Festival de Brasília: Elegia de Um Crime (Cristiano Burlan, 2018)

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Dê à câmera um filme

Por Pedro Tavares

Em certo momento de Elegia de Um Crime, Cristiano Burlan, diretor e protagonista na posição de investigador e emulador da câmera, diz que só consegue realizar filmes como forma de vingança. Aí está o ponto principal da trilogia do luto: como a realidade o serve melhor, portanto. Elegia de Um Crime encerra uma trinca que investiga as mortes de pai, irmão e mãe do diretor, respectivamente. É notável que a partir deste raciocínio o filme só tenha a ganhar na medida em que Burlan só tem a perder.

Elegia de Um Crime, portanto, é um thriller investigativo antes mesmo de um documentário sobre sua família. Apresenta seus personagens, rumina o crime e seus desdobramentos e vai atrás do desfecho. Nos primeiros planos de filme Burlan exibe a noção do macro: tenta, via telefone, iniciar a busca pelo assassino e é embarreirado pela burocracia. Quebra, portanto, o fluxo de uma narrativa de escusas a favor do ritmo e a conduz com a realidade. Involuntariamente, o diretor é incorporado a um enredo tipicamente brasileiro – a cultura da tragédia, nossa destreza para resolver interesses pessoais e principalmente como todos estamos entregues à insegurança. É uma forma expositiva de deslegitimar a ideia de filmes como vingança e se aproximar do ideal realista que o documentário propõe.

O compromisso de Burlan é com sua família e é dela que tira os momentos mais expressivos do filme, porém é inevitável que se construa um contraponto na análise do todo: para toda ternura e lamento que  Burlan registra com sua família, há um mundo nada receptivo além das grades. A invasão deste mundo para dentro do cômodo familiar se dá numa espécie de reconstituição que a câmera e seu emulador se recusam a completar. É o inevitável envolvimento do protagonista com sua história. Curiosamente, há um momento no qual é nítido o desconforto de Burlan para “atuar”, atestando a duplicidade que o filme carrega.

Elegia de Um Crime por mais que se recuse, faz da morte entre suas articulações o mote para um panorama da iniquidade que rege o país; Burlan é o iconoclasta de gêneros e o híbrido o símbolo de um antagonismo referente ao assunto. Quanto mais se busca em Elegia de Um Crime, menos se acha, pois sua mensagem está estipulada já nos primeiros quadros. Tampouco um thriller ou um documentário. O filme começa na utopia e se prolongará nela. Não se trata de um maneirismo, tampouco desobediência à procura de justificativa – é um reflexo comum a todos na busca pelo inalcançável, ou seja, pela justiça.

Visto no 51º Festival de Brasília

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Festival de Brasília: Los Silencios (Beatriz Seigner, 2018)

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Interpelar o presente

Por Pedro Tavares

Um filme quimérico para promessas dolosas. Los Silencios é despudorado sobre suas intenções diretas. Apropria-se do real como suporte principal de seu comentário, um lamento sobre a ausência em múltiplos pontos, especialmente o político. Não se trata da facilidade de falar sobre escassez pela sensação, mas inclinar a câmera sobre ela.

Curiosamente corre o sério risco de associação ou mimetismo aos filmes recentes de Apichatpong Weerasethakul ou Carlos Reygadas por sua abordagem onírica, porém Los Silencios aborta a poesia concreta como forma de anotação social ou circuito da memória latina – ainda que aqui caiba a ressonância de um século de crises e exílio; os silêncios são presenças-chave, físicas, que ganham diferentes significados em suas aparições. Com esta lógica alegórica, o que o filme faz é interpelar o presente a partir do inconformismo. Um tipo não agudo, mais próximo da lamúria que da ação propriamente dita.

Portanto, partir desta dicotomia guarda a moral ao espectador: estar de costas para sua matéria-prima pode ser um ato político, ainda que a comunhão seja exterminada, a relação se dá no espaço entre eles. A superfície que permite abordagens múltiplas, ir de um polo a outro e não cumprir o que está configurado para filmes essencialmente políticos. Na mesma medida em que se está na utopia, também estaremos na mais desgarrada realidade. É um filme ciente de sua pré-existência em outras mãos. O reorganizar por Beatriz Seigner é pela fábula, mesmo que seja o conto que explicará o pesar para todo um povo – aqui representado por uma criança.

Ainda que os problemas de articulação sejam evidentes neste espaço provocativo e que por vezes esteja interessado mais na ambiguidade nítida deste mundo recriado – quando as interferências dão muito mais resultados -, Los Silencios reforça a ideia de mundo em decadência. Feito para seguirmos obedientemente suas associações e correlações como forma de recapitulação geral: a fábula da agonia e a visualização de desejos que invariavelmente serão frustrados, afinal, se cabe o século passado neste filme, logo estaremos diante de mais um desencanto.

Visto no 51º Festival de Brasília

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Festival de Brasília: Os Jovens Baumann (Bruna Carvalho Almeida, 2018)

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Exumação

Por Pedro Tavares

Os Jovens Baumann abre com uma sequência de momentos que o coloca entre os filmes-diário de viagem de João Pedro Rodrigues e a cartografia nostálgica de Andrea Tonacci em Já Visto, Jamais Visto. Este conjunto de cenas de jovens numa fazenda é interrompido por uma entidade maior que a câmera. A voz, a direção. É dela, a investigadora literal das imagens que afirma a condição real desses jovens.

Parte-se deste ideal a outro: se estes jovens foram anunciados como mortos já no início do filme, o outro ideal é a fantasmagoria do dispositivo no qual são filmados. A câmera VHS, referência máxima das décadas de 80/90 aqui sinaliza a aura que se registra. O horror é sugestivo. O cotidiano de jovens ricos na fazenda da família a aproveitar as férias nada mais é que a exumação de seus corpos – fantasmas no registro do tempo. É o diálogo direto do dispositivo ao espectador, portanto.

