Entrevista: Luiz Pretti

Por Pedro Tavares

Coletivo-Alumbramento
Estrada Para Ythaca

Junho, 2020. Pouco mais de dez anos do prêmio dado para Estrada Para Ythaca na Mostra Aurora dentro da 13ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, tive a oportunidade de conversar com Luiz Pretti que, à época, junto de Guto Parente, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti dirigiu, produziu e escreveu o filme e compunha a Alumbramento. Muita coisa aconteceu para a Alumbramento desde então, inclusive o encerramento de suas atividades oficialmente como um coletivo, ainda que seus integrantes colaborem uns com os outros em seus respectivos filmes. Para o cinema brasileiro, na última década, o turbilhão foi ainda mais intenso. Da ascensão da produção de filmes independentes, cursos e mostras de cinema ao declínio que chega à máxima intensidade em plena pandemia. O que naturalmente serviria como um papo-celebração sobre o trabalho de um modelo-chave de produção independente nos últimos dez anos virou um diagnóstico sobre como a união e poesia trazem a mínima sensação de liberdade em tempos de revolta.

Começo pulando algumas etapas na linha do tempo falar sobre um momento muito simbólico para a carreira da Alumbramento que é a cena-motim final d’Os Monstros. A cena do free jazz, especificamente. Gostaria que você falasse um pouco sobre a criação e a sensação sugerida por ela.

Luiz: Cara, a palavra motim a princípio me remete a algum tipo de relação com uma força maior, geralmente representado pelo Estado, pelo exército. Nesse sentido específico, acho que não tem nenhum filme da Alumbramento com esse tipo de relação, talvez Com os Punhos Cerrados. Mas a ideia de unir forças para enfrentar os desafios impostos pelo capital, por exemplo, são o cerne do cinema feito pela Alumbramento. Tudo que foi feito lá, em alguma medida, era um pequeno levante frente à certas regras impostas pelo mainstream do cinema, como ele é financiado, etc. Todos os filmes ali têm a sua parcela e sua forma particular de fazer esse levante. Agora, sobre essa cena d’Os Monstros, é uma cena que eu tenho um carinho especial. Acho que a música de improviso, pra mim com certeza, foi uma referência muito forte sobre o que poderia ser esse coletivo. Na música a gente via uma forma de co-existir, com vozes vindas de diferentes culturas, com visões de mundo diferentes e que se encontram através da música e conseguem formar esse coletivo provisório de uma força incrível.

E o free jazz faz parte do seu processo de criação? Pois acredito que ele incita algum tipo de ordem numa segunda camada.

Luiz: Sempre conversamos muito sobre como traduzir o improviso livre musical (que é misto de espontaneidade e composição) para o cinema. Não acho que conseguimos, mas a cena final d’Os Monstros é debitaria das inúmeras ideias e tentativas. E mesmo hoje é um desafio que continua me interessando.

Os Monstros - Improviso
Improviso em Os Monstros

A Alumbramento começou em 2006, certo? Se me recordo vocês fizeram um longa-metragem filmado no Leblon…

Luiz: Sim, mas isso foi antes de irmos para Fortaleza. Ainda não existia a Alumbramento. Foi bem antes, na verdade, e se chamava A Estética da Solidão e só foi exibido na Mostra do Filme Livre em 2000. A gente conseguiu uma mini-DV emprestada com um amigo e testamos algumas coisas. É um filme muito mais de exercício, de rascunho do que exatamente um filme…

Um detalhe que lembrei agora e que acho importante mencionar, é que o site da Alumbramento, que também é um gesto de preocupação com a memória, disponibilizou os filmes do coletivo e também de realizadores do mesmo círculo. Agora com o fim do coletivo, como vocês pretendem manter a memória viva? Existe essa intenção?

Luiz: Existe, demais. O site infelizmente não está no seu melhor, precisamos atualizar alguns links antigos. O site é dividido em três seções: os filmes, os textos e uma parte de memórias, com fotos de making of, fotos da galera. O site foi criado justamente pra resguardar a memória da Alumbramento. Lá tem um link que leva para três textos diferentes, um de 2006 que escrevi para simbolizar o início do coletivo e falar sobre nossas motivações naquele momento. Um segundo texto que eu escrevi quando o coletivo passou por uma transformação com a saída de algumas pessoas e a entrada de outras, diminuindo o seu tamanho. Tentei colocar ali quais seriam as motivações dessa segundo fase da Alumbramento. E tem um terceiro texto escrito pelo Ricardo uns dois anos após o fim da Alumbramento e se esforça em fechar os trabalhos relembrando pontos chaves na história do coletivo. Os textos nunca vão dar conta do que foi a Alumbramento, mas é um desejo de guardar uma parcela dessa memória, mesmo sabendo que parte de pontos de vista específicos que não necessariamente representam os vários outros pontos de vista. Dentro do coletivo cada qual tem sua história pra contar. Eu adoraria ver essas histórias contadas, compartilhadas e preservadas.

Já que falamos de memória…há um filme inicial oficial da Alumbramento?

Luiz: A gente considera que o primeiro filme da Alumbramento é o Sábado à Noite do Ivo Lopes Araújo, lançado em 2007. Sem dúvida alguma é o ponto de partida do que veio a ser a Alumbramento. Todas as pessoas que trabalham nele fizeram parte do coletivo diretamente ou eram muito próximas, envolvidas. Sábado à noite é muito importante, pois uniu pessoas em torno de um projeto cinematográfico que buscava uma relação intensa com a cidade de Fortaleza, que era uma das questões primordiais do coletivo. Perguntas como: a gente como artista consegue intervir na cidade, criar relações entre o que a gente faz e as pessoas que habitam a cidade? Outros filmes nossos partiram desse interesse, como o Praia do Futuro…são filmes que desejavam se colocar em relação ou em conflito com a cidade. Geralmente exibíamos os filmes no São Luiz, um cinema da região central da cidade. Teve uma sessão histórica do Sábado à noite, com pessoas que embarcaram no filme, outras que detestaram, mas tinham pessoas de todos os cantos da cidade, do entorno, que entraram lá pra assistir.

Coletivo-Alumbramento
Sábado à Noite

Outro ponto importante é o Estrada Para Ythaca. Já havia uma movimentação para um “novo cinema” com a criação da Mostra Aurora, a sessão do Novíssimo cinema brasileiro que posteriormente virou a Semana dos Realizadores no Rio, mas o Estrada para Ythaca passou do circuito dos festivais e chegou ao circuito. É um marco muito importante. 

Luiz: Sim, ele foi lançado na Sessão Vitrine.  Só para não perder o fio, os primeiros quatro anos da Alumbramento foram essenciais para que o Estrada Para Ythaca pudesse existir. Foi o momento que começamos a realizar um cinema que conseguia quebrar com certas estruturas opressoras, que geralmente aceitamos de cabeça baixa, que determinam as regras para ser um cineasta…

O cinema da retomada.

Luiz: A retomada não retomou porra nenhuma. O cinema brasileiro continuou muito restrito a uma elite que já estava segurando o dinheiro, era detentora do poder em relação ao cinema brasileiro. Não foi nada democrática essa retomada. Em 2006 começa uma reação a isso, com o entendimento que o Brasil é algo muito maior que Rio de Janeiro e São Paulo. O que parece hoje óbvio, não era nada óbvio. Quando eu e Ricardo decidimos sair do Rio para ir para Fortaleza, nós éramos ridicularizados. O preconceito que existia…e eu tô falando de gente do cinema, progressista. Tinha muito preconceito mesmo. Esse movimento que a gente fez teve muita reação de piada. Bem, a gente era visto como uma piada. E falavam que a gente ia sair do Rio, onde acontece tudo…não acontece porra nenhuma! No Rio, só se você trabalhar na Globo ou na Conspiração. E eu não queria entrar no esquemão. Eu não julgo ninguém que trabalha para lá, mas acho estranho considerarem isso um grande acontecimento, um plano de vida. Eu tive sorte de ir para Fortaleza na época do governo Lula, pois permitiu que o Brasil como um todo entendesse que o país é maior que o sudeste. Em Fortaleza a gente começou a realizar filmes independentes, da nossa maneira e quebrando a lógica estabelecida. Começamos a ter alguma atenção, tinha algum desejo de conhecer o cinema fora do eixo Rio-São Paulo. E eles começaram a serem vistos nos festivais. Quando a gente lançou parecia que as pessoas se perguntavam o que tinha acontecido em Fortaleza, de repente, e achavam que o Estrada Para Ythaca era o início da Alumbramento, mas não é.

E isso ficou com claro com o interesse pelo cinema mineiro, especificamente, e pelo diálogo de vocês com os autores mineiros.

Luiz: Sim, total. A [produtora] Teia era uma referência pra gente, uma galera de BH. Isso começou com o Ivo [Lopes Araújo], o primeiro filme que ele fez por lá acho que foi O Céu Sobre os Ombros do Sérgio Borges. Depois ele fez A Falta que Me Faz da Marília Rocha, Girimunho da Clarissa Campolina…ele ficou muito empolgado com o pessoal de BH, mostrou os filmes da galera pra gente, do Dellani [Lima].

E vocês já mensuraram o tamanho dessa ação que de certa forma é contrária ao cinema da retomada? 

Luiz: Pra mim é um pouco difícil mensurar. Uma coisa que o Estrada Para Ythaca fez que eu acho muito importante, mais que conquistar circuito, foi abrir a porta do “podemos fazer filmes”. Sem precisar fazer no sistema tradicional. Acho que a nossa geração e a seguinte foi muito influenciada por esse gesto. O Ythaca, em alguma medida, empolgou a galera a fazer cinema, fazer bons filmes, sem precisar passar por todo o processo habitual. Ao invés de esperar dez anos pra fazer seu primeiro longa, essa geração esperou dois, três anos. E em muitos dos casos feito com espírito coletivo, com orçamento de curta, ou nenhum orçamento. Isso é uma quebra de paradigma. Mas não chegamos a um circuito maior, estamos num nicho. O circuito de cinema é dominado pelo mainstream e furar isso é muito difícil, ainda mais com esse cinema que fazemos.

