões racializadas contemporâneas sobre os gêneros narrativos – em campos como o afrofuturismo e o horror noire (ou terror negro) – é a ideia de que gêneros como a ficção científica e o terror se fundam na projeção do medo branco da vingança dos povos e etnias historicamente escravizados, subjugados, desumanizados e colonizados. Invertendo de forma perversa a flecha da violência na produção simbólica, os filmes e livros de gênero tornam as pessoas brancas vítimas resistentes às opressões, perseguições e ocupações. Ataques vindos de um Outro imaginário/mágico/fantástico (as invasões alienígenas, os zumbis comedores de gente, os fantasmas e toda uma fauna de monstros). E também de um Outro localizado nos povos fora da codificação civilizatória branca – os bárbaros, os selvagens. O surgimento do western no cinema hollywoodiano realiza um processo semelhante de inversão histórica, colocando os povos indígenas como os selvagens/malvados dos seus primeiros filmes.

            Em Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, a narrativa de gênero (entre o western, o terror e a ficção especulativa de futuro próximo) é retomada agora em consonância com uma visão histórica de mundo pós-colonial: que localiza no colonizador branco, no caso o europeu-estadunidense, a figura do invasor violento. Desse ponto de vista, o filme é pedagogicamente literal e maniqueísta. Os personagens brancos são maus. São os vilões. Os invasores. Eles perturbam o curso da existência e da narrativa sobre o pequeno vilarejo de Bacurau. Seu signo principal e a justificativa de suas ações se forjam a partir de um discurso de subjugação racializada hierarquizante – em que os moradores de Bacurau estão aquém do estatuto de humano e alguns brancos são mais brancos do que os outros.

            Ao mesmo tempo (e essa sincronicidade de perspectiva é fundamental), dentro da tradição dos gêneros narrativos cinematográficos aos quais se filia, Bacurau é um filme que subverte o lugar do medo branco como premissa. Há na composição enunciativa do filme ao mesmo tempo uma literalidade da representação histórica pós-colonial e uma subversão da perversão das localização dos gêneros do cinema normativo.

            Desequilibrio e assimetria[1]

Essas são palavras importantes para se pensar Bacurau em sua construção interna de tempo e de encenação. O desenvolvimento fílmico do vilarejo e dos seus moradores parte de uma ideia de profundidade, de uma densidade da imagem e de histórias. À Bacurau não se chega com facilidade, é preciso estar no caminhão pipa com Teresa e Erivaldo, percorrer a via acidentada com caixões, sacolejar na estrada de terra. Há a projeção de uma vida, de relações familiares e de comunidade, de arcos e trajetórias pessoais em pleno curso: como seguirá o curso da vida comunitária sem Dona Carmelita?  Por que Teresa regressou? Acácio conseguirá de fato deixar de ser Pacote? Lunga e o seu bando sobreviverão à perseguição policial? Com essas aberturas de enredo, o início do filme demora-se então não apenas em nos apresentar e contextualizar a cidadezinha, mas também em criar essa atmosfera de densidade.

bacurau_comunidade

            Aos poucos essa espessura narrativa será atacada por imagens e sons de outra natureza – não mais da profundidade, mas da superfície: a caravana do prefeito Tony Jr com o seu jingle eleitoral chiclete, as imagens do drone/disco voador ou os sintetizadores roubados dos filmes de John Carpenter. Uma composição planificada que começa a se sobrepor como uma ameaça de compressão a espessura da encenação até então constituída, e que anuncia a chegada do elemento desestabilizador definitivo: o grupo de estrangeiros invasores brancos.

            Se para chegarmos à Bacurau vamos de caminhão pipa, até o acampamento dos gringos chega-se de drone. Sem sutileza, sem tempo de apresentação, sem arco, sem espessura. O grupo é acima de tudo uma imagem clichê: uma matriz pré-moldada na iconografia do cinema para reprodução, um amálgama das representações de homens e mulheres brancos, estadunidenses fascinados por armas, pelo extermínio, pela destruição de tudo o que não é espelho (e, às vezes, do espelho também).

bacurau-drone

            Da superfície à densidade, o filme engendra uma série de formas e regimes de representação e encenação: das atuações de atores não profissionais, passando pelas relações comunais, matutas e codificadas encenadas pelo núcleo de Bacurau à corporificação da imagem videogame dos gringos. Entre esses lugares, ficam personagens como o prefeito Tony Jr e o casal de forasteiros paulista-carioca. A chegada do casal ao bunker gringo marca um dos momentos de choque entre os universos (antes do confronto final). Em um mesmo espaço estão os dois, a senhora moradora local que serve ao grupo e os gringos. Cada um desses conjuntos existe e atua em regimes de representação diversos e as comunicações mostram-se truncadas, imprecisas. O gesto da senhora para oferecer água, a tentativa do casal de justificar as suas ações e o estabelecimento da hierarquia racial pelos gringos: nada disso está dado como consenso mínimo entre os conjuntos. Há um abismo de humanidades intransponível na diferença entre “people we pay” e “local contractors”. As formas de apreender e comunicar entre essas humanidades são diversas e, como o final da sequência nos mostra, não passíveis de sintetização.

            O ataque é então o encontro final da espessura densa da representação e tramas de Bacurau e da imagem de superfície dos invasores brancos. A estratégia de guerrilha da comunidade para não ser aniquilada passa justamente por saber desaparecer, esconder-se, retrair-se para dentro de si (para dentro da espessura). A comunidade retira-se do terreno de confronto aberto, faz com que os invasores esperem – tomando conta da temporalidade da ação.

            Para fora

            “A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, que arrasou completamente os sistemas de referências da economia, os modos da aparência e do vestuário, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada se engolfar nas cidades interditas. Fazer explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desmanchar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se vão abrir vias de passagem entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la profundamente no solo ou expulsá-la do território” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, p. 30).