A Bruna Carvalho Almeida cabe montar estas imagens supostamente aleatórias, como se retiradas de um saco de fitas embolorados, e montar a lápide de cada um desses jovens. Não há tempo para qualquer identificação maior com esses personagens – o que interessa mesmo ao filme é o seu tempo: a simulação do intocável, ou seja, do passado. A nostalgia, no caso, é um sentimento e também uma manifestação. São corpos a vagar em uma dimensão enquanto a câmera registra outra: a vida. Movimentos, vozes, gargalhadas. Tudo aqui está empilhado em forma de imagem, pronta para enterrá-los novamente.

Exumar esses corpos em forma que os aproxime da realidade – ou da existência – coloca Os Jovens Baumann antes de tudo como um filme sobre o lugar que se filma: a ampla fazenda é um local que é fértil não só para o plantio de café. São pistas muito singelas, boa parte delas em forma de diálogo, que Bruna Carvalho Almeida aponta para onde o filme vai. E se a voz sempre foi o suporte principal, é ela que desvenda quando o epílogo se aproxima. Mais uma forma de transformar epitáfio em espectros de um dispositivo que delimita tão bem linguagem e tempo – novamente estamos diante dela, a nostalgia.

Visto no 51º Festival de Cinema de Brasília

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Festival de Brasília: Calypso (Rodrigo Lima, Lucas Parente, 2018)

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Deterioração

Por Pedro Tavares

No campo de análise de uma situação política (não em total pureza), é necessária alguma distância. Em Calypso, filme de Rodrigo Lima e Lucas Parente, essa distancia é física. O Rio de Janeiro, à distância, em decomposição, é campo para diversas reflexões sobre a história recente do estado e a perda de identidade. Nos limites justos do filme – não só por seus 60 minutos, mas no espaço que filma e nas poucas evidencias de abordagem, há um campo vasto de alusões políticas e existenciais.

Curiosamente, há diálogo indireto com filmes recentes de dois integrantes da equipe do filme: A Origem do Mundo de Moa Batsow e Garoto de Júlio Bressane. Os três filmes unem performances e matéria como campo ideal para discorrer sobre um mundo em crise, cada um a seu modo, evidentemente. No caso de Calypso, a língua que não é mais a nossa, os elementos como terra, fogo e ar, as idas e vindas dos aviões que se aproximam da Baía de Guanabara e principalmente as imagens de arquivo cimentam um estado de perplexidade, sobre não mais reconhecer o lugar em que se vive.

Em primeira visita, Calypso parece uma amplificação do sentido de O Espelho, primeiro longa de Rodrigo Lima: um lugar, diversos sentidos. Aqui o caos não é crescente e já instaurado no lugar filmado. Seu tratamento literário dá mais espaço à vitalidade misteriosa freudiana da imagem viva através da montagem e da manifestação. São traços alusivos aos fantasmas que nunca seguirão raciocínios lineares como um reflexo direto ao caos da metrópole do outro lado da baía. Um raciocínio que distribui força às alegorias de modo justo – dos corpos à natureza, todos terão o mesmo valor e impacto.

De aura urgente, Calypso pode ter a estirpe de um filme instigante, mas seus métodos são naturais ao gênero vigente. Cabe mais o diálogo de uma realidade sufocante que uma provocação estética, já que nunca será possível questionar o que as imagens realmente querem, pois a imagem seguinte dará as respostas de maneira palatável. É uma forma de articulação considerável, consciente, que dispensa o fetichismo da beleza da imagem – o último plano do filme deixa claro como a contemplação nesse sentido estará em segundo lugar – para entronizar a mensagem e não o meio.

A possibilidade de reverberação do momento em que vivemos no filme serve como um legado tão pertinente quanto qualquer aventura estritamente narrativa e/ou estética. Juntá-las em sua não integralidade e coloca-las em equilíbrio – mesmo que seja como via de acesso para um raciocínio simples: o exílio é a solução. Ache o seu exílio.

Visto no 51º Festival de Brasília.

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Festival de Brasília: O Pequeno Mal (Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune, 2018)

temporada-andré-novais-oliveiraDois Godard

Por Pedro Tavares

Uma conversa telepática entre o Godard pré e o de pós maio de 68. O Pequeno Mal é um filme-diagnóstico que está sempre no limiar da intimidade e do manifesto. Com isto, fica a inevitável associação por signos que legitimam o caos que vivemos. A escolha dos diretores Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune é de transformar o filme numa reação automática ao que se vê e vive. O caos urbano, a sufocante rotina e o desespero para se amar e ser amado.

A construção mística de um sentido é a catapulta para o confronto com o real – é possível remeter a Rivette e Hal Hartley no ideal cosmológico, mas o modo de viver a vida é godardiana. Um filme que está sempre para o corte como amparo desses signos da desordem: a impossibilidade de estabilização – em diversos sentidos – que ganha forma de trauma. Não há um só caminho que não leve a ele. Pertinente à direção pessimista que nunca se descontrola, O Pequeno Mal apenas ensaia uma variedade de abordagens com o apoio da linguagem – o corte – como uma sugestão anárquica ao que se conta. É o confronto da situação pronta versus os personagens à deriva, andando em círculos que reconhecemos como rotina.

É o fim da utopia da forma mais curiosa possível – a bricolagem que sufoca a radicalidade como reflexo de um mundo de desarmonias. Este pedido de atenção e submissão à imagem ao mesmo tempo em que se testemunha sua consumação reverbera um sentido comum no cinema brasileiro contemporâneo, entrelaçando a distância e a capacidade de síntese de argumentos puramente sociais. Diminuir ou acabar com o abismo que separa a existência e a ideologia e coloca-los na mesma linha pela ilusão; não há espaço para as duas em cena, portanto a solução de Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune é a fusão, como uma ponte que soluciona – supostamente – problemas locomotivos em uma cidade.

Em primeira visita, O Pequeno Mal é um filme que apenas sugere seu sentido pelo reordenamento e reencenação – a troca de lugar, gostar do que não se gosta, etc. É o caso de concretizar o que é flutuante pelo simbólico e manusear a certeza, um claro princípio do cinema, como uma constante. A famosa cachoeira de Humberto Mauro aqui chega intervalada, como uma possibilidade cognitiva sobre a vida na cidade. E não deixa de ser uma operação relevante.

