Olhar de Cinema: Virar Mar (Philipp Hartmann, Danilo Carvalho)

Por Pedro Tavares

Um exercício muito curioso envolvendo uma matéria, dois locais e um padrão. Virar Mar aborda a questão da escassez de água no sertão brasileiro e o excesso no interior da Alemanha. Com isso, Philipp Hartmann e Danilo Carvalho parecem dirigir separadamente suas partes mantendo apenas a estrutura.

São sequências intercaladas, como uma narrativa não-linear e que não dialoga com o que vem antes e tampouco com o que vem depois, o que de certa maneira é o que mais instiga no filme até por um fio de contato com o cinema experimental e estrutural. Aos poucos, porém, o interesse dos realizadores é mais evidente no lado político. É ao exibir o cotidiano de moradores destes locais e como a água tem suas variadas importâncias na rotina que o filme, assim, vira um mosaico de representações.

Seja no fundamento literal, numa encenação novelesca, nas cabeças falantes ou no encontro de um estrangeiro com o local de necessidade oposta ao seu. Virar Mar abandona a potência do dispositivo, do olhar e da contemplação como um grande comentário e opta pelo lado institucional e didático da coisa.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema: O Protetor do Irmão (Ferit Karahan)

Por Pedro Tavares

O Protetor do Irmão parte de um espelhamento constante muito interessante: cada cena, cada gesto e cada plano é um comentário sobre o Estado. É em um colégio interno estadual que seu modus operandi análogo à crueldade e de bordas largas ganha contornos. É na impossibilidade de criar-se o acaso, da relação simples entre crianças – naturalmente levadas, que gostam de brincar e aprontar que o contrapeso tem amplitudes.

Basta um corpo sair de seu funcionamento comum, literalmente falando, para que a estrutura desse estado em proporções menores mostre suas fragilidades. O despreparo completo para lidar com situações não-ordinárias, o jogo de empurra entre os responsáveis e principalmente como a aparente força dada pela autoridade se esvai à medida que o risco para estes “chefes” parece mais latente.

E com este tipo de comparação às medidas e comportamentos tomados o caos se instaura num intenso jogo de empurra que derruba o regime, as posturas se movem para um tipo de contemplação sobre o horror dos próprios gestos e um olhar direto para a câmera entrega todo o horror que uma nação enfrenta muito bem representada por um rosto infantil.

Visto no Olhar de Cinema.

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Sem Sol: Via Dupla

Por Pedro Tavares

No final dos anos 70, enquanto retornava aos projetos pessoais, Chris Marker fez uma série de viagens pelo mundo e a partir delas captou alguns signos da existência além de puras imagens. Sem Sol (1983) é uma espécie de mapeamento em via dupla – som e imagem – sobre a humanidade. E com esta via, um filme que se ouve para tomar um rumo e que se vê, para tomar o outro. É um jogo profundo e inerentemente político entre a natureza desta arte e seus aspectos técnicos.

Como um filme seminal que embaça fronteiras entre o filme-ensaio, documentário e ficção, Sem Sol é uma intensa colagem de sintomas. Colagem esta que levanta questões semelhantes aos efeitos do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, ao tirarmos ou colocarmos uma imagem – ou as mudarmos de lugar. Enquanto constrói ideias acerca de um futuro distópico com imagens que registram ou emulam o ordinário através do cotidiano no Japão, Cabo Verde, Estados Unidos, Guiné-Bissau e Islândia, os comentários-carteados feitos por Sandor Krasna tomam corpo pela voz de Florence Delay. Krasna, no entanto, não existe. É um personagem para representar as emoções de Marker. 

É através dela que o filme dá passos para trás, como um respiro necessário para acompanhar as imagens e com novos códigos, dar um novo significado, como uma readaptação ao pensamento de Farocki que não precisamos usar novas imagens e sim dar novos significados às existentes. Há uma conjuntura aqui, pois Marker utiliza de imagens de terceiros e sente-se livre para citar e ressignificar filmes e diretores como Hitchcock, Tarkovski, Vincent Minnelli e a si mesmo, mas também coloca questões sobre o jogo de poder envolvendo a câmera e o personagem e a ética no gesto da captura e na reprodução de qualquer imagem.  