E nos tempos de streaming a internet é um bom lugar para distribuição? Como falamos, o site de vocês sempre disponibilizou por tempo limitado os filmes…

Luiz: A gente sempre quis abrir pra internet. É um campo fértil para alcançar as pessoas. Agora tão na moda, em tempos de pandemia, mas sempre fizemos sessões virtuais. Em 2012 fizemos com os curtas. A ideia de um curta-metragem ficar preso aos festivais é muito estranha. A gente deixava por uma semana porque o tempo limitado faz as pessoas não perderem os filmes no oceano de informações. Colocamos o Não Estamos Sonhando, Dizem que os cães veem coisas, Retratos de uma paisagem. Aí notamos que seria legal ter filmes de outros realizadores com dificuldade de distribuição. Aí nós exibimos filmes do Ricardo Miranda, da Helena Ignez, Luis Alberto Rocha Melo, Paula Gaitán, Flora Dias…foi um momento ótimo. E também convidamos pessoas para escreverem sobre os filmes, tipo o Hernani Heffner escreveu sobre o filme da Flora Dias. É a ideia de criar uma cultura ao redor desses filmes. E recentemente colocamos o Estrada Para Ythaca online. O Guto me mandou uma crítica de um usuário do Letterboxd sobre o filme que é super sincera e direta, e esse tipo de retorno é o mais legal. Digo isso sem demagogia. É mais importante que o reconhecimento do festival X ou Y. No fundo o que dá sentido ao que fazemos é a troca com as pessoas, seja em pequena escala ou grande.

Sobre isso, lembro-me da primeira vez que vi o filme na mostra dedicada à primeira década dos anos 2000 curada pelo Eduardo Valente. Preciso revisitá-lo, mas lembro de referências claras ao Glauber ali.

Luiz: Sim, tem a cena do Glauber no Vento do Leste. A gente faz uma citação a essa cena.

E depois do Ythaca como foi o fluxo de produção de vocês? Havia algum tipo de planejamento “de carreira” para os longas? Visto que todos eles de alguma forma rodaram em festivais e foram lançados no circuito.

Luiz: Não, isso não era planejado. A gente nem sabia da possibilidade de carreira pra filmes. Depois do Estrada Para Ythaca a gente começou a entender que haviam espaços pra passar os filmes. A gente mandou o Ythaca pra Tiradentes meio que rezando pra passar, já preparados pra levar um não. Como depois o filme teve alguma reverberação, a gente começou a conhecer alguns festivais, outras pessoas tiveram interesse em assistir os nossos filmes, tanto aqui quanto lá fora…

E como foi essa chance de intercâmbio com o público e realizadores internacionais? 

Luiz: Uma sessão muito legal foi no BAFICI. Marcou a gente na época, abriu uma possibilidade de diálogo com o pessoal da América Latina. A gente não tem muito ainda, é uma pena. Depois da exibição a gente teve uma conversa longa, fomos pro bar com uma galera jovem, todos realizadores. E abriu-se ali uma possibilidade de intercâmbio, ideias de fazer filmes. Acabou que não rolou nada, mas no ano seguinte quando voltamos com Os Monstros, o pessoal também estava lá exibindo um filme novo chamado Hoje eu não tive Medo, que era claramente um gesto de libertação e que dialogava com Ythaca. O diretor desse filme já havia até passado um filme em Cannes. Ele se chama Ivan Fund.

E com os festivais de fora, havia um trabalho concentrado nas burocracias de inscrições? 

Luiz: Na verdade ninguém queria fazer nada disso! O Guto tinha mais paciência, chegou a fazer uma planilha com uma lista de festivais que nós exibimos os filmes, pra facilitar. Mas na hora de mandar era sempre uma bagunça…Aí gente tentou fazer da Alumbramento uma produtora respeitável, contratamos uma estagiária, a Amanda Pontes (que hoje é ótima produtora e diretora e continua trabalhando com Carol e Pedro), e ela fazia esse trabalho de organizar melhor os festivais e contatos.

E depois da Alumbramento, cada um foi fazer o seu projeto solo. O Ricardo fez um filme para a trilogia Sonia Silk com o Bruno [Safadi], o Guto fez o Doce Amianto, você se concentrou no trabalho de montador…

Luiz: É, eu sou montador. O Bruno fez o Uivo da Gaita, o Ricardo fez O Rio Nos Pertence e tem o Fim de uma Era, que é dirigido pelos. E é isso, o Guto fez o Doce Amianto com o Uirá [dos Reis] e A Misteriosa Morte de Pérola com a Tici [Ticiana Augusto Lima], fez o Inferninho com o Pedrinho [Pedro Diógenes] e com o grupo de teatro Bagaceira. Você falou em projeto solo, mas é curioso porque a maior parte dos filmes depois da Alumbramento foi feita em parceria com alguém. O Guto fez sozinho  O Curioso Caso de Ezequiel e o Clube dos Canibais, o Ricardo fez O Rio nos Pertence sozinho também, eu fiz o Enquanto Estamos Aqui com a Clarissa [Campolina], fizemos O Porto, eu, Ricardo [Pretti], Júlia [de Simone] e Clarissa. Tem um tanto de filmes…eu tenho prazer nessa troca. É um desejo de continuar fazendo filmes onde minhas ideias podem ser confrontadas com as ideias do outro. As ideias fundadoras do filme, sabe?

Coletivo-Alumbramento
A Misteriosa Morte de Pérola

E houve um fator decisivo para esse distanciamento de vocês como um coletivo?

Luiz: Acho que um fator foi a intensidade que a gente se jogou nessa parceria. Não há relação que aguente. É muita intensidade. O Guto foi o primeiro a sacar que as ideias que ele tinha não ia…ia ser demais. Ele tinha um desejo de pesquisa de cinema que dentro do nosso coletivo não tinha espaço e naturalmente foi encontrando o seu lugar para realizar sua pesquisa. A gente fez cinco longas em conjunto e vários curtas-metragens em que participávamos como equipe, mas chegou a um certo esgotamento. Ia implodir. Precisávamos extravasar para outros lados.

Há um caso interessante nessa trajetória que é o de Com os Punhos Cerrados, considerado como um comentário imediato sobre as manifestações de 2013…

Luiz: Acho que é um filme que a cada dia que passa fica mais como um reflexo do nosso tempo. Eu gostaria de aproveitar para tentar consertar certos equívocos. As pessoas acham que é uma reação às jornadas de junho e na verdade não é. A gente filmou aquilo antes, mas ele foi exibido depois. Estreou em agosto de 2013 em Locarno e a reação em torno dele foi instantânea: um filme que respondendo à 2013. Mas ele foi concebido em 2012, em dezembro. Acho interessante que a gente fez esse filme antes de tudo ficar uma merda. Quando a gente lançou o filme ainda não tinha o golpe, mas sabíamos que as manifestações não tinham dado certo. Já se via a ascensão de figuras como o Marco Feliciano, essa galera que tomou o poder aos poucos…e quanto mais eles apareciam, mais absurdo o Brasil parecia. E com isso mais sentido o filme fazia. Uma das críticas que o filme teve é que ele era muito caricato. Porque a figura do vilão, ele ficava de costas com um discurso reacionário exagerado…e logo depois disso apareceu esse pessoal com discursos semelhantes, à la tradição família propriedade. Nesse momento, o filme parecia uma reprodução fiel do que a gente vivia no Brasil. E ainda vive. Esse embate dos discursos da extrema direita aos discursos anarquistas do filme é o nosso dia-a-dia, de certa forma. Seja no jornal, nas mídias sociais…e no filme a gente dizia que a batalha estava perdida. Ao mesmo tempo insistíamos na ideia de movimento, de continuar se movimentando, como forma de continuar vivo. Eu gostaria de revê-lo para saber como ele bate hoje em dia. Acho que isso está na cena final d’Os Monstros que você comentou. A gente entendeu por via do anarquismo que a primeira transformação é a do eu. Acredito que assa transformação possa se dar pela poesia, no sentido amplo, como uma experiência poética de vida, que qualquer ser humano pode ter, uma experiência de transformação, maior…que acabar por transformar a sociedade.

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Com os Punhos Cerrados

Então temos um certo complemento ao comentário inicial dessa cena.

Luiz: Sim, e acho que o Estrada Para Ythaca também tem um pouco disso. É uma coisa muito forte que a gente tinha nessa época. É conseguir ver a arte num lugar cotidiano. Não fazer uma diferenciação da expressão artística com a vida cotidiana. Quebrar essas barreiras e é por isso que eu falo “poética” e com isso, por exemplo, viver o tempo de uma forma particular. Por exemplo, no Ythaca, viver o tempo pleno do luto. Não deixar que a máquina do capital atropele o tempo do luto. O Ythaca é basicamente sobre isso e no filme tem uma fusão entre vida e arte nesse sentido.

Como o poder da música pra sintetizar tudo isso também.

Luiz: O caso da música sempre traz isso pra mim também. Ela tem o poder…é uma coisa que eu gostaria de estudar um pouco mais.  A relação entre a música de improviso negra vinda dos anos 60 e 70 e o ativismo político da mesma época. Vejo nessa música uma forma de ação direta. É pra mim entrar em contato direto com isso que eu chamo de vida poética. Acho que não dá pra desassociar o que Malcom-X e Martin Luther King faziam na luta política daquilo que John Coltrane estava fazendo na música. E acho que isso ainda pode ser uma chave de entendimento para nós, de como podemos agir no mundo atual. Perder um pouco o sentimento de impotência. Na sessão de curtas da Sarah Maldoror, a Janaína Oliveira fez uma associação da obra da Sarah com a do o Zózimo Bulbul e ela relacionou o Art Ensemble of Chicago na obra da Maldoror com o Coltrane no filme do Zózimo [Alma no Olho, 1974]. Ela percebe um ponto de conexão entre esses filmes, realizados por dois cineastas da diáspora africana, através da música. Acho isso muito bonito. A música como um elo, como aproximação das diferentes lutas.

Isso me remete ao movimento No Wave de Nova York, que tinha ligação direta com a música de improviso e o cinema de improviso. Os filmes do Amos Poe, da Beth B…filmes sem orçamento e músicos que tinham carreiras baseadas no underground.

Luiz: Essa cultura do do it yourself conecta com certeza. O movimento punk, o movimento free jazz, o reggae na Jamaica, o funk no Brasil…

E sobre o tempo de produção/filmagem/montagem? Geralmente quando duas ou mais pessoas estão na direção a diferença de ritmo cria algumas dificuldades…

No caso do Com Punhos Cerrados, a pré, ou uma espécie de pré, foi em dezembro de 2012 e já tinha uma espécie de equipe formada. As filmagens foram no final de dezembro e começo de janeiro. Os Monstros passamos três semanas filmando. O Ivo fotografou uma parte e o Vitinho de Melo fotografou outra parte. O No Lugar Errado foi super rápido porque o grupo tinha uma janela de uma semana de ensaio da peça e a gente foi lá e filmou nessa semana. O que a gente conseguiu filmar virou o filme. O Estrada Para Ythaca foi uma semana também, uma semana na estrada, filmando direto. À noite a gente decupava, de dia a gente filmava, foi um trabalho insano. A gente editava tudo junto…passamos um tempo montando, tivemos duas ou três etapas de montagem. A gente tinha treze horas de material bruto. A primeira cena, a do bar, foi a mais difícil pra montar. A gente voltou várias vezes nessa cena. Já Os Monstros foi ao contrário, a gente montou em uma semana, pois tinha uma narrativa simples e trabalhamos com planos-sequência. Foi bem rápido.