 

Visto no 51º Festival de Brasília.

 

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NÃO À CASUALIDADE: Experimental Film Society, Tao Films e Slow Cinema em tempos de Internet.

Por Pedro Tavares

Phantom Islands (Rouzbeh Rashidi)
Phantom Islands (Rouzbeh Rashidi, 2018)

Se há a chance de chamar este notável bloco de filmes e autores de “nova onda” para o slow cinema – termo sempre a questionar -, é possível também notar muitas semelhanças entre eles. Ainda que fortemente influenciados por nomes como Abbas Kiarostami, Béla Tarr e Chantal Akerman, este grupo se associa a estes artistas por outros vieses.

A maior força para eles está na internet. A Experimental Film Society e a Tao Films, produtoras e distribuidoras de filmes online reúnem uma gama expressiva de cineastas e filmes com o mesmo caráter: o não à descrição excessiva, a expansão do outro e a entrega dos limites do drama à câmera e não aos personagens – logo a concessão a quem vê. Filmes como Osmosis, do grego Nasos Karabelas, e Inside, de Vicky Langan, e Maximilian Le Cain, a exemplo, pouco dialogam na abordagem, porém arrematam qualquer possibilidade de realismo na maneira que a câmera está para os corpos a filmar. O tempo expandido, maior característica do slow cinema, está em novos códigos.

O diretor Mike Higgis em At One Fell Swoop faz um filme de horror no qual a câmera, objeto de observação e de louvor, é também o objeto de construção do suspense – é a partir dela, salientada por Higgis, que vemos uma amálgama de imagens que norteiam o diálogo com o gênero. O mesmo pode ser dito de Phantom Islands, de Rouzbeh Rashidi, um filme que entrega seu monólogo ao dispositivo – consequentemente ao espectador – e assim permanecerá livre para qualquer abordagem e associação.

 

At One Fell Swoop (Mike Higgins,2015)
At One Fell Swoop (Mike Higgins,2015)

É importante lembrar a noção de tempo em dias de internet e bombardeios de informações: a EFS e a Tao não se limitam a filmes curtos, mas muitos destes filmes são diretos, numa dicotomia curiosa. O tempo está mais em como se conta e não o que se conta. Alguns são diretos, sobre relações humanas e o mundo ao redor – a destacar o ótimo Centaur, de Aleksandra Niemczkyk. Outros são sobre a inexatidão e a partir dela que os filmes se tornam modelos de investigação: The Story of Drifting Cities, de Michael Higgins, e Du Côté de lá Réalité Immédiate, de Pierre Villemin, tiram o prazer do olhar e o instigam, cada um a sua maneira, e tiram da zona de conforto da contemplação. Esses filmes se deslocam de um rigor que se foca em fragmentos da vida para contar vidas inteiras no qual imagem e palavra se abraçam sem separação definitiva e oferecem um quadro fenomenológico para compreensão da sociedade e uso e apropriação de imagens e de dispositivos.

É um regime curioso, pois pouco vemos travellings ou movimentos despercebidos de câmera – a citar Béla Tarr. Estes filmes não são regidos pela lógica e pelo espaço e dão à câmera sua potência a fórceps, com paciência suficiente para que seus planos fixos tenham efeitos hipnóticos que contribuem para a noção da força do dispositivo. O caso mais explícito dessa noção é Distant, de Zhengfan Yang, filme gêmeo de Milky Way, de Benedek Fliegauf, que aborta qualquer possibilidade de encontro com a mise en scène clássica e aposta no espaço entre corpos e câmera como o diálogo ideal, como se o filme vivesse no fosso entre plateia e tela (ou palco). É a entrega completa da diegese ao seu aparato. Cabem as palavras de Roland Barthes, em De la Science à litterature:

  • Tecnicamente, segundo a definição de Roman Jakobson, a “poética” (quer dizer, o literário) designa aquele tipo de mensagem que toma sua própria forma como objeto e não seus conteúdos.

distant
Distant (Zhengfan Yang, 2013)

Em comum, os filmes nos catálogos da Experimental Film Society e da Tao se mantém entre o encanto e o mistério. São filmes que residem na coreografia do fantástico e não da rotina, contrariando Akerman e Kiarostami. Este ensaio sobre o outro – resumindo grosseiramente estes blocos de filmes -, ressoa no tempo que nasceu: o fluxo de memória e esquecimento como cita Marc Augé, lembrado por Christine Mello em seu texto Imagem Digital Como Memória, que questiona: “Não seria este estado de suspensão, produzido no corpo, uma tradução imagética da chamada instantaneidade contínua?” A característica da oposição à urgência dos tempos de redes sociais, contrário à percepção geral de um novo tempo, cria fissuras nítidas e provavelmente justifique a tendência fantástica ao realismo; o simulacro narra, não exibe.

Temos, portanto, empenhos distintos com finalidades semelhantes e extremamente relevantes; a tentativa de manter intacta a inflexibilidade da linguagem ao mesmo tempo em que considera a mudança de percepção do público. A Tao e a EFS servirão como porta para muitos diretores hoje patronos do que chamamos de slow cinema, como um gradual crescendo sobre a dimensão de tempo e a linguagem cinematográfica.

O cume desta escalada está na ciência da internet não como alternativa e sim como a certeza do consumo destes filmes; ainda que feitos para a grande tela – como qualquer outro filme -, o video on demand é a via para o encontro direto com o público interessado neste nicho e a construção de uma filmografia rica já assumindo a firmeza do consumo a partir do imediatismo e de uma nova identidade para o tempo. O reflexo é nítido nos filmes e contrabalancear com nada mais que uma nova abordagem para este gênero é mais que uma saída possível. É uma forma de renovo.