Esta elaboração entre imagem e palavra e seus caminhos divergentes coloca em xeque até mesmo o valor de cada natureza. Enquanto exibe um produtor de games como um inerente comentário sobre o futuro, Marker salienta que só o eletrônico pode tratar o sentimento, a memória e a imaginação, desta vez com a voz da narradora. Estes embates que trazem diferentes valores entre fundamentos cinematográficos reforçam a ideia de uma construção de coerência entre ambos como um idealismo, um pensamento não anacrônico enquanto cada ponta segue para o desencontro. 

Quando Deleuze pensa em Foucault e simboliza seus encontros com o professor por “rachar coisas e palavras” e, num compêndio acidental com o filme Marker, também usa uma carta para se comunicar com o crítico Serge Daney, o filósofo e teórico francês a batiza de “Otimismo, pessimismo e viagem”. Deleuze fala de uma nova função da imagem, a da pedagogia da percepção e da espiritualização da natureza; a natureza da imagem, portanto. É interessante pensar nestas rachaduras e na pedagogia da percepção aplicadas ao filme de Marker e como o diretor levanta questões sobre a “ética do dispositivo” enquanto o mundo encontra um norte nebuloso.  Marker faz das cartas, das palavras, um diário-manifesto oral e com a força que se ouve o êxtase sobre o campo social, uma decodificação poderosa sobre a existência e anula a possibilidade de castração deste panorama com o sistema de fluxo tirânico de imagens complementando o agenciamento de expressão. 

Sem Sol, portanto, é um filme que exige acompanhamento bifurcado, de certas revisitas a como se lê e relê uma frase em um livro. A voz que se ouve na leitura é a voz de Delay, Krasna, Marker e também a nossa como uma simples convergência entre vida e filme. E é de Deleuze, em entrevista a Claire Parnet, novamente falando sobre Foucault, um resumo acidental de Sem Sol: “(…) É preciso que as forças do homem (ter um entendimento, uma vontade, uma imaginação, etc.) se combinem com outras forças; então uma grande forma nascerá desta combinação, mas tudo depende da natureza dessas forças com as quais do homem se associam”. Como a concepção de memória, que cria sua própria ficção dentro das lacunas a fim de complementar a noção de mundo e vivência, Sem Sol é um filme que configura seus próprios espaços na diferença de percepção. Nos diferentes códigos de compreensão do real e sentidos, Marker faz dois filmes distintos: duas narrativas, dois olhares, duas histórias a ouvir.

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No campo das paixões

Por Pedro Tavares

O futebol exerce sobre o povo um poder que só se compara ao poder das guerras. Leva um país inteiro da maior tristeza à maior alegria. Para explicar esse fenômeno, há duas teorias: uma diz que a bola de futebol é um símbolo do seio do ventre materno, de modo que se compreende o ardor que os jogadores disputam um jogo e a preocupação dos torcedores com o destino da bola. A outra teoria, mais sensata, diz que o povo usa o futebol para gastar o potencial emotivo que acumula por um processo de frustração na vida cotidiana. O universo lúdico do estádio é um campo mais cômodo para o exercício das emoções humanas.

(Garrincha, Alegria do Povo, Joaquim Pedro de Andrade)

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Onze jogadores em campo em Garrincha, Alegria do Povo:

1.

No espaço não-linear utilizado por Joaquim Pedro de Andrade para empregar Garrincha como um fenômeno inerente aos  valores do povo, indo das vitórias da seleção em 1962 e 1958 à derrota de 1950, no Maracanã, o que está em jogo a cada plano é a paixão que existe nessa interpenetração de mundo que rege emoções: Nele está o estudo dos corpos em ação nas mais diversas vertentes: do aquecimento no vestiário ao desespero emocional nas arquibancadas. É um filme que não se contenta com os relatos, mas sim com a ideia de recomposição e de novos significados através das posições das imagens, o que parece sintomático para um filme que envolve corpos e o social.

2.