E nessa época você começou a montar mais filmes, inclusive de outras pessoas…

Luiz: Por mim poderia ser de mais pessoas até. Eu adoro montar filmes, tenho um prazer enorme. Adoro entrar e participar de universos novos e sinto que contribuo bastante.

E aquela pergunta cliché de quarentena: conseguiu produzir alguma coisa nesse tempo?

Luiz: Sim, eu estou finalizando um curta novo chamado Jogo de Sete Lances (Perdido No Fabuloso Universo Dos Fragmentos). Eu comecei em pré-quarentena, ainda estou mexendo um pouco na imagem e no som. É um filme que fiz a partir de arquivos pessoais, dos últimos sete, seis anos. Ele tem uns vinte minutos.

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O apocalipse filmo eu: Sogobi, de James Benning

Por Pedro Tavares

Narrador não-epistolar do cinema experimental e dos filmes-ensaio, James Benning é o que Walter Benjamin chama de flâneur, um autor que armazena o tempo como uma bateria armazena energia[1]. A carreira de Benning segue abordagens minimalistas e que discutem a força da intervenção do autor. De One Way Boogie Oogie (1977), filme no qual Benning “permite” a intromissão de pedras batendo nos tapumes da cidade ou a simples presença de pessoas que não autorizam a ciência se elas sobem ou descem as ladeiras até o recente L. Cohen (2018). Quatro décadas depois, o filme fortalece o conjunto de imagem e som através de artifícios. Na observação de Benning, há sempre um deslocamento da coerência na diegese, da lógica narrativa dos planos.

Sogobi, filmado em 16mm no ano 2000, antes da partida do autor para os dispositivos digitais, é uma espécie de retorno à natureza e filmado no Central Valley de Los Angeles. É a última parte da “trilogia da Califórnia” que se complementa com Los (2001) e El Valley Centro (1999), o primeiro concentrado na zona urbana da cidade e o segundo na área desértica. Na experiência de Sogobi, estruturalista como sempre, Benning analisa não só a intervenção do homem em “tempo real” com presença de helicópteros, caminhões e trens na área selvagem de Los Angeles.

A degradação da natureza nas imagens de Benning é oblíqua; o timing de fixação dessas imagens aos poucos se embaralha, e a ideia de uma narrativa de degradação da natureza por atitudes antropocêntricas oferece diferentes perspectivas. Uma delas está nas diversas sinopses encontradas pela internet que afirmam que Sogobi filme, em 35 planos, a natureza intocada. Outra é uma afirmação do próprio realizador que sugere o olhar para “puras imagens” e também o vislumbre de uma experiência arqueológica do cinema pela estrutura utilizada pelo diretor para contemplar o movimento e a falta deste – mais precisamente, o diálogo entre cinema e pintura.

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Em primeiro plano, há uma ideia de deslocamento de Benning a respeito do cenário apocalíptico nos Estados Unidos construído após os ataques de 11 de setembro de 2001, já que Sogobi foi lançado em 2002. Uma insinuação ao que o dromologista e pensador francês Paul Virilio chama de “não-lugar”[2]. Se não existe identidade, pois não há um “lugar”, ou seja, um reconhecimento imediato da imagem, as paisagens – e degradações – registradas violam a noção de cidade em favor de um sentido, o da angústia e a certeza do fim.

Ainda sob as palavras de Virilio em The Vision Machine (1989), a rapidez serve como a velocidade central da experiência contemporânea. Vale a lembrança da mudança tecnológica que o mundo passava no momento de filmagem de Sogobi com a chegada da internet em banda-larga. A percepção do mundo e velocidade mudaria mais uma vez em rápido curso de tempo.

O que o autor faz é não se concentrar na simples descontinuidade da diegese de ação e reação de seus planos estáticos. Afastar-se da coerência dos signos estipulados por suas imagens é, neste caso, uma “desnaturalização da experiência do tempo”, a usar as palavras de Timothy Corrigan (2011).

O apocalipse de Benning é intrínseco à subjetividade pública, longe dos grandes centros e que espelha ações que está a milhares de quilômetros dali, seja nas ações do capital de destruição da natureza como na própria guerra estipulada por George W. Bush em 2001. Se máquinas, armas e câmeras fazem parte do arsenal bélico americano com diferentes funções, o autor, em seu retrato particular de uma área delineada pelo pensamento estrutural, eleva o conceito dramático de destruição geral, seja por incêndios, outdoors, maquinários que tomam as paisagens ou a coreografia do funcionamento dessas máquinas.

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Pela temporalidade de registro dessas ações, James Benning incita um tipo de lamento na observação. A destruição como caminho irreparável de um modelo social que se espelha em outros extremos, incluindo a guerra. A angústia do ato de contemplar o extermínio é possível em Sogobi, afinal não há gritos ou explosões. Existe um enganoso sentido de trégua entre homem e natureza que o autor contrasta. As intervenções de Benning levam esta representação para o espaço público, onde não há escapatória para o olhar e a ciência do caminho de autodestruição. Toda coerência supostamente funcional é orquestrada para o fim da utopia de um espaço ainda não explorado, de uma reserva natural e moral disponível para deteriorações humanas.

As imagens de Sogobi invocam um organismo que reflete ações como escoadouro inevitável. A pureza do ambiente e das próprias imagens, aqui ora adulteradas e ora intactas, comenta a irreversibilidade do trauma – antes inócuo, agora (de)formado e com funções de interesses exclusivamente humanos. A questão que cerca todo o filme é se os interesses são de fato genuínos para o funcionamento de um espaço público que está no contraplano ou se toda mutação aqui registrada serve como uma via facilitadora de motivações financeiras ou bélicas. Benning, contrariando formas de pensamento a respeito do tempo, consegue “pegar a mosca com a mão”. O tempo está capturado com a certeza que para a ganância o tempo corre lentamente.

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[1] Walter Benjamin descreveu o flâneur como a figura essencial do espectador urbano moderno, um detetive amador e investigador da cidade. Mais do que isso, seu flâneur era um sinal da alienação da cidade e do capitalismo. Para Benjamin, o flâneur , conheceu o seu fim com o triunfo do capitalismo de consumo.

[2] Como um enunciado filosófico Virilio insinuava o fim da geografia onde emergem os não-lugares e a identidade dá lugar à rastreabilidade: “Eu não posso ser sem ter um lugar, torno-me um estranho.”

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Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (Cathy Yan, 2020)

Por Pedro Tavares

birds of prey

Suprir representações de padrões sociais é um código bastante utilizado em narrativas fantásticas e, no universo particular de Gotham City – ou melhor, Nova Iorque -, há um exercício de projeção muito claro, principalmente nos vilões – que agora ganham atenção dos grandes estúdios. Pela lógica, este reflexo catapultou o Coringa de Todd Philips para o sucesso por um tipo de condecoração emocional generalizada. Para Aves de Rapina, a lógica é a mesma: a performance ideológica a seguir o fio obrigatório do produto, da obediência às normas comerciais e de um lugar seguro para estar.

No início dos anos 90 há um capítulo muito claro na ação de convergência entre ideologia e produto na cultura americana: enquanto o movimento Riot Grrl crescia na costa leste, oriundo da cena punk underground, composto basicamente por reuniões semanais entre garotas, shows, zines e convenções, a mídia rapidamente o transformou numa tendência. Se as garotas usavam códigos de reconhecimento como corações e estrelas desenhadas nas mãos, logo a revista Spin tratou de transformar em artigo de moda, por exemplo. Para encurtar a história, este empenho de releitura de um movimento feminista desembocou em estranhos elementos da cultura pop dos anos 90 como as Spice Girls e as Meninas Super Poderosas a julgar o seu ponto de partida.

Susan Marcus, que narrou os anos das Riot Grrls no livro Garotas à Frente, complementa sobre a ideia de produto: “Artistas do Top 40 não são movimentos culturais; são projeções holográficas ultra-homogeneizadas e extremamente comercializadas, aspectos de cultura que são ampliados em telões eletrônicos e levados para o ID por um cateter central. Cultura de massa sempre contém variações limpas e fotogênicas do underground, incorporando apenas o suficiente da parte “provocadora” para manter a própria relevância”.

Nesta declaração, há o lugar de habitação de Aves de Rapina. Uma variação limpa e fotogênica do underground – mesmo que ela seja a repetição ensolarada da Gotham de Christopher Nolan e de um jogo de alegorias que Arlequina por si já se encontra: uma sequência que a protagonista entra numa delegacia e dispara balas e sinalizadores coloridos, o mundo composto, o microcosmo, é tão límpido quanto um código de reconhecimento que fora transformado em elemento visual, pura e simplesmente. A destreza de subsistir num mundo sinistro e repleto de ambientes regidos por homens cede espaço para um tipo de narração infantilizada, “esperta” e pronta para subestimar a persona de Arlequina e suas asseclas em nome de algo maior e intangível. A emancipação da protagonista, à priori jogada para uma segunda camada, está mais para uma escada humorística do que um assunto a ser pautado em algum momento do filme.

Cathy Yan, em sua primeira inserção no mercado americano, opta pela provocação visual: são nas sequências de ação que toda referência à trilogia John Wick dada pela própria Yan é lembrada e sem a intensidade de Chad Stahelski. Se há alguma sugestão de sujeira e flerte com algum extremo, logo são lavados, no qual a provocação é sempre dominada por uma obrigação obscura; Se Kick-Ass – Quebrando Tudo de Matthew Vaughn, para nos atermos ao mundo dos heróis e HQ’s, já desconstruía a figura do narrador e Scott Pilgrim Contra o Mundo de Edgar Wright compôs um mundo estético capaz de unir organicidade ao postiço, o filme de Yan está mais para a aproximação mais mastigada de um discurso moldado pela a noção de produto: se nos anos 90, foram de Bikini Kill às Meninas Superpoderosas, Aves de Rapina é o ponto final desta descida.

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O lamento nosso de cada dia: Tonsler Park

Por Pedro Tavares

Se eu tivesse escutado a minha mãe, estaria em casa agora.

David Perlov

HOLY MOTORS

Uma postura corriqueira na carreira de Kevin Jerome Everson: assumir a ambição de construir, pela observação, o diagnóstico geral de uma nação. Em oito de novembro de 2016, Everson registrou em closes o curso das eleições presidenciais em Charlottesville, Virginia. De certo que o olhar de Tonsler Park é dos seus mais frontais e diretos acerca do separatismo americano, até então mais silencioso que os dias atuais e utiliza do trabalho para este comentário incisivo.