            Frantz Fanon ao tratar dos territórios colonizados fala de uma configuração espacial de um mundo cindido em dois: o do colono e o do colonizado. Duas zonas geográficas de existência não compartilháveis. O processo de descolonização não passa pela ideia de integração ou síntese de mundos, mas de destruição violenta do colonizador e da sua zona. Enterrá-la profundamente no solo…

            Bacurau é um filme sobre a violência e com imagens violentas. Um posicionamento ético diante dessas imagens passa por se perguntar como a violência se estrutura, quais as suas origens,  os seus agentes e os seus pesos: na fúria do facão de Lunga? No tiro certeiro de Damiano? No assassinato de uma criança? Na eliminação de testemunhas? Na morte por interferência do jogo? Na chacina da fazenda? Na chegada dos brancos assassinos? No sequestro de Ângela pelo prefeito e sua trupe? Na retirada do mapa de um território? Na distribuição feita pelo Estado de mantimentos vencidos? Na criação de barreiras para interromper o fluxo do rio e tornar a água inacessível? Na tentativa de destruir as barreiras? Na perseguição do estado-policial do Brasil do Sul? Nas execuções em massa no Anhangabaú? Na transmissão em tempo real das execuções em massa no Anhangabaú?

bacurau-lungaTodas ações violentas. Porém, não simétricas.

  Ao final de tudo, vencido, cansado, Michael vê a comunidade de Bacurau reunida na frente da calçada da igreja que expõe as cabeças decepadas de seu grupo. Com desprezo e desaprovação, ele diz: So much violence. Há uma força que explode a diegese quando esse corpo de um homem branco, europeu, em tudo normativo, mesmo derrotado se sente capaz de enunciar um juízo de valor, que desautoriza a violência fora dos seus termos e do seu jogo.

Tanta violência.

Bacurau_micSoma

            Em sua junção de mundos, de formas de encenar, de perspectivas, de densidades rasas e profundas de imagens e sons, Bacurau resulta desequilibrado, incompleto, com tramas sobrepostas e outras interrompidas. Há um estranhamento diante de um filme que não é fragmentado, mas que também não se totaliza.

Mais do que uma suspensão ou esvaziamento da narrativa, nessa forma de se compor, o filme assume o corte abrupto diante do choque de perspectivas, de formas de invenção e fruição de mundo. Corte seco de um regime de encenação sobre o outro, da violência racializada, das desigualdades entre as partes, da fricção da invasão colonizadora com a resistência comunal. Assume-se sem síntese, sem neutralidade estabilizadora do encontro assimétrico. Os seus diretores produzem então, nesse desequilíbrio, um desdobramento ético e estético do filme que criam.

[1] Agradecemos ao texto da Carol Almeida pela invocação da ideia de assimetria no filme: https://foradequadro.com/2019/09/10/bacurau-de-kleber-mendonca-filho-e-juliano-dornelles/

FacebookTwitter

A Meretriz-Ciborgue de Daehak-ro: Os Limites da Violência Ética e a Exigência do Não Cegado

Por Diogo Serafim

 

Esse dualismo estruturou a disputa entre o materialismo e o idealismo, a qual foi resolvida por um rebento dialético que foi chamado, dependendo do gosto, de espírito ou de história. Mas, basicamente, nessa perspectiva, as máquinas não eram vistas como tendo movimento próprio, como se autoconstruindo, como sendo autônomas. Elas não podiam realizar o sonho do homem; só podiam arremedá-lo. Elas não eram o homem, um autor para si próprio, mas apenas uma caricatura daquele sonho reprodutivo masculinista. Pensar que elas podiam ser outra coisa era uma paranoia. Agora já não estamos assim tão seguros. As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes.

Donna Haraway, O Manifesto Ciborgue

 

Reside na configuração ontológica da máquina um princípio fundador que abala nossas concepções de sujeito, comando e controle. O mito do ciborgue parte de uma apostasia heterodoxa que constantemente escapa das nossas definições imediatas que decorrem da sua imagem, uma lógica de comunicação que é desestabilizada pela noção de inteligência, exigindo uma repartição radical na sua configuração subjetiva. A linguagem do ciborgue trata não de uma linguagem do comum, mas de uma herética heteroglossia, como a própria Donna Haraway indica: a cultura ciborgue é definida mais em termos de densidades dentro de fluxos, um circuito que encontra pontos de inflexão nos seus percursos, uma profusão que converge na mesma medida que diverge na sua abundância. Em primeira instância temos a afluência de intensidades para encontrarmos em uma dimensão subsidiária a esta a sua constituição de corpos e vontades. Não é a consciência que dá lugar ao que está fora desta, e sim o encontro de consciências que permite a realidade tal como ela é, uma rede difusa de forças, campos e vetores postos em associação por um materialismo fundador, sempre se interseccionando e frequentemente colidindo.

De onde surgem nossos prazeres? Seriam eles ontologia ou cultura? A primeira conclusão essencial na compreensão de uma possível cultura ciborgue decorre diretamente do imperativo da construção, nada aqui é absoluto, é tudo programado. Se a ontologia fundadora do ciborgue é em si uma ontologia construída, submetida às relações de poder que a formataram, é sempre importante frisar que essa ontologia pode ser constantemente aperfeiçoada, é inclusive da sua natureza que ela seja constatemente otimizada com a cinesia insaciável da cultura e da política, sempre sendo redesenhada, reconstruída, reconfigurada.

Imagem 02

É impressionante como Teenage Hooker Becomes Killing Machine in Daehak-ro (2000) é um filme sensorial, não apenas visualmente, mas também na sua trilha sonora. Se Évora, Veloso e Sakamoto entoam inicialmente uma atmosfera misteriosa e um sentimento irrebatável de isolamento urbano, logo Sun Ra e Huckle Berry Finn levam o filme para o domínio do deboche. Em seguida somos tomados por uma espécie de ascetismo perturbador com Saint-Saens, um desespero desestabilizador com Mozart e um estoicismo renitente com Fauré. Massive Attack denota uma esperança surgente e a curva final necessária para entrarmos em definitivo em uma estética mais propriamente próxima do cyberpunk, Gypsy Kings reforça uma ambiência misteriosa com um desvio para uma atmosfera de filme noir, enquanto Rutter é a tão aguardada emancipação. Primal Scream consegue finalmente concatenar toda a esquizofrenia narrativa, sensorial e formal em um tom conclusivo.

Uma jovem prostituta engravida do seu professor sadista em Daehak-ro. A lua é quem sela o pacto dessa concepção. A jovem menina, aparentemente desprovida de vontade própria e individualidade, carrega no seu utilitarismo empreendedor já uma figura de ciborgue servil, uma submissão voluntária à figura do seu mestre, quem a programou de acordo com os desejos e vontades próprias. Ela é o ciborgue reprodutor, ele é o ciborgue cuja função é controla-la de acordo com sua libido. Um é proprietário, o outro é comoditizado. Agora a mulher obediente, carregando uma criança no seu ventre que é fruto dessa relação hedionda com o pai autoritário, é violentamente assassinada.

Imagem 02

Após ser reformada, a versão evoluída da prostituta enfrenta o seu criador com a única resposta possível, tendo que a base estrutural dessa relação é a violência. Agora em um corpo sem coração é capaz de reparar a violência a qual foi submetida com uma resposta binária. Colide na figura da mãe do professor, aquela que encapsula o egoísmo pleno, a aniquilação da força reprodutiva do filho criador, o filho deformado, o patriarcado reduzido na imagem de um monstro, a sua subsequente humilhação e uma nova ordem de dominação que é estabelecida com esse ato de vingança. Nos limites da violência ética, reside ali algum ímpeto asceta provido de toda a repugnância que nos foi exposta anteriormente, mas que de alguma maneira ainda nos é repulsivo, independente das suas possíveis justificativas compensatórias. Só podemos ter uma reflexão ética sobre a humanidade alheia no momento em que suspendemos o nosso juízo – talvez para aniquilar a injustiça deva-se aniquilar assim também a humanidade.

É como Adorno afirma em Minima Moralia: “O humilhado e o rejeitado apercebe-se de algo, tão cruamente quanto a luz que dores intensas lançam sobre o próprio corpo. Ele se dá conta de que no mais íntimo do amor cego, que nada sabe disso nem pode saber, vive a exigência do não cegado. Fizeram-lhe injustiça; disso ele deriva a demanda do direito e no mesmo passo é obrigado a abrir mão dela, pois o que deseja só pode provir da liberdade. Nesse infortúnio o rejeitado torna-se humano”. Poderia tornar-se humano o ciborgue, mesmo que partindo do abominável para tal?

Imagem 02

O grande dilema é como construir uma cultura ciborgue que finalmente nos faça pensar a partir do nosso circuito, e não de seus capacitores desenergizados (ou excessivamente energizados, dependendo de como se queira estabelecer a metáfora). A solução é a violenta retirada desses capacitores ou há uma forma de também os reconstituir? Existe algo de irreversível no nosso processo civilizatório que nos impeça de pensar para além da violência, rumo a uma reparação plenamente ética? Há de existir alguma maneira de reestabelecer a humanidade a partir da humilhação do Eu, do confronto direto com a nossa pequenez deve surgir a nossa grandiosidade. Em busca de uma subjetividade sem sujeito, de uma heteronomia sem sujeição, em eterna reconstrução, sempre se aprimorando, sempre se aproximando do Uno.

Imagem 02

FacebookTwitter

Corpo e Máquina

Imagem 02

MÁQUINAS DE MONITORAMENTO, VIGILÂNCIA E CAPTURA
Camila Vieira

UMA ESPÉCIE DE COMPUTADOR – NOTAS SOBRE TÉCNICA E ESTILO NO CINEMA
Bernardo Oliveira

COMO VIVE O CORPO VIRTUAL – A PRESENÇA FÍSICA EM “O SEGUNDO ROSTO”
Gabriel Papaléo

UM HOMEM É UMA CÂMERA
João Pedro Faro

GHOST IN THE SHELL E A HUMANIDADE NEGOCIADA
Isabel Wittman

A TRILOGIA JOHN WICK E O EPÍLOGO DO HOMEM-RESPOSTA
Pedro Tavares

A MERETRIZ-CIBORGUE DE DAEHAK-RO: OS LIMITES DA VIOLÊNCIA ÉTICA E A EXIGÊNCIA DO NÃO CEGADO
Diogo Serafim

A RELAÇÃO CORPO-MÁQUINA: DE METRÓPOLIS A MATRIX
Natália Alonso

TETSUO E O NIILISMO REVOLUCIONÁRIO
Chico Torres

TRAGAM-ME A CABEÇA DE CARMEN M. – ENTREVISTA COM FELIPE BRAGANÇA E CATARINA WALLENSTEIN
Pedro Tavares

DIVINO AMOR: ENQUADRAMENTOS E EXCLUSÕES DE UM FUTURO PRÓXIMO
Kênia Torres

A SINCRONICIDADE DAS SOMBRAS
Felipe Leal
*

FacebookTwitter

Máquinas de monitoramento, vigilância e captura

Por Camila Vieira

Uma sala com uma cadeira vazia. Um homem prepara uma câmera fotográfica no canto direito do quadro. Dois policiais trazem uma mulher, que é obrigada a se sentar na cadeira. Aos olhos vigilantes dos três sujeitos, ela retira o casaco, o chapéu e arruma o cabelo. O fotógrafo faz os últimos retoques em sua roupa e depois aciona a câmera. Ela vira o rosto em outra direção. Os policiais seguram à força seus braços e sua cabeça, para que ela fique imóvel e com o rosto em frente à câmera. Enquanto permanece imobilizada, ela faz caretas. O enquadramento fica mais próximo do rosto da mulher que continua a contorcer o rosto, até chorar em desespero. A cena aqui descrita de A Subject for the Rogue’s Gallery (1904), de A.E.Weed, é uma alusão a um acontecimento bastante comum nos departamentos de polícia do final do século XIX: o modo como os presos resistiam ser identificados pelos bancos de fotografias dos procurados pela polícia (os chamados rogue’s galleries).

Logo após sua invenção, a fotografia é imediatamente usada para fins criminológicos e para alimentar coleções de retratos de suspeitos e criminosos. Era uma prática comum incentivar a exibição pública de tais imagens. A tarefa policial passa a depender do reconhecimento dos sujeitos mediante as fotografias, mesmo que ainda sem organização e procedimentos muito claros. Como a técnica fotográfica àquela época ainda necessitava de um tempo maior de exposição, as pessoas a serem retratadas logo encontraram uma tática de resistência à captura violenta de suas imagens: contorcer as expressões faciais para impedir uma fotografia nítida do rosto.

Imagem 02

Se o advento do dispositivo fotográfico atrela-se ao poder de quem produz imagens e ao modo como o corpo do outro será controlado, a violência da captura perpetua-se simbolicamente em outros aparatos técnicos que marcam a modernidade. Em 1878, o fisiologista francês Étienne Jules-Marey desenvolve o fuzil cronofotográfico – um tambor forrado com uma chapa fotográfica circular, que produzia 12 frames por segundo. A técnica deste curioso invento ótico foi pensada com o intuito de capturar as fases consecutivas de um movimento, mas está radicalmente associada ao gesto de apontar e disparar.

Imagem 02

 

No contexto contemporâneo, o disparo na captura das imagens parece ceder lugar a uma forma de controle silencioso e de monitoramento dos corpos: o reconhecimento facial. Em julho de 2019, imagens de rostos envelhecidos povoaram as redes sociais em uma espécie de nova febre que viralizou em poucos dias. O uso massivo do aplicativo FaceApp reacendeu o debate em torno da privacidade na internet e do uso de dados pessoais para manutenção de um grande banco de reconhecimento facial. Com o avanço da inteligência artificial e de softwares de mapeamento de rostos em seus diversos ângulos e expressões, o reconhecimento facial é uma ferramenta tecnológica que vem sendo usada a serviço de uma hipervigilância que se normalizou. É um mercado que movimenta bilhões de dólares, sem regulamentação clara e fiscalização. Academias de ginástica, bancos, companhias aéreas e empresas de telefonia usam a ferramenta. Smartphones são desbloqueados com a imagem dos rostos de seus donos.

O reconhecimento facial vem sendo usado em larga escala nas grandes cidades como tática para identificação e reconhecimento de suspeitos de crime, terroristas, foragidos e indivíduos com mandado de prisão, que são rapidamente capturados pela polícia. Aqui no Brasil, o governo da Bahia e do Rio de Janeiro implementaram uma ostensiva prática de vigilância por câmeras com reconhecimento facial para auxiliar o trabalho de agentes de segurança pública. Tais programas são criticados pelas imprecisões dos algoritmos com falhas de identificação que levaram a prisões de pessoas inocentes. Nos próximos três anos, o metrô de São Paulo será equipado com um número maior de câmeras com tal tecnologia. Em outros países, manifestantes já estão usando estratégias de contra vigilância. Em Hong Kong, protestos recentes envolveram bloqueios da visão das câmeras por meio de lanternas laser e destruição de torres de reconhecimento facial.

Imagem 02

Em Imagens da Prisão (2000), Harun Farocki já anunciava como a economia das políticas de vigilância está presente em instituições que operam por táticas de controle: as prisões, os asilos, os internatos, as fábricas, os supermercados. O filme é um grande apanhado de imagens restritas ao espaço institucional (os circuitos internos das câmeras de vigilância e os aparatos digitais de monitoramento) e articuladas com trechos de filmes da história do cinema. Farocki reflete sobre dois tipos de enquadramento na produção das imagens de vigilância: a fila ordenada e o retrato do indivíduo ou do grupo. “Nos rostos, busca-se algo para o qual não há uma definição. Isto é o que a câmera atrai”, diz o narrador. Se o próprio rosto transgride o gesto de captura, novas ferramentas intensificarão as formas de fiscalização dos corpos. No mesmo filme, aparecem os aparelhos biométricos para controle de acesso, como a identificação pela íris. O mapeamento dos clientes no supermercado torna os corpos dos consumidores meros pontos que circulam na tela do computador, com códigos que registram a lista de compras.

Imagem 02

A quem interessa a produção em massa de tais dispositivos de controle e vigilância? Quem gira a grande máquina do capital? Empresas de desenvolvimento de softwares de reconhecimento facial cada vez mais sofisticados lucram a serviço da segurança pública. Além de produzir imagens sem autorização e consentimento de quem está sendo filmado, as falhas nos dispositivos apontam para uma base de dados discriminatória. Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Stanford e o Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), três grandes sistemas de reconhecimento facial no mundo – IBM Watson, Microsoft Cognitive Services e o Face++ – apresentaram diferenças gritantes de erros de identificação de acordo com o gênero e a raça. Com homens brancos, as falhas não chegam a ultrapassar 0,8%. Com mulheres negras, o índice de erro alcança 34%. São instrumentos criados para cercear a liberdade de quem já é historicamente apartado dela e se configuram como uma ameaça permanente aos direitos civis.

FacebookTwitter

Uma espécie de computador – Notas sobre técnica e estilo no Cinema

Por Bernardo Oliveira

Gance La Roue

1.

Em reportagem para a Folha de São Paulo, em 27 de agosto de 1995, o jornalista Alcino Leite Neto perguntou a Julio Bressane e Rogério Sganzerla: — Por que fazer Cinema? E, afinal, o que é o Cinema? Entre as diversas respostas disparadas respectivamente pelo “enfant terrible” e pelo “enfant gâté“, Sganzerla declara que um filme como “O Parque dos Dinossauros”, de Steven Spielberg, apesar de muito bem filmado, não demonstra qualquer preocupação com a “mise en scène”, isto é, com a forma do filme: “o que falta hoje em dia é a ausência de ornamentação, a essencialização da forma que se vê, por exemplo, em Robert Bresson […] o importante é que os filmes tenham uma forma. O filme é uma espécie de computador. Nós não temos ainda esse registro do pensamento humano que poderia ser comparado à definição do Abel Gance. Quer dizer: a música da luz, mas que poderia ser a música da luz e do som— e da fúria”.

2.

Há décadas, essa formulação me intriga: “O filme é uma espécie de computador”. Nada nas frases que envolvem essa sentença nos auxilia a tratá-la como um enigma passível de tradução — pois, a rigor, o que faz o enigma é sua perene insolubilidade a reivindicar respostas variadas, conforme as tendências e desvios de época. 

3.

Duas ideias em particular parecem saltar no entorno da sentença-enigma, sem lançar luzes ou explicá-la propriamente: a primeira afirma que, em algumas obras específicas, a mise en scène e a “essencialização da forma” corresponderiam a um mesmo movimento interno ao filme — e, para sublinhar essa característica, Sganzerla evoca Robert Bresson, deslocando o problema não para o campo do “Cinema” — o teatro filmado, litero-centrado, mais focado na manutenção do drama do que na sensorialidade da experiência —, mas para o Cinematógrafo, com as suas características e potenciais próprios, capaz de organizar a matéria sensorial de maneira irredutível aos primados da linguagem literária ou teatral. Trabalhar a forma dos filmes, em seus registros constitutivos, para fugir às representações mediadoras das outras artes e buscar a especificidade do Cinematógrafo — Bresson observa que “o Cinematógrafo é uma escrita com imagens em movimentos e sons”, cuja força “se dirige a dois sentidos de maneira regulável”. Ausência de ornamentação, quer dizer ausência de artifícios pré-concebidos; ou, nas palavras de Eduardo Coutinho, “refresco visual”, a utilização automática do clichê.

Gance 2

4.

A segunda ideia se relaciona com uma noção célebre, enunciada pelo cineasta francês Abel Gance, segundo a qual o cinema corresponderia à “música da luz”. Essa ideia pode ser interpretada tanto do ponto de vista de sua realidade técnica — pois, afinal de contas, a luz incide sobre o acetato que, além de assimilá-la, em sua composição físico-química, ainda a mantém “organizada”, tornando-a passível de ser reproduzida —, como em seus aspectos sensoriais e cognitivos, pois o que o Cinema faz não é exatamente reproduzir ou mesmo representar o real, mas sintetizar blocos sensoriais capazes de embaralhar cadeias causais que, habitualmente, forneciam as coordenadas para a construção das artes tradicionais e até mesmo do Conhecimento, transformando-as em um outro tipo de registro — “um registro do pensamento humano” que, segundo Sganzerla, “ainda não temos”.

5.

Retenho aqui ambos os raciocínios para concluir, ainda que provisoriamente, que, para Sganzerla, o Cinema exprime um “registro do pensamento humano” irredutível às Artes, às “Linguagens”, até mesmo ao Conhecimento  — tal como o compreendemos na Modernidade. Em oposição à noção de Verdade, tradicionalmente instalada no real, o Cinema propõe uma experiência construtivista essencialmente criativa, articulando som e imagem em uma sequência de situações, captações e composições. Dialética não há, pois não há negatividade: tudo no Cinema encaminha o pensamento para uma experiência positiva com as sensações, tanto do ponto de vista daquele que compõe as forças, como também daquele que assimila seus clichês, deslocamentos e modulações. O Cinema, portanto, como um registro do pensamento, pode ser aprofundado por contínuas práticas de experimentação tecno-sensorial cujo resultado depende do estilo de cada “Autor” — e aqui vale ressaltar que entendo a autoria como uma categoria complexa que não atende somente a uma subjetividade encerrada sobre si mesma, mas à complexidade das interações que encaminham um processo de filmagem e captação.

6.

Para o mecanólogo francês Gilbert Simondon, os objetos técnicos possuem dois aspectos centrais: a) uma função consolidada pelo uso corrente, prescrito em manuais; e b) outra, chamada “margem de indeterminação”, que opera como uma força premente de inovação: “O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que, poderíamos dizer, eleva o grau de tecnicidade, corresponde não a um aumento do automatismo; mas, ao contrário, ao fato de o funcionamento de uma máquina guardar certa margem de indeterminação. É essa margem que permite à máquina ser sensível a uma informação exterior. É por essa sensibilidade das máquinas à informação que um conjunto técnico pode se realizar, muito mais do que por um aumento do automatismo. Uma máquina puramente automática, completamente fechada sobre si mesma, num funcionamento pré-determinado, não poderia oferecer mais do que resultados sumários. A máquina dotada de alta tecnicidade é aberta; e o conjunto das máquinas abertas supõe o Homem como ‘organizador permanente’, como intérprete vivo das máquinas umas com relação às outras”.

au-hasard-balthazar-1966-028-hands-bench-00m-n2y

7.

Um computador é uma máquina que, como qualquer objeto técnico, possui funções consolidadas e potenciais de renovação. Esse potencial aumenta e diminui conforme o usuário também aumenta ou diminui o grau de interação como o objeto em sua totalidade — no caso, não apenas a operacionalidade entre os softwares, como também a possibilidade de compreender o hardware e manipulá-lo. Sendo assim, as máquinas operariam sempre no limite entre a sua função consolidada e aquelas ainda desconhecidas, recalcadas pelo hábito. A própria história da técnica se dá como uma sucessão de tensionamentos entre a lógica escravocrata do uso consolidado e as sucessivas insurgências que a interação humana pode vir a provocar. “Novos seres técnicos” aparecem quando novos usos transformam os antigos. Em ambos os casos, tanto no “filme-cinema” como no “filme-computador”, trata-se de ampliar a margem de indeterminação para que se amplie, igualmente, o espaço de invenção.

8.

Na mesma entrevista, Bressane afirma que “o Cinema é um organismo intelectual demasiadamente sensível”, pois é capaz de assimilar, incorporar ou, até mesmo, recusar as informações e interações externas, permitindo que elas ingressem no seu sistema e reinventem as dinâmicas internas, reconfigurando usos e potenciais. Como os demais objetos técnicos, um computador é um ser sensível à informação externa. Que pode ampliar seus usos consolidados através da inclusão de novos procedimentos e informações. Em suma: é a margem de indeterminação, o elemento desconhecido, que mantém o ser técnico “vivo”. Ou seja, rico em potenciais renovadores. É a margem de indeterminação que confere ao objeto técnico uma “situação” de diferença, pois provisória e em estado de gestação e movimento. Transpondo esse raciocínio para o Cinema, percebemos que a relação transformadora entre a informação e o filme obedece às relações internas, não exatamente regras, mas a uma axiomática mínima que se opera entre duas coordenadas: o ver e o ouvir.

9.

Em uma de suas “Extemporâneas”, Nietzsche afirma que “Cultura é, antes de tudo, Unidade de Estilo em todas as expressões da vida de um povo”. Tomada como “Unidade de Estilo” — seja de um grupamento humano , seja de um indivíduo — a Cultura encarna as tensões entre subjetividade e coletividade, operando, portanto, em uma “margem de indeterminação” que jamais fixa o sentido absoluto da extensão de sua expressão, senão que a estende até as fronteiras da afirmação ou da dissolução. Em todo caso, o Estilo se confunde com a própria noção de Cultura, na medida em que são atravessadas pela estranha ideia de “Grandeza”. Portanto, para que haja Estilo (Cultura), é necessário que haja Grandeza. Em “Reflexões sobre a História Universal”, no capítulo chamado “Indivíduo e Coletividade (Grandeza Histórica)”, de 1870, o historiador suíço Jacob Burckhardt afirma que “Grandeza é a soma global da personalidade de um indivíduo que nos parece grande, que continua a exercer sua influência mágica sobre nós, através dos séculos e dos povos, muito além das fronteiras da simples tradição (…). Um grande homem é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto, porque determinadas grandes ações só poderiam ser possíveis por ele, no interior do seu tempo e ambiente, sendo inconcebíveis sem ele. Ele está, fundamentalmente, ligado ao grande fluxo central das causas e efeitos. Há um provérbio que diz  que “Nenhum homem é indispensável’. Mas, justamente os poucos que o são, são grandes”.

10.

E isso é de tal forma que as características da Grandeza também acabam por se confundir com as características do Estilo, construindo uma correlação que se exprime nos seguintes termos : uma Cultura — seja expressa por um indivíduo ou coletividade — encarna tanto mais a Grandeza quanto mais consegue distinguir-se pelo Estilo, isto é, pelos traços de inovação, influência; em suma, por suas ações irredutíveis a quaisquer outros registros da atividade humana, que possuem o estranho poder de evocar tanto o tempo presente (“o interior de seu tempo”), como ultrapassá-lo. Por se manifestar como Grandeza, a ação do Estilo — ou melhor, o Estilo como uma atividade — perdura e sustenta sucessivas renovações do campo expressivo, absorvendo e repelindo simultaneamente as tendências de época. 

11.

Ao que parece, Sganzerla não se referia ao “filme” enquanto suporte (película), mas ao Cinema como um sistema complexo e suas obras. Cada uma trazendo sua própria sistematização interna, geralmente fechada dentro de protocolos da Arte e da Técnica Cinematográficas. Um computador é uma máquina. E, talvez, a frase de Sganzerla queira simplesmente indicar que o Cinema é o produto estético, em si mesmo original, que emerge da originalidade da associação entre dois objetos técnicos: o cinematógrafo e a ilha de montagem. Por ser capaz de sintetizar imagens, sons e sensações, através desses dois dispositivos, o Cinema possibilitaria uma experiência estética mais completa do que, por exemplo, a Música ou a Literatura. Um computador que produz blocos sensoriais, ora ajustados às representações correntes (“clichês”), ora banhado por uma formalização extremamente variável, que se altera conforme o estilo da mise en scène e as estratégias de filmagem e captação.

12.

Nesse sentido, o filme seria um computador na medida em que opera como um dispositivo técnico apto a captar e organizar dados de ordem física (a luz), técnica (a captação, a projeção) e estética (os blocos sensoriais, o raccord). Como registro da percepção, registro cognitivo e criativo, o Cinema é capaz de organizar essas informações tal como em um banco de dados. Capaz, inclusive, de permitir que certas perspectivas e sensações sejam criadas através do entrecruzamento e a convergência desses dados. Nesse ponto, os dados que o Cinema opera indicam a força imanente das possibilidades abertas pelo Estilo, o que não ocorre sem que o “Autor” e sua equipe interajam de forma distinta com os objetos técnicos e as operações estéticas. Se o Cinema permanece no imaginário como uma arte ambígua — a “arte sem futuro”, prestes a morrer, mas que permanece instalada, há mais de um século, em nossos hábitos —, essa ambiguidade se deve às suas engrenagens maquínicas e seus potenciais de renovação.

FacebookTwitter

Como vive o corpo virtual – a presença física em O Segundo Rosto.

Por Gabriel Papaléo

 

“Long live the new flesh.”

Max Renn, vivido por James Woods em Videodrome (1983, dir. David Cronenberg).

 

Onde exatamente experimentamos algo “real”? Qual o paradigma que lhe é concedido para explorar essa realidade? Para John Frankenheimer, a virtualidade faz parte (se não é o motor) da experiência real, e em O Segundo Rosto o diretor coloca o protagonista Arthur Hamilton para questionar a natureza visual do real, o que significa sua liberdade, ou como concilia desejos distintos, pulsões discrepantes, tempos e gerações opostos nas aspirações de destruição um do outro.

Imagem 02

Os créditos iniciais concebidos por Saul Bass concentram desde já a disposição ao rigor que Frankenheimer prega sobretudo de texturas e superfícies falhas do psicológico e do material mostrando a fragilidade da imagem que temos (e construímos) do nosso corpo, das projeções dos ambientes ao redor nos quais intuímos uma vida. O subúrbio em teoria é um lugar de porto seguro para o protagonista Arthur, onde mora com sua esposa, mas esse iconográfico carregado da cultura americana – especialmente na projeção estética que carrega para si nos filmes – é sufocado pela estilização da câmera do fotógrafo James Wong Howe. Aquele é um lugar de confronto velado, não conforto, e a estação de metrô que abre o filme é mapeada na tradição do suspense de paranoia; a câmera colada ao rosto de Arthur, seu suor, o homem que o persegue com uma maleta, os chapéus e sobretudos que andam sem identidade pelo lugar – tudo é informação e paranoia, porque existe algo escondido nessa falsa harmonia social mecânica.

Imagem 02

Tratar desse corpo disperso pela imagem é das soluções mais elegantes de Frankenheimer e Wong Howe na dramaturgia cheia de camadas de O Segundo Rosto; ao evitar que o filme se torne apenas um tratado psicológico, estudo de personagem focado em texto e informação, a câmera do filme cola seu corpo no corpo do protagonista e distorce a realidade ao redor para deixar dúvidas sobre ela. As cenas de drama aqui são registradas em lentes abertas que distorcem o rosto de John Randolph antes de sua transformação em Rock Hudson, ou teleobjetivas que ressaltam o quanto o banco no qual Arthur trabalha é apenas um borrão em sua atenção. A encenação pesada, minimalista, reforça esse dispositivo quase lúdico de fotografia, como se desafiasse aquele ambientes corriqueiros a se tornarem misteriosos, seja o subúrbio vazio, seja o escritório comum de empresa da corporação do filme que vira algo soturno nos mínimos detalhes. Para Frankenheimer, a pulsão da mudança passa também pela mente, mas se origina sobretudo em um movimento corporal – se é que aqui exista alguma diferença entre eles. A chantagem feita com Arthur é feita num momento de descontrole corporal, de quase possessão, e inconscientemente talvez seja ali que ele perceba que a casa onde sua mente mora é um catalisador da mudança, dos desejos, do qual não controla inteiramente – e isso precisa mudar.

A vida anterior à transformação, ligada aos bancos, ao sonho da casa de veraneio, ao barco de cobiça, ao sonho americano afinal, tem uma estrutura definida e desapaixonada que se revela o principal motivo para a insatisfação de Arthur. O pulo do gato do diabo corporativo que o tenta com promessas é uma tradução capciosa de inconsciente. cravando que o desejo de Arthur é a mudança, e eles enquanto empresa oferecem esse serviço. A promessa é da falta de responsabilidades. “Você vai estar na sua própria dimensão”, diz um dos muitos empregados que acompanham o protagonista pelas transformações.

Imagem 02

E que dimensão é essa, propriamente? A vida nova de Arthur, agora Antiochus (ou Tony, pra facilitar), ligada às artes, hedonista e de contato maior com a natureza vasta, com o coletivo. A arquitetura modernista da casa nova, construída como provocação à casa do subúrbio, o clima ameno e praiano da California, as roupas mais personalizadas, a jaqueta de couro branca que entra no lugar do terno e gravata impessoais. A reunião quase religiosa hippie para fazer vinho, exemplo da sexualidade e da liberdade de expressão que Arthur procurava em sua vida anterior. O mar como fuga do subúrbio, um horizonte de possibilidades utópicas (sei que O Segundo Rosto não é um filme brasileiro, mas esse texto é, então portanto nossas utopias aqui estão também). A leveza do vento no primeiro encontro na praia com Nora, aquele lugar vazio diante do mar, habitado apenas por aquelas duas almas, como numa cena egressa de A Noite ou A Aventura. A forma que esse contexto todo contrasta violentamente com os chapéus noir da estação de metrô e o subúrbio serve de imersão insuspeita na violência do arco de Arthur/Tony, que posteriormente é revelado na primeira aparição “pública” de Tony, na primeira vez que o protagonista está diante de pessoas, do coletivo.

Imagem 02

E é por conta desse medo público que Tony se torna indisposto com sua nova identidade. O medo de viver em coletivo permanece a lamúria da jornada do heroi individualista americano, e aqui isso é questionado. O roteiro de Lewis John Carlino parte do conto moral muito simples e direto (homem em crise de meia-idade despreza seu cotidiano e é oferecida a ele a chance de mudar), cheio de armadilhas moralistas especialmente num contexto americanizado, e no entanto abraça ambiguidades em ambos os lados da moeda porque sabe que o motivo pelos quais os estudos exatos e os estudos humanos andam tão separados, tão díspares em utilidade, é por conta de um calculado corporativismo capitalista.

Essa disputa geracional do Arthur diretamente de um cotidiano anos 50 para Tony, cujos signos conversam mais com seu presente de anos 60, busca no isolamento um lastro do que a sociedade americana construiu pra si – e o como essa situação é insustentável, porque leva ao eterno desejo insaciável, à eterna insatisfação que é o motor capitalista do conformismo estrutural. O que Tony experimenta dolorosamente é que a promessa de mudança sem uma reeducação do olhar apenas se molda em experiência corporativa efêmera e finita; é como se O Segundo Rosto falasse que é impossível conciliar o pensamento americano individual com os novos exemplos de sociedade mais coletivista que pelo mundo surgem. Tony espera ter liberdade de pensamento e falta de comprometimentos prévios, mas quando percebe que o preço que pagou para isso é um constante estado de vigilância e paranoia, volta ao porto seguro que lhe foi imposto.

Imagem 02

O cotidiano se torna imaterial quando planejado, quando cercado por questões pré-estabelecidas, e é isso que impede a apreciação do presente que Tony buscava. Em determinado momento, Nora fala com Tony que “as boas coisas sempre acontecem com a chuva”, e parece que o único encantamento que nos é disposto sem a contaminação da utilidade é o que vem da natureza, e que vem do acaso.

Quando volta à sua casa original, com novo rosto, Tony recebe a notícia de que as aquarelas de Arthur foram destruídas. É como se a única expressão artística do seu antigo eu perdesse o valor no presente utilitarista, algo que nem mesmo sua família se importou em guardar. O que se mantém, no entanto, é um troféu esportista, medidor de qualidade.

O arrependimento portanto parece culminação de toda a encenação da paranoia de ter sua vida dividida em estágios, em salas organizadas, que Frankenheimer e Wong Howe promovem. O retorno à empresa para mudar novamente de identidade vira calvário do mecanismo kafkiano da corporação capitalista, vidas a serem regurgitadas em prol do mercado, um doloroso flashback involuntário de Tony voltando à sala na qual entrou por acidente quando ainda era ainda Arthur, mas agora com motivo definido: uma eterna espera. Seu corpo é dispensável sob os olhos poderosos, e como tal pode ser reaproveitado se isso for lucro. A sua liberdade, no entanto, permanece um sonho intocado por quem silenciosamente já ditava seu cotidiano desde o princípio.

Imagem 02

As imagens distorcidas que abrem e fecham o filme, sinais de uma vida prestes a ruir sempre que os desejos são maiores que a necessidade de se conformar com o ambiente no qual fomos designados. O contrato com o diabo cuja máquina funciona sem percalços porque sabe que o indivíduo sempre terá a pulsão da mudança e do trânsito quando a harmonia com o ambiente não está acontecendo. O exílio de Antiochus é numa casa de luxo, sozinho diante do mar, mas como alguém que só encontra felicidade no coletivo delirante comungando, estar solitário diante daquela realidade forjada é o maior sinal de que o real é virtual, e como tal simulacro não existe além do plano artificial, imaterial, e portanto extracorpóreo.

FacebookTwitter

A relação corpo-máquina: de Metropolis a Matrix

Por Natália Alonso

Imagem 02
Metrópolis (Fritz Lang, 1927)

Em 1927, Fritz Lang presenteou o cinema com a então obra retrô-futurista pioneira do cinema. Metropolis é, até hoje, uma das primeiras referências quando se pensa em Steampunk1. Começava, de forma categórica, e nada tímida, – muito embora ainda solitária –, a relação corpo-máquina no cinema.

Metropolis é um grande centro que utiliza um sistema organizacional trabalhista influenciado pelo capitalismo, um evidente cenário pós-Revolução Industrial. O funcionamento da metrópole engloba altos níveis tecnológicos e estilo artístico. O filme é ambientado no ano de 2026 e mostra a cidade futurista ideal (cenários deslumbrantes, avanços tecnológicos inimagináveis para a época), onde aviões circulam entre edifícios gigantes, no auge da urbanização, uma verdadeira obra-prima do engenho humano. Mas a sua ambientação excêntrica e detalhista não é a única coisa que a trama intenta mostrar: a crítica social ao maniqueísmo e à oligarquia – que está enraizada na sociedade capitalista até hoje – são pontos fortes a serem analisados. O contexto sócio-político também é relatado com destreza e com toque surrealista, característica muito marcante em diversas obras retrô-futuristas.

            A relação corpo-máquina, enfim, se fortaleceu nos anos 80, em películas como Blade Runner (1982), Videodrome (1983) O Exterminador do Futuro (1984) e Robocop (1987), que também influenciaram a criação de jogos com cenário Steampunk e exploração da onda tecnológica em situações surreais ou absurdas. Na contemporaneidade, observam-se games extremamente acurados, com gráficos e cenários que evocam os filmes dos quais sofreram grande influxo. Um exemplo é Fallout. O jogo, inclusive, em especial na sua versão de número 4, faz referência ao filme que consagrou Schwarzenegger de diversas formas, a começar pela caracterização dos personagens (jogadores).

            Na maioria dos filmes, a tecnologia surge como uma importante aliada ao homem, mas acaba por causar catástrofes, com a dominação pelas máquinas e a inversão de papéis: a máquina controla o homem e não mais o oposto (destaque para O Exterminador do Futuro 3 – A Rebelião das Máquinas, de 2003). A ideia de que a máquina poderia atingir inteligência suficiente e autonomia para fazer escolhas sem precisar do homem sempre transpassou os filmes de ficção científica. Pior ainda: a máquina seria capaz de alcançar uma inteligência sobre-humana, tomando conta da humanidade. O corpo humano, antes visto como instrumento de inteligência e de criação, dentro da gama sci-fi, apresenta vertentes, nas quais alcança sua capacidade máxima, tem força e poderes que não seriam passíveis na existência humana comum. Os androides, que até o século XX eram tratados como realidade em um futuro quase sempre ambientado no século XXI, são protótipos criados a partir do corpo humano (O Homem Bicentenário (1999), A.I. – Inteligência Artificial (2001), Ex-Machina (2014)). No entanto, o homem, na ânsia de aperfeiçoar seu próprio eu, cria alter egos com atributos dos quais ele não poderia desfrutar fora de um enredo de ficção científica. A inteligência artificial, derivada da humana, em diversas tramas, fornece às máquinas, ainda, a capacidade de ter sentimentos humanos, como empatia e amor.

Imagem 02
Matrix (Wachowski Sisters, 1999)

Mas, é em Matrix (1999), que a relação corpo-máquina atinge seu ápice nas telas. A história do hacker Neo (inesquecível, interpretado por Keanu Reeves) que é o “escolhido” na luta contra a dominação dos humanos pelas máquinas, não só tem todos os elementos clássicos sci-fi, como uma síntese conspiratória. Na Matrix, a raça humana foi dominada por inteligências artificiais. Neo descobre que esteve “dormindo” o tempo todo, conectado a um programa de computador, sem poder desfrutar sequer da própria força, sendo utilizado apenas como fonte de energia. Assim como o sempre atual Metropolis, há crítica sócio-política em relação a regimes ditatoriais e totalitários embutida no enredo, que se relaciona com problemáticas contemporâneas. Essa distopia pode ser vista em diversos filmes do gênero.

Apesar de os filmes do gênero serem reconhecidos pela saturação de efeitos especiais, também prezam pela teia bem construída, geralmente fomentando críticas construtivas e gerando reflexões mais profundas em relação à submissão da sociedade à tecnologia e a dominação pelas máquinas (na maioria das vezes em analogia à própria sociedade real). Ao longo do tempo, contudo, os efeitos foram aperfeiçoados, enquanto que a mensagem a ser passada estagnou: afinal, sempre esteve um passo à frente. Metropolis era atual em 1927 e é atual hoje.

Glossário

Steampunk: O Steampunk é um subgênero da Ficção Científica passado em uma realidade alternativa, cuja proposta estética remete ao Século XIX, como se a Era Vitoriana, por exemplo, tivesse sido de tal forma bem-sucedida que seus costumes, tecnologia e cultura tivessem perdurado por muito mais do que de fato perduraram.

 

FacebookTwitter