Links externos:

TAO FILMS

EXPERIMENTAL FILM SOCIETY

 

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OLHAR DE CINEMA: Guia de Filmes – Parte #2

Por Pedro Tavares

698954288_780x439PEGGY E FRED NO INFERNO:  DESENLANCE (Peggy and Fred in Hell: Folding) de Leslie Thornton

Ainda que este filme seja uma junção de filmes produzidos entre 1984 e 2015, assusta a potência como unidade. Este é o filme coming of age de Andy Warhol, a ficção científica possível de Vertov (para Warhol, a imagem, para Vertov, o som) e um encontro com a obra de Thornton, sempre interessada nas funções básicas do cinema – interpretativas, significativas e assertivas.

698954288_780x439A NAÇÃO MORTA (Tara Moarta) de Radu Jude

Duas experiências: ver e ouvir. Ouve-se um diário de um médico, que nada mais é que a reverberação da situação de um país entre a 1ª e a 2ª guerra. A destruição da Romênia não está nas imagens, espécie de irregular mescla de fotos chocantes e tons acinzentados e sim na audição.  Este é o caso de uma divisão tão nítida que é difícil encontrar equilíbrio. O que se vê é impactante, mesmo que pareça um slide, mas o que se ouve é um depoimento em monocórdio, desinteressado, em oposição às imagens.

olhar de cinemaDRVO – A ÁRVORE (Drvo) de André Gil Mata

Ainda que Tarkovski seja lembrado por todo filme, fica mais evidente que o filme de Gil Mata entoa prólogo e epílogo para O Cavalo de Turim de Béla Tarr. Um filme que parte das mesmas angústias e do invisível para uma dicotomia sobre o indizível – falar sobre o que não é possível fora contemplar e se entregar. Um belo filme.

olhar de cinemaSACO SEM FUNDO (Meshok Bez dna) de Rustan Khamdamov

Contar um conto. O tributo à fala pelas imagens cria um embate em crescendo muito curioso entre a palavra e a imagem e nem sempre esta batalha cria momentos relevantes. Fica o deleite visual, mas pouco sobra além disso.

olhar de cinemaMÃE PRETA (Black Mother) de Khalik Allah

Uma versão transcendental de Field Niggas. Allah é menos bruto, ainda que repita o mesmo modelo, e mais interessado em questões históricas e espirituais que chegam ao mesmo ponto de partida de seu filme anterior – força e intolerância – com extrema beleza.

olhar de cinemaUM ABRAÇO NA SORORIDADE (Yours in Sisterhood) de Irene Lustzig

Filme completo como uma parabólica sobre o feminismo e o tempo – e como infelizmente nada mudou a respeito disso. Por outro lado, é curioso como o filme de Lustzig fala mais quando as palavras silenciam. O momento mais forte aqui é quando há uma placa ao fundo, após um depoimento, que diz “Por Deus, pelo país” que justifica um bloco inteiro de depoimentos sobre uma nação doentia.

olhar de cinemaFABIANA (idem) de Brunna Laboissière

Curioso como o filme após alguns minutos vira um jogo sobre adivinhar as  motivações reais de Fabiana. Em cada ato e palavra questiona-se intenções de Brunna Laboissière e como a saturação do método documental do chamado novíssimo cinema  brasileiro derruba o filme. Pouco interessa ao filme o que há em Fabiana de verdade, suspostamente uma figura exótica em um mundo masculino e sim o que ela representa – outro grande pilar saturado do cinema brasileiro contemporâneo.

ochaleeumailhaO CHALÉ É UMA ILHA BATIDA DE VENTO E CHUVA (idem) de Letícia Simões

Entre um filme de caráter observacional e um filme-carta, o que se extrai daqui é a coragem de Letícia Simões em expor as fragilidades desta congruência. Elas de certa forma potencializam a proposta de tributo a Dalcídio Jurandir, por onde os dois caminhos escoam e se justificam. Não é um filme de apenas momentos brilhantes numa simples matemática, mas os que possui são marcantes.

olhar de cinemaEULLER MILLER ENTRE DOIS MUNDOS (idem) de Fernando Severo

Como diz o título, Euller está em dois extremos e os dilemas são comuns. Eles se tornam mais ainda pela frontalidade que Fernando Severo trata do assunto. As questões tornam-se mais práticas que filosóficas e mais uma comprovação que uma motivação para o futuro – não há mais o que perguntar e sim fazer. Mais um necessário grito de urgência que um filme.

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OLHAR DE CINEMA: Guia de Filmes (Parte 1)

Por Pedro Tavares

olhar de cinema

A CASA LOBO (La Casa Lobo) de Cristóbal Leon e Joaquín Cociña

Nos moldes de Jiri Barta, Leon e Cociña fazem uma aventura surrealista e soturna sobre o pesadelo materno. Muito mais dependente de seus vislumbres imagéticos e as possibilidades que o stop motion cria para este mundo que apoiado numa narrativa de fato, A Casa Lobo impressiona em seus primeiros minutos, o que vem depois é um ciclo de tentativas de renovação deste primeiro impacto, sem tanto sucesso.

olhar de cinema

A FLORICUTURA (La Fleurière) de Ruben Desiere

Um diálogo muito simples entre campo e extracampo como metáfora entre política e sociedade. O muro que separa ambos é o mesmo que separa o banco e um assalto. Numa floricultura presos a um plano de roubo, homens discutem a sociedade enquanto cavam o buraco para tal ação subversiva – antes mesmo de um ato de pura ilicitude em um mundo capitalista. Da imigração às guerras, estes homens, enquanto esperam se transformam no que falam.

olhar de cinema

HOMENS QUE JOGAM (Playing Men) de Matjaz Ivanisin

Coreografia da irracionalidade. Estudo do inquestionável comportamento bárbaro de homens em jogos e esportes com a distância necessária como comentário bem humorado sobre o que se exibe e principalmente a construção de uma simples questão: e se esta energia estivesse canalizada para outros fins?

olhar de cinema

SOL ALEGRIA (idem) de Tavinho Teixeira

Alegorias do subdesenvolvimento ou a grande chanchada europeia. Repleto de referências e ilustrações, Sol Alegria funciona quando é um teatro libertino sobre o Brasil e inexiste quando se aproxima de uma pureza visual ao dialogar com a função da imagem.

olhar de cinema

LA PELÍCULA INFINITA (idem) de Leandro Listorti

Eulogia do cinema argentino em uma colagem de trechos e supostas inovações visuais. Em 50 minutos de filme, Listorti se perde na repetição e o filme se resume ao experimento e não ao que deseja expor. Em muitos casos o processo é mais interessante que seu resultado, o que não é o caso aqui.

olhar de cinema

VOCÊ JÁ PENSOU EM QUEM ATIROU? (Did You Wonder Who Fired the Gun?) de Travis Wilkerson

Wilkerson e o senso de culpa e justiça americana numa confissão familiar que a todo o momento resvala no extracampo. Wilkerson é mais que um talking head invisível; ele é testemunha e diretor de um thriller policial involuntário. Um híbrido de formas e sentidos com grande força histórica.

olhar de cinema

NOSSA LOUCURA (Our Madness) de João Viana

Arquitetura e coreografia da morte – do cinema – e como a guerra impede sua ressurreição. A poesia neste caso é a salvação e o protesto em um momento crítico para a humanidade não é só para a arte e carrega uma forte dose de questionamentos sobre o racismo e a posição dos negros dentro da arte. Um filme muito pertinente para nossos tempos.

olhar de cinema

NOSSA CASA (Watashitachi no ie) de Yui Kiyohara

Espécie de conflito pessoal versus conflito-tempo num filme que nada faz além de criar um crescendo muito duvidoso sobre relações emocionais. Emula Kyioshi Kurosawa em nível rasteiro, mas a Yui Kiyohara cabe dosar a sensibilidade à narrativa.

olhar de cinema

DJON ÁFRICA (idem) de Fillipa Reis e João Miller Guerra

O grande acerto do filme de Fillipa Reis e João Miller Guerra é o de abrir mão de todas as possibilidades que o filme encontra para um drama e se fixar num road movie de códigos simples. Neles há um mundo mais propício às interpretações livres, mas ainda suportadas pelos conflitos de seu protagonista.

olhar de cinema

O VISTO E O NÃO VISTO (Seskala Niskala) de Kamila Andini

Um poema sobre o luto. A parte que se vai e a metade que fica – ambos com suas baladas à natureza. Um filme sobre irmandade e cumplicidade e o que está ao redor significa em tempos nebulosos.

olhar de cinema

A FEITICEIRA VIÚVA (Xiao gua fu cheng xian ji) de Cai Chengjie

O filme fantástico de Lav Diaz. Cabe à câmera de Chengjie a posição de grande comentarista das ações numa dicotomia lamento-ironia como um panorama social de um vilarejo repleto de humanos à margem. A figura da feiticeira é como o condutor moral – é à frente dela que este homens se ajoelham e buscam redenção, mas a questão que Chengjie sempre pauta silenciosamente é como a consciência se esvai rapidamente  em um ambiente inóspito.

olhar de cinema

PARA ALÉM DE NÓS (Al di lá dell’uno) de Anna Marziano

Jonas Mekas comenta o amor. Colagens imagéticas e sonoras como forma de argumentar os tempos de caos e como o sentimento deixa de ser torrente para objeto de louvor. Uma bela nota poética, ainda que sofra com os limites impostos por Marziano que em alguns momentos esquece o norte para comentar o lado sombrio do tema.

olhar de cinema

ANSIOSA TRADUÇÃO (Nervous Translation) de Shrieen Seno

Construção de um mundo de solidão pelo olhar de uma criança na década de 80. A criação de um mundo próprio com suas obsessões e necessidades de sobrevivência é única e para filhos únicos. O filme de Shrieen Seno mais parece um espelho sobre a criatividade que faz o tempo passar e a companhia de um aparelho de rádio que um grande conflito.

olhar de cinema

MINATOMACHI (idem) de Kazuhiro Soda

Este é o sétimo filme de observação e investigação de ilhas pesqueiras japonesas de Kazuhiro Soda, mas ironicamente o filme funciona mais quando Soda justifica a presença da câmera por sua persona. Nas conversas, algo perto do que Eduardo Coutinho fez em O Fim e o Princípio, é que o diretor tira a concretude do que filma – a rotina daqueles que vivem da pesca e comércio numa vida pacata, mas que denota o fim deste estilo de vida.

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Entrevista: Robert Mockler

1A Behind the Scenes

Por Pedro Tavares

Como cineasta independente em tempos de mudanças extremamente rápidas, Like Me é o projeto de uma vida, mas um projeto volátil, possível de adaptação conforme essas mudanças e interpretações de mundo através de dispositivos eletrônicos. A melhor solução está no filme: usar os dispositivos como grande suporte narrativo. Conversei com o diretor Robert Mockler sobre o processo e sua relação com câmeras, celulares, YouTube e afins que colocaram Like Me como concorrente ao prêmio do júri no South by Southwest em 2017.

  • Começo com uma questão pessoal: Há muito tempo não via um filme de gênero que lide de forma tão frontal com a imagem e sua função e me impactou bastante – me remetou a uma aproximação dos valores de Videodrome. Como foi a composição deste mundo lisérgico de Like Me?

Isso é ótimo de ouvir. Videodrome foi uma grande influência. O filme levou um bom tempo para se desenvolver. Houve diferentes versões do roteiro ao longo dos anos, mas sempre houve a ideia do surreal e do imaginário, no qual é muito ligada à perspectiva da protagonista. Eu quis explorar a solidão de quem estava prestes a explodir com uma crise existencial e que se rebelara contra um mundo absurdo e sem equilíbrio. O imaginário é informativo a partir de seu estado emocional volátil e do mundo construído em sua cabeça.

  • Há proto-interlúdios muito interessantes no filme, alguns flertam com a vídeo-arte, outros com a função do vídeo e um deles é um irônico tutorial do YouTube. Como se deu o equilíbrio entre elas e a narrativa durante a montagem do filme?

Muito do balanço do filme veio durante o processo de escrita. Mas, claro, nunca se sabe como essas coisas ficarão até começar a colar uma peça na outra. Foi mesmo uma questão de tentativa e erro e sentindo o fluxo das coisas pela experimentação até Jessalyn Abbott, meu parceiro na edição, e eu, sentirmos a energia certa para transmitir as ideias que nos interessava.

As montagens surreais são como mergulhos profundos no cérebro de Kiya. A intenção era transmitir um tipo de existência fragmentada e abrir uma janela para um fluxo de emoções. Às vezes, as emoções colidem de forma dissonante e desagradável. A realidade de Kiya persiste em ser capturada, editada, curada ou suspensa com certo estilo. Simultaneamente, ela está em guerra com sua própria biologia. Seu senso de identidade é confuso e obscuro e sua percepção do mundo é aumentada pela adrenalina, raiva, alienação, vazio, etc. Coisas que lutei toda a minha vida do meu próprio jeito e continuo a lutar.

Há também o senso de sufoco pela informação – o sentido de sempre consumir alguma coisa. Esse consumo é revigorante e doente ao mesmo tempo. Essas ideias e sentimentos foram pretendidos nessas sequências.

2A Behind The Scenes

  • Falando sobre imagens, no filme há diálogo direto com seus dispositivos, texturas, etc. Do celular à câmera HD e ao VHS – uma espécie de desencanto e articulação sobre a geração atual. Como foi lidar com esta dicotomia profundidade vs. superficialidade para tirar dela a coesão narrativa?

Foi complicado. Nós estávamos cientes que poderia ser mero exercício de estilo. Exploramos um mundo e uma cultura que à primeira vista pode ser composto por superfícies que levariam à conclusão de simples estímulos. De qualquer modo, nós tentamos explorar mais que vísceras. Mas, claro, quem quiser pode assistir e experimentar apenas as camadas.

  • Como complemento ideal, Like Me tem aspectos visuais muito fortes. Fala-se muito das referências de Dario Argento, principalmente nas sequências passadas em hotéis. A presença de Fessenden remete a um histórico de filmes de terror, sem contar à citada referência a Videodrome. Pode nos contar mais sobre suas bases para chegar até Like Me?

Eu amo Suspiria e foi uma influência no início. As Pequenas Margaridas de Věra Chytilová foi uma forte influência. Eu e Jessalyn assistimos diversas vezes durante a pós-produção. O uso de cores e a edição de Věra Chytilová foram especialmente inspiradoras. Ela criou uma linguagem afetuosa e intoxicante única que influenciaram muito as montagens surreais que nos referíamos antes. Sempre fui fascinado com o surreal. Amo filmes que constroem seu próprio mundo. Interessa-me quando o mundo emana a cabeça do protagonista. Tim Burton, Jodorowsky e Jean Cocteau são importantes para mim nesse sentido.

Enter the Void do Gaspar Noé teve um grande impacto em mim. Parecido com o impacto de 2001: Uma Odisséia no Espaço. O filme de Noé me fez repensar as possibilidades do cinema.

  • Recentemente o filme foi lançado em vídeo on demand enquanto ainda estava em selecionadas salas de cinema dos EUA. Já que Like Me é um filme sobre o consumo incessante de imagens, você vê o consumo de filmes através de aparelhos celulares? Acha que o homevideo hoje é a melhor saída para suprir a deficiência de distribuição de filmes independentes?

Não sei, realmente. O que posso dizer é que não gosto da ideia de filmes vistos em celulares. Me parece impossível imergir em um filme desta maneira. Eu gosto muito de assistir esse clip do David Lynch sobre o assunto: https://youtu.be/wKiIroiCvZ0

Home theaters estão cada vez mais sofisticados, então parece uma opção. Claro que os resultados podem variar. Eu gosto que a tecnologia oferece ferramentas para cineastas independentes alcançarem o público, mas eu gostaria que filmes “menores” encontrassem mais salas de cinema.

Acredito que nada pode alcançar a experiência de assistir a um filme no cinema. É o mais próximo que podemos de dividir sonhos com estranhos. É mágico.

3 A behind the scenesLeia mais: Desespero Lollipop: Desmistificando a imagem em Like Me

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CAMOCIM (2017) – Quentin Delaroche

Por Pedro Tavares

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Como uma grande jornada de coadjuvantes, oposto a boa parte dos filmes da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Camocim tem como objetivo investigar os novos protocolos e cartilhas de campanhas políticas. Longe de Entreatos (João Moreira Salles, 2004) e mais próximo de Aprendi a Jogar com Você (Murilo Salles, 2015), o filme de Quentin Delaroche se debruça nos meandros que mantém a cabo eleitoral Mayara longe de escândalos e o entrelaçamento que micro e macro oferecem na briga entre “azul” e “vermelho”, como uma grande gincana política.

Mesmo com o objetivo de Mayara em levar o amigo César Lucena à vitória na campanha para vereador, há a grande questão da idoneidade, ainda que toda ação esteja ligada mais ao circo que ao pão e água: são micaretas, festas e o famoso jogo de corpo a corpo. Mayara está longe de uma personificação nestes casos; seu objetivo é a vitória, mas a inevitabilidade de estratégias mais festivas coloca sua postura em cheque. Esta duplicidade entre a ordem e o sucesso é muito funcional no filme de Quentin Delaroche. Ela leva à afirmação da importância de toda conversa política entre os moradores de Camocim de São Félix, independente de seus fins. É o pensamento sobre a dimensão de cada palavra e gesto numa briga folclórica.

Portanto, quem se adequa é o olhar; Camocim é um filme que aceita seus entornos e regras no princípio e escolhe a observação como melhor caminho de testemunhar este espelho do macro que é esta campanha/gincana, colocando, finalmente, a política como status de jogo de interesses maiores e Mayara é conscientemente uma peça deste jogo com a noção de que suas ações tem um limite moral e de tempo. Caso vença, César seguirá sozinho, caso perca, a consciência de Mayara estará limpa. E à câmera de Delaroche interessa somente esta encruzilhada moral e existencial de Mayara, ainda que o passado da cidade esteja permeado nos eventos com certo negativismo.

Tanto Quentin quanto Mayara lutam, em diferentes formas, para não se adequar à arbitrariedade que este ritual impõe. Não se trata de sobrevivência e de iconoclastia, mas de significados imensos – exibidos em retalhos como um grande retrato do Brasil. Camocim, portanto, concretiza o momento sem restaurar o passado do país. O interesse geral está nos gestos que compõem significados sobre o estado crítico que o país se encontra; ainda que Delaroche não procure ostensivamente a saída, ele entrega aos jovens este caminho quando Camocim deixa de ser um fluxo de imagens políticas para ser enfim, um filme sobre pessoas.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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LEMBRO MAIS DOS CORVOS (2017) – Gustavo Vinagre

Por Pedro Tavares

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O espaço da sala de Júlia, a personagem
de Lembro Mais dos Corvos, denota todo sentido do filme: Júlia está sempre pressionada em algum canto do cômodo. Uma forma de defesa que é logo interrompida por Gustavo Vinagre, pois sua câmera lutará por toda duração para coloca-la como centro, como protagonista, sempre em close. Há mais um sentido nesta batalha imagética: a grande brincadeira de questionar a veracidade de tudo que é visto.

Nesta duplicidade, é Júlia quem se destaca como grande personagem. O pilar necessário para que este exercício se sustente. A sala, uma zona mística para que Júlia exponha sua vida – um grande mosaico sobre intolerância e amor – na gangorra entre distopia e um controle de alegorias como o escape necessário para que o filme não seja um grande panfleto, remete à sala de aulas que Eduardo Coutinho investigou a vida de alunos de escolas púbicas do Rio de Janeiro em Últimas Conversas. Mas se no filme de Coutinho a insegurança e questionamentos sobre o que o público quer ou não ver e ouvir estava na direção, em Lembro Mais dos Corvos este peso está em Júlia.

Ainda que tudo cerque a função de humanizar sua personagem, isso não significa que o filme esteja engessado ao processo.  Júlia, uma grande atriz, com palavras, modifica o ecossistema do plano, como se sua sala fosse um grande chroma key e existisse a possibilidade de levar, pelas mãos, o público a lugares distantes. Novamente Coutinho vem à mente, pois em seu último filme, desejava entrevistar crianças em busca da pureza e da completa verdade e em Lembro Mais dos Corvos parece que este desejo poderia se realizar com um adulto – ainda que no cinema tudo esteja em cheque: o próprio dispositivo, o corte, a claquete, as roupas, bebidas e claro, as palavras.

Centralizar Júlia vai além da demanda dramática e de toda mensagem embutida em seus depoimentos. A insônia da personagem, tal qual o filme, é mais um obstáculo a se passar. Em extremos como estes citados, o espectro de uma parabólica sobre o macro, àquele que Júlia observa de longe, com uma câmera, com binóculos ou através de suas reconstituições em filmes, é o que interessa a Vinagre. Colocar Júlia da mesma grandeza que o mundo.


Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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BAIXO CENTRO (2018) – Ewerton Belico, Samuel Marotta

Por Pedro Tavares

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Como forma de registro da aura do centro de Belo Horizonte, Ewerton Belico e Samuel Marotta fizeram de
Baixo Centro dois filmes distintos; há uma capa de ficção científica – na forma de registro de ruas, vielas, passarelas, passagens e na atmosfera que a cidade é composta. Há também um filme slacker que se aproxima muito do cinema de Pedro Costa, em principal aos filmes do início de carreira do diretor português.

Esse slacker é, de longe, mais interessante que a sugestão de uma ficção científica, de um mundo apocalíptico e abandonado. Quando Belico e Marotta investigam seus personagens através de citações e articulações verbais – ou encontros para se recitar um estado de espírito, Baixo Centro é um filme gigante. Em contraponto a dupla sente a necessidade de um registro soturno, algo próximo à sensação de ter a câmera-fantasma numa cidade fantasma. Entre altos e baixos dessas apostas, Baixo Centro é um filme de estruturas sólidas e pouco sofre narrativamente com estas mudanças.

São transições radicais, mas que entre si traçam certa identificação com o desejo de declarar diversos sentimentos em relação a Belo Horizonte. O teatro formal que produz as vidas sem rumo e de poucos desejos de ação reforçam a densidade de um ensejo político e como ele está numa bifurcação muito interessante, mais interessado em seguir o caminho do filme e não de seguir uma necessidade maior que muitos filmes contemporâneos têm feito.

De certa maneira, Belico e Marotta colocam em prática a máxima de Farocki, transformando velhas imagens com um novo sentido. O filme das vielas é um teatro, o urbano, a ficção científica, e, entre eles, uma grande concepção de discurso político e como isso guia as ruas de Belo Horizonte diariamente como palco da sobrevivência e de manifestações: Belo Horizonte que é destinatária de uma grande carta de amor.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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DIAS VAZIOS (2018) – Robney Bruno Almeida

por Pedro Tavares

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Dias Vazios, à priori, é um filme de referências. À medida que o filme se desenvolve, surpreende como Robney Bruno de Almeida suspende o arco dramático para que essas referências estejam sempre inerentes ao que se vê e, a partir disso, construir o conceito básico do filme: a tragédia adolescente dos anos 90 e 00.

Como pilares narrativos, embaraçados em cada quadro estão a morte de Kurt Cobain, a chacina de Columbine e a HQ A Morte de Super-Homem, lançada nos idos dos anos 90.  No campo, o encontro que fundamenta o conto comum da juventude entediada em ambiente inóspito, reféns do tempo e da religião refletem desejos altamente arriscados. Dividido em três atos, o filme usa com clareza cada um desses pilares como uma espécie de confronto à possibilidade de construir uma vida neste ambiente. Ora de caráter ilustrativo, ora transformado em verbo e também como ação concreta, Kurt, Columbine e o Super-Homem aqui vão além de suas representações na cultura pop, respectivamente.

Nesta engenharia de encadeamentos, Dias Vazios em muitos momentos deixa de ser intuitivo, uma obra que sugere os espaços para os gritos de socorro, mas tende a ser burocrático como uma cinebiografia, pelo desejo da materialidade em uma história sobrenatural. De tentar eliminar toda força iconoclasta construída para se tornar um filme de desejos frontais, diretos à imagem como instrumento básico – a arma que é apontada, a página virada, os discos e cruzes. É um filme que não sugere a extensão desse círculo, da inospitalidade e da autodestruição como meio de fuga – para Robney interessa o uso do tempo e da angústia como suporte, apenas.

Os entornos de Dias Vazios não seguem o conceito de imortalidade. A ideia de eternidade deste sentimento é abortada. O ciclo acabará, pois a cidade também chegará ao fim, por mais que se reze. Portanto, ressiginificar os gestos também não é uma opção para o olhar como uma contradição à proposta principal. Os códigos do filme são moderados tal como sua mise en scène, para, nos minutos finais, novamente, encontrar um caminho estreito e a declaração de um fracasso iminente para seus personagens, mas não para o filme.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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ARA PYAU – A PRIMAVERA GUARANI (2018) – Carlos Eduardo Magalhães

Por Pedro Tavares

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Nos primeiros minutos de
Ara Pyau – Primavera Guarani logo é confirmada a tendência de distanciamento à possível comparação aos seus filmes-irmãos, ao menos de tema. O recente Martírio (Vincent Carelli, 2016), a dobradinha de Andrea Tonacci Conversas no Maranhão (1977) e Serras da Desordem (2006) e Taego Awã (Marcela e Henrique Borela, 2016). Surpreende que a estrutura seja o principal elo com a mensagem de resistência do filme. As primeiras imagens, enganosamente de um cotidiano feliz, formam uma mera apresentação.

Invocar um épico, um clima de batalha é o que Ara Pyau – Primavera Guarani faz. O filme apresenta seus personagens, motivações, preparação e enfim, a tão aguardada batalha contra o sistema. Manter o território e consequentemente suas tradições e a dignidade estão na segunda camada que o diretor Carlos Eduardo Magalhães constrói. Portanto, o objetivo, está em outro plano; interessa mais ao diretor o processo. Captar o que está entre atos ou sugerir a importância delas para passos maiores. Um espectro é construído a partir disto, longe de talking heads, estatísticas e imagens de arquivo – quando usa é em forma avançada, como o áudio de um jornal da Rede Globo para explicar, já próximo ao final do filme, sobre contra o que se protesta.

Essa tendência fica mais em evidencia quando o grande confronto está por vir: a trilha, os planos, os cortes; Ara Pyau – Primavera Guarani não é mais um documento sobre a opressão do governo paulistano e sim sobre soldados em prol de um objetivo. A guerra é verbal e veloz, uma espécie de contraponto a tudo que o filme se propõe. Quando existem ações, elas estão em função da estética e não do peso que elas trazem num contexto histórico. É o anticlímax que não esmaece o filme, mas que de certa forma diminui toda grandiosidade que Carlos Eduardo Magalhães procura. Ainda que existam outras ideias acerca desta aposta – a principal delas de colocar este problema como uma situação corriqueira para os índios -, fica uma lacuna enquanto a câmera se distância dos índios e das autoridades.

Vale o sentido antropológico que Ara Pyau – Primavera Guarani prega mais nas pequenas ações que nas palavras. E o filme constrói essas gangorras de opções diversas vezes, como se fosse obrigatoriedade cimentar as imagens pelo verbo – exibe um ritual e pouco tempo depois sacramenta a fé dos índios pelas profecias de um futuro melhor, por exemplo. Junto ao falso sentido épico, o filme se faz pendular. Que nas sugestões funciona melhor que nas afirmações.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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IMO (2017) – Bruna Schelb Correa

por Pedro Tavares

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Durante o debate sobre Era Uma Vez Brasília durante a 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o diretor Adirley Queirós afirmou o seu interesse pela negação da fala e a incompreensão. Poucas horas depois veio IMO. Um filme totalmente dedicado ao jogo de compreensão, debruçado no lugar social e o contexto histórico feminino. Surpreende que em um filme com esta proposta encadeie em sua abertura e encerramento seus momentos mais claros a respeito desta proposta. Na mesma mata, por onde os créditos passam está o suposto paraíso de onde Adão extinguirá Eva como um canibal e que oferece espaço para uma assombração.

Dividido em três atos, IMO é simples nos seus códigos – há de entender ou não, mas em algum momento a resposta virá. Mesmo que não seja a resposta desejada. E nestes códigos existem momentos muito interessantes como a opressão de um telefone sucedido por uma voz masculina que também oprime; a mão masculina que inibe o desejo – nem sempre uma maçã é o símbolo do pecado -, ou a obrigatória vaidade (se o olho te faz pecar, arranque-o).

IMO é um filme que sugere a reflexão dos componentes de sua fórmula: a História, o lado social e, entronizadas, como as performances podem potencializar qualquer intenção de discurso ao abolir por completo as palavras – um crescendo que culmina numa cena de jantar onde uma mulher é o banquete. É a ideia de que o mundo agora demanda este arquétipo, talvez o mais passível de uma compreensão não rebelada – mais como um ponto final a uma discussão que se estende nos últimos anos.  Portanto, se o gesto é a forma mais genuína e o corte o caminho mais claro para a formatação deste discurso, IMO também é um filme que invariavelmente está em função da reencarnação de um cinema como uma defesa efusiva e não como um ataque direto – provavelmente a porção mais ativa do cinema brasileiro contemporâneo.

O filme de Bruna Schelb Corrêa é, portanto, mais sobre o exercício de filmar o que se deseja e a lógica de seu valor imagético e como ele chegará aos espectadores, suficientemente vivo para justificar-se silenciosamente. À imagem, sua força e verbo. Em tempos que muito se fala e pouco se ouve, é um filme necessário.

Visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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