Em entrevista ao Jornal do Brasil em março de 1993, o crítico Ismail Xavier comentou sobre como diagnósticos gerais abrem campo para o privilégio das alegorias e como este reducionismo é arriscado: “(…) permite condensar muitos aspectos da experiência em poucas figuras e situações”. O questionamento de Everson resvala nas bordas da afirmação de Xavier. O que se vê é, pela estrutura, na repetição de gestos do trabalho manual, como a esperança se esvai conforme a experiência torna-se mais intensa – quanto mais tarde fica e quão perto está o terror. Nos corpos negros que mantém a ordem para que a votação corra nos conformes, fica nestas poucas figuras, justamente, o desconforto da postura daqueles que votam e que levará a América a um novo rumo social e econômico.

HOLY MOTORS

Este pensamento de 80 minutos está sob molduras, o limitando a um período, como um recorte para o estudo do todo. Por outro lado, é um filme de transparências óbvias que sinaliza na reiteração da ordem o passado dos Estados Unidos. Cabe o pensamento de Hal Foster ao comentar o “erro” de O Estádio do Espelho de Lacan:

No entanto, esse sujeito blindado e agressivo não é simplesmente qualquer ser da história e da cultura: é o sujeito moderno na condição de paranoico e até fascista. Pairando nessa teoria está uma história contemporânea que tem no fascismo seu sintoma extremo: uma história de guerra mundial e mutilação militar, de disciplina industrial e fragmentação mecanicista, de assassinato mercenário e terror político. Perante esses acontecimentos o sujeito moderno se blinda contra a alteridade interior (…) e alteridade exterior (para o fascista isso pode significar judeus, os comunistas, os gays, as mulheres); todas essas figuras do corpo despedaçado, do corpo entregue ao fragmentário e ao fluido ressurgem. Esta reação fascista está de volta? Chegou a desaparecer?

Seguindo o protocolo da edição, chama atenção no pensamento de Foster, fora o óbvio manifesto, o do funcionamento industrial. De volta ao filme de Everson, o trabalho aqui está além dos gestos mecânicos: o olhar daquele que espera na fila é imperativo e para aquele que o acompanha desde o início do dia ganha um valor completamente distinto. É na simples troca de palavras que a força histórica se constrói, a pensar no resultado da eleição. Se para a equipe filmada seus gestos são puramente funcionais e protocolares a serviço da nação, é evidente que para Everson o caminho é oposto. Como pode a ordem manter-se no ápice dos gestos políticos?

HOLY MOTORS

George Orwell, em artigo escrito em 1940, vê Jonas, o personagem bíblico que é engolido por uma baleia como um homem moderno, inquieto, impolítico e que busca abrigo da realidade na barriga da baleia. Embora o voto nos Estados Unidos não seja obrigatório, o mecanismo que reside no ato registrado por Everson é latente:  carrega em si questões morais direcionadas ao sujeito em si e não ao país como unidade, ou seja, uma fuga da realidade. O “fazer sua parte” não está no campo da serventia à pátria e sim ao patrão, enquanto aqueles que controlam o espaço para que a moral seja exercida estão jogados ao contexto histórico a cada voto.

Tonsler Park, portanto, é a observação do não-ordinário costurado pela rotina: a eleição não acontece diariamente, mas a desigualdade de todos os dias segue estampada no quadro. Esta duplicidade carregada de lamento coloca o filme como o ápice de um movimento do dia-a-dia, tão inconsciente quanto acordar, levantar e trabalhar. E para isso Everson tem uma resposta mais certeira: “Este é o meu trabalho. Trabalho de 40 a 50 horas semanais fazendo filmes”.

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Espelho na bacia das almas: Ad Astra (James Gray, 2019)

Por Pedro Tavares

Todo os estudiosos e viajantes são invariavelmente tomados de admiração por uma certa característica das formas de pensamento primitivo, completamente incompreensível para o ser humano habituado a pensar por meio das categorias correntes da lógica.

Sergei M. Eisenstein

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Há em Ad Astra um serviço muito singelo sobre o conceito de justaposição de aparências: eis um homem só transformado em discurso visual. O filme de James Gray se assume como metáfora já no trauma de um nascimento, também passível de interpretações sobre o re-nascimento e assim pavimenta conversas sobre enunciados.

O espaço sem fronteiras como antro de uma crise existencial inevitável – caberia igualmente num deserto ou numa floresta – serve como um método literário de transformar suas escolhas alegóricas, incluindo as mais simplistas, como um denso sinal de uma existência rompida. Nos resquícios dos processos mentais como o stream of consciousness e no embate direto com o exterior, Roy McBride (Brad Pitt) revisita o caminho feito em Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979) ou olha atentamente o apocalipse de Lessons of Darkness (Werner Herzog, 1992) como organicidade de seu próprio caos; organicidade esta que não escapará da visita ao espelho como forma de encontro com o divã.

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Ad Astra se costura com base nesta pedagogia de representações e como a psicologia toma proporções diferentes mesmo como um pilar intacto visto à distância. Desta maneira cria-se um embate de poder entre protagonista e sua própria noção de existência. Dois espectros, um homem, um espelho. Como redoma, a crença imutável que é o córrego mais impactante como associação aos dados antropológicos, de camadas que são passíveis do incomodo por seu perfil caricato ou morno, como a clássica associação dos closes à densidade dramática. Mas…como circular ou reelaborar um filme, ou melhor, um homem, como reflexo industrial da história?

Mediar este homem através dos cortes como um processo social ou apenas um justo lamento da solidão coloca Gray na antiga posição de Deus que o cinema emula discutida com veemência no início do século passado. Este Deus que não julga antes do tempo correto para tal e dedica-se à proteção da cria como se a sobrevivência e encantamento flutuassem com objetivos análogos, de tal maneira que a ressurreição de Roy, um homem de largos tentáculos no andar do tempo e nos avanços tecnológicos, porém, sem controle emocional, seja colocada em cheque – pelo Deus-câmera e pelo próprio astronauta.

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Desta forma, o domínio que se vê indo aos ares é o eixo de concessão de Gray para examinar de maneira mais frontal seu personagem/matéria-prima: são os pensamentos primitivos (citados por Eisenstein) a respeito da família e de um sentido de plenitude que lhe é tomado pelo seu próprio suporte de vida; a estrutura de vida que foi roubada através do tempo o faz desejar um retorno imediato no qual Gray usufrui de detalhes paralelos como reforços filosóficos e não menos visuais – a exemplo da forte presença de um primata em uma sequência. Arranjos como este levam Ad Astra a um  método específico de pensamento, que transformará o âmago de Roy em uma estrutura e não no caminho explicitamente sensorial, como a exclusiva jornada de auto-descobrimento de um astronauta.

Por esta definição que o espelho torna-se considerável ao conflito arredio de um homem que obtém a alcunha de herói e vilão concomitantemente a cada corte ou close. Do conforto à destruição, Gray possui o suporte primário da autoanálise independente da rota que a Terra tomou. No reflexo, o homem há de se analisar e enfrentar-se além de seus pensamentos primitivos.

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Tragam-me a Cabeça de Carmen M. – Entrevista com Felipe Bragança e Catarina Wallenstein

Por Pedro Tavares
Traga-me a Cabeça de Carmen M. é uma espécie de intenso filme-reflexo dirigido por Felipe Bragança e Catarina Wallenstein que em tempo hábil registra o Brasil em nova decadência pela relação passado-presente como um corpo, representado com potência pela própria Catarina Wallenstein. O filme passou por Rotterdam, Tiradentes, Indie Lisboa e entre outros relevantes festivais e conversamos com os diretores sobre questões mais pulsantes após a exibição.

Felipe, este é, de longe, o seu filme mais frontal no que diz respeito ao corpo e a cidade, apesar de ser uma matéria presente em todos os seus trabalhos. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre este regime de urgência que o filme explora neste diálogo da personagem com a cidade.

Felipe: Acho que meu impulso de cinema passa muito pela relação dos afetos de personagens com as camadas de tempos históricos acumulados nos territórios geográficos e simbólicos em que vivem. Desde o A Alegria (2010), passando pelo roteiro do Praia do Futuro (2014) e pelo Não Devore Meu Coração (2017). Especialmente cidades, pela sua escala humana e tátil. Aqui, por se tratar da ideia de um olhar sobre um território geográfico e simbólico mais amplo, o Brasil, em processo de destruição e ruína, em desaparecimento, o corpo da personagem surge de forma ainda mais determinante como ponto de sobrevivência possível, como musculatura agindo nesse vazio abismal em que o Brasil estava ameaçando mergulhar enquanto fazíamos o filme. Daí talvez a sua sensação de que o filme é mais determinado nessa relação muscular com a protagonista.

Ainda que seja praticamente impossível fugir desta pauta caótica em que vivemos, é possível dizer que este tipo de abordagem pode se repetir em um próximo filme?

Felipe: Meu próximo longa, em lenta finalização para chegar aos festivais em 2020, se chama Um Animal Amarelo e é também sobre a relação entre os afetos acumulados em um corpo imaginado e as camadas históricas que o atravessam e afetam.

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Através da figura lunar de Carmen Miranda há todo o laço alegórico do filme, que me parece uma saída muito interessante para não-achatamento do tempo pelo diálogo com o passado e também para a construção do conflito, que é um filme que não vê a luz do sol. Por que esta escolha?

Catarina e Felipe: Carmen é mesmo uma lua. Que bela imagem a que você propõe. Carmen moveu a gravidade do panorama cultural brasileiro na década de 30 ao propor de forma intuitiva e genial a antropofagia como gesto do corpo cultural brasileiro. Carmen era esse jogo de máscaras, de invenção em cima de si, de mostrar e esconder, de ir além dos limites de seu pequeno corpo de menina portuguesa de classe média baixa e moradora da Lapa. Carmen, no filme, é assim, não um objeto, mas a nossa máquina do tempo. Talvez uma máquina dos tempos. Não para voltar ao passado, nem prever o futuro, mas pela capacidade que ela tinha e tem de ser uma acumuladora de camadas culturais e históricas que construíram uma utopia de identidade brasileira, que hoje se perde, se perdeu, se liquifez em suas contradições. A Carmen que nos interessa é a devoradora de limites, demolidora de “não podes”, a mulher incrível que nas décadas 20 e 30 desafiou o lugar guetificado que a música negra brasileira tinha, e se propôs a cantar samba na rádio, a gravar samba, a propor um Brasil em que o caos, a cacofonia e a invenção por acumulação seriam o norte. Carmen Miranda foi uma das grandes inventoras do Brasil. Em sua performance de corpo, voz, rosto, foi uma das primeiras performers a construir uma persona pública assumidamente travestida, performática e foi isso que a levou a ser contratada pela Broadway e por Hollywood já na segunda fase de sua carreira, anos 40, quando já era uma figura genial e central no Brasil. Sem o acontecimento Carmen a gente não ouviria samba como ouve hoje em dia. Sem Carmen, não haveria tropicalismo nem Caetano. Sem Carmen, não haveria David Bowie.

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Talvez seja um assunto batido quanto à produção do filme, mas ainda julgo importante já que ele é inerente ao filme em si: o filme foi produzido após o incêndio no Museu Nacional, em época de Copa do Mundo e em pré-campanha para as eleições de 2018. Como equilibrar tudo isso em um filme com rigor artístico tão pulsante?

Felipe e Catarina: Resolvemos fazer o filme num impulso apaixonado de reagir ao mal-estar cultural e político instalado no Brasil ao longo de 2018. Filmamos em Julho, durante a Copa, já antevendo a tragédia política que viria, e ao longo da montagem, que se deu até final de Outubro, fomos acumulando e absorvendo elementos que nos cortavam o cotidiano. A destruição do Museu Nacional foi assim, nos tomou de assalto e foi trazida para o corpo dramático do filme. Então a solução para sua questão era apenas não deixar afetar pelo que estava em torno de nós e ir acumulando no corpo do filme.

O filme viajou por diversos países recentemente e talvez estas chagas do povo brasileiro não sejam tão evidentes para o público estrangeiro, ainda que exista o pensamento do sucesso do brasileiro em outros países e a desgraça do estrangeiro no Brasil, uma terra de eternas promessas. O que reverberou para estes públicos?

Felipe: O mundo inteiro está olhando preocupado para o Brasil e o filme tem tocado fundo nos olhares estrangeiros. Talvez o emaranhado simbólico seja mais denso para eles adentrarem, mas o sentimento de que o Brasil como território simbólico, como linguagem, parece estar se automutilando, é evidente para todos e alvo de espanto e tristeza. O Brasil é uma riqueza planetária. A antropofagia brasileira é um oxigênio de humanidades. Não é apenas uma questão local se o Planeta Terra perde o Brasil, como está perdendo.

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Uma questão mais técnica e de logística: o filme tem 60 minutos e produção independente. Felipe ja passou por modelos diversos de produção e distribuição nos últimos anos. Para “Carmen”, fora as exibições em festivais, como você pensa em chegar até o público?

Catarina e Felipe: Vamos fazer algumas sessões especiais com a nossa presença e estamos pensando em uma pequenina distribuição em algumas capitais no começo de 2020. Mas o que mais queremos agora é fazer sessões com conversas, trocas, pensamentos. Esse filme foi pensado diferente de outros, escrito e produzido em 6 meses, tinha mesmo o intuito de ser emergencial, pequeno, artesanal e humano. Então o que mais nos está interessando agora é a conversa, a escuta. Recuperar o exercício da escuta e da reflexão nesses tempos de reações apressadas, surdas e definitivas sobre tudo. Por isso talvez o filme seja um musical: a primeira coisa que se faz para recuperar ou aprender uma língua, uma linguagem, não é falar. É escutar. É sentir seus sons. Os fascistas puristas em Brasília hoje podem tentar destruir o Brasil da mistura e da bagunça e da incongruência que eles tanto odeiam, mas os sons ficam. E acreditamos que vão ecoar por muito tempo. Como a Carmen.

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A trilogia John Wick e o epílogo do homem-resposta

Por Pedro Tavares

Porque acabou a arte de contar histórias? Eis uma pergunta que muitas vezes faço a mim próprio quando me deixo ficar à mesa com os outros convivas, a passar o serão, depois de termos comido. Creio, porém, ter encontrado a resposta certa tarde em que fiquei de pé na coberta do “Bellver” junto à casa do leme, percorrendo com o binóculo o quadro incomparável que Barcelona oferecia, vista de cima do navio.

Walter Benjamin em “O Lenço”

 

Passa-se o serão, come-se à mesa. Olha-se ao redor. Movimentos mecânicos, atitudes entorpecidas como a psique humana. À saturação da análise do homem como um poço de emoções e o cinema como um diagnóstico de reflexos e narrativas, resta um epílogo. Hoje no panteão dos filmes de ação desta década, a – até o presente momento – trilogia de John Wick traça paralelos sobre o fim do homem a fim de refletir os mecanismos em prol de uma resposta imediata.

Um homem de duas demonstrações de vida ante sua palidez emocional: no primeiro filme, a relação com o cachorro – uma demonstração de vida reclusa pós-trauma e na rotina de repetições – e no terceiro filme, quando Wick enfim baixa a guarda para pedir ajuda, quando já se transformara num código sempre monitorado pela máfia. O crível e não-crível, concomitantes em extrema intensidade na trilogia transparecem pela formalidade como Chad Stahelski (em parceria com David Leitch no primeiro filme) faz de John Wick um homem em metamorfose: seus movimentos ligeiros, a falta de empatia e a crueldade como forma de sobrevivência exibem um mundo de lata no qual há outra opção senão adaptar-se.

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Por outro lado, examina-se o epílogo de um homem, da sua humanidade que se esvai em suas costas. Wick está em diversos lugares-chave para este tipo de suposição, pela relação dos humanos-espaço como as boates e festas ou uma megalópole como Nova Iorque no terceiro capítulo. Vive-se e morre sem que os outros percebam – há não ser que você carregue um código de monitoramento. Na ideia de Stahelski como um dublê profissional e que sua concentração para sequências de ação é maior, o que sobressai liricamente no esteticismo da coreografia de corpos a cair, é como incrustrada à violência está o fim destes homens. Usam os corpos com o objetivo de uma máquina.

Quando Aristóteles afirma que os personagens trágicos nos refletem de maneira mais convincente (Faber and Faber, p. 212) por provocar temor e pena, Shakespeare recusa a divisão do homem-personagem; a questão é contemporânea visto que não há um fim para os que agem de maneira programada. Wick obedece ao acaso em prol da vida ou segue um caminho pré-estabelecido para que seu corpo-mecanismo esteja sempre em ação? Em comum, está o cerne das imagens de Stahelski: o mundo entregue a interesses maiores regidos por capangas-robôs. Wick é um sistema avançado na função de aniquilar inimigos, sem esconder a angústia e emoções condensadas, guardadas para si – como se extrapolar os limites de seu programa fosse o bastante para corrompê-lo. Assim, Wick deixaria seu posto de referência para voltar a ser um homem.

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Wick em NYC.

Voltemos à relação de Stahelski aos panos de fundo de sua trilogia. É notório que o diálogo com elas é o de reflexos e de constante diluição. Não surpreenderia caso Wick aportasse em um algum momento em uma sala feita de chroma-key. O que temos até então são os salões espelhados que servem para referenciar Orson Welles e colocar Wick e sua angústia em cheque enquanto os inimigos estão por trás de seu reflexo.

Deleuze diz, a respeito do cinema, que “somente quando o movimento se torna automático que a essência artística da imagem se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações no córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral” (1990, p.189). Traçar o paralelo do automatismo e a percepção do mundo de Wick com seus movimentos a partir destas vibrações – estímulos – que se confundem com disciplina ou com um cavalo com antolhos; o que se tira desta duplicidade cruel é que a beleza do mundo cyberpunk de Stahelski desemboca no pessimismo do que é contemporâneo.

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A casa dos espelhos

Wick, portanto, deixa de ser uma coluna ou puramente um alicerce narrativo em favor da narrativa que levará homens a deitar das mais variadas formas de violência; Wick é a breve metáfora do choque sequencial, da reação imediata e inconsciente. Recebe-se a tarefa-estímulo e ela será executada como um irrefletido ato em um ambiente que passou a barreira do leviano e flutua conscientemente na distopia.

A arte de contar histórias hoje se encontra entre o lamento e a constatação com o prazer acoplado à adaptação: Wick, um homem-resposta é o arquétipo do mundo preso ao gatilho, prestes a ser puxado. A trilogia de John Wick é, portanto, uma história ou a reconstituição voyeurística da queda da máquina como um revés imposto por seu pendurado fio composto por humanidade?

Conclusão nos capítulos a seguir.

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Olhar de Cinema: Guia de Filmes – Parte #2

Por Pedro Tavares

uma corrente selvagemBANQUETE COUTINHO (Josafá Veloso)

“Eu fumo cigarros e às vezes faço uns filmes”. Coutinho como sempre parte do seu lado depreciativo mas que acha lacunas de admiração sobre seus filmes numa conversa tipicamente Coutiniana entre reclamações e dúvidas. O filme parte da ideia que Coutinho sempre fez o mesmo filme de maneiras diversas e com arquivos muito protocolares. Está longe da descoberta sobre qualquer particularidade do saudoso mestre, mas vê-lo novamente é sempre prazeroso.

uma corrente selvagemDIZ A ELA QUE ME VIU CHORAR (Maíra Buhler)

Buhler emula os filmes sobre instituições a partir de um suposto silêncio em que a presença da câmera não consegue suportar – e isto não levanta em nenhum momento qualquer questão sobre o comportamento de seus objetos de estudo. Não são corpos em performance e sim corpos disfuncionais em uma rotina de autodegradação, o que faz dessa observação um processo aterrorizante.

uma corrente selvagemDOMÍNIOS (Natsuka Kusano)

Filme-processo que cria tensões em ciclos. A cada novo ciclo, uma nova informação para este processo de construção de mise en scène e de uma narrativa. No alto de seus 150 minutos o filme lentamente torna-se um palanque de saturação para o próprio processo.

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A COR BRANCA (Afonso Nunes)

O filme é uma espécie de silogismo composto por distanciamentos incômodos que se justificam como dormência existencial-social num país guiado pela corrupção. Aos poucos Afonso Nunes transparece este raciocínio dialético inchado enquanto julga os limites do filme suficientes para uma crítica previsível.

uma corrente selvagemESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR (Marcelo Gomes)

O filme flutua entre extremos como uma retórica do controle. Há tamanha confiança em seus personagens que Marcelo Gomes entrega seu filme a eles e isso é um gesto e tanto na mesma medida em que o filme se coloca com o passar do tempo numa encruzilhada que se basta no cotidiano de ações modestas e depoimentos elásticos. Este paradoxo caberia numa simples análise de perfeito encaixe, mas há a ciência que em toda ópera há um protagonista e é nele, o diretor, que se hospeda o verdadeiro maestro.

uma corrente selvagemNONA – SE ME MOLHAM EU OS QUEIMO (Camila José Donoso)

Há entre as citações imagéticas a Brakhage um proto-thriller de encaixe de peças que tira a montagem como elemento técnico para entroniza-la como componente filosófico da construção de um estado de espirito da protagonista que reside entre a rebeldia e o pessimismo. Curiosamente ajustá-la à justificativa por um gênero cinematográfico emagrece o discurso de Camila José Donoso, que por alguns momentos toma o caminho da gratuidade e tem respostas mais imediatas.

casa_leticiasimoes-2CASA (Letícia Simões)

Um filme sobre consciência que caberia em diversos formatos – o mais pungente é um drama familiar – que Letícia Simões penetra com noções muito particulares de sua carreira como cineasta e artista, do documentário às artes plásticas. O que está em jogo é como toda frontalidade pode ecoar durante o filme e Casa é muito bem sucedido nos limites da intimidade para amplificar um sentimento geral.

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A MULHER DA LUZ PRÓPRIA (Sinai Sganzerla)

Espécie de filme-antítese involuntário: elucubração em torno da obra e legado de Helena Ignez que não permite o retorno ao passado mesmo com toda chancela dos arquivos e diagnósticos feitos pela própria Ignez em voz off. Há um abismo entre o que é exibido e o que é dito, com franca frieza de Ignez a narrar sua própria vida, o que é um elemento muito curioso e incômodo.

uma corrente selvagemENTRE DUAS ÁGUAS (Isaki Lacuesta)

Amálgama de três personagens – dois em cena e um fantasma – e a total suspensão da tensão sugerida de um possível thriller. O desgaste emocional serve como um córrego muito bem estruturado por Isaki Lacuesta para transformar o filme numa espécie de internalização da moral e o contracampo como extensão de consequências do passado.

uma corrente selvagemINDIANARA (Marcello Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel)

Ainda que todo formalismo genérico do filme se justifique pela urgência do tema, o que realmente há de valor aqui é a força de Indianara como protagonista e como o filme registra esta força além da justificativa de um filme dedicado a tal persona. Outro grande trunfo é como Barbosa e Beaumel fazem do externo um monstro incansável que ganha uma face no terço final do filme.

61337048_2325752854377189_9112645576645672960_oCHÃO (Camila Freitas)

Entre a possibilidade de registro da câmera observadora e a intromissão autoral de um documento didático, residir entre eles não é das melhores ideias. A possível teia política torna-se extensiva quando o filme deixa de ser um retrato das ações – sempre intrinsicamente políticas – do MST para declará-las como atos oficiais, apresentando seus inimigos e seus modus operandi e suas consequências.

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Olhar de Cinema – Guia de Filmes #1

Por Pedro Tavares

uma corrente selvagemUMA CORRENTE SELVAGEM (Nuria Ibañez)

A tensão sexual como mediadora – ou corrente – da observação do cotidiano de dois pescadores que Nuria Ibañez recorta de forma bastante interessante: estes homens podem estar sozinhos no mundo ou criaram um antro à parte onde a vida mecanizada do trabalho serve mais como uma performance, de corpos contra sua própria natureza.

uma corrente selvagemDANIEL (Marine Atlan)

É admirável todo poder que Marine Atlan dá a corpos infantis à câmera. Nunca subestimados, sempre no limiar do fim da inocência e do abrupto horror da vida adulta, Daniel seria o equivalente ao filme infantil de Brisseau. É um filme que se distancia da morte mas nunca para um tipo de celebração da vida e sim para lamentar perdas precoces.

espero tua (re)voltaESPERO TUA (RE)VOLTA de Eliza Capai

Aqui um óvni intrigante sobre as manifestações de 2013 e seus desdobramentos até a posse de Jair Bolsonaro. É um filme ideal para exibição na MTV ou compartilhamento em redes sociais pela sua vitalidade, dinamismo e por todo seu didatismo jovial, embora se saiba que a grande rede o guardará como um registro histórico e não como um filme – no caso, a Globo, produtora do filme. A impressão é que o filme está deslocado, mesmo com a urgência do assunto e que levanta a questão sobre o significado de “urgência” e se ela já se transformou em “estado”.

uma corrente selvagemCINZAS E BRASAS (Manon Ott)

Entre duas formas, se destacam as ações ante à palavra para exibir como o trabalho suga e rege a vida das minorias na França. Certamente um filme que apesar de referenciar a Sylvain George, é muito menos histriônico e condensado e justamente por toda essa simplicidade de realização tende a criar veracidade às imagens colocadas em consideração.

um-filme-de-verão-jo-serfatyUM FILME DE VERÃO (Jô Serfaty)

Leia o texto completo sobre o filme.

espero tua (re)voltaNÃO PENSE QUE VOU GRITAR de Frank Beauvais

Os filmes de pesquisa/arquivo hoje chegam ao ponto de se pensa-los como um protocolo. Beuvais faz um recorte de sua vida – nunca se sabe da veracidade do que é narrado – e a partir dela utiliza imagens de filmes como um analogia de sua segurança na própria pesquisa, como se a contingencia nunca fosse possível num mundo imerso em imagens e a pensar em Farocki, é possível sempre criar novos significados. O que não é bem o que Beauvais faz aqui nessa espécie de filme de encaixes.

espero tua (re)voltaPAHOKEE (Patrick Bresnan e Ivete Lucas)

Ecos da metodologia de Frederick Wiseman na observação de uma instituição que reflete um microcosmo que sempre está às escuras: uma comunidade na Flórida composta majoritariamente por negros e imigrantes. Bresnan e Lucas registram usam o último ano de alunos no colégio como instrumento de reflexo social de um costume tipicamente americano: o fim de uma era e a hora da mudança para um novo estado.

uma corrente selvagemSETE ANOS EM MAIO de Affonso Uchôa

Três blocos performáticos para entoar a violência do estado que partem de uma simplicidade atroz. Do jogo do plano/contra-plano ao uso do corpo em função óbvia, surpreende que Uchôa use corpos e palavras para objetivos tão frontais e consequentemente inocentes.

happy-family-1548902TEL AVIV EM CHAMAS de Sameh Zoabi

Buscar um tipo de mensagem acessível pela luz que se joga na discussão sobre a opressão implícita. O filme de Sameh Zoabi parte de um bom argumento, mas o coloca em dimensões e campos tão maleáveis que seria possível tirar diversos filmes dali. Há essa noção tanto que o filme em certo momento brinca com a possibilidade de ser um “filme infinito”, justificando pela sua matéria-prima, uma novela sobre um amor improvável entre um judeu e uma palestina.

A031_C011_0812KDA NOITE AMARELA (Ramon Porto Mota)

O filme de horror dO Som e a Fúria. Exemplar de credo na exequibilidade da imagem e seus efeitos conforme a mesma se dissolve – literalmente – em outras formas, principalmente em glitches. Na mesma medida, a atmosfera de horror vai de um proto-slacker nos minutos iniciais a um suspense juvenil do cinemão americano no terço final. É notável a versatilidade de Ramon Porto Mota para domar tantos fios, ainda que a objetividade do todo se resuma a estes exercícios.

um-filme-de-verão-jo-serfatyA PORTUGUESA (Rita Azevedo Gomes)

Um trabalho impressionante de distanciamento que torna a culpa masculina como uma miragem para toda eternidade; filme muito coeso para transferir toda historicidade embutida em seu tema como reflexo e comentário assertivo sobre a masculinidade através de uma personagem de contornos complexos sempre justapostos ao panorama histórico.

happy-family-1548902SEGUIR FILMANDO (Saeed Al Batal, Ghiath Ayoub)

Começar o filme com análise detalhada de um plano de Resident Evil de Paul W.S Anderson e com um corte parar na guerra da Síria elimina um longo caminho de argumentações e discussões sobre guerra e espetáculo – principalmente como suas emulações deixam de ser assertivas. Ainda que o norte seja de nunca desligar a câmera – que no acaso arrematam sequências brutais que inevitavelmente se justificam dentro de uma “normalidade” difícil de digerir. Batal e Ayoub gastam tempo com olhares além dos limites da zona de guerra que tiram a ideia de que todo filme dado à câmera é experimental e sobre seu alcance.

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ILHA (Ary Rosa e Glenda Nicácio)

Leia o texto completo sobre o filme.

happy-family-1548902ÉTANGS NOIRS (Pieter Doumolin & Timeau De Keyser)

Um fiapo narrativo que parte da desconfiança geral – dos personagens ao espaço filmado – para compor uma sobreposição de gêneros cinematográficos muito interessante, guiada principalmente por um thriller fantasma composto de corpos e luzes. Talvez o mais próximo que o cinema independente chegou de um filme de Michael Mann.

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VIDAS DUPLAS (Olivier Assayas, 2018)

Ao estranhamento

Por Pedro Tavares

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Há em Vidas Duplas, longe da sugestão do título nacional, a dicotomia que envolve a tradução da famosa sensação de estranhamento Freudiana, que também a coloca como uma sensação de desrealização e alienação. O estranhamento, a princípio, parte de como Olivier Assayas escapa de um fluxo de filmes incisivos para uma espécie de ironia sem reconciliação com o espectador. Vidas Duplas, numa associação primária – imagética e narrativa – é um filme dado aos eixos do cinema comercial francês, de cotidiano, traições e conflitos agridoces, ideal para que o escapismo ganhe algumas dobras para que seja considerado como um “ponto fora da curva” deste nicho. Cenas-chave para isso são as que Assayas reúne seus personagens num espaço teatral, opta por filmá-los geralmente de cima, como a visão de Deus e pouco faz além de plano e contra-plano. É o ensaio incisivo e a prática frouxa. Nestes espaços, geralmente cobertos de copos com bebidas ou pela natureza do litoral francês, costumeiramente, filmes desta estirpe oferecem entrelaçamentos com o conflito e o golpe de Assayas aí reside.

O primeiro estranhamento geral, a pensar na trajetória do autor, é como Assayas provém um filme mecânico, onde sua posição é adormecida e que a espera geral é que exista um ponto de equilibro entre a psique e o modus operandi. Pois se vemos um filme “analógico”, o conflito aqui é literalmente digital – costurado por dispositivos eletrônicos e por boa parte do filme vagantes e invisíveis. Há, obviamente para o questionamento ético destas práticas modernas, mas o que é interessante nas opções de Assayas é como o comportamento digital é diluído nestas presenças, como estes corpos são gradualmente dominados por uma obrigatoriedade comportamental imposta por estes dispositivos e como a vida tem uma nova interpretação. Esta é uma abordagem relativamente nova para o cinema, ainda acostumado a associar aparelhos eletrônicos com o futuro e Assayas o coloca no presente, como uma peça dominadora, como uma extensão da belíssima cena de perseguição construída por SMS em Personal Shopper.

Parte daí a necessidade de um conciliador que Assayas não oferecerá. Vidas Duplas é um filme-diagnóstico e pouco faz além de coloca-lo na montanha russa do cotidiano. Reside nas conversas, nas oscilações de humor, nas inseguranças e principalmente na metamorfose ética dos personagens sem que sejam necessários suportes para estas mudanças; o mudar do dia é o suficiente para que estes personagens tenham novos avatares, novas formas de pensar e agir.

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O grande estranhamento, portanto, não é do que o filme tem a oferecer e sim do que se nega a compreender; é um tipo de conclusão em que o desprezo serve de um reflexo imediato, a pensar que o homem ainda está a dominar a máquina, mesmo que ele esteja num móvel longe e que estes personagens consigam ler e conversar por alguns momentos sem a interferência dos celulares. Os rastros deixados por eles são lineares, de uma ponta a outra do filme e é comum que um filme sem pontos altos e baixos de conflitos criem tanta resistência e o que Assayas faz é dar o primeiro passo.

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A fábula do autor-animal: Alex Cox e a trilogia do ridículo

Por Pedro Tavares

“Nós nos achamos no direito de rodar, de vez em quando não filmes de alto custo,

e sim filmes que produzem filmes

Dziga Vertov

Seguindo o conceito de senso comum antropomórfico da básica literatura infantil que em sua função elementar carrega a moral como norte, fica a lição do autor-animal: faça você mesmo. Para compreender melhor a ideia do autor-animal, é preciso voltar algumas páginas de sua história, ou melhor, anos.

O jovem realizador britânico Alex Cox que fizera até então o curta-metragem Edge City (Sleep is for Sissies) (1980) como trabalho de conclusão de curso na Univeristy of California em Los Angeles estava prestes a “ser” um diretor, com estrutura, planejamento e ideia de projeção. Repo Man tinha um acordo com a Universal de produção e distribuição. Após o processo caótico de filmagem, vale a elipse para a insatisfação número um de Alex Cox sobre o descaso de produção e distribuição do filme, que passou cerca de 130 semanas em cartaz num pequeno cinema no oeste dos EUA e rendeu louros para a produtora/distribuidora. O mesmo descaso se repetiu no decorrer do contrato para três filmes que fora concluído com Sid & Nancy (1986) e Walker (1987).

Neste momento, o lado animal toma conta do autor. Já dotado de insatisfação o mercado – incluem-se críticos, festivais, produtores e associados -, por notar o desinteresse geral pelos filmes no Festival de Cannes à época da première de Sid & Nancy, quando o secretário de cultura francês ganhou mais aplausos que o próprio filme em sua estreia, Cox mudou sobre a indústria que se espelharia nos resultados lúdicos e espirituosos na trilogia do ridículo que veremos mais pra frente.

Com o tempo, Alex Cox tornou-se persona non grata em Hollywood, principalmente por usar a gordura da dinheirama prevista para Walker para fazer um spaghetti western chamado Straight to Hell (1987), enquanto a Universal resolvia burocracias políticas para que as filmagens de Walker prosseguissem.

Walker narra a história de William Walker, um mercenário que se autoproclamou presidente da Nicarágua em 1856 com intuito de dominar o país pela ditadura. Durante as filmagens, Alex Cox se envolveu com as questões da Frente Sandinista de Libertação nacional que pôs fim à ditadura estabelecida em 1936. Outro imbróglio foi o envolvimento de Alex Cox com questões éticas e políticas da Nicarágua durante a filmagem, no qual a produtora não concordava e pedia um ponto de vista mais condizente com o mercado americano. Não demorou para que o autor-animal fosse banido de quase todos os grandes festivais por expor os interesses maiores que os próprios organizadores destes eventos.

Imobilizado pelos grandes canais de divulgação, Alex Cox se encontrou nas produções independentes, com investidores mexicanos, japoneses, um fã holandês e, claro, fazendo o trabalho sujo: escreveu roteiros encomendados, incluindo o de Medo e Delírio em Las Vegas (1998), dirigiu séries e filmes para TV, como O Vencedor (1996), com o intuito de produzir e finalizar seus projetos. Desta longa temporada, saíram filmes notáveis como El Patrullero (1991), Death and the Compass (1992) e Three Businessman (1998). Vale citar o trabalho de apresentador e curador da série Moviedrome da BBC, onde introduziu filmes de Nicholas Ray, Sergio Leone, David Cronenberg, John Carpenter, Edgard Ulmer, entre tantos outros nas noites de domingo em TV aberta.

A trilogia do ridículo

A trilogia é indireta: seus meios são mais importantes que a própria narrativa. Tampouco se trata de uma aventura estética generalizada, mas um discurso da necessidade. A retórica da inspiração cria a fábula da consciência: não da moral, mas da noção de seus limites, de certo heroísmo que envolve a prática, de um retorno no raciocínio quase infantil do cinema em realizar sonhos. Este retorno também segue o pensamento que Joris Ivens já grifava em “Documentário: subjetividade e montagem”:

(…) Odiávamos aquilo que chamávamos de “grande indústria”. Não gostávamos de trabalhar para o grande capital; o que mais queríamos era fazer trabalhos independentes. Queríamos se capazes de fazer nossos filmes conscientemente, porque acreditávamos ser essa a mídia artística do educador. Nossos patrocinadores são muito especiais (…).

Composta pelos filmes Seachers 2.0 (2007), Repo Chick (2009) e Bill, The Galatic Hero (2014), a trilogia do ridículo parte do equilíbrio entre mente e matéria. São filmes que não desmoronam por necessidade de condições melhores e que levam a impossibilidade para o campo.

Searchers 2.0 foi co-produzido por Roger Corman e foi filmado em mini-DV, pouco antes da grande proliferação dos aparelhos de telefone celular. Como o nome entrega, a grande referência de Searchers 2.0 é o faroeste, apesar de boa parte do filme se passar na estrada e ter abordagem saudosa e cômica, principalmente por criticar a Motion Pictures of American Association (MPAA), o militarismo, os processos de filmagem da grande indústria, etc. É o caso de reduzir seu escopo para a ambivalência de voz e imagem, que desemboca num confronto final típico dos faroestes que exime a necessidade de balas e se torna um belo quiz sobre filmes do gênero. Este é um dos polos de duplicidade da chamada trilogia do ridículo: tratar temas espinhosos sob a manta fantástica justificada pelos limites – financeiros, principalmente. Neste caso, o caso de amor de Alex Cox pelos faroestes torna-se um suporte ainda maior para a ideia do autorismo, uma vertente muito forte em sua carreira que vai de filmes como Straight to Hell e Tombstone Rashomon (2017) a livros como 10.000 Ways to Die (2011).

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O duelo final com perguntas sobre faroeste em Seachers 2.0

O mesmo se repete em Repo Chick (2009), que assim como Searchers 2.0, estreou no Festival de Veneza – o único dos “grandes festivais” que ainda abriga os trabalhos de Alex Cox – e foi todo filmado em chroma key. Não se trata de uma sequência de Repo Man – esta sequência saiu em forma de HQ em 2008 –, mas uma nova operação em dois níveis, talvez a mais arriscada da trilogia. Pela possibilidade da variedade de materiais e universos que o chroma key oferece, toda artificialidade de Repo Chick é explícita, como se o CGI estivesse em primeiro plano sempre na ação em um filme de gênero. As palavras de Ivens valem a memória mais uma vez como o resumo geral entre a estética e sua real função:

Uma abordagem estética pura leva a arte a um beco sem saída. Para mim, um filme é muito mais importante quando está conectado a um movimento social, quando tem a ver com a vida. Não demorou muito até sentimentos que nós, como artistas, tínhamos que tomar partido na vida social, na vida econômica de nosso país; que toparíamos com uma parede lisa caso permanecêssemos no lado abstrato do esteticismo”.

Repo Chick se aproxima muito da função que os filmes de Joe Dante carregam até hoje, em especial Pequenos Guerreiros (1998). O lado plástico segue em paralelo às pequenas revoluções que o filme entrega em micro e macrocosmos (o segundo nível), com a diferença que Cox não tem amarras com um nicho de público. Da autorreferência – o desafio de recriar a cena da santa ceia de Straight to Hell, por exemplo – à variedade de preceitos usados pelo diretor no filme e à noção de maleabilidade ao “filme-monumento” que Repo Chick teoricamente deveria ser. A julgar, um filme de efeitos deveria esvaziar seus personagens. Neste caso, o filme nasce vazio e ronda seus personagens de efeitos, num caminho tortuoso e quase oposto à cartilha para fortificar trama e personagens.

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Das filmagens de Repo Chick: o chroma key abre janelas para um novo mundo.

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Personagens que arrebatam a artificialidade em Repo Chick.

Estes dois níveis usados em Seachers 2.0 e Repo Chick concluem a trilogia com Bill, The Galactic Hero. O filme foi produzido entre 2013 e 2014, já nos tempos de redes sociais e aplicativos que facilitaram muito a produção e filmagem. A começar pela pré-produção, que possibilitou o envolvimento dos fãs na campanha de crowdfunding. A equipe foi composta por alunos da turma de cinema da Universidade do Colorado, onde Alex Cox leciona.

Baseado na HQ homônima de Harry Harrison, o filme carrega o humor tradicional da obra original, porém, ironicamente, expõe de vez a melancolia nostálgica em seus meios – toda trilogia é intercedida ao comentário sobre o fazer e ver filmes, do supracitado faroeste aos filmes policiais e ficções científicas, numa espécie de reconstrução do imaginário adolescente masculino. Bill, The Galatic Hero é o que enfatiza estes meios da estética B, mais controlada que os outros dois filmes, mas não menos funcional à mise en scène. Por mais que sua função seja de, novamente, gritar o fazer pela necessidade, o filme não apaga seu caráter de reconstituição.

A pensar que este compêndio fílmico passa pela mini-DV e pelo chroma key e principalmente pela opção de completar a artificialidade de métodos, Bill The Galatic Hero se entregar ao impossível – os efeitos especiais são trocados pela animação, que abrem e encerram o filme – é uma manobra irônica, uma espécie de “quebra de regra” de seu próprio criador.

A trilogia do ridículo, um nome de tom não menos sarcástico que os filmes, pautam, em sua anarquia, a possibilidade de criação da ambivalência da imagem: em tom pop e bom humor, Cox dá sua contribuição ao estudo do encontro real com a imagem que passa por Huberman e Farocki.

O mesmo deserto do faroeste é palco de um sci-fi B; o chroma key de uma aventura pulp serve como pano de fundo para um novo gênero. E o envolvimento requerido é o mesmo. O norte primitivo, da fábula, da passividade e compreensão de um mundo possível graças à posição de baixa guarda em relação ao filme – o que geralmente cria diversas críticas negativas aos filmes, em especial a Repo Chick -, possibilita uma nova aventura. Ler a ambivalência na trilogia é um processo de convencimento, o sentir virá pela recognição.

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Astronautas no deserto – ou em novo planeta – em Bill, The Galactic Hero

A duplicidade do processo não é novidade para Alex Cox que torna a percepção elástica de unidade em sua filmografia na reimaginação, em personagens que vão e voltam, em métodos e principalmente na subversão de todos estes elementos. E é isso que faz a obra do autoproclamado “film anarchist” um processo muito agradável de se acompanhar. Faça você mesmo.

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A Mula (Clint Eastwood, 2018)

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Autor-retrato.

Ao comentar as obras de Hollis Frampton, autor do cinema de vanguarda americano, a pesquisadora Patrícia Mourão sugeriu o pensamento da fotografia como uma vitória do homem sobre a transitoriedade do vidro ao abordar a autobiografia em (nostalgia) de 1971. E complementa: “Tornar-se cineasta, é abrir mão de falar “Eu”; mas não por pudores moralistas ou humildade humanista, e sim por uma crença ética e estética de que os problemas mais interessantes da artes são formais e não subjetivos”. Em devidas proporções, obviamente, este pensamento é recorrente em A Mula, pois temos o autorretrato de Clint Eastwood tirado e exibido no além-superfície de um vidro não material, num filme que elimina a substância e o utiliza apenas como manobra imediata para associações do que é do espírito.

Os primeiros minutos de A Mula servem como um breve acerto de contas de Clint Eastwood com toda sua filmografia e reverberação: enquanto apresenta seu personagem Earl, Eastwood resolve a culpa, guerra, regeneração, cinema, atritos de formas e principalmente arremata questões que acercam um possível discurso nacionalista que sempre foi levantado durante sua carreira. Daí por diante, habemus filme. Filme este que é menos envernizado, que aproveita dos nuances que o digital oferece para certa frontalidade e da imagem altiplana, assim como seu 15h17 – Trem Para Paris.

Mais ácido, ágil e incisivo com a chamada quarta parede, A Mula é ciente do caminho ardiloso a seguir. Na medida em que desenvolve uma trama muito básica, de duas vias paralelas que envolvem justiça e moral, o que está mesmo no foco de Eastwood é como entre luz e sombras das cenas seu autorretrato é exibido, numa espécie de ruptura entre a superfície e os comentários mais aprofundados sobre a simples presença de Clint Eastwood como homem-referência destes complementos amargos, ao contrário do Sniper Americano, filme pouco discutido e muito acusado na época de seu lançamento e por ora esquecido. Não se trata de justificar a ignorância de um senhor de 90 anos no encontro de uma nova era na busca por redenção e sim de se utilizar de um exemplo ciente da performatividade do uso deste caminho como o melhor eixo para discussão, como um simples ponto de partida que um gesto ou uma palavra surtem a exemplo da arma feita de dedos de Gran Torino.

Earl – ou melhor, Eastwood, novamente, – é a América. Essa que guarda o preconceito e a violência na própria bondade. Que se escora na hipocrisia para uma salvação relâmpago e que guarda a santidade para seu próprio louvor em momentos críticos. Portanto, o que há ao redor esbarra no pastiche dos filmes de tráfico e de perseguições policiais. Bradley Cooper como Colin Bates aprimora a noção de um país sério que busca por justiça, como um paralelo ao glossário da vitória que Eastwood derruba nos limites da possível implosão que diversas cenas entregam – são elas que salientam afinal sobre um acerto de contas filosófico de Eastwood com sua pátria-amada.

O impacto de um discurso laborioso sobre este espelho, pronto para duramente refletir imagens que a interpretação foge sua real compreensão é imenso. Surpreende que seja Eastwood ainda a fazê-lo com tamanha artimanha e potencialmente ciente do alcance errôneo que terá e sabe como ironizar sua crucificação – com a noção que a exposição nunca pagará o preço necessário para sua afirmação.

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Um Filme de Verão (Jô Serfaty, 2019)

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De costas para o mar

Há entre os limites de Um Filme de Verão uma reflexão sobre o verdadeiro significado de um feel good movie. Os fins que a diretora Jô Serfaty traça colocam o filme num caminho muito significativo sobre a representação do jovem periférico – o verão para eles é completamente diferente daquele vendido pelo cinema, de praia e diversão despudorada.

E como estes limites são muito bem estabelecidos, o filme vem numa espécie de fluxo de cenas, sem obedecer a uma ordem cronológica e sim numa representação fugaz dos momentos que nada mais são que a espera para um novo período de aulas. Em Rio das Pedras, próximos à praia da Barra, o acesso a ela é só no fim da tarde para estes jovens; o dia é feito para procurar empregos, sonhar com uma vida melhor e aproveitar seus dispositivos eletrônicos, no qual Serfaty usa como um registro muito peculiar de momentos intrínsecos ao verão, como as chuvas fortes, enchentes e falta de luz.

Entre eles, a imaginação destes jovens, de gostos voláteis e longe de qualquer certeza, faz de Um Filme de Verão o que mais próximo chegamos a Prazeres Desconhecidos de Jia Zhang-Ke até o momento, com a orquestração da liberdade cênica, da noção de dominância do espaço e como ele é capaz de oferecer novas procedências, inclusive estéticas – a sequência do sonho japonês fica como maior exemplo por ser a mais explícita, porém há diversos momentos no filme no qual as vielas e lajes ganham novas representações.

Permeando este mundo de signos, há o princípio do que é de fato um filme de verão no Brasil, muito mais próximo do calor do asfalto e de piscina de plástico do que praias paradisíacas e quartos luxuosos. É prazeroso ver como estes signos se complementam nas associações – ao exemplo das fugas deste ócio como os tipos diferentes de endeusamento, às figuras religiosas aos músicos e às drogas. E na mesma medida, Um Filme de Verão martela sempre uma realidade distinta do que é vendido, numa analogia simples à beleza do Rio de Janeiro que em suas costas esconde zonas periféricas e uma rotina de caos – pouco comentada no filme explicitamente, mas pulsante na relação com a cidade – e se complementa como um grande filme político.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Vermelha (Getúlio Ribeiro, 2019)

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A grande novela masculina

O resgate da identidade da Mostra Aurora durante a 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes veio como um óvni: Vermelha, na medida em que remete às obras que regeram o cinema nacional contemporâneo e que confirmaram a força do evento nos últimos anos, tem particularidades inerentes a este cinema, enquanto boa parte dos filmes até então se entregavam à oralidade e a força da palavra, o filme de Getúlio Ribeiro entrega-se ao cotidiano com propostas coligadas a este tipo de cinema.

A principal estranheza de Vermelha vem na forma: duas metades, a primeira, inclinada a enxugar ações e planos, como ode ao cancioneiro masculino e ao imaginário feminino – as novelas, vindas em capítulos e que constroem seus mistérios pela montagem em blocos, com ações incompletas submissas ao corte. A segunda metade segue o caminho oposto, as cenas são elásticas, seus personagens vêm e vão como num teatro do cotidiano, no qual o bairro filmado serve como um espaço muito útil de representação da intimidade além dos muros – ou melhor, do telhado.

Outro relevante detalhe é como Getúlio deixa os comentários para o seu dispositivo. A câmera, verdadeira dona da casa, que passeia por todos os cômodos com liberdade, tece os comentários sempre bem humorados sobre esta família; é como uma sombra que assiste a TV, escuta música sertaneja e acompanha os jogos de futebol. Este é um detalhe muito importante para o filme e que remete a uma parcela importante para a Mostra de Cinema de Tiradentes, que é o bloco de filmes feitos pela produtora Filmes de Plástico, em especial os filmes de André Novais Oliveira, da união do humor ao cinema de gênero, sempre interligados à rotina como uma grande ponderação que envolve discursos pessoais sui generis.

Vermelha, antes de tudo, é um filme sobre a falta de contato, sobre o afeto fantasma, que homens e mulheres não se encontram, mas são sempre citados, pela certeza do não dito numa barreira que o cotidiano coloca a ponto de uma briga ser banalizada e o filme resolvê-la com deboche – uma das grandes cenas do filme. Portanto, aqui pouco importa a estirpe de cada personagem: o que importa a Getúlio Ribeiro é a apresentação mais pura de cada um deles, longe de uma capa de adjetivos e sim mais próximos da possibilidade de mutação entre as cenas, de humor e postura voláteis e como eles afetam o dia-a-dia. Da força do abraço ao silêncio cortante, o lado humano pulsa fortemente.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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Desvio (Arthur Lins, 2018)

desvio filme

O outro lado da ponte

Como um transeunte nas próprias memórias, Pedro, protagonista de Desvio, representa bem os caminhos possíveis e tomados por Arthur Lins, diretor do filme, como maneira de controlar analogias e simbioses. Há um limite muito claro de tempo e de como os personagens serão delineados como representações de sentimentos distintos. Ainda que tudo pareça muito controlado e polido, Desvio apresenta alguns atritos muito interessantes.

A julgar pelo primeiro ato – e atrito – do filme, quando se apresenta como uma proto-trama de superação, o que vem em seguida é um encontro frontal com o passado, um desejo de retomada de um ponto da vida e que permeia por algum tempo a narrativa. Outro atrito muito interessante criado por Desvio é mais uma sugestão de um novo filme, um slacker feito por punks, que conversam e usam drogas e criam um mundo próprio e conivente com seus desejos. Logo este filme também será abolido por Arthur Lins para mais uma sugestão de trama.

Nestes constantes encontros e descartes, o filme parece estar sempre dentro de um limite para que as emoções sugeridas estejam sempre em primeiro plano; são raros os momentos no qual a imagem ganha da palavra e curiosamente estes são os melhores momentos do filme, como por exemplo, nas cenas de shows de punk e como o olhar de Pedro dirige-se ao palco carregado de nostalgia e certo sentido de superação.

Há o senso de legado que é a chave do filme. Se Pedro representa em diversas vias o equívoco e o arrependimento, há por trás a ideia da mutação do tempo e que tudo pode ser novo e diferente. Nesta linha narrativa, Arthur Lins enfim preserva suas pontas e faz uma cartografia de sentimentos juvenis, da revolta ao sonho da vida adulta, enquanto transforma o envelhecimento em cinzas e exemplo sempre questionável. Se falamos de extremos, Pâmela, uma jovem punk é a representação ideal para o outro lado da ponte e extermina qualquer intenção moral sobre seus personagens.

Desvio, por mais controlado que seja, tem como base o fim do julgamento sobre o olhar da câmera, como se seus personagens estivessem acima da moral que a própria estabelece. Cabe a ela a observação, mais despudorada a partir do último ato e uma aproximação com o filosofia de vida de seus personagens, ou seja, um tipo de compreensão à fórceps que aniquila qualquer consideração antecipada.

Visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

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