Assimila-se, no quadro, a distância e Garrincha como seu centro. Joaquim Pedro de Andrade chega a filmá-lo em sua cidade natal, Pau Grande, mas concretiza um tipo de respeito que induz a noção de realeza ao seu protagonista. Garrincha não é um personagem expressivo, porém está sempre em atividade. Sereno com a formulação e execução de seus deveres, seja no campo de General Severiano, casa do Botafogo de Futebol e Regatas, seja na final da Copa do Mundo de 1962, jogando com febre e sentindo a ausência de Pelé em campo. A emoção, neste sentido, é contida até mesmo pelo realizador, como um movimento de respeito máximo a quem se filma.

3.

A lembrar que cinema é linguagem, a citar André Bazin em O que é o cinema? (1958), a maior delas aqui é a fixação ao ritual. É no processo de deslocamento ao estádio, na compra de ingressos, na espera pelos times em campo, pelo jogo em si e pela volta para casa acompanhada de uma alegria extasiante ou de uma ressaca indescritível. É um tipo de emoção que pode ser podada por qualquer acontecimento ordinário da “vida real”, mas a paixão por esta posição que é oferecida no dia domingo é perdurada e leva até o próximo apito do juiz, sete dias depois.

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4.

Abro um parêntese para destacar que este tipo de paixão incontrolável aumenta conforme o time passa por uma montanha russa de emoções. Sabe-se que o Botafogo é um time com esta forte característica até os dias de hoje e a última colocação no Campeonato Brasileiro da temporada 2020/2021 não me deixa mentir. Apesar de seu apogeu estar na época de Garrincha, Manga, Jairzinho e outros, a câmera de Joaquim Pedro capta o time acuando os adversários como Flamengo, Vasco e Fluminense, mas nos olhos dos torcedores é possível notar a angústia e dificuldade que o esquadrão alvinegro passava no gramado do Maracanã.

5.

Garrincha: Alegria do Povo está longe de ser um filme límpido. O protagonista tem direito a uma só fala no filme. Suas palavras estão contidas nos gestos que transparecem sua personalidade: a brincadeira nos treinos, a tranquilidade dos dribles e o prazer em estar com os amigos em uma mesa de bar. Narrações em off pontuais. Os arquivos, como citado anteriormente, não são lineares. A derrota na final de 1950 vai para o fim do filme, depois de uma análise sobre os jogos de 58 e 62. Fotos. Muitas fotos. E são elas que captam melhor o espírito de um exercício apaixonado de 90 minutos. Com elas assimilamos uma descentralização em relação ao tempo e foco em um estímulo que independe de sua posição cronológica.

6.

Um filme que cria um conflito curioso entre os imprevistos de uma história com seu formalismo. A exemplo do momento que Garrincha assume ter dado um pontapé em um jogador e toma uma pedrada da torcida, o filme toma por iniciativa um momento de total sobriedade: a voz off narra o que de fato aconteceu. As informações são cedidas de modo que a construção lógica elimine a necessidade da existência deste fato em tela. E é isso que acontece. O filme se faz nos dribles da montagem, na visão torta do tempo e longe de uma dinâmica já estabelecida em documentários biográficos.

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7.

Aproveito o número sete, místico para qualquer botafoguense, para dizer que a “máquina do cinema”, a citar um termo adotado por Ismail Xavier em A Experiência do cinema (1983), exige a crença no olho (p. 280), e que nesses “golpes de vista” o Botafogo vive suas duas vidas, não à toa como se divide uma partida de futebol. Um molde para que a câmera crie, em imagens descontínuas – ora o Botafogo joga contra o Flamengo, ora com o Vasco –, e essas transformações montam um clube que passa por seus altos e baixos em blocos.

8.

Nesse sentido, a vida de Garrincha fora de campo tem o mesmo peso que sua vida dentro das quatro linhas. E isso se dá pelo formalismo: nas imagens, os transeuntes no centro da cidade, os amigos em Pau Grande ou os companheiros de time e seleção circulam e circundam a alegria. E é para ela que a câmera aponta. O que interessa ao filme é, de certa maneira, como a engrenagem desta alegria funciona em todos os dias da semana como uma visão mítica da subsistência do proletariado.

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9.

Um retrato desse jogador ainda no auge não é inerente à suposta emergência consumista. Um filme efetivo sobre Garrincha em ação é um registro histórico de um sentimento alastrado pelo Brasil, transformando em imagens o que o exercício lúdico do rádio criara.

10.

Enquanto constrói um mundo palpável através das imagens, Joaquim Pedro parte da ideia das arquibancadas de concreto, dos trens lotados, do centro da cidade repleto de trabalhadores na hora do almoço. Garrincha é atração em pessoa no domingo, mas suas ações refletem na segunda-feira. É um alicerce para um filme que recusa todo tipo de acordo com o olhar burguês; e é justamente nas imagens de formalidades que o filme é interrompido por um óvni capaz de jogar toda solenidade no chão: “Vasco!”.

11.

De certo que o filme não antecipa qualquer caminho trágico que a carreira de Garrincha tenha tomado e se concentra no sublime momento de manutenção semanal de uma paixão avassaladora. O sistema utilizado é sim dos onze homens com a camisa alvinegra ou da seleção, porém, o coração que bate é daqueles que roem as unhas, seguram os seus rádios colados à orelha, gastam toda sua voz conforme os passes e cruzamentos param em pés errados. Garrincha: Alegria do Povo, antes de qualquer contorno social, é um filme sobre a desnecessidade de explicação de como esta paixão alegra e derruba mais de 120 mil pessoas ao mesmo tempo e em um mesmo lugar.

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Guerra dos Mundos e a efemeridade de uma cidade

Por Pedro Tavares

Vemos que, sob o olhar de uma certa história, os objetos mais imortais são talvez os que melhor realizaram, completaram sua própria morte.[1]

(Georges Didi-Huberman)

É necessário partir do óbvio: a efemeridade do planeta, de suas obras finitas enganadas pelo desejo do infinito. No olhar, a certeza do objeto fincado ao real, mas raramente sua extinção vem ao pensamento enquanto sua existência persiste. Este é o quadro que Spielberg exibe nos primeiros segundos de Guerra dos Mundos. Uma imagem tradicional de Manhattan. Porém, há um lugar de incômodo nesta imagem: o vazio deixado pelas torres gêmeas após os ataques terroristas de 11/09/2001. Portanto, o olhar sob Nova York não será e não é o mesmo a partir desta ausência que não é só física. O filme datado de 2005 discute um incômodo apenas quatro anos após a tragédia e provavelmente não imaginaria que este vazio persistiria 19 anos após o fato.

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Há nessa imagem tão óbvia a necessidade de indagação sobre diversas formas de perda. Um caso curioso de díptico imagético, afinal, esta imagem se instaura no campo da história em geral, porém, esta imagem, uma imagem da história da arte, ainda que se questione o termo, é usada como documento. A representação dessas torres, as vidas perdidas e o estado de luto e terror que se apossam não só dos Estados Unidos como de todo o planeta, afinal, reféns somos do sistema que ali se instaura.

Guerra dos Mundos vai para o caminho de não-praxis, de se adaptar aos efeitos do real, de um frio na espinha, de um momento de incerteza causada pela lembrança da extinção. Resolver um problema ou afincar suas imagens e palavras como uma definição do real está descartado. Portanto, cabe a Spielberg um jogo intenso e de certa forma didático das representações desse horror, num equilíbrio bem interessante entre o gráfico e o orgânico.

É na linha simples de uma invasão alienígena sem um motivo concreto – seja um acerto de contas, um aviso, um pedido de socorro – que Spielberg acha as brechas para evocar imagens já vistas tantas vezes em replay nos noticiários de TV, documentários e outros filmes, incluindo a ilusão de vermos um replay do primeiro choque quando o segundo avião choca-se com a torre. Os corpos empoeirados após a queda dos prédios ou aqueles que se jogaram pelas janelas, o desespero dos bombeiros e a ilusão de fuga nas fronteiras da cidade, da busca por suplementos e todos os tipos de defesas, incluindo armas de fogo.

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Essas lembranças evocadas como fantasmas reforçam a efemeridade da cidade como organismo inabalável e de um sistema invencível. A Spielberg, cabe o uso de certo estatuto para suas imagens surtirem efeitos diversos, em camadas: fiquemos com um simples exemplo da fuga da cidade na qual a ponte móvel se abre e cidadãos (corpos, a lembrar a efemeridade) ficam pendurados como os corpos presos às janelas das torres gêmeas. A abertura da ponte, no mar de corpos desesperados, é tão inesperada quanto o choque do primeiro avião. O terror instaurado é o mesmo vindo de uma destruição de um pensamento bloqueado – quando concreto e metal viram entulho e perdem suas principais funções e é preciso se adaptar a isso, como é preciso se adaptar à ideia de Manhattan sem as torres em sua clássica imagem.

Spielberg se priva na compreensão dos meios; seu interesse é o recorte que encarna as lembranças, sua crença está no reflexo que a sobrevivência exige e neste espaço que Guerra dos Mundos se instaura, de uma inexistência pacificadora e não cogitada ao surto traumático, ao caos instaurado, dentro de um limite que o sci-fi acopla muito bem ao permitir que suas imagens sejam disformes e passíveis de um consumo dinâmico.

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Portanto, Guerra dos Mundos é um filme que compreende um momento e o coloca como um processo de desencarnação que Spielberg sempre transforma em visível. O invisível, como citado anteriormente, é deixado de lado; como a memória que destaca Bush e Bin Laden para outro capítulo deste evento, a transmissão de saberes está mesmo na suspensão dessas informações aportadas no inconsciente. Ela está como um movimento de reabrir os olhos após muito tempo fechados. Um tipo de dormência, uma ausência que o revés é capaz de produzir.

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[1] DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem, p. 59

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Tenet (Christopher Nolan, 2020)

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Mijar ao Vento

Por Pedro Tavares

No conceito de autoria, a reiteração de métodos e a noção de um lugar comum na obra geral ou se justifica ou se ostenta. É de fato curioso como Tenet é uma espécie de incessante busca e confirmação de certo fetichismo por parte de Christopher Nolan na suposição de uma possível transição de um diretor de blockbusters pomposos para o autor de cinema com sua própria grife. Neste raciocínio é possível desfiar o filme de maneira muito simplória para termos logo uma resposta sobre as intenções do filme e vemos como as alegorias estão em função da ilusão e são nulas para a narrativa, transparecendo intenções, que, perfiladas, mostram interesses perniciosos ao filme.

O enredo, per si, antes da intromissão deste fetiche-justificativa por parte de Christopher Nolan, é muito próximo a qualquer lançamento de ação B e que isto não seja visto com maus olhos, incluindo a maneira que Nolan orquestra suas sequências de ação e como o filme é montado, a partir de um épico que coloca o seu 007 no divã para questionar a mortalidade. A partir daí, um encontro com a metodologia do realizador que se aproximou desta ideia da metafísica a partir de espaço-tempo em filmes como Amnésia (2000), A Origem (2009) e Interstellar (2014) retorna à mesma abordagem como a possibilidade de reconhecimento de um tema-chave em sua filmografia.

A máxima “mijar ao vento” vem do “protagonista”, um homem-carcaça, sem demais apresentações e ser da CIA é o suficiente para que sua missão seja permeada pelo senso de equidade. E por mais que esteja sempre em devaneios sobre os reais efeitos de encarar o ciclo, a função da máquina é de partir para a intervenção.

Nesta função de monte e desmonte do enredo a partir das possibilidades que a distorção do tempo permite, as brechas são preenchidas por um moralismo barato. Tenet se arrisca demais ao caminhar sempre em extremos – o perigo do filme é o do fim do mundo, o retorno do tempo é para um senso de justiça coletivo – e seu protagonista sempre a serviço desta moral entre idas e vindas, uma representação do alvo que Nolan almeja e não um personagem passível de mutações.

Confiando neste efeito devastador que o filme levaria como um panfleto ideal e pronto para as mãos de seu público, Tenet é um passeio previsível no campo da ética e funcional como um filme de coreografias. Elas, que justamente salvam o filme da ideia da elasticidade do tempo em certos momentos e que se resumem ao movimento de rewind (a clássica rebobinada nas fitas VHS)  e em um sentido de carga dramática tão profunda quanto, de fato, mijar ao vento.

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Olhar de Cinema: Na Cabine de Exibição

Por Pedro Tavares

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O cineasta e a espectadora, cada um em seu bunker, e entre eles, um corpo fragilizado pela frequente exposição – o da imagem. Este exercício minimalista de exame é muito poderoso à medida que cada suposto diagnóstico sobre os fins da imagem é criado.

Quando a jovem Maia entra na cabine de exibição e golpeia as imagens para forjá-las de acordo com suas relações imediatas a elas, é muito interessante que Ra’anan Alexandrowicz solicite um retorno. Uma segunda consulta às imagens. Os olhos de Maia, um exemplar de máquina de articulações e possibilidades, cria novas possibilidades enquanto o realizador observa suas pré-finalidades, se casam ou não com a espectadora-máquina.

As imagens estão em cheque a respeito de sua veracidade, longevidade, durabilidade e o processo de produção é de dúvida concomitante a estes tópicos; o curioso é que a potência dessas imagens nunca está em questão. Tanto Maia como Alexandrowicz, independente de suas convicções a respeito do que é ou não real ou se logo serão esquecidas, em suas discussões, inerente, está a maneira que essas imagens encontram seus espectadores e seus efeitos.

O que vem em primeiro é o desconforto perante a suspeita. E, lentamente, ambos forjam a imagem a seu gosto. Na Cabine de Exibição talvez seja dos mais frontais e potentes casos de análise de imagem provenientes de novos dispositivos, no caso câmeras de telefones celulares e hospedados no Vimeo. Um belo caso de arqueologia de “novas” imagens e que sinalizam novas possibilidades de estudo sobre seus imediatismos e funções.

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Olhar de Cinema: Quem Tem Medo de Ideologia?

Por Pedro Tavares

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Originalmente um projeto dividido em duas partes, Quem Tem Medo de Ideologia? parte de uma lateralidade interessante, primeiro a pensar a força da natureza e o acordo dela com as mulheres como uma força imbatível. Desta dupla, a ideologia ganha um abrigo. A diretora Marwa Arsanios não precisa nada além dos corpos e da paisagem para que este acordo seja selado na imagem.

A partir deste reforço social-ideológico, a segunda parte dá o tom majoritário ao filme, dominado pela palavra e que é assertivo no pensamento do feminismo como a salvação de um grupo de mulheres que diariamente compete silenciosamente com os homens; se para eles a rotina de trabalho faz parte da vida, para elas evidentes e embutidas estão as injustiças oriundas do machismo e a inerente insegurança do dia-a-dia.

Quando Arsanios encontra a resposta para a pergunta “O que é estar aqui?” feita no início do filme, temos uma saída vigorosa para a resolução do tema, ainda que para isso precise de respiros para sua construção; a diretora se refugia no carro e na própria natureza. Sabe que a união é forte o bastante seguir seus olhos não acompanhem os movimentos extracampo.

Portanto, se a natureza é a ideologia e o feminismo é a solução, Quem Tem Medo de Ideologia? serve como um preparo para o enfrentamento de um mal maior e seu pilar está no alinhamento da natureza, ideologia e feminismo e como eles formam um só pensamento, um organismo ativo e que perdurará.

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Olhar de Cinema: Nardjes A.

Por Pedro Tavares

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Dois caminhos distintos guiam Nardjes A. ainda que dividam semelhanças em suas abordagens: o primeiro, uma observação da personagem que batiza o filme a partir do cunho político, como a manifestação pacífica em Argel pode movimentar milhares de pessoas em prol de único objetivo. Nele, entre cânticos e gritos de protesto, um sonho de um país livre das amarras de mais um desgoverno a vir no horizonte.

O segundo e grande ponto de declínio do filme é como a câmera do celular de Karim Aïnouz também serve como dispositivo para uma espécie de vlog-manifesto. Nele acