Entre templos e ruínas: fim do mundo e continuidade do cosmos

Por Luís Flores

Bato à porta da pedra.

– Sou eu, me deixa entrar.
– Não tenho porta – diz a pedra.

(Wislawa Szymborska)

 

    Na tela, uma pedra. Uma pedra no meio do caminho. Ela encara de frente, ou é antes encarada pelo olhar da câmera, com sua parte humana e sua parte de máquina, crédula de poder perscrutar o conteúdo do universo por completo, conhecer cada partícula que compõe a superfície do visível. A pedra é mostrada de perto, em um close acirrado que não permite identificar seu objeto senão por atributos menos categóricos, como a cor e a textura. Sobre essa pedra planificada, em todo caso, que ocupa a tela sem função aparente, sem fundação, surge a palavra Bassae. Trata-se do título de um curta-metragem de Jean-Daniel Pollet, lançado em 1964, no qual ele realiza justamente uma incursão poética ao templo de Apolo Epicuro no sítio arqueológico de Bassae, na Grécia. Ali, diante dessa edificação em estado de ruínas, são lançadas interrogações teórico-existenciais que tangem o cerne da experiência humana e sua percepção do tempo. O pensamento, ativado sob a forma de imagens, rigorosamente enquadradas, decompõe a matéria em fragmentos elusivos, sondando-a de perto sem jamais tocá-la.

    Ainda que tomando certa liberdade em relação a universos distintos, gostaria de confrontar os escombros do templo em Bassae, abordados por Pollet com ênfase ensaística, a outra aparição das ruínas, bastante diversa, em um filme de origem mbyá-guarani. Duas aldeias, uma caminhada (2009), dirigido por Germano Benites, Ariel Duarte Ortega e Jorge Ramos Morinico, traz uma concepção imagética aberta, feita em proximidade com os personagens filmados e com o dia-a-dia na aldeia. As mediações técnicas, irredutíveis às convenções usuais do cinema, não coincidem com um discurso narrativo ou ensaístico fechado, estando vinculadas a uma reflexão mitológica que reescreve, cotidianamente, os elementos de ordem histórica. Em dado momento, os indígenas visitam a Tava de São Miguel Arcanjo, espaço sagrado construído por seus ancestrais a pedido da divindade Nhanderu. Mas, diferentemente de Bassae, onde o substrato temporal não abandona o centro humano da razão, as ruínas surgem aí em conexão com uma série de fundamentos cosmológicos que o filme elabora, dando a ver uma maneira alternativa de ordenar o tempo e a imagem.

    Em Bassae, que exibe um forte grau de estilização, a coluna de pedra é mostrada em plano médio, logo após o título, com a paisagem vazando pelas laterais. A câmera se aproxima lentamente do pilar, cujas marcas de desgaste são vistas entrecruzadas às linhas verticais da arquitetura helenística. Quando a coluna ocupa todo o quadro, um plano geral vem situar o conjunto das ruínas no centro da paisagem. Um novo corte, então, traz de volta a pele pétrea da coluna, seguida por um plano ainda mais geral que ressalta a pequenez do templo em meio às montanhas. Pollet alterna entre diferentes escalas, jogando com a percepção do espaço, ao som de uma música metalizada que lembra as badaladas de um sino – como se dessem concretude à passagem do tempo. Finalmente, enquanto a câmera circunda lentamente a coluna, entra em cena a voz over de Jean Negróni (o mesmo narrador da viagem no tempo de La Jetée, 1962, de Chris Marker) lendo um texto escrito por Alexandre Astruc e dando início a um magnífico vai-e-vem entre palavra e imagem.

Fig. 2Fig. 1

Muito se falou desse ensaio fílmico condensado, de nove minutos de duração, como uma simples meditação sobre as ruínas, com perguntas lançadas às vozes do passado que ecoam no presente. Foram raros os pensadores que captaram, para além de uma concepção histórica ou arqueológica, o sentido profundo da reflexão de Bassae sobre o tempo humano. Serge Daney, em um artigo publicado na revista Cahiers du Cinèma, foi um dos poucos que chegou perto de apreender esse gesto: “O que sabemos, nós, das civilizações? Sabemos que são mortais. Pollet nos confirma que estão mortas. (…) O homem talvez seja apenas um acidente da paisagem, bastante imperfeito, vulnerável e provisório”. O crítico francês apresenta Pollet como “o cineasta dos últimos momentos”, que “filma entre a condenação e a morte”. Ele chama atenção para o questionamento do conceito de humano operado ao longo do cinema de Pollet, seja nas ruínas e nos vestígios do Mediterranée (1963), no banimento dos leprosos em L’ordre (1973), co-dirigido com Malo Aguettant e Maurice Born, ou na solidão e no delírio de Le horla. “A loucura de Terzieff é a chegada da Horla e, portanto, a desaparição do Homem. A morte é o melhor álibi”.

    Divisamos, assim, três zonas abissais para a ordenação humana do tempo, não necessariamente segmentadas: a história, a alteridade e a mortalidade. O que Daney tateia, ainda sem chegar às últimas consequências, é o limite físico e conceitual do homem, sua insuficiência no sentido cósmico. Pollet, que tomou conhecimento do templo durante as filmagens de Meditarranée, dizia se interessar principalmente pelo seu duplo caráter de “fim do mundo” e de “centro do mundo”, uma espécie de princípio e limite de tudo, entre criação e destruição. A construção do filme, todavia, não deixa de lançar suspeitas sobre essas próprias noções de fim e de centro, preservando certa zona de opacidade sobre a suposta realidade histórica das ruínas. “Queria fazer um filme sobre esse objeto que perdeu toda a significação, mas possui um potencial misterioso, fantástico”, afirma o diretor.

    Bassae (1964), que não possui, a rigor, objetividade documental, privilegia imagens que flertam com o desconhecido e assumem, como princípio especulativo, um franco desejo de exploração espaço-temporal. Há, na visualidade da câmera, um misto de fascínio e de espanto, resultando em planos fechadíssimos, ávidos por se aproximar da matéria, e também em movimentos de deriva ou recuo, quando o olho parece titubear. Entre planos gerais e close-ups, o filme apreende as ruínas tanto no contexto amplo (paisagem, nuvens, céu do Mediterrâneo, montanhas, pedras ao redor) quanto nas particularidades (chão despedaçado, pilares quebrados, fileiras de colunas), criando contrastes não cartesianos entre o efêmero e o duradouro. Em certos enquadramentos, o templo é excluído do campo de visão, evidenciando a importância do entorno (montanhas, nuvens, pedras). Nessa disputa entre ordem e desordem, entre humano e divino, os fragmentos antes organizados em arquitetura são agora tomados pela relva, e retornam lentamente, “como mastros de um navio fantasma, à sua lenta passagem pelo reino mineral, que em momento algum havia deixado de ser o deles”.

    A multiplicação dos ângulos e pontos de vista reflete, assim, uma tentativa de pensar os fundamentos do visível, sendo complementada, nessa caméra-stylo a quatro mãos, pelos comentários tecidos por Astruc. As peças extraídas filmicamente do espaço já são, de certa forma, “estratos” da antiga ordenação do templo, remetidos agora ao âmbito assombroso de uma pré-história, afinal, “estamos ainda no primeiro dia, antes do começo de tudo”. A natureza retoma seu domínio sobre as coisas, no qual as “árvores petrificadas imitaram a forma clássica de um templo somente pelo tempo de um bocejo”. O homem é devolvido à condição biológica, pois “nada neste cemitério mineral, evoca a possibilidade mesmo acidental em favor da vida humana”. Esse templo, antigamente destinado a um deus antropomórfico, é recapturado pelo “velho deus do tempo, de quando não havia homens e nem mesmo o próprio tempo”. A humanidade, com suas maneiras costumeiras de pensar a história e construir relações temporais, é colocada em questão diante desses pedaços de pedra para os quais, em última instância, “não há história própria. Não há lugar”.

    Bassae introduz fissuras nas cronologias usadas pelo chamado gênero humano para se orientar no tempo, cronologias que privilegiam as bases ontológicas e perceptivas de um sujeito específico, em detrimento de outras formas de vida humanas e não-humanas. Como aponta o filósofo argentino Fabián Romandini, nada garante sequer que o vivente humano seja o limite e o correlato necessário da história, sendo que esta talvez precise ser reformulada de maneira mais aberta, digamos, mais “imprópria”, como a história dos ecossistemas da vida cujas relações com uma história cósmica do Universo antes mesmo de qualquer substrato biológico não devem ser ignoradas. Talvez, afugentados pelo potencial devastador dessa tarefa, muitos filósofos a tenham evitado ao longo dos séculos, preferindo alimentar ilusões mais positivas sobre a humanidade.

Fig. 3 Fig. 4

    A questão da temporalidade, em todo caso, “essa física aparentada com os fenômenos do cosmos”, está inevitavelmente ligada à questão da ontologia da imagem, para além do reflexo no espelho e da insistência narcísica. Na ontologia Yanomami, por exemplo, segundo Davi Kopenawa, ser é imagem, é existir por outrem. Sem dúvida, Bassae é um filme atípico dentro da tradição visual euro-ocidental, na medida em que não reproduz por completo o problema do ser e do tempo, produzindo nele algumas tensões. A câmera, em especial, não tenta estabelecer uma zona de conforto, optando por sublinhar certo estado de desintegração do templo, abandonado, desapossado, desprovido de função. Porém, no tocante ao texto, ainda que reforce frequentemente uma poética das ruínas, ele não deixa de enunciar um “eu” que parece remeter ao cineasta-narrador (“eu multiplico os pontos de vista”), e que se autoproclama, no desfecho da obra, “o Verbo”, tudo leva a crer, na modalidade escrita. Além disso, o aspecto mais enfático e tradicional do comentário de Astruc propicia uma relação de organicidade com as imagens, corroborando uma perspectiva logocêntrica. Algo observável, em menor escala, na utilização da música que, se por um lado cadencia a ideia do tempo, por outro confere ao templo certa ilusão sonora de majestade.

    Correndo o risco de fazer um salto brusco, tento olhar agora para Duas aldeias, uma caminhada, em busca de uma forma de ordenação imagética e temporal não restrita aos estilhaços da tradição eurocêntrica. No começo do filme, uma mulher e uma criança mbyá-guaranis caminham na beira da rodovia, essa via de traslado que, assim como o templo de Bassae, constitui um dos marcos da civilização ocidental. Do asfalto, passando pela estrada de terra, somos levados em deriva até Tekoá Anhetenguá, a “Aldeia Verdadeira”, em Porto Alegre (RS). Nela, acompanhamos homens e mulheres indígenas em atividades cotidianas, como o despertar, a cantoria (de cunho político), a caça, a procura do mel, a roda de chimarrão, a confecção do artesanato, a ida à cidade. Em cada momento, há um ímpeto de reestruturação temporal no qual a imbricação das palavras, dos gestos e dos movimentos de câmera transborda tanto a duração do filme quanto o corte cronológico, abrigando outras relações possíveis.

    Diferentemente de Bassae, onde o tensionamento da história depende dos deslizamentos ensaísticos entre palavra e imagem, a imbricação dos tempos em Duas aldeias se dá na própria cena, como um tipo de cinema direto, não apenas porque o tempo do mito e o de hoje são contemporâneos, mas porque a própria ideia de mundo pressupõe, para citar Viveiros de Castro e Déborah Danowski, “um gigantesco acordo discordante, mutável e contingente das intencionalidades múltiplas e distribuídas por todos os agentes”, humanos e não-humanos. Nesse sentido, as operações fílmicas ressaltam um uma dimensão cosmopolítica que implica, para cada gesto cotidiano, relações latentes com o invisível, de modo que o espírito da humanidade apresenta afinidades significativas com o espírito das abelhas ou dos deuses, em um tipo de “platonismo às avessas”.

    Isso pode ser observado, por exemplo, na cena da busca pelo mel. Após o plano paisagem da aldeia cercada pela cidade em expansão, um garoto mbyá-guarani segura uma colmeia e tenta explicar o motivo das abelhas terem abandonado suas casas. “Algo estava incomodando elas. (…) São que nem os mbyá-guarani. Não foram embora porque queriam. Às vezes, os mbyá-guarani se mudam porque tem alguém incomodando”. A montagem, então, parece ressaltar essa associação, ao conferir agência às abelhas e colocá-los logo após o plano da paisagem, além do mel retornar no mito cosmogônico do filho de deus, Papa Mirĩ. E também a caça, ao longo do filme, acolhe relações que vinculam tempo histórico e tempo cosmológico. O jovem mbyá-guarani conferindo se o gambá está na fissura de um tronco, o buraco do tatu sendo cutucado pelo mesmo jovem, um grupo de indígenas assando passarinho no meio da mata, o garoto fazendo armadilha de pegar passarinho e, por fim, o mbyá-guarani mais velho lamentando a escassez de animais para serem capturados na atualidade. “Se estivéssemos num lugar com mais mata, os deuses teriam muitas coisas para nos dar de comer. (…) O Javali tem um deus, um dono com morada aqui na terra. Se você meditar para esse deus, ele vai permitir que o Javali pise na armadilha para você comer”.

Fig. 5Fig. 6Fig. 7 Fig. 8

    Na parte final do filme, os indígenas vão vender artesanatos na Tava de São Miguel Arcanjo, um espaço sagrado, construído e habitado por seus ancestrais mbyá-guarani a pedido da divindade Nhanderu. De um ponto de vista histórico-político, ela é crucial para a memória e a afirmação da identidade, mas não é nesse aspecto que nos concentraremos. Para além dos limites históricos, a Tava está inserida em uma concepção temporal capaz de abrigar oposições entre os mundos celestes e terrestres, mortais e imortais, imperecíveis e perecíveis. Após uma série de contatos com os brancos, visitantes “espaçosos” que adentram o território com postura turística, fazendo perguntas incômodas ou manifestando preconceitos, um grupo de indígenas começa a caminhar em direção às ruínas. Um deles conta a história das violências que seus antepassados sofriam nas mãos de missionários e colonizadores. Com efeito, para os povos indígenas na pós-colonização ou para negros e negras submetidos à diáspora – como reflete Kênia Freitas – o mundo de certo modo já acabou, o apocalipse aconteceu e eles continuam aqui. Por isso, Ailton Krenak pode dizer com firmeza: “Não é a primeira vez que profetizam nosso fim, já assistimos a várias profecias. Enterramos todos os profetas.”

    Na narrativa mítica da Tava, portanto, um mbyá-guarani teria escapado dos carrascos e voltado depois, quando as coisas estavam mais calmas, sentando-se no pátio com as crianças. “Foi aí que apareceu a Cobra Grande”. Nesse momento, a cena evidencia a importância do invisível, e a força mítico-cosmológica da palavra, de valor predominantemente oral, vem tomar conta das imagens. Como que reforçando o transbordamento do relato, a tela, ocupada até então pelo registro direto da realidade, é tomada por uma série sutil de quatro imagens divergentes – três fotografias quase pictóricas das ruínas e um desenho de ordem “sobrenatural” – sublinhando o rompimento com uma sensibilidade prévia. Esse operação da montagem, que acompanha a oralidade da cena, produz uma conversão imagética tão profunda quanto intangível: ela não abala as aparências do visível, mas desloca contundentemente seus sentidos. Toda a temporalidade do filme, narrativa ou histórica, é como que ressignificada pela força do mito.

Fig. 9Fig. 10Fig. 11Fig. 12

    Nas paredes internas da Tava, o grupo aponta as manchas de sangue e gordura da Cobra Grande, esmagada pela intervenção de Tupã. “Algumas vezes, quando você olha, a gordura fica mais visível”. Algo que o olhar do branco, condicionado por certa formatação da história e por certa recusa da “sobrenatureza”, não logra alcançar. Se até então o filme havia sustentado uma simultaneidade entre o índio e o branco, que partilhariam o mesmo presente no espaço das ruínas, agora, a partir dessa fenda cosmológica, “nós” brancos somos remetidos a um passado fossilizado, enquanto os indígenas ressurgem como o futuro de uma história reescrita, “a contrapelo”, na tessitura do mito. Sem o intuito de generalizar, é curioso notar uma dinâmica semelhante em outro filme mbyá-guarani, Ava Yvy Vera, dirigido por Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites. Após operar, por quase 45 minutos, uma documentação atenta da vida em comunidade, atravessada por reencenações do passado recente, o filme é tomado pela energia cósmica dos relâmpagos, que surgem indomáveis em meio à escuridão. “Cheguei no lugar do raio sem fim”, afirma a voz de um dos personagens. “O tempo é assim”.

Fig. 13 Fig. 14

    “Nenhuma história antiga nossa, nenhuma, admite que a gente vai acabar. Temos uma narrativa que é cósmica, uma cosmogonia. Nós não estamos aqui”. Com essas palavras, Ailton Krenak fala a verdade que a filosofia ocidental, aterrorizada pela própria loucura, tentou constantemente ocultar com a falácia da razão: não estamos sozinhos. Estamos, isso sim, ensimesmados em uma perspectiva especista e racista, de um mundo supostamente neutro, pretensamente universal, aniquilando as outras possibilidades de mundo, os mundos dos outros. Não pretendo, com isso, desmerecer o trabalho de Pollet, esse “cineasta dos últimos momentos”, que cumpre renovações estéticas e investigações fundamentais para se repensar criticamente determinada tradição da imagem e da história. Apenas indicar que essa visão, fundada em ontologias eurocêntricas, talvez se beneficie do reconhecimento de pontos de vista discrepantes, como é o caso dos cinemas indígenas. O fim do mundo, afinal, depende de qual mundo falamos, e não passa de um estado provisório para quem entende o cosmos como uma “guerra dos mundos” (indígenas contra brancos, animais contra humanos, Gaia contra a civilização). Guerra essa que, para convocar a noção usada por Bruce Albert ao descrever a politização do xamanismo Yanomami, toma a forma de uma “guerra das imagens”. As imagens, aliás, continuam a viver, especialmente para os que constroem a existência nos reflexos do imperecível e buscam estabelecer, nos limites temporais do mundo visível, abordagens cosmológicas mais porosas.

Fig. 15

Lista de leituras

Ailton Krenak. Entrevista disponível em https://amazoniareal.com.br/nao-e-a-primeira-vez-que-profetizam-nosso-fim-enterramos-todos-os-profetas-diz-ailton-krenak/.

Bruce Albert. “Yanomami : retour sur image(s)”. Publicado em Fondation Cartier Trente ans pour l’art contemporain, vol 2, pp. 237-248. Paris : Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, outubro de 2014.

Daniel Calazans Pierri. O perecível e o imperecível. Livro publicado pela editora Elefante.

Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu. Livro publicado pela editora Companhia das Letras.

Fabián Ludueña Romandini. A ascenção de Atlas: Glosas sobre Aby Warburg. Livro publicado no Brasil pela editora Cultura e Barbárie.

Serge Daney. “Pollet: Le Horla”. Texto publicado na revista Cahiers du Cinèma, número 188, de março de 1967.

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Um outro destino para o tempo em O sacrifício, de Tarkovski

Por Chico Torres

“Através da imagem mantém-se uma consciência do infinito: o eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada”

(Tarkovski, Esculpir o tempo)

(imagem de abertura)

Questões sobre destruição, ruína e catástrofe são constantes na obra de Tarkovski. Como bem apontou Adalberto Müller, em artigo para a revista Cult: “A destruição e a catástrofe são temas centrais no pensamento de Tarkovski, constituem uma de suas ambiências fundamentais: a destruição da inocência e da infância de Ivan; a destruição da arte em Rublev; a destruição do planeta Solaris; a destruição da Zona em Stalker; a destruição da fé em Nostalgia; a destruição do nosso próprio planeta em O sacrifício”.

Trago aqui algumas reflexões sobre o tempo no sentido histórico e, mais especificamente, sobre alterações de padrões comportamentais que podem ser concebidos também sob uma mudança (muitas vezes radical) na percepção do tempo e da história. Irresponsavelmente, ponho em diálogo algumas frentes filosóficas antagônicas, como é o caso de Santo Agostinho e Nietzsche. Também estabeleço uma conversa entre Walter Benjamin e Tarkovski, além de trazer algumas concepções sobre a filosofia da história. O que pretendo aqui, através de Tarkovski e da filosofia, é pensar novos modos de vida que podem surgir através de uma outra vivência do tempo histórico e, por que não, subjetivo.

Na Grécia Antiga, o tempo não era concebido de modo linear. Havia uma concepção cosmológica que fazia com que os gregos definissem o Universo (Cosmos) como um processo fechado e interdependente. Essa tendência está muito presente na filosofia pré-socrática, mas temos ideia do seu alcance se observarmos, alguns séculos depois, a noção de causa em Aristóteles, em que todo o processo que constitui isso que chamamos de realidade funciona através de um logos que “orienta” as causas, em que todos os fenômenos estão conectados a uma “causa final” e necessária. No cristianismo e posteriormente no mundo moderno, representado especialmente pela filosofia de Kant, a noção linear do tempo se estabelece, assim como um ideal de progresso humano. O plano iluminista começa a cair por terra no século XIX, mas é no século XX que se desenvolvem críticas consistentes sobre todo o ideário progressista. No cinema, Tarkovski é um de seus críticos mais fervorosos.

Em O sacrifício, o tema do fim do mundo pode ser compreendido sob diversos aspectos, mas pelo menos dois deles me parecem evidentes: uma crítica à sociedade moderna e ao ideal de progresso propalado pela mesma, já que no filme o fim do mundo é produzido pelo avanço técnico responsável, entre tantos outros malefícios, pela bomba nuclear; e o rompimento com essa sociedade através de um ato de fé, um sacrifício de uma vida inteira realizado através da vivência de um milagre. Todos nós sabemos da ligação de Tarkovski com o cristianismo e o modo como ele transporta para a arte seus ideais de fé, moral, verdade e espiritualidade. Apesar disso, Tarkovski nunca produziu obras moralistas, mas sempre polissêmicas e carregadas de um misticismo que está além de algum tipo de cartilha religiosa institucional, pois o olhar místico leva, em última instância, para a salvação pela arte, pela imagem sacralizada.

No início do filme, Tarkovski apresenta o protagonista, Alexander, realizando uma tarefa curiosa: ele planta uma árvore morta, seca. O personagem nos fala, enquanto realiza a atividade, sobre uma fábula oriental na qual um homem faz o mesmo que ele: planta e cuida de uma árvore morta. Depois de três anos fazendo diariamente aquela mesma coisa, o homem da fábula nota que a árvore renasce e dá flores. Após contar essa anedota, Alexander afirma que uma simples ação repetida cotidianamente deve, de algum modo, mudar algo no mundo. Mudança não em sentido metafórico, mas uma mudança concreta, como se houvesse uma força holística a reger os fenômenos. Após essa cena, surge a figura enigmática do carteiro (Otto), que divaga junto a Alexander sobre o conceito nietzschiano do eterno retorno. Penso que toda essa cena inicial, filmada magistralmente em um único plano, abarca significativamente as intenções mais fundamentais do filme, já que todo o seu desenvolvimento terá como princípio esse conflito entre a ordem “natural” das coisas, em sua temporalidade linear, e um tempo que rompe com essa estrutura e transcende os limites do cotidiano.

(imagem I)

imagem II

Nietzsche, voltando seu pensamento para a filosofia pré-socrática, considera o universo não como infinito, mas como um sistema fechado, cíclico. Nessa perspectiva, todo o movimento, tudo o que existe e é experienciado, irá se repetir infinitamente, visto que as trocas entre os elementos são limitadas. Além de pensar o eterno retorno como a repetição das forças cósmicas, expressadas em qualquer aspecto da vida, há também a perspectiva de pensar esse conceito como uma nova forma de lidar com a temporalidade, expressa em condutas libertadoras e de desapego. É assim que Otto se expressa a Alexander, afirmando que o mesmo, apesar de todo o seu sucesso como intelectual, ainda é um ser angustiado e cheio de expectativas. Nietzsche possui uma noção na qual presente, passado e futuro são exterminadas em nome de uma vivência mais autêntica no agora (pois apenas o agora existe), em que o esquecimento, e não a memória, tem muito mais forças propulsoras de transformações efetivas. Ironicamente, a mudança parece vir da aceitação de um ciclo que se repete e, consequentemente, tal ideia deve gerar um esvaziamento libertador, quase um estoicismo.

Essa concepção corrobora com a filosofia amoral de Nietzsche e da sua transvaloração dos valores. Se tudo é troca infinita de forças (e nada mais do que isso), então todo o projeto humano calcado no ideal de progresso, evolução e superação precisa ser revisto, assim como todas as instituições, todos os conceitos básicos que constitui isso que chamamos de civilização, incluindo aqui o que entendemos por ciência, arte, técnica, história, etc. Em O sacrifício, a crítica ao progresso é evidente, mas Tarkovski faz também uma reflexão mais profunda sobre outra possibilidade de existência calcada na radicalização da compreensão de um rompimento com a marcha do progresso e das convenções sociais, que no filme se concretiza com o personagem incendiando a própria casa e “abandonando” a família, caindo em processo de enlouquecimento, evidentemente julgado por outrem. Em Agostinho, em suas reflexões sobre o tempo, ainda que se estabeleça um tipo de tempo cronológico, há uma belíssima consideração sobre o “eterno agora”, que seria o “tempo” de Deus, mais precisamente, a Eternidade que antecede qualquer tempo. A meu ver, o eterno retorno nietzschiano se assemelha com esse eterno agora agostiniano, mas a ambição de Nietzsche é muito maior: tirá-lo de Deus e torná-lo humano, ainda que o preço por isso seja alto demais. Não é em vão que Alexander toma atitudes extremas, como tantos outros personagens de Tarkovski que se sacrificaram em nome de uma vivência que “atingiu a transcendência”: basta pensarmos no Stalker e no personagem que incendeia a si mesmo em Nostalgia. A construção temporal de Tarkovski, exposta em sua obra cinematográfica e em seu livro Esculpir o tempo, revelam uma preocupação em capturar o instante em sua pureza, através de uma suspensão do tempo e seus entraves cotidianos. O ideal de Tarkovski é capturar na imagem a eternidade, o agora em sua singularidade, em busca de uma revelação mística através da contemplação do plano.

(imagem III)

Outro pensador, agora contemporâneo, também pensou sobre novas e radicais possibilidades de experiência através de reflexões sobre o tempo. Walter Benjamin, vinculado estreitamente ao aspecto fragmentário e ao poder das imagens e da ruína, cunhou o conceito de tempo-do-agora, nas famosas teses sobre o conceito de história. Uma proposta ousada que une messianismo judaico e marxismo. No judaísmo, esse tempo-do-agora seria uma interrupção do tempo concebido como homogêneo e vazio, para uma reestruturação da vida através de uma noção de redenção. No marxismo, essa interrupção e redenção não se dariam pela volta do Messias, mas pela atividade revolucionária que deve estar atenta as convulsões sociopolíticas provocadas pelo ideal de progresso. É famosa a imagem criada por Benjamin do anjo da história, em que é arrastado por todos os entulhos e ruínas que são o resultado da cultura que “progride” na medida em que acumula injustiças e exploração. Benjamin quer, portanto, acertar contas com o passado, vendo em uma reparação social uma nova maneira de estimular a emancipação humana. Mais uma vez a temporalidade convencional é colocada em cheque em nome de uma vida mais autêntica.

A atitude de Alexander me leva a pensar em semelhanças entre essa concepção de Benjamin e Tarkovski. Em ambos, há uma explícita crítica ao progresso e à técnica usada para fins nefastos. Se em Benjamin há um impulso revolucionário e ao mesmo tempo messiânico de interrupção da história e sua temporalidade tendenciosa, em Tarkovski, há o mesmo impulso, mas sempre manifestado na atitude isolada, deslocada da organização política e, portanto, oprimida e silenciada. O que se vê em Tarkovski é uma utopia que se concentra em apenas um sujeito e se expande, diante de nós, como sonho irrealizável, apenas presente na imagem artística. Se Benjamin acreditava em mudanças concretas, Tarkovski nos diz que é tarde demais, nos restando simplesmente contemplar aquilo que se perdeu.

Eterno retorno; eterno agora; tempo-do-agora; tempo cíclico e interrupção messiânica através da ação política e da arte, não são poucas as perspectivas lançadas por artistas e pensadores para propor novos e desafiadores olhares sobre a cultura ocidental. O sacrifício, com Alexander ateando fogo em sua própria casa, abrindo mão de tudo diante de um novo e redentor significado da vida, acaba por representar, no cinema, uma das mais potentes críticas a uma sociedade há muito adoecida pelo ritmo de Kronos. Ao esculpir outro destino para o tempo, Tarkovski nos mostra o quanto precisamos morrer para que surja, mesmo que em sonho, uma nova vida.

Referências:

Ambiências do sagrado (2017), de Adalberto Müller.

Confissões (2011), de Santo Agostinho;

Assim falou Zaratustra (2011), de Friederich Nietzsche;

Sobre o conceito de história (2012), de Walter Benjamin ;

Esculpir o tempo (2010), de Andrei Tarkovski.

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Saindo de férias durante o apocalipse: Mad Max e o negacionismo

Por Bernardo Moraes Chacur

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Em S/Z, Barthes defende que uma das características do texto clássico é a especificação crescente, em que cada descrição e acontecimento gradualmente limita as possibilidades da narrativa[1]. A progressão do enredo tende a nos fazer esquecer que a história poderia ter seguido rumos diferentes e mesmo as eventuais releituras e revisões acabam sendo condicionadas pelo desenlace já conhecido. Esses aspectos são claramente perceptíveis no cinema de franquias, em que cada nova iteração precisa se ater a um cânone ou incorrer na acusação de heresia. Esse cabresto também é aplicado retroativamente: o primeiro filme de uma série é frequentemente valorizado de acordo com a quantidade de elementos canônicos que prefigura, enquanto os pontos discordantes são ignorados ou menosprezados.

No caso de Mad Max (George Miller, 1979), os pontos discordantes são indisfarçáveis. Enquanto suas três sequências (de 1981, 1985 e 2015) são pós-apocalípticas, ambientadas décadas depois do colapso da civilização, o episódio inaugural se passa em um mundo quase inteiramente familiar. Logo depois dos créditos, há o aviso de que estamos em um futuro próximo (‘A FEW YEARS FROM NOW’), embora boa parte da ambientação pareça simplesmente a Austrália de 1979 em um filme de baixo orçamento. Mesmo a presença de gangues caricatas não serve de índice futurista, considerando quantas vezes o cinema das décadas de 60-80 (pós-contracultura, pós-movimentos pelos direitos civis) representou marginais desgrenhados como a encarnação dos medos conservadores. Nesse mundo, o comércio e a prestação de serviços ainda funcionam: vemos casas noturnas, sorveterias e hospitais. Há um único sinal inequívoco, portanto, de que a Ordem se encontra nos estertores: o prédio-sede da polícia, dilapidado e quase vazio.

Em um momento decisivo da trama, o protagonista se sente afetado pela anarquia crescente e resolve tirar férias com a família. Nesse ponto o filme se transforma: Max, mulher e filho vestem as melhores roupas e viajam para o campo, onde a crise social parece exorcizada. Os partidários dos “roteiros plausíveis” provavelmente considerariam a premissa absurda: que tipo de gente sai de férias em meio ao caos? Penso, contudo, que esse é o elemento mais perceptivo da obra, ilustrando o nível de negacionismo mobilizado por uma sociedade para rejeitar as evidências de que seu modo de vida não é mais sustentável. Mas a ilusão de segurança é frágil e a mesma gangue enfrentada por Max em seu trabalho como policial vêm romper definitivamente o idílio.

Como se demarca um fim de mundo, a transição entre normalidade e a catástrofe? Em Mad Max, assim como na cultura hegemônica do século XXI, a gravidade da crise só se torna clara quando a família branca das nações desenvolvidas é sacudida de sua habitual posição de conforto: para as demais populações, as distopias já começaram muito mais cedo.

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Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) também nos situa “alguns anos no futuro” e, assim como no filme de Miller, apresenta poucas diferenças evidentes entre seu universo ficcional e as representações do presente. Há, no entanto, o detalhe periférico de um televisor ligado, na qual lemos as palavras: “AO VIVO. EXECUÇÕES PÚBLICAS RECOMEÇAM ÀS 14H – VALE DO ANHANGABAÚ”. O prefixo recomeçam – indica uma barbárie já instalada e provoca a pergunta: quando teríamos transposto aquele limite? Considerando que o jornalismo policial clama há décadas pelo extermínio dos “bandidos” e o número efetivo de mortos em “confrontos com a polícia” no Brasil, essa fronteira já não teria sido ultrapassada?

Situar uma narrativa pessimista em um futuro próximo possui, em princípio, uma carga perturbadora, sugerindo que pouco separa a nossa realidade dos piores cenários. Ao mesmo tempo, o expediente interpõe uma distância reconfortante entre o presente e a catástrofe. Resta, dessa forma, uma gama de opções ante os prognósticos adversos, da sensação de urgência ao derrotismo e a negação, escolhas que poderão ser postergadas até que finalmente alcancemos o ponto da irreversibilidade.

P.S.: Agradecimentos a Victor Lopes pelo incentivo, a Juliana Fausto pela ajuda com a redação de um trecho e aos editores da Multiplot pela paciência.

Referências

Roland Barthes, S/Z. Éditions du Seuil, 1970

[1] Éditions du Seuil, 1970. Paráfrase livre do que o autor escreve sobre a redução da pluralidade no texto clássico em várias passagens, como nas seções VI, XV e XL e também sobre a nominação na seção XI. As frases posteriores à referência são extrapolações por minha conta, acreditando que a situação mudou muito desde que Barthes escreveu que “os hábitos comerciais e ideológicos de nossa sociedade recomendam que joguemos fora a história uma vez consumida” (seção IX, p.20, tradução própria).

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À beira do abismo: Miracle Mile, de Steve De Jarnatt

Por João Pedro Faro

“Seria esse o objetivo do armagedom? Terminar com ambiguidades, acabar com qualquer dúvida.”

Ruído Branco, de Don Dellilo (trecho).

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Durante décadas, houve incerteza sobre qual seria a real conclusão da sísmica cena final de A morte num beijo (1955, Robert Aldrich). Uma das versões, a mais circulada, encerra o filme com o casal Ralph Meeker e Maximine Cooper presos na casa de praia onde uma bomba atômica acaba de ser acionada. A casa explode e o letreiro “The End” surge por cima da catástrofe nuclear. Uma segunda versão, redescoberta tardiamente, mostra Meeker e Cooper conseguindo fugir de dentro do local e assistindo à explosão caídos na areia. Os dois se beijam e o “The End” aparece na tela em um desfecho menos abrupto. Porém, a real diferença entre os dois finais não está entre a vida e a morte dos protagonistas. Afinal, a bomba atômica explodiu, o apocalipse é iminente e acontece em ambas as versões. Os amantes vão morrer de qualquer jeito. O que muda no segundo final é que Aldrich permite ao casal um último beijo desesperado antes do fim do mundo.

Miracle Mile (1988, Steve De Jarnatt) funciona como uma expansão do que foi proposto por Aldrich 30 anos antes: a iminência da fatalidade em uma última chance de entrega ao outro. O romance de paranoia nuclear que acompanha Harry (Anthony Edwards) noite adentro, tentando fugir com sua recém-conhecida amada Julie (Mare Winnigham) nos 70 minutos restantes antes da chegada dos mísseis soviéticos que apagarão Los Angeles do mapa, torna um ideal típico de paixão perfeita em um inevitável refúgio por uma morte menos solitária.

Em seu monólogo inicial, Harry esclarece que passou toda sua vida atrás de alguém como Julie. É um discurso de sentimentos fatalistas, da certeza de que encontrou uma companheira ideal. O que funciona, em um primeiro momento, como uma banalidade sentimental que preza pela estabilidade dos desejos, retorna posteriormente como a totalidade das impressões de um indivíduo que vê o fim da própria vida. Harry nunca desiste de tentar achar um meio de sair da cidade com Julie antes da chegada do míssil, mas a cada tentativa tudo parece estar mais próximo de acabar. É desse efeito de exaustão, de sobrevivência falida, que o romance vivido pelo casal vai se concretizando do jeito mais essencial: através da desesperança de que a vida possa continuar e sua intrínseca energia para consumir tudo que resta, no tempo que resta.

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Existe uma sensação totalizadora em Miracle Mile quando Jarnatt apresenta o último momento da vida na terra como um filme que corre em círculos. Harry passa grande parte da projeção perseguindo objetivos mínimos que acredita que possam salvá-los, sendo essa busca incessante por salvação cada vez mais desacreditada. Ele nem parece conseguir sair do mesmo quarteirão durante todo o tempo. Portanto, Miracle Mile acaba sendo a mais enérgica obra sobre melancolia de sua geração – tudo parece tão gritante, tão histérico e, ao mesmo tempo, tão inútil e tão impossível. Essa sensação culmina na sequência mais destrutiva do longa: Harry, descendo pelos esgotos e saindo pelo bueiro, sobe em cima de um carro em uma avenida, podendo ver as consequências totais que o anúncio televisivo do apocalipse trouxe à população. Carros se acumulam em um trânsito inconcebível, não sobra espaço no asfalto, tomado tanto pelos automóveis empilhados quanto por corpos que se esbarram, correm e gritam. Casais fazem sexo em frente às lojas, saqueadas e destruídas por uma multidão sem propósito de existência além do consumo final de tudo aquilo que está em sua frente. O fim do mundo não é triste, é apenas excessivo.

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Essa sequência pode ser também considerada a única resposta no cinema americano ao trânsito de Week-End à Francesa (1967, Jean-Luc Godard). Enquanto o armagedom godardiano é repleto de tédio, do esvaziamento intelectual na existência francesa, o grande apocalipse americano é constituído pela inexistência de limites entre o consumidor e o consumo, tudo em tela se devora, tudo em tela precisa ser associado, tomado para o indivíduo antes que não exista mais o que consumir ou quem consuma. Enquanto os burgueses de Godard definham até serem canibalizados pelos mais jovens, os personagens de Miracle Mile aproveitam o tempo que sobra para se comerem. Não à toa, o trânsito apocalíptico de Week-End acontece em uma sequência de 8 minutos, sem corte, enquanto o de Miracle Mile pertence a um plano de pouco mais de 30 segundos.

Nada tão certeiro quanto o responsável por um longa tão definidor ser Jarnatt, um diretor sem carreira, autor de uma só obra, que atualmente vive em sua casa no interior, ao lado de um bunker que ele mesmo construiu. Miracle Mile parece um expurgo de alguém sem muito mais a dizer, que, assim como seus personagens, apenas pôde aproveitar o pouco que tinha em mãos. Segundo o próprio Jarnatt, toda a ideia surgiu a partir de paranoias próprias sobre o seu estado presente, portanto é mais do que justo que um filme tão fechado em si mesmo possa querer ser tão totalizador sobre o estado de espírito de um humano em completo desespero com o tempo em que vive.

O anseio de Jarnatt por temas e ideias maiores do que o próprio filme (difícil pensar outra coisa de um longa que abre com uma narração de museu sobre o início da vida na terra) funciona pelo afunilamento, narrativo e visual, que Jarnatt atinge ao focar no casal de protagonistas. Enquanto tudo se encaixa para que a câmera só consiga enquadrar o rosto de Harry e Julie se encarando em desespero, recorda-se o aspecto clássico do romance de acaso que inicia a jornada dos dois. Nos minutos finais, que acompanham os amantes prestes a morrer, tão próximos que parecem um só, a carga de um universo gigantesco e caótico, exterior aos dois, mostra-se essencial para que haja a potência nos últimos close-ups do beijo antes da morte; justamente porque faz tudo parecer tão pequeno diante da necessidade daqueles rostos em encontrar-se fisicamente até os limites do próprio corpo. Não há como ficar sozinho, não há como não querer ao outro quando tudo está para sumir.

A única forma que Jarnatt encontra para que qualquer ideal romântico exista naquele espaço e naquele tempo, do consumo banalizado como único motivo de existência, é que ele aconteça pelos meios mais primitivos da necessidade de se ter alguém próximo enquanto aguarda o juízo final. Harry e Julie são apresentados como o último casal da humanidade, unindo-se cada vez mais enquanto chega o fim do mundo. Simplesmente porque não resta fuga, não resta sobrevivência, resta apenas o que está ao seu alcance. No caso, resta a Harry estar com Julie, e resta à Julie estar com Harry. São pessoas com sentimentos, fruto de um desespero, como quaisquer outras, porém contempladas pela troca genuína de necessidades mútuas enquanto afundam para tornarem-se fósseis. O acaso do encontro perfeito só é possível às vésperas do colapso da terra, e só é completo quando tudo acaba.

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O céu é uma massa horrenda de videocassetes rodopiantes e videogames Magnavox

Por Natália Reis

And those who expected lightning and thunder
Are disappointed.
And those who expected signs and archangels’ trumps
Do not believe it is happening now.
As long as the sun and the moon are above,
As long as the bumblebee visits a rose,
As long as rosy infants are born
No one believes it is happening now.
(A Song on the End of the World, CZESLAW MILOSZ)

 

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Phillipe Dubois, teórico que, entre outras coisas, percorreu as possibilidades do vídeo enquanto imagem e dispositivo, fala de um “lugar dilacerado na história” ocupado pelo formato, condicionador de uma imagem transitória, que pende entre o cinema e o digital: é como “um banco de areia, entre dois rios, que correntes contrárias vêm apagar progressiva e rapidamente”, “um parêntese”, “um interstício ou um intervalo”, “uma ilha destinada a submergir”. Nesse não-lugar da analogia de Dubois, uma figura antes difusa entra em foco: num motel de beira de estrada, um homem branco de meia-idade espreita através das cortinas o céu escurecer e ser preenchido por nuvens carregadas, tv e rádio ligados anunciando a tempestade iminente, dias de espera. Em Weather Diary 1 (1986), primeiro filme da extensa série de “diários climáticos” de George Kuchar, a imagem ilhada é a esperança nunca concretizada de testemunhar um fenômeno meteorológico de magnitude e captá-lo na câmera de vídeo.

Por quase trinta anos, Kuchar manteve as idas periódicas ao estado de Oklahoma, coração da região conhecida como Tornado Alley (“alameda dos tornados”), no intuito de observar o clima e suas reverberações. Primeiramente instalou-se numa YMCA, associação para jovens cristãos na cidade de Oklahoma, e posteriormente no pequeno município de El Reno, onde realizou em 1977, Wild Night in El Reno, curta de pouco mais de 5 minutos de duração e de certa forma gênese dos Weather Diaries. O interesse por meteorologia nutrido desde a juventude – para além de um fascínio pela “tapeçaria colorida do céu que pairava sobre os cortiços de onde morava” como descreveria mais tarde, o diretor também já havia trabalhado fazendo mapas climáticos para o noticiário local – vem ao encontro de um potencial criador igualmente prematuro: desde os 12 anos de idade, George e o irmão gêmeo Mike produziam filmes em super-8 que replicavam, à sua maneira, os melodramas comerciais hollywoodianos e filmes B de terror consumidos por sua família de classe trabalhadora do Bronx. Com a naturalização das câmeras de vídeo nos anos 80, o fluxo (sempre considerável) das produções é amplificado, a comodidade e o baixo custo somados a uma estética por vezes considerada de filmes caseiros e/ou pouco artísticos, se tornam material basilar para os trabalhos posteriores de George Kuchar, incluindo seus diários.

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O filme-catástrofe como gênero, na sua essência, conclama pelo esforço coletivo em prol de um bem maior, seja o cumprimento de uma missão (Twister, 1996) ou a própria salvação (O dia depois de amanhã, 2004; 2012, 2009). A fuga e o deslocamento também figuram como forças motoras do gesto de sobrevivência, uma vez que a imobilidade significaria o fim (afinal um fenômeno natural só se torna catastrófico no momento que irrompe no cenário urbano, humanizado). O que Kuchar faz nos seus Weather Diaries, e sobretudo no primeiro filme, é justamente subverter essas abordagens partindo da calamidade como rotina solitária, uma espera permeada pelas previsões e notícias que chegam do mundo externo através do rádio e da tv, e mediada pela paisagem desgastada na janela do quarto no Motel Reno. Uma forma de existência no porvir.

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Em Gummo (1997), de Harmony Korine, crianças e adolescentes perambulam entre as ruínas de uma cidade devastada após a passagem de um furacão. Se o filme é por vezes tratado como apocalíptico, é possível que seja menos pela destruição causada pelo tornado e mais pelo que ela escancara: uma classe de pessoas fragilizadas, subnutridas e semialfabetizadas, cuja condição de vida precária numa área de risco a coloca sempre perto do fim. Numa mesma chave em determinado momento de Weather Diary 1, Kuchar conversa com uma mulher de traços indígenas sobre um alerta de tempestade. A mulher é filmada de costas olhando para o céu com preocupação, e é questionada se teria algum lugar onde se abrigar. A resposta – ela mora em um trailer estacionado perto dali – vem com palavras apaziguadoras (e no fundo temerosas) de ambos interlocutores de que, afinal, o evento não deve ser tão avassalador assim. Mais tarde, enquanto o céu parece desabar, o diretor se lembra da breve companhia

O medo e o desejo estão ali, mas o que transborda em Weather Diary 1 é o tempo e as transformações suscitadas na natureza (nos elementos humanos e não-humanos) e no corpo do diretor. Com o decorrer dos dias, poças e insetos se acumulam, quedas de energia se tornam frequentes, aparelhos eletrodomésticos começam a ranger, a pia entope e brotoejas se espalham sobre a pele de Kuchar. Lá fora, rostos conhecidos dizem adeus, algumas crianças brincam em um córrego poluído e os cães rondam animais mortos. A montagem, realizada na própria câmera, é quase toda composta por inserts, por meio de um método que consiste em retomar cenas antes gravadas e criar e simultaneamente preencher fissuras com novas cenas, novos comentários. Nesse processo, o que se experiencia é uma cronologia que obedece apenas à própria ordenação, como o fluxo da programação da tv que Kuchar goteja pelo filme inteiro, ou o vortex que escapa da descarga do vaso sanitário, no ralo da pia e no café mexido, sucedendo um ciclo de deterioração do universo pessoal do diretor.

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Nos últimos filmes da série, o motel habitualmente ocupado por Kuchar é transformado em casa de repouso – o que não o impede de continuar frequentando e muito menos de se tornar o único hóspede posto em um quarto inalterado enquanto reformam tudo ao redor. Essa imagem talvez seja a sumarização do lugar do realizador nos seus diários: um “storm squatter”[1] (se dizia) em oposição aos storm chasers, um ponto fixo num estado das coisas retido na incerteza. Se a câmera, como afirmava, era o que o protegia no vislumbre do mundo que parecia ruir sob a ameaça de tempestade, ela também é ancoragem da sua presença, uma alternativa preciosa para tempos nos quais só é possível olhar pelas telas e janelas.

Referências

Dubois, P. (2014). Cinema, vídeo, godard. Editora Cosac Naify.

MacDonald, S., & Kuchar, G. (1985). George Kuchar: An Interview. Film Quarterly, 2-15.

Ziemons, U. (2014). Aufzeichnungen eines Storm Squatters: George Kuchars Weather Diaries (Vol. 15). transcript Verlag.

[1] Algo como “sedentário de tempestades”

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O apocalipse filmo eu: Sogobi, de James Benning

Por Pedro Tavares

Narrador não-epistolar do cinema experimental e dos filmes-ensaio, James Benning é o que Walter Benjamin chama de flâneur, um autor que armazena o tempo como uma bateria armazena energia[1]. A carreira de Benning segue abordagens minimalistas e que discutem a força da intervenção do autor. De One Way Boogie Oogie (1977), filme no qual Benning “permite” a intromissão de pedras batendo nos tapumes da cidade ou a simples presença de pessoas que não autorizam a ciência se elas sobem ou descem as ladeiras até o recente L. Cohen (2018). Quatro décadas depois, o filme fortalece o conjunto de imagem e som através de artifícios. Na observação de Benning, há sempre um deslocamento da coerência na diegese, da lógica narrativa dos planos.

Sogobi, filmado em 16mm no ano 2000, antes da partida do autor para os dispositivos digitais, é uma espécie de retorno à natureza e filmado no Central Valley de Los Angeles. É a última parte da “trilogia da Califórnia” que se complementa com Los (2001) e El Valley Centro (1999), o primeiro concentrado na zona urbana da cidade e o segundo na área desértica. Na experiência de Sogobi, estruturalista como sempre, Benning analisa não só a intervenção do homem em “tempo real” com presença de helicópteros, caminhões e trens na área selvagem de Los Angeles.

A degradação da natureza nas imagens de Benning é oblíqua; o timing de fixação dessas imagens aos poucos se embaralha, e a ideia de uma narrativa de degradação da natureza por atitudes antropocêntricas oferece diferentes perspectivas. Uma delas está nas diversas sinopses encontradas pela internet que afirmam que Sogobi filme, em 35 planos, a natureza intocada. Outra é uma afirmação do próprio realizador que sugere o olhar para “puras imagens” e também o vislumbre de uma experiência arqueológica do cinema pela estrutura utilizada pelo diretor para contemplar o movimento e a falta deste – mais precisamente, o diálogo entre cinema e pintura.

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Em primeiro plano, há uma ideia de deslocamento de Benning a respeito do cenário apocalíptico nos Estados Unidos construído após os ataques de 11 de setembro de 2001, já que Sogobi foi lançado em 2002. Uma insinuação ao que o dromologista e pensador francês Paul Virilio chama de “não-lugar”[2]. Se não existe identidade, pois não há um “lugar”, ou seja, um reconhecimento imediato da imagem, as paisagens – e degradações – registradas violam a noção de cidade em favor de um sentido, o da angústia e a certeza do fim.

Ainda sob as palavras de Virilio em The Vision Machine (1989), a rapidez serve como a velocidade central da experiência contemporânea. Vale a lembrança da mudança tecnológica que o mundo passava no momento de filmagem de Sogobi com a chegada da internet em banda-larga. A percepção do mundo e velocidade mudaria mais uma vez em rápido curso de tempo.

O que o autor faz é não se concentrar na simples descontinuidade da diegese de ação e reação de seus planos estáticos. Afastar-se da coerência dos signos estipulados por suas imagens é, neste caso, uma “desnaturalização da experiência do tempo”, a usar as palavras de Timothy Corrigan (2011).

O apocalipse de Benning é intrínseco à subjetividade pública, longe dos grandes centros e que espelha ações que está a milhares de quilômetros dali, seja nas ações do capital de destruição da natureza como na própria guerra estipulada por George W. Bush em 2001. Se máquinas, armas e câmeras fazem parte do arsenal bélico americano com diferentes funções, o autor, em seu retrato particular de uma área delineada pelo pensamento estrutural, eleva o conceito dramático de destruição geral, seja por incêndios, outdoors, maquinários que tomam as paisagens ou a coreografia do funcionamento dessas máquinas.

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Pela temporalidade de registro dessas ações, James Benning incita um tipo de lamento na observação. A destruição como caminho irreparável de um modelo social que se espelha em outros extremos, incluindo a guerra. A angústia do ato de contemplar o extermínio é possível em Sogobi, afinal não há gritos ou explosões. Existe um enganoso sentido de trégua entre homem e natureza que o autor contrasta. As intervenções de Benning levam esta representação para o espaço público, onde não há escapatória para o olhar e a ciência do caminho de autodestruição. Toda coerência supostamente funcional é orquestrada para o fim da utopia de um espaço ainda não explorado, de uma reserva natural e moral disponível para deteriorações humanas.

As imagens de Sogobi invocam um organismo que reflete ações como escoadouro inevitável. A pureza do ambiente e das próprias imagens, aqui ora adulteradas e ora intactas, comenta a irreversibilidade do trauma – antes inócuo, agora (de)formado e com funções de interesses exclusivamente humanos. A questão que cerca todo o filme é se os interesses são de fato genuínos para o funcionamento de um espaço público que está no contraplano ou se toda mutação aqui registrada serve como uma via facilitadora de motivações financeiras ou bélicas. Benning, contrariando formas de pensamento a respeito do tempo, consegue “pegar a mosca com a mão”. O tempo está capturado com a certeza que para a ganância o tempo corre lentamente.

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[1] Walter Benjamin descreveu o flâneur como a figura essencial do espectador urbano moderno, um detetive amador e investigador da cidade. Mais do que isso, seu flâneur era um sinal da alienação da cidade e do capitalismo. Para Benjamin, o flâneur , conheceu o seu fim com o triunfo do capitalismo de consumo.

[2] Como um enunciado filosófico Virilio insinuava o fim da geografia onde emergem os não-lugares e a identidade dá lugar à rastreabilidade: “Eu não posso ser sem ter um lugar, torno-me um estranho.”

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Artifício apocalíptico: alegoria e corpo em Medo do escuro

Por Camila Vieira

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O primeiro plano de Medo do escuro (2015), de Ivo Lopes Araújo, apresenta em contra plongée dois prédios abandonados. Entre eles, é possível avistar o céu ser invadido por imensas nuvens brancas que estão a passar e que ocupam completamente o azul com uma grande e densa névoa. É uma atmosfera de um lamento fúnebre, uma figura ameaçadora como uma luz gigantesca e destruidora. Um holofote de um tempo de aniquilação das vidas. Aqui me amparo em Sobrevivência dos Vagalumes (2011), de Georges Didi-Huberman (2011), quando alerta para a luz feroz dos projetores que levarão ao desaparecimento dos vagalumes. Por meio do ofuscamento dessa luz branca, reina o fascismo triunfante.

Como seria possível para um corpo resistir ao fascismo que vai se disseminando pela paisagem de Medo do escuro? Antes de arriscar uma resposta, será preciso entender como o filme articula duas vontades singulares. O primeiro gesto é do levante, convocado pelas próprias palavras de Ivo Lopes Araújo sobre o filme. Um levante que se desdobra na própria feitura do filme. É toda uma cena artística de Fortaleza que é convocada como força coletiva dentro do filme: poetas, performers, músicos. O ator principal é Jonnata Doll, cantor e performer. A trilha musical do filme era executada ao vivo por um quarteto de músicos – Ivo Lopes Araújo, Vitor Colares, Uirá dos Reis e Thaís de Campos. Exibir o filme era uma aventura de viajar junto com um grupo. Cada exibição tinha o caráter de uma experiência única. Medo do escuro é um filme em processo, um work in progress. É até difícil exibir em uma sala de aula, porque sua experiência parece ser da ordem do provisório.

O provisório leva ao segundo gesto. Um filme rodado em 16mm, com película vencida, em que se tinha três horas de material bruto para resultar em um filme de 55 minutos. Cada take filmado era um take único. Seria preciso confiar na performance dos atores para que o filme acontecesse. Confiar na potencialidade do fragmento como estratégia para uma dramaturgia possível. Performance e fragmento compõem diferentes modos de articulação do que se encena, em uma vontade de instaurar um cenário pós-apocalíptico. Medo do escuro aposta no artifício como experimentação estética a partir da construção de imagens alegóricas, na tentativa de estremecer as relações contíguas com um real previamente conhecido.

Abrir caminhos para sentidos múltiplos e provisórios é fazer também uso da alegoria como contraponto ao simbólico. Enquanto as metáforas e os símbolos apontam para unívocas interpretações de mundo, a alegoria possibilita uma proliferação de sentidos, que sempre mudam a cada olhar e criam momentos de interrupção no solo petrificado da significação. Tomo aqui o conceito de alegoria em Walter Benjamin (1984) para quem a alegoria configura-se como resistência ao símbolo. Diz Benjamin na Origem do Drama Barroco (1984): “alegoria não é frívola técnica de ilustração por imagens”. Nada na alegoria é definitivo.

O pesquisador Rainer Rochlitz dedica um trecho de seu livro O desencantamento da arte (2003) para compreender de que maneira a alegoria é elemento importante para construção de uma teoria da arte para Benjamin: “A alegoria não é aqui simplesmente um tropo, uma figura de estilo substituindo uma ideia por outra que lhe é análoga (…) a alegoria é não somente o princípio formal de um certo tipo de arte – desse ponto de vista, ela se opõe ao ‘símbolo’ ou a uma arte definida como ‘simbólica’ – mas ainda, mais que um conceito retórico ou mesmo poético, um conceito estético que remete à coerência de uma visão de mundo”.

Não se trata de compreender a alegoria como “uma técnica lúdica de figuração metaforizada”, como explica Rochlitz, mas como expressão, um conceito estético. Na alegoria, a face hipocrática da história se oferece ao olhar do espectador como paisagem primitiva petrificada. É “a história, naquilo que ela tem de intempestivo, de doloroso, de malogrado”, afirma Benjamin. A alegoria benjaminiana é uma recusa radical de qualquer reconciliação simbólica. Está mais próxima de uma experiência da história com um olhar profundo que, segundo Benjamin, “transforma, de um só golpe, as coisas e as obras”.

Se preferirmos enfrentar a força da alegoria nas imagens de Medo do escuro, parece ser preciso sempre retornar ao filme e, a cada nova exibição, pensar de forma diferente em relação ao que está sendo colocado em jogo. Ainda segundo Rochlitz, “a alegoria faz aparecer a fragilidade do símbolo, sua vitória sempre provisória e momentânea sobre a ‘arbitrariedade do signo’. A escritura expressiva da alegoria é destrutiva”. Ao lançar mão de imagens alegóricas, Medo do escuro provoca determinadas rupturas no olhar. Penso não apenas naquilo que conseguimos ver dentro de um campo limitado de uma tautologia das imagens, mas como o filme opera buracos, rachaduras, ausências em uma certa platitude da visibilidade, que a nós parece já estar acomodada e domesticada. Em outras palavras, seria possível pensar junto com Didi-Huberman que aquilo que vemos também nos olha.

Considero gestos de operações de figuras cinematográficas em que a imagem acaba por rachar, cindir, ser perturbada por rastros, marcada por vestígios que colocam em questão ou em suspensão regimes de visibilidade do contemporâneo que podem conduzir às tiranias de uma mirada realista naturalista ou de uma interpretação simbólica. Na alegoria, uma imagem não está a serviço de um modo de ilustração ou simbologia de algo dado no mundo, mas como potencial dialético que intercepta o símbolo ao convocar o provisório, o fragmento, o vestígio. De acordo com o pensamento benjaminiano, “na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora. O falso brilho da totalidade se extingue”. A imagem como fragmento e ruína dentro do cinema abre uma conexão com o artifício.

Ângela Prysthon (2015) argumenta que o realismo preponderante da década de 2000 vai cedendo lugar a ambiguidade do que ela chama de “realismo sob rasura” em que o artifício dilacera o real. “Choque deliberado entre o realismo e o artifício excessivo que desarticula e desestabiliza os efeitos de real pressupostos em plots mais banais”. Para a pesquisadora, a transfiguração ou desfiguração do real em filmes que apostam no elogio do artifício acabam por inventar mundos alternativos com o cinema. “Os filmes propõem potentes heterotopias fílmicas, exercícios de resistência ao real ou premonições sombrias, e se revelam extremamente pertinentes para pensar o contemporâneo”.

A alegoria pode ser pensada como conceito estético que, no cinema, vincula-se a uma estratégia do artifício. Para Benjamin, a alegoria é “um objeto de saber, aninhado em ruínas artificiais, cuidadosamente premeditadas”. Em Medo do escuro, tais ruínas artificiais engendram volumes de corpos e superfícies de paisagens entregues ao esvaziamento, às forças sensíveis dos vestígios em que o ver nada mais é que uma experiência dos rastros. Figurar a história como catástrofe, como acúmulo de ruínas, é o que mobiliza Medo do escuro. Um jovem sobe os andaimes de um prédio abandonado e cata papeis em meio a escombros para fazer uma fogueira e se aquecer. Ele deambula por uma cidade desolada, tomada por entulhos, em ruínas.

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As ruínas em Medo do Escuro não são apenas a constituição aparente da paisagem. Elas são imagens do provisório e do fragmento que a alegoria evoca e, de algum modo, roçam a fragilidade e o desamparo de uma cidade como Fortaleza, povoada por edifícios e ruas abandonadas. Lugares de memória, destruídos ou largados à própria sorte, pairam em meio à dinâmica predatória de ocupação dos espaços da cidade. Como ainda é possível habitar uma cidade em ruínas? Como criar bolsões de resistência neste cenário pós-apocalíptico? Contentar-se com o pouco, com o frágil, construindo diferenças com os resquícios que ficam, pode ser uma estratégia. O gesto é o mesmo do protagonista que constantemente arrisca voltar às ruas para coletar restos.

Medo do escuro projeta cenários de paisagens em ruínas em que personagens encontram novas formas de sobrevivência. O filme é entulhado por escombros de prédios, em ruas esfumaçadas, com personagens em meio a fragmentos de espelhos e lixo. Prysthon compreende que “essas imagens de ruínas e de desolação parecem desfigurações ou transfigurações da Fortaleza real”. Mas é justamente a transfiguração que está em jogo nas imagens de Medo do escuro que faz com que a paisagem possa reverberar a sensação de ocupar qualquer grande centro urbano, que privilegia a construção de grandes empreendimentos e ordena remoções constantes da população. A ruptura se dá neste lugar em que já não é possível reconhecer imediatamente a cidade de Fortaleza como lugar de representação, mas a construção de um espaço alegórico em que tudo parece ruir.

Se o levante se dá na práxis do filme, há um gesto iconoclasta em relação à imagem simbólica já desgastada do levante: jogar o coquetel molotov com o rosto coberto por uma máscara. Não há em quem atirar a garrafa incendiária – a cidade está vazia – e a máscara não é uma forma de esconder a identidade de um rosto – o ar está tóxico. É uma ação para o nada, que termina com a sensação de cansaço, muito comum ao que parte de nós vive no corpo. Um trio de agressores observa e ataca. Os corpos dos poucos sobreviventes entram em convulsão ou desencanto. São constantemente agredidos e abatidos. Há o gesto de acolhimento de uma garota em abrigar o corpo do jovem para um intervalo de cura. É preciso acolher em momento de necessidade de ajuda.

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Os lampejos intermitentes de Medo do escuro – espelhos reluzentes, reflexos do sol e o brilho nos corpos dos personagens – parecem vislumbres de um possível que permitem aos corpos continuar, a dar mais um passo, a não ceder diante das ameaças. Nos momentos mais críticos, há sempre a queda, mas algo impulsiona os personagens a recomeçar. Em uma morada hostil, talvez não haja força suficiente para combater os poderes. Quem sabe tais instâncias de soberania sejam apenas imagens a impor o medo, a tentar nos imobilizar e arrefecer nossos ânimos? O que esse filme pode convocar em meio a uma nova barbárie?

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A imagem narcísica do agressor irá se desfazer como um espelho quebrado e o céu voltará a ficar azul. O impulso de resistência parece estar guardado no corpo: ele extravasa em um movimento de dança, como os vagalumes que dançam na alegoria lançada por Didi-Huberman. “Nós podemos experimentá-la a cada dia – a dança dos vagalumes, esse momento de graça que resiste ao mundo do terror, é o momento mais fugaz, de mais frágil”. Enquanto houver força para se tornar vagalume, o corpo resistirá como ser luminescente, dançante, errático, intocável. Eis que a questão em jogo é política e histórica.

Referências

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

________________. As passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

______________________. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

PRYSTHON, Ângela. “Furiosas frivolidades: artifício, heterotopias e temporalidades estranhas no cinema brasileiro contemporâneo”. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 66-74, 2015.

ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte. Bauru: Edusc, 2003.

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Shyamalan e a iminência

Por Bernardo Oliveira

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I. (tomorrow is the question)

Os alienígenas em Twin Peaks — The Return estão bolados: demonstram preocupação extrema com o destino aparentemente inevitável da Terra. Com o advento dos testes nucleares, isto é, através de sua própria atividade, o “tipo Homem” atravessou um perigoso limiar, tornando concreta a possibilidade de sua própria extinção. Na antessala onde ocorre o bizarro parlamento, projetam-se imagens do acontecimento que pode determinar a destruição do planetinha vagabundo e da corja desalmada que o habita. As imagens incidem sobre uma tela instalada no hall, cuja aparência lembra a de uma sala de cinema, mas sem as poltronas. Seres antropomórficos assistem ao espetáculo da destruição como quem vê a realidade cósmica através da tela de cinema. Como no processo aterrador do Apocalipse bíblico, o Cinema também encontra sua potência em tramas de afetos e afecções, em articulações fantasmáticas entre imagem, som e palavra. A nós, espectadores terrenos e mortais, resta embarcar em um dos mais intensos fluxos audiovisuais da cinematografia recente. Invenção e escatologia se imbricam no imaginário apocalíptico criado por David Lynch.

Apocalipse, do verbo grego clássico apokálupsis (ἀποκάλυψις) — que é a junção do prefixo de negativo ápó (ἀπό) com o verbo kalúptô (καλύπτω, esconder), dando forma ao sentido de algo que se descobre, se revela, se torna público. O sentido mais literal do termo não se relacionaria somente à destruição, mas à ideia de algo que se descobre ao fim de um processo. Apocalipse, isto é, uma “revelação”. Em termos literários, o Apocalipse canônico teria, como uma de suas características, a proliferação de acontecimentos terríveis, carregados em imagens absurdas, que embaralham as dimensões da linguagem e das sensações. Redigido pelo profeta  João de Patmos, o Apocalipse descreve um cortejo de criaturas extravagantes revirando o Planeta de alto a baixo. Um espetáculo carnavalesco, trágica representação do acerto de contas divino com a humanidade vacilona. Bodes degolados com sete olhos e sete chifres, sete anjos que nos lançam sete pragas, “miríades de miríades e milhares e milhares” de anciãos, taças douradas, incensos, raios de fogo e lava, choros e gemidos suplicantes, mares de vidro e fogo. A colheita maldita separa os puros e os impuros, os sagrados e os degradados, “morte, miséria e fome”. Imagens de um filme-catástrofe que tira proveito do esgotamento para fazer transbordar um sentimento delirante de vingança divina.

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A catástrofe apocalíptica teria por função varrer do mapa o mundo tal como o conhecemos, expondo a todos — a todos, mesmo! — o conteúdo derradeiro do processo, isto é, o valor e o poder verdadeiros. O poder revelador da catástrofe é, portanto, um poder que evoca o sentimento generalizado de pavor diante da finitude humana, pavor que é produzido pela sensação de que o fim do mundo, tal como o conhecemos, é inescapável. O fim do mundo corresponde ao desmascaramento de todas as ilusões de sobrevivência, particularmente da raça humana. E, no intervalo entre a destruição e a revelação, pode-se flagrar a oscilação apocalíptica, as múltiplas forças da dúvida e do movimento, que incidem sobre os viventes e que rebatem o pavor, redistribuindo as cartas.

Shyamalan tematiza diretamente o fim do mundo em Fim dos Tempos e Sinais, operando também a tensão revelatória em praticamente todos os seus filmes. O conteúdo derradeiro, porém, nunca é exposto ou resolvido em sua totalidade, ficando espaço-tempo e personagens à mercê de uma realidade descontinuada. O Apocalipse shyamalânico não se concretiza, mas funciona como pressuposto para a manipulação das atmosferas que envolvem seus personagens. Seu ponto de vista se vê oscilando entre a descoberta e a destruição, sempre sob a perspectiva da Iminência — “pois o tempo está próximo…” (Apocalipse, 1). O foco não reside no fim, na destruição de toda a ordem, tampouco na revelação da nova ordem, mas nas variações particulares provocadas pela situação de suspensão. O conteúdo revelado — místico, misterioso ou escatológico — corresponde à suspensão da ordem universal, natural ou restrita, sem que sejam substituídas imediatamente por outras ordens. Se há um registro apocalíptico na obra de Shyamalan, não se trata nem de um apocalipse derradeiro ou terminal, nem do anúncio de uma verdade; mas desse espaço de suspensão entre a destruição e a renovação.

Lemos no escrito canônico do Apocalipse, que integra o Novo Testamento, algo que nos remete diretamente à potência revelatória que o Cinema manifesta em Twin Peaks. Após uma primeira anunciação divina, o profeta assiste a uma cena inusitada: “eis que se mostrou uma porta aberta no céu; e a voz […] falando comigo, dizendo: ‘Sobe até aqui e eu te mostrarei as coisas que é preciso que aconteçam depois dessas’.” O céu se abre como a tela de cinema alienígena e, através dela, recebemos, a um só tempo, um comando decisivo, um testemunho do devir e uma convocação para a ação. Na situação revelatória, deserdados pelo destino dos ingênuos, somos forçados a traçar uma linha de fuga e agir a todo custo.

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Assistimos aos nossos próprios traumas se dissolverem ante ao espetáculo da destruição. O horizonte de expectativas é borrado pela dúvida: o que virá? Como em praticamente todos os seus filmes, trata-se também de um elogio e de uma operação sobre a hesitação: duvidar daquilo que se vê e crê; paulatinamente tomar consciência da enrascada em que nos metemos. A dúvida — que fazer? — empurra a trama adiante e mantém o processo irresoluto entre a realidade deste e a de outros mundos possíveis. Em meio à iminência, ocorre também a intermitência da catástrofe, os fragmentos do conflito que se espalham e se depositam pelo seu entorno. O terror, como subproduto da dúvida, advém de uma realidade envolta nas consequências imprevistas da suspensão revelatória: o mito comunitário e opressor descortinado em A Vila; a trama invisível que incide sobre os humanos em Fim dos Tempos (melhor seria tomarmos pelo seu título original: “O Acontecimento”…); a ameaça alienígena como escravização do humano em Sinais; a esperança de reconduzir a “Dama da Água” de volta ao seu mundo. Manter a dúvida é fundamental. Assim, o autor não dissolve, mas torna fluido o limite entre a luz e a escuridão. Seu cinema é apocalíptico, porque se autodetermina no limiar entre finito e infinito, ciência e subjetividade, magia e realidade, mantendo em aberto o espaço da iminência. Entre a iminência e o interdito, há mais do que uma diferença de grau, mas a emergência de uma nova ordem, que permanecerá desconhecida. Shyamalan não pretende iluminar a escuridão, mas posicionar seus personagens em uma fronteira cinzenta, de modo que eles testemunhem e reajam à catástrofe inevitável.

II. (broken shadows)

“Cresci hindu”, afirma Shyamalan em uma entrevista. Naturalizado norte-americano aos 18 anos, substituiu o Nelliyattu pelo Night e abreviou Manoj.: M. Night Shyamalan. Nasceu em Mahé, pequena cidade em Pondicherry, Distrito Nacional da Índia, migrando para a Pensilvânia com seis anos de idade e naturalizando-se norte-americano durante a Faculdade. Ainda jovem, realizou dezenas de filmes em Super-8, sob a influência de Steven Spielberg, o cineasta judeu responsável por um dos filmes mais ofensivos de que se tem notícia contra a religião Hindu: Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984). Isso não impediu Shyamalan de tomar Spielberg como referência, mas, também, de forma inequívoca, de subverter a máquina spielberguiana, sabotando-a por dentro. Digo isso, pois, não tendo a competência para uma análise breve da diferença entre Protestantismo e Hinduísmo, assim como das relações de aproximação entre Judaísmo e Protestantismo, gostaria apenas de observar que o Protestantismo opera por redução, ao máximo, dos caminhos que conduzem à divindade, tendo as restrições prescritas pelas “Cinco Solas”, critérios de estreitamento simbólico. Só há um caminho e a disputa é o termo exclusivo. Sobre esse aspecto, o Hinduísmo é duplamente contrário ao Protestantismo e ao Judaísmo: não há apenas um só caminho a percorrer ou uma divindade a adorar, tampouco uma divisão tão rígida entre a imanência e a transcendência.

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O preconceito norte-americano é o subproduto direto da ganância nacional: a ética protestante preside o espírito do Capitalismo. A ética da competição, a educação para o sucesso e para o fracasso, o peso de ser um loser… Mas é também uma resposta formulada pelo medo do futuro. Shyamalan nos oferece uma cartografia ambígua do medo norte-americano, cultivado inclusive por uma cinematografia milionária. Em seus filmes industriais, as ameaças surgem sob a forma de alienígenas, do fim do mundo, da morte e do além-morte, dos mutantes, dos superpoderes e da tecnologia que não dominamos. Os imigrantes são sempre representados como subalternos ou ameaça. Shyamalan reverte o esquema: a ameaça serve como meio de exposição dos preconceitos — e não seria a sociedade representada em A Vila, eventualmente terraplanista e antivacina, a mais forte caracterização do olhar crítico que Shyamalan lança sobre a sociedade norte-americana?

Inverte-se a lógica triunfalista do drama hollywoodiano e desdobram-se possibilidades intensivas, outros tipos de relação com o clichê e o gênero, ambos expositivos e marcados por um estilo preciso no enquadramento e nos movimentos de câmera: de um lado, “o universo em desencanto cósmico”; de outro, “a natureza em suspensão mística”.

Quando o Universo se encontra em desencanto cósmico, o processo de desmoronamento definitivo ou provisório é o grande tema. Como em A Vila, Fragmentado, Sinais, Fim dos Tempos, Olhos Abertos, o presente é deformado por forças do passado, atualizadas por acontecimentos misteriosos e traumas insuperáveis. Marcado por seu sofrimento particular, os personagens se veem na necessidade de suspender provisoriamente o trauma e superar a personalidade, por força da necessidade urgente de ação e mudança. Em Fragmentado, a besta perdoa somente os cindidos, os quebrados, os que sofrem e superam. O sofrimento é o que sublima as potências próprias de Crumb e Elijah. O indivíduo é impelido à desfragmentação, perde sua individualidade e busca reconstruir-se a partir das forças atemporais do Cosmos. Em A Vila, por exemplo, abre-se a caixa do passado no exato momento em que a menina, através de um esforço descomunal, atravessa a fronteira em direção ao “fora”, independente da catástrofe que este “fora” determinará na vida daquela comunidade. Em Sinais, o inesperado ocorre justamente em uma fazenda isolada do mundo, onde o luto e o desencanto plantaram raízes e se instalaram definitivamente. O acontecimento misterioso, que impele os humanos a cometerem suicídio inconsciente, obriga o professor do high school a usar seus conhecimentos científicos para salvar a si e aos seus. A revelação reside na instalação de uma simultaneidade, onde presente e passado incidem misteriosamente, um sobre o outro, se iluminam mutuamente e exigem mudança e superação.

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A Natureza em suspensão mística corresponde à suspensão do tempo-espaço convencional, abrindo a realidade para o além e o aquém do humano; e, em alguns casos, para as volatilidades das formas orgânicas e inorgânicas. Futuro, presente e passado coincidem, tornam-se simultâneos, ainda que assimétricos, em seus graus de manifestação intensiva. Os poderes especiais dos personagens, seus mundos específicos, suas características divergentes, tudo conduz ao alargamento do horizonte de atividades: a trilogia dos heróis opera diretamente essa desnaturalização da potência, em força cega interiorizada. O mesmo ocorre também com o menino-médium em Sexto Sentido, o menino desafiado por uma natureza alienígena em Depois da Terra, o surgimento de uma ninfa intraterrena em A Dama da Água, os poderes de outro menino extraordinário em O Último Mestre do Ar (aliás, remeto a presença forte das crianças às “Três Metamorfoses” de Zaratustra: de camelo a leão e, por fim, à criança, ou seja, a inocência do devir, o Amor Fati…) Em Sexto Sentido, a intuição mediúnica tem o poder de reparar o passado, pois, conversando com os mortos, o menino remedia e atualiza suas dores. A força e a fraqueza de Elijah Price e David Dunn nunca se colocam como absolutas; parecem obedecer a graus de atualização por interdependência, fornecendo a base dialética para a ampliação da individualidade — para cada herói, um duplo: a mãe, a amiga e o filho. A revelação reside na descoberta do transindividual, expondo tanto a condição provisória do humano, como também as potências ocultas e os poderes impróprios.

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Vale notar que muitos dos filmes reúnem os dois registros. Sinais, por exemplo: universo em desencanto cósmico, oscilando brutalmente entre o trauma e a dúvida; mas também a Natureza em suspensão mística, revelando seres extraterrenos e, com eles, um desdobramento da impotência humana diante do que virá, não importa se o caos ou o destino. Fim dos Tempos também comporta a volatilização da Natureza e a superação do humano. Em A Vila, esse limiar entre humano e inumano é motivo de oscilação; assim como em Corpo Fechado e Fragmentado — em Vidro, essa dúvida torna-se o epicentro da questão, servindo como base ao extraordinário diálogo entre a psiquiatra e os heróis. A Visita constituiria o caso divergente, pois não sendo nem cósmico, nem místico, mantém-se no domínio da hesitação privada.

III. (skies of america)

Não há personagem nos filmes de Shyamalan capaz de provocar o mesmo grau de desencantamento do que o planejado pela psiquiatra Ellie Staple e seu poder científico, institucional e policial. Olhar penetrante como uma dose de Pentobarbital, enquadra os pacientes enquanto distúrbios clínicos, reações naturais — e não sobrenaturais — aos traumas que atravessaram. A psiquiatra não esconde um afeto perverso por seus casos, comunicando-se com eles através de seu rosto calmo e voz segura. Dra. Staple representa a responsabilidade fria do Capital, o poder policial da Ciência, mais voltado para a estabilização do status quo — representado por um restaurante metido a besta — do que por sua transformação. Usando métodos semelhantes aos da terapia familiar e, eventualmente, aos da tortura, Dra. Staple encara suas preciosas anomalias com firmeza de propósito e autocontrole. Como toda psiquiatra, ela cobra dos casos a prova do desencanto, a confissão voluntária e o voto pela normalidade. Dra. Staples representa a força do establishment, a força da violência normalizadora, incomparável à violência perpetrada pelo vigilante, pelo gênio do mal e pelo assassino fragmentado.

A resposta dos heróis fortalece a aliança anômala e, sustentando a dúvida, permanece tão ambígua quando evidente. Apesar do projeto de normalização, sempre persiste um master plan, nem que seja um plano suicida. Apesar da realidade vigente que constrange os superpoderes, apesar de se autodestruírem, apesar de vulneráveis às armas policiais, o trio insiste: “nós existimos”. A interrupção da proliferação anômala pode ser compreendida tanto como uma vitória parcial do poder despótico, como um lamento diante da morte da diversidade. O que suscita o pavor não são os superpoderes, mas a descrença radical nas potências pré-individuais, potências de renovação do presente. Em suma, a descrença no presente enquanto portador de élan vital, devido ao baixo grau de diversidade humana, vegetal e animal — como adverte Pascal Picq em seu livro A Diversidade em Perigo, chamando a atenção para “os desenraizados pelos avanços da civilização são cada vez mais numerosos”.

(from left) Samuel L. Jackson as Elijah Price/Mr. Glass, James McAvoy as Kevin Wendell Crumb/The Horde, Bruce Willis as David Dunn/The Overseer, and Sarah Paulson as Dr. Ellie Staple in "Glass," written and directed by M. Night Shyamalan.

Escrevendo sobre o conteúdo apocalíptico e o Milenialismo do cinema norte-americano na virada do século, Kirsten Moana Thompson mostra que a atmosfera apocalíptica é engendrada por ansiedades, provocadas pela instabilidade da opressão presente:

“Repetidamente, quando o desastre ocorreu, o pensamento escatológico entendeu a ruptura política, social ou física como presságios do começo do fim do mundo; a enorme devastação causada pela praga bubônica nos Séculos XIV e XV e a ameaça de invasão islâmica no Século XVI, provocaram o retorno dessas ansiedades”.

Thompson complementa o que escreve Eva Horn em The Future As Catastrophe:

“O valor político das profecias bíblicas, portanto, estava diretamente nas imagens da queda dos impérios, da destruição dos emblemas do poder terrestre e da punição dos poderosos. Essa destruição é uma promessa de que o poder mundano terminará e que o mundo atual estará sujeito a um final”.

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A força motriz desse acontecimento é o presente indefensável. Assim como as narrativas proféticas, que acorrem a um diagnóstico implacável do presente, Shyamalan problematiza seu próprio tempo através de uma crítica velada, às vezes imperceptível, a conceitos e valores caros ao léxico político da Modernidade — nação, território, fronteiras, defesa, soberania. Convém, então, dizer com todas as letras: os filmes de Shyamalan operam a partir do fluxo de imagens extraídos da décadence americana, a decadência dos Estados Unidos da América. Hackeando os mecanismos redutores de representação da alteridade do Cinema norte-americano, seus filmes parecem sugerir que a hegemonia dos Estados Unidos se encontra em processo de dissolução.

Como consequência, seu cinema também capta a decadência de um certo modelo épico, racista e autossuficiente. Edward Walker não corresponde, necessariamente, a sua aparência superficial, o pai dedicado e líder responsável. Antes, eu o percebo como um alt-right bizarro que dispõe abusivamente dos destinos da comunidade. Da mesma forma, estamos acostumados a encarar o vigilante no cinema como um herói inequívoco, tal como personificado por David Dunn. Mas podemos considerar igualmente que a descrença do justiceiro na política e no Direito é tão nociva quanto os abusos conduzidos pela instabilidade do “fragmentado” e o genocídio que a hiperinteligência do Sr. Vidro pode provocar.  São narrativas que nos situam justamente no limiar entre o mundo competitivo vendido pelo American Way of Life — AKA Capetalismo — e a abertura que ele propicia para reações catastróficas, geradas pela fé-cega no “mercado”, no indivíduo e no fim da política.

Referências:

BÍBLIA: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

HORN, Eva. The Future as Catastrophe. Imagining disaster in the modern age. Translated by Valentine Pakis. New York: Columbia University Press, 2018.

PICQ, Pascal. A diversidade em perigo : de Darwin a Lévi-Strauss. Rio de Janeiro : Valentina, 2016.

THOMPSON, Kirsten M. Apocalyptic Dread: American Film at the Turn of the Millennium. Albany, N.Y.: State University of New York Press, 2007.

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O mundo é o culpado: O oficial e o espião (Roman Polanski, 2019)

Por João Pedro Faro

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Não há mediações possíveis na cena que abre O oficial e o espião (2019, Roman Polanski). Um letreiro avisa que todos os personagens que veremos foram pessoas reais, seguindo para uma sequência de enquadramentos rígidos da condenação e humilhação pública do jovem militar franco-judeu Dreyfus (Louis Garrel). A praça em que ocorre a situação está dominada por fardados em formação perfeita e cercada por um cenário de CGI da Paris de 1895. Direciona-se, portanto, sem qualquer termo inacabado, o conto de desconforto, injustiça, perseguição e  realidade fabricada dirigido pelo criminoso convicto vencedor do César 2020 de melhor direção.

Através da narrativa envolta nos esforços do investigador Picquart (Jean Dujardin) para provar a inocência de Dreyfus em sua injusta condenação por espionagem, Polanski cria um “thriller de rotina” mais interessado nas implicações visuais do ambiente em que se insere e nos personagens que o formam. Grande parte da duração do filme é construída por transições entre cabines, quartos, escritórios e quartéis frequentados por Picquart, com o suspense da investigação surgindo sempre pela exploração desses locais tão marcados por acessos difíceis, gavetas trancadas, arquivos perdidos e dominações hierárquicas militaristas que impedem penetrações mais incisivas por seus segredos. Predomina a agonia do impossível, a distância entre um homem e um sistema estruturado, colossal, que permite apenas brechas do que esconde de mais tenebroso.

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Espaços em que a sordidez é controlada por convenções ou imposições sociais e políticas sempre estiveram presentes no cinema de Polanski. Em O Oficial e o Espião, esse controle é assumido como mote temático e visual de toda a sua ambientação. Polanski filma grandes salas escuras em planos que não passam do enquadramento médio dos personagens, valorizando imagens aproximadas que potencializam o efeito de intransigência do ambiente militar. Assim, não importa quantos segredos sejam descobertos ou quantas polêmicas sejam provocadas entorno do caso Dreyfus, o que permanece é um pessimismo vigente em desacreditar na possibilidade de sucesso no enfrentamento entre o indivíduo e o sistema. Um estado de vigia também é constante, a partir do momento em que a instituição é questionada, todos os arredores parecem ir se fechando ainda mais. Estamos acompanhando uma construção de universo baseada em regras muito próprias de postura e comunicação, desconjuntada em sair de qualquer eixo pré-formulado. A construção da rigidez do espaço serve como fonte de um “medo do autoritário”, instaurado quando a rotina é quebrada pelo incomum questionamento.

Picquart é um personagem em revolta, porém interrompido em seu ultraje pela manutenção da formalidade militar e pelas posturas obrigatórias do cargo que exerce no espaço em que ocupa. Já os algozes, o grupo da alta cúpula do exército que condena um inocente, são caracterizados pela vilania de suas ações frontalmente impostas e inquestionáveis, fortalezas humanas que protegem princípios tortos carregados por noções de patriotismo que Polanski rejeita. São, em sua maioria, figuras caquéticas, decompondo-se por trás de uniformes intocados, fisicamente rejeitáveis, enquadradas pelo contraponto vívido do rosto de Picquart. Nada é tão claro quanto a cena em que o protagonista visita um antigo superior, enfermo e apodrecido em sua cama, que ainda reverbera com dificuldade um discurso contra estrangeiros: “Não reconheço mais a França”, diz.

O poder vigente é tratado como detentor de tradições rejeitáveis, injustas pela própria natureza, propensas a condenar qualquer um que esteja beirando os limites que impõe politicamente. A grande virada rítmica do longa ocorre após Picquart declarar-se totalmente contra as decisões de seus superiores, desfazendo-se da própria honra que existia enquanto aceitava as barreiras de seu cargo. Polanski permite a idealização de um possível herói justo, de um personagem disposto a desacreditar completamente da instituição a qual dedicou sua vida por perceber algo que desmonta suas crenças. O ideal do francês tipicamente moderno, o anti-idealista nato. Porém, ao mesmo tempo, não permite que as forças da tradição sejam facilmente instabilizadas. O artigo que Èmile Zola escreve sobre o caso Dreyfus, “J´accuse!”, entra como o motor subversivo mais explosivo da narrativa. Uma possibilidade de acusação e enfrentamento direto, porém reprimido e insuficiente em níveis mais gerais. O oficial e o Espião abraça o fatalismo da realidade que propõe, enxerga um poder inalcançável com rancor, busca imaginá-lo em sua sordidez institucionalizada e apontar a revolta, mas nunca acredita que seja passível de uma queda total movimentada pela exposição de suas tripas.

Parte dessa exposição contida, que vai formando-se de documento revelado em documento revelado, apoia o tom do filme que varia do escárnio ao temor. Os superiores de Picquart aparecem, em um primeiro momento, como clara ameaça, vestidos em uniformes impenetráveis e posturas estáveis. No decorrer das tribulações que abrem portas nunca antes abertas, nos aproximamos de humanos mais reconhecíveis e inevitavelmente mais passíveis de exporem pontos de fraqueza. Outra cena que explora a fisicalidade dessas figuras: Picquart é desafiado para um duelo de espadas contra um superior que ajudou a condenar Dreyfus. Estão sem uniforme. Depois de poucos minutos, Picquart fere o adversário no braço. Ferido, ele tenta buscar a espada do chão com o braço perfurado, tornando-se despido de qualquer honra, sendo apenas uma figura tosca tentando se apoiar em um poder armado que não consegue mais empunhar. O poder pode não ser derrubado, mas não quer dizer que esteja a salvo da humilhação proporcionada pela verdade, voltada contra todos os mentirosos.

As noções de verdade e mentira estão apoiadas, dentro da obra, em sua noção de uma sociedade em decadência moral. Não há golpe concretizado, mas há a aparição de uma noção de que alguns traços costumeiramente aceitos não passam de absurdos. O fator mais central, o ódio declarado contra os judeus, em um primeiro momento tratado como costume, sofre um tratamento quase anacrônico no miolo do filme. Picquart, antes dotado de um antissemitismo prosaico, deixa de falar qualquer palavra contra os judeus em dado momento de sua imersão no caso Dreyfus. O que é opressor, o que é falso e é dado como verdadeiro pelo interesse de comandantes caquéticos, torna-se cada vez mais um terror esclarecido e as verdades absolutas são a justificativa de qualquer perseguição que possa ocorrer. A insurreição torna-se obrigatória a favor da justiça.

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Polanski fomenta um ideal de culpa generalizada em todos os cercamentos que condenam Dreyfus. Filma uma França antissemita, tradicionalista, de um nacionalismo autoritário, contra qualquer fator externo. Portanto, a partir de um grupo que defende Dreyfus sempre tratado como uma minoria quase milagrosa, fortalece-se a concepção de que a injustiça contra um oprimido não é somente inevitável como também incentivada pelo poder. A instituição militar é retratada quase como comandante de toda a nação, O oficial e o Espião é tão firme em representar o alcance íntimo de órgãos de inteligência do exército e seus mais poderosos membros que surgem como o contorno oficial do universo retratado. Os rumos do mundo pertencem aos fardados, suas armas e bigodes, e Polanski é incansável em retratar todo o terror e todo o ridículo dessa realidade.

 

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Eu ainda acredito em seus olhos: Joias Brutas

Por João Pedro Faro

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(…) que apagaram em imensos cinemas sórdidos, foram

transportados em sonhos, acordaram numa Manhattan

inesperada e se resgataram de ressacas em porões

de Tokays impiedosos e terrores de sonhos cruéis da

Terceira Avenida & cambalearam até

agências de emprego

– Allen Ginsberg, “Uivo” (trecho)

Compreender cinematograficamente a estética de determinado momento histórico é um trabalho ingrato. Ao mesmo tempo que é possível se render a caricaturas reconhecíveis e trejeitos visuais passados, também é possível complexificar os motores, personagens, consequências e atributos da estética histórica, caso bem trabalhada. Não à toa, Joias Brutas (2019, Josh e Benny Safdie) é um grande exemplo de filme histórico: passado em 2012, criando cinema entorno da enervante temporada dos Celtics com Kevin Garnett, o filme compreende cultura, consumo e história como possibilitadores diretos da formação de uma imagem.

Howie Bling (Adam Sandler), uma espécie de “agente do caos de si mesmo”, funciona como centro de capacitação dos fluxos sonoros e estéticos que cercam qualquer enquadramento de Joias Brutas. Em outras palavras, Howie é um protagonista completo, sendo todo o filme moldado entorno de sua presença e de suas necessidades. Em seu percurso por apostas arriscadas que afundam o personagem em um caos incontrolável pela cidade de Nova York, o que fica marcado pelos Safdie é a acumulação de informações que formam o cosmo do personagem.

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Existem dois fatores principais na grandeza do personagem Howie. O primeiro está diretamente ligado ao que Joias Brutas compreende como “cultura”: um balanço entre a tradição e a tendência. Howie e seu mundo de venda de joias, apostas e barganhas é apresentado como parte da comunidade judaica novaiorquina. Nesse contexto, carrega inevitavelmente o histórico milenar do judaísmo e de seu povo, além de seu espaço dentro da própria América, seu passado de imigração e sua conquista de poder financeiro e político dentro desse ambiente junto com a atualização de seus conflitos sociais e econômicos. O protagonista de Joias Brutas se veste com brilhantes e se afunda em seu próprio excesso de possibilidades financeiras, sua má relação com a própria história pelo sincretismo impossível entre a religião do espírito e a do capital (expostos no desconforto da cena do jantar e o desastre de sua jornada com a joia que importa de outros judeus). Portanto, a cultura do consumo está em colisão com as antigas organizações sociais de uma comunidade, e Howie é uma síntese desse conflito que desestabiliza todo o espaço em que pertence. Nada é o bastante, sua nova regência cultural é pela exploração dos limites de seu consumo.

Um segundo fator que potencializa o protagonista parte do seu intérprete. Nada diz mais sobre Adam Sandler do que seu papel “oscar baiting” ser nada mais do que uma repetição de seu típico personagem manchild recontextualizado para uma história que foca nas consequências de seu comportamento. Sandler é o mesmo paizão de Esposa de Mentirinha (2011) ou de Gente Grande (2012), o homem que se entrega aos desejos juvenis voltados ao próprio egocentrismo. E seu tom é o mesmo durante todo o filme: não há grandes explosões emocionais ou momentos que só serviriam para demonstrar uma “capacidade escondida” do ator. Sandler é o que é, é um comediante que compreende um certo tipo de interpretação e só precisa de justificativas para fazer valer o esforço de sua presença. Joias Brutas enquadra Sandler até o limite de sua persona, testa todas as possibilidades que esse tipo de interpretação pode oferecer ao cinema de inquietação que os Safdie buscam. Para isso lhe foi entregue um personagem como Howie, e certamente faz justiça ao ator que pertence.

Sandler constrói, em sua postura de imaturidade, um personagem que acredita no que faz o tempo inteiro. É isso torna sua persona genuína. Ele aposta em negócios arriscados pelo vício e pela grandiloquência, mas nunca deixa de crer que seus caminhos são os melhores possíveis para seu destino. Isso está diretamente ligado com o que resta de sua tradição espiritual, do senso da fé por um futuro melhor para si mesmo. Isso é base de sua vivência e também de sua danação, é um humano feito para colapsar entregue em uma performance que mantém isso no rosto durante toda a projeção.

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O cinema de inquietação dos Safdie é o produto final das imagens que criam. Howie é enquadrado dentre o brilho dos ambientes que transita, de flares das joias até telinhas de celular, e as pessoas que o cercam, de agiotas violentos até ex-esposas. Um acúmulo de figurações visuais, energizando um sentimento de excesso que nunca deixa de cansar e testar suas bordas. Um exemplo é a sequência da boate: após uma briga com sua amante Julia (Julia Fox), decupada em planos fechadíssimos e escuros, Howie abandona a garota, que sai andando sozinha. Em um dos poucos momentos do filme sem o protagonista, Julia caminha pela fila da boate, troca xingamentos com uma outra mulher que permanece no extracampo e segue a rua olhando para o chão, em silêncio. Poderia parecer um breve momento de descanso dentro da narrativa intrincada pela correria, mas é apenas um acúmulo de amargura que acompanha a personagem, mesmo que longe de Howie, o centro dos conflitos.

 Joias Brutas está sempre cercado de problemas a serem resolvidos e pendências amontoadas, ninguém que está sendo filmado está livre desse cercamento asfixiante. Diversas vezes, os Safdie aproveitam o tamanho de seu scope  para colocar o desfoque da imagem no centro da ação de um quadro, gerando a instabilidade necessária para seus interesses de desestabilização. Se não estão à beira do desfoque, os personagens estão enquadrados por trás de vidros, entre lentes de óculos ou por reflexos, gerando sempre a sensação de que cada pessoa em cada plano está a beira de se desfazer por meio da multiplicação, distorção ou má-resolução de suas próprias imagens. Os olhos sempre estão guiados, o eixo entre os cortes está constantemente sendo quebrado, nada parece juntar em uma narrativa impulsionada pela fuga.

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Parte dessa inquietação gerada em Joias Brutas surge também da percepção de seus personagens como frações de algo maior. Howie é apenas uma peça de uma movimentação em cadeia do sistema de consumo, começando do nível mais baixo de exploração com os mineiros etiópes e atingindo o consumidor e astro mundial na figura de Kevin Garnett. Nesse contexto, Howie existe como um rosto esquecido que esbarra com consequências maiores. Ele não é uma celebridade, mas circunda seus meios, ajuda a criar suas imagens de riqueza, revende seus brilhantes. No caso da narrativa de Joias Brutas, Garnett precisa de uma joia cedida por Howie que lhe oferece capacidades especiais místicas que ajudarão no resultado de uma partida aguardada. É a partir desse momento que a realidade do anônimo e a realidade do sujeito histórico se intervém, pois o segundo passa a depender do primeiro. De alguma forma bizarra e enervante, Howie, um anônimo à história, está como parte da resolução final de um contexto maior, portanto suas ações se tornam ainda mais inconsequentes e inquietantes quando sentimos que o resultado final delas pode estar sendo, por exemplo, televisionado ao mundo inteiro em uma partida decisiva da NBA. Howie não é uma estrela, é um anônimo que vive por trás do luxo da história, um personagem secundário dos protagonistas da vida real que, por ironia do destino, pode estar interferindo na realidade exposta oficialmente.

Na obsessão do jogador de basquete pela joia-mcguffin, também ressurge o conflito entre o consumo e sua personalização dentro da modernidade. Garnett, ao observar a joia importada por Howie de mineiradores judeus negros, encontra um universo particular que capacita tanto sua trajetória pessoal enquanto astro negro quanto um estado de exploração escravagista sofrido pelos negros que mineiraram aquela joia. Isso é mostrado através de flashes de imagens que correm por alguns segundos de tela enquanto Garnett está hipnotizado pela joia, e automaticamente após essa percepção de um produto de consumo que comunica diretamente com seu estado de existência no mundo, onde também se percebe como parte de algo ainda maior que seu próprio estrelato. Primeiramente, Howie contesta a decisão de Garnett levar a joia, sendo retrucado pelo jogador: “Por que você me mostraria algo que eu não posso ter?”. O consumo e a existência, portanto, habitam um mesmo estado de essencialidade aos personagens-chave do filme.

É muito característico a um filme como Joias Brutas poder ser intitulado como o primeiro filme de época situado nos anos 2010, afinal é o produto audiovisual de um mundo em aceleração. Atualmente, apenas ter personagens usando um modelo “antigo” de Iphone, usando o Instagram em sua interface passada e falando sobre The Weeknd como um vindouro sucesso já garantem um tom de antiguidade. Escolher criar a ficção a partir de um momento recente de nossa história, ainda mais de um causo tão específico quanto três partidas da NBA, carrega em si todo o peso de um aceleracionismo vigente.

O que existe como histórico em Joias Brutas é o reconhecimento de passagens aparentemente irrelevantes ao processo “oficial” do mundo contemporâneo como carregado de uma série de imagéticas próprias, como um clima de início de década e de correria que perpassa seus momentos de cultura popular (o esporte, as celebridades, a exposição virtual), através de uma série de personagens que habitam os bastidores de uma cultura de consumo imediato cada vez mais veloz, retroalimentada e exacerbada pela acumulação. A história dos anos 2010 já começa a partir dessa velocidade, e nada mais justo que um filme de 2019 retorne à 2012 para reaver o que já é concretizado como intrínseco à década que conhecemos. No caso, flashes de celular, excesso de informações e um sentimento de esgotamento agoniante. Só podemos parar para descansar no anonimato post-mortem, lá o universo nos aguarda. Basta acreditar.

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Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (Cathy Yan, 2020)

Por Pedro Tavares

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Suprir representações de padrões sociais é um código bastante utilizado em narrativas fantásticas e, no universo particular de Gotham City – ou melhor, Nova Iorque -, há um exercício de projeção muito claro, principalmente nos vilões – que agora ganham atenção dos grandes estúdios. Pela lógica, este reflexo catapultou o Coringa de Todd Philips para o sucesso por um tipo de condecoração emocional generalizada. Para Aves de Rapina, a lógica é a mesma: a performance ideológica a seguir o fio obrigatório do produto, da obediência às normas comerciais e de um lugar seguro para estar.

No início dos anos 90 há um capítulo muito claro na ação de convergência entre ideologia e produto na cultura americana: enquanto o movimento Riot Grrl crescia na costa leste, oriundo da cena punk underground, composto basicamente por reuniões semanais entre garotas, shows, zines e convenções, a mídia rapidamente o transformou numa tendência. Se as garotas usavam códigos de reconhecimento como corações e estrelas desenhadas nas mãos, logo a revista Spin tratou de transformar em artigo de moda, por exemplo. Para encurtar a história, este empenho de releitura de um movimento feminista desembocou em estranhos elementos da cultura pop dos anos 90 como as Spice Girls e as Meninas Super Poderosas a julgar o seu ponto de partida.

Susan Marcus, que narrou os anos das Riot Grrls no livro Garotas à Frente, complementa sobre a ideia de produto: “Artistas do Top 40 não são movimentos culturais; são projeções holográficas ultra-homogeneizadas e extremamente comercializadas, aspectos de cultura que são ampliados em telões eletrônicos e levados para o ID por um cateter central. Cultura de massa sempre contém variações limpas e fotogênicas do underground, incorporando apenas o suficiente da parte “provocadora” para manter a própria relevância”.

Nesta declaração, há o lugar de habitação de Aves de Rapina. Uma variação limpa e fotogênica do underground – mesmo que ela seja a repetição ensolarada da Gotham de Christopher Nolan e de um jogo de alegorias que Arlequina por si já se encontra: uma sequência que a protagonista entra numa delegacia e dispara balas e sinalizadores coloridos, o mundo composto, o microcosmo, é tão límpido quanto um código de reconhecimento que fora transformado em elemento visual, pura e simplesmente. A destreza de subsistir num mundo sinistro e repleto de ambientes regidos por homens cede espaço para um tipo de narração infantilizada, “esperta” e pronta para subestimar a persona de Arlequina e suas asseclas em nome de algo maior e intangível. A emancipação da protagonista, à priori jogada para uma segunda camada, está mais para uma escada humorística do que um assunto a ser pautado em algum momento do filme.

Cathy Yan, em sua primeira inserção no mercado americano, opta pela provocação visual: são nas sequências de ação que toda referência à trilogia John Wick dada pela própria Yan é lembrada e sem a intensidade de Chad Stahelski. Se há alguma sugestão de sujeira e flerte com algum extremo, logo são lavados, no qual a provocação é sempre dominada por uma obrigação obscura; Se Kick-Ass – Quebrando Tudo de Matthew Vaughn, para nos atermos ao mundo dos heróis e HQ’s, já desconstruía a figura do narrador e Scott Pilgrim Contra o Mundo de Edgar Wright compôs um mundo estético capaz de unir organicidade ao postiço, o filme de Yan está mais para a aproximação mais mastigada de um discurso moldado pela a noção de produto: se nos anos 90, foram de Bikini Kill às Meninas Superpoderosas, Aves de Rapina é o ponto final desta descida.

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Canto dos Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020)

Por João Pedro Faro

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Entre o vampirismo como manutenção de um poder vigente e como puro hedonismo, Canto dos Ossos (2019, Jorge Polo e Petrus de Bairros) estrutura-se na variação de possibilidades do mito. O vencedor da Mostra Aurora na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes é a tentativa de emular possibilidades imagéticas de um cinema de gênero com regras próprias de execução.

Localizado tanto no litoral do Rio de Janeiro quanto no do Ceará, Canto dos Ossos e seu tamanho de tela reduzido busca um conto juvenil de horror vampírico atado ao tema do abandono. As instituições públicas em crise, totalizadas na professora-vampira que guia a narrativa, e a maresia litorânea de uma rotina marcada pelo ócio da adolescência, vivida pelo casal de amigas que acabaram de se formar, formam o mosaico de ideias prontas para serem experimentadas pela derivação.

Dos clássicos de monstro da Universal e do cinema de terror descolado oitentista, especialmente de referências como Os Garotos Perdidos (1986, Joel Schumacher), os autores integram o desejo de seus personagens pela transformação pulsante de um estado atual, independente das consequências dessa transformação. Dois rapazes se conhecem por acaso em uma noite e transam no dia seguinte, com a descoberta de que um deles é um vampiro sendo apenas a pulsação pela mudança do marasmo rotineiro que cansa em existir. Mesmo como monstros, os personagens jovens de Canto dos Ossos reconhecem a necessidade da mutação do corpo, da imagem e do espírito como essenciais à sobrevivência, são vampiros que devoram em tela seu próprio desejo de não sepultar-se ao tédio.

Outros vampiros, que surgem como a única ameaça real de uma trama que não se importa muito com o próprio desenvolvimento, estão em putrefação, definhando com seu poder dominante que sabota as possibilidades de prazer da juventude. O único momento de invenção que essa classe dominante pode viver é em sua destruição, sendo a morte do patriarca-múmia-vampiro-chefe preenchido na tela por uma gosma verde e por um incêndio controlado que fura o enquadramento.

Canto dos Ossos é dosado pelas experimentações impulsionadas por seu contexto enquanto percorre uma dicotomia estranha entre pequenas tramas inacabadas e uma intensidade de ambientações. A gratuidade de ideias, com diversos personagens protagonizando diversos conceitos, por ora gera um constante investimento na experiência do filme, mas também acaba por desvalorizar uma certa pontualidade de momentos mais congratulatórios, revestidos de maior originalidade imagética e sonora. O grupo de vampiros que protagoniza as sequências no Ceará, os melhores momentos do filme, possui um encontro de invenções que estabiliza conceitos do gênero (existe uma luta de vampiros, uma obsessão pelos signos clássicos subvertida em um ambiente próprio do longa) com interseções típicas ao jogo de juvenilidades e fluxo do filme (na interessante sequência do banho no lago). Mas sua potência parece perdida dentre outras, de menor calibre imagético e de ideias menos singulares, como a trama detetivesca de um fotógrafo e as longas incursões pela narrativa de um texto gótico. Uma mania constante a um cinema de gênero mais contido: a fixação por pequenos amuletos, de passagens antigas empurradas em qualquer canto da obra até a brevidade de objetos fora-de-lugar que parecem querer puxar a todo custo algum significado místico por si só. Por vezes, do muito surge pouco.

Inevitavelmente expressivo em concepção, Canto dos Ossos não parece querer ser um trabalho finalizado, em termos tradicionais e superficiais do termo. Porém, mesmo na incompletude, seus coitos interrompidos e seu apreço narrativo pelo mínimo oscilam entre resultados genuinamente desestabilizadores e projeções mornas do gênero derivativo. Aí está o abandono consentido, presente tanto na relação de seus personagens com o mundo quanto em seu próprio ideal de cinema. É como a promessa de uma eternidade melhor que o presente, ou sobre a confusão entre esses dois conceitos que torna instável um projeto mais concretizado de invenções.

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Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020)

Por João Pedro Faro

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Uma alternativa para o cinema jovem brasileiro está em Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso. É quase como se as temporadas recentes de Malhação, da TV Globo, tivessem um senso político menos raso e liberal. O longa de Déo, ainda que didático e por vezes ingênuo, combina uma competência formal com um senso interessante de cinema popular.

A história de Saulo (Lucas Limeira), jovem negro que decide ocupar sozinho a escola pública em que estuda, preza pela objetividade. Os personagens são estabelecidos em diálogos rápidos e o ambiente onde instaura-se a revolta é naturalmente propenso à indignação, sendo um espaço totalizador de uma geração de periferia marcada pela continuidade do abandono estatal e pelos meios modernos de disseminação de ideias. Esses dois fatores se chocam em Cabeça de Nêgo e acendem a pólvora de um trabalho que busca as últimas consequências de sua premissa, ainda que empatadas por decisões narrativas.

A ingenuidade ocasional parece perdoável pela apropriação de Cabeça de Nêgo dos moldes do cinema adolescente. Porém, mesmo que atrás de um meio mais massificador de representação, nem sempre sua proposta é bem conversada com os tons mais aprofundados do longa. Saulo é um personagem-modelo, sem erros, sem conflitos que não estejam externalizados, e sofre ao tornar-se uma figura totalizadora da revolta que não permite momentos mais reconhecidamente humanos. O filme sofre de uma clara euforia de querer falar de tudo ao mesmo tempo e ser absoluto sobre todos os seus temas, e isso custa alguma parcela de humanidade aos personagens, por mais que os minutos finais tenham uma potência inevitável de luta. Fica a sensação dúbia: essa potência é natural ao contexto, não ocorre necessariamente pela construção de um mundo de pessoas reconhecíveis e complexificadas, que merecem esse tratamento mesmo dentro de um filme mais juvenil. Perde-se um grupo de atores que parece ter muito mais potencial do que conseguem demonstrar durante a projeção.

A integração do meio digital gera algumas das sequências mais interessantes. Saulo registra sua ocupação em vlogs verticais, em uma transferência muito orgânica entre linguagens que se afasta de tentativas caquéticas de outros trabalhos recentes em representar a vida virtual da juventude. Posteriormente, outros registros feitos no digital de celulares também integram a montagem e movimentam a narrativa, com a pixelização das imagens aproximando o longa de uma realidade mais reconhecível e mais desestabilizadora, distanciando-se de um filme teen mais típico. A presença policial, um assombro crescente durante o filme e uma ameaça sempre presente nos entornos da existência periférica, fica ainda mais reconhecível e brutal quando filmada pelas lentes de um celular, quando o digital se desintegra diante da violência. O filme busca uma linguagem própria dentro do gênero adolescente, ainda que carregado de derivações assumidas. A sequência final, especialmente, que compila e entrecorta diversas filmagens amadoras de enfrentamentos entre policiais e estudantes, claramente se inspira no que Spike Lee buscou nos minutos finais de seu recente Infiltrado na Klan (2018).

Déo Cardoso oferece uma construção justa de um gênero que nunca se importou pelo grupo que o cineasta quer retratar. Essa tentativa de reparação gera certos meios totalizadores que não servem bem ao filme, que confunde cinema jovem com condução juvenil. Ainda que preso pela euforia da proposta, Cabeça de Nêgo é um ponto de partida para um tipo específico de filme feito para adolescentes que quase ninguém parece interessado em produzir de maneiras menos óbvias, ainda mais para um público geralmente marginalizado por esse cinema.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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Mascarados (Henrique e Marcela Borela, 2020)

Por João Pedro Faro

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Uma primeira diferenciação possível entre Mascarados, nova longa de Henrique e Marcela Borela, e outros trabalhos similares do cinema latino-americano contemporâneo, é a desritualização do trabalho. Diferente de filmes como La Libertad (2001, Lisandro Alonso), não há interesse em ritualizar o gesto do trabalhador braçal. A percepção desse fator é essencial a Mascarados: para os autores, a tradição, o rito do trabalho, não exalta o trabalhador, ela apenas valida a exploração.

O tradicional trabalho das pedreiras, típico da cidade de Pirenópolis que serve de cenário ao longa, não gera nada além de exaustão ao trabalhador explorado. Mascarados é um filme curto, mas de muitas imagens, de planos breves e estáticos que ressaltam o sentimento de apatia e marasmo vivido pelos membros da pedreira. Nesse contexto, surge a festa do Divino e seus mascarados. Os trabalhadores que querem participar da festa usando máscara continuam cerceados, sofrem a imposição de um fichamento individual, fica marcado como eles se tornam uma ameaça ao poder vigente a partir do momento em que não estão mais de uniforme. Não há festa, não há cultura que comporte um espaço para quem é condenado ao ambiente subalterno. A máscara esconde o rosto que precisa sempre ser vigiado, encarado.

O som de Mascarados também potencializa o abismo entre os planos. Uma música de Milionário e José Rico começa a tocar na rádio em um enquadramento e continua no próximo, indo do espaço caseiro para o espaço da pedreira. Uma explosão interrompe a canção, com milhares de pedregulhos caindo da montanha, marcando a chegada de mais trabalho para os pedreiros. As marretadas nas pedras são a única sintonia possibilitada. Assim, a mudança de sequências, mesmo entre cortes que fazem o tempo passar, parece contaminada por um sentimento conjunto de dominação.

É do trânsito entre esses espaços, da pedreira à casa, da casa ao festejo, que começa a emergir uma atmosfera de desconstrução das estruturas tão marcadas por uma montagem tão rígida. As máscaras usadas na festa são uma liberdade temporária, falsa, encerrada de um corte para outro que já coloca os trabalhadores novamente no ambiente de exploração. A câmera, dentro da festa, circula livremente pelos pedreiros que finalmente são vistos como algo além da força usada para aumentar as riquezas de quem os explora. E isso se encerra de um plano para o outro. O trabalho é contra a cultura, e a cultura é do domínio de quem impõe o trabalho, portanto não há como perdoar cultura alguma. Ela atrasa a revolta.

A demissão encerra a mudança de espaços, e dela surge um ultimato. Não há mais escape pelo festejo, a máscara é trocada por uma espingarda e ela movimenta todo o plano final. Entre um plano e outro reside uma sensação amplificada pela sequência das imagens, de uma certeza e uma precisão para o encaminhamento final do longa. O homem, não mais o trabalhador, atinge um estado de liberdade com a arma na mão. Atravessa um cercado, em uma imagem final sísmica de fuga. O plano se alonga pela floresta, em uma correria que vai contra todo o marasmo das imagens criadas anteriormente na obra. Não há apatia possível quando se está livre do domínio, sem as máscaras, sem as tradições, sem qualquer rito que seja. Apenas um último momento de intensidade onde o sujeito se reconhece como possibilitador da própria liberdade.

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Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, 2020)

Por João Pedro Faro

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Em dado momento da cerimônia de abertura da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, quando convocavam ao palco os apoiadores do evento, um representante da Polícia Militar foi chamado para integrar o grupo. Recebido com aplausos, o comandante fardado foi bem recebido pelo evento, sendo a PM Mineira listada como “parceira cultural” da mostra. Nos próximos dias, o que ocupou uma grande parcela das telas foram longas e curtas denunciando a ação policial, especialmente da PM. Cadê Edson?, de Dácia Ibiapina, é talvez dos exemplos mais claros e diretos que expõe o terrorismo de Estado imposto pela polícia.

Sendo dos mais “tradicionais” documentários vistos na Mostra, com cabeças falantes e legendas que localizam o espectador no tempo-espaço, o longa busca centrar-se em um protagonista. Edson Francisco da Silva, figura de liderança do Movimento de Resistência Popular, é filmado entre 2012 e 2018 em suas ocupações e discursos, passando pelo golpe de 2016 até a eleição do atual presidente. De início, sua forte presença parece ser o guia narrativo do documentário, junto com o caso da remoção do grupo que ocupava o hotel Torre Palace, promovida brutalmente pela PM brasiliense em 2016. Quando o filme progride, Edson perde o lugar que havia construído no longa, com uma condução desfocada que perde-se em imagens que a cercam.

A quantidade de trabalhos documentais recentes sobre os caminhos tortuosos vividos na política dos últimos 4 anos exige que novos lançamentos criem cada vez mais personalidade. Cadê Edson?, ao mesmo tempo, carrega ideias muito próprias (estudo de protagonista, uso de imagens não registradas pela equipe) e rende-se ao “lugar comum” encontrado nesse tipo de longa. Quando se afasta do seu personagem-título, a sensação é a de que estamos vendo as mesmas imagens que vimos em todos os outros filmes que circulam pelo mesmo momento político. A divisão do verde-amarelo e do vermelho, os personagens que encaram o planalto central e as falas absurdas dos trio-elétricos direitistas são alguns exemplos que tomam tempo de tela em um filme que parecia buscar enquadrar momentos e pessoas pouco vistos em outros projetos similares.

O título acaba sofrendo da ironia da direção, pois Edson desaparece dos registros à certa altura do longa. A falta de um foco tão claro acaba com a firmeza inicial da diretora, que parece querer totalizar uma narrativa que era tão forte justamente por estar focada em um ambiente menor e mais concreto. O que há de poderoso nas imagens ao fim do longa, razoavelmente entrecortadas pela presença do protagonista, é o uso dos registros em drone feitos pela polícia em sua ação de violência contra os membros do MPR que ocupavam o Torre Palace.

Dácia parte da reapropriação das imagens policiais: o drone busca tornar heroico o ato da polícia covarde, mas suas intenções iniciais são completamente subvertidas pelo contexto apresentado. Os helicópteros, lotados de policiais armados, sobrevoam um grupo de ocupantes do MPR desarmados, tratados como criminosos de alta periculosidade. É gratificante em ser impiedoso na exposição do antagonismo policial, um maniqueísmo justo e condizente com a premissa da obra de Dácia.

Mesmo bagunçado e desfocado, Cadê Edson? é mais bruto e enervante do que a maioria dos trabalhos que circundam um atual momento político. Não há relativização possível da presença policial, registrada como assombro, como terrorismo declarado pelas próprias imagens feitas por agentes policiais em operações, apropriadas de seu discurso de origem e expostas sem o filtro tenebroso do bom-mocismo. Um trabalho de erros e acertos mas que nunca dá o pé atrás no que acredita, nunca higieniza uma realidade tão sórdida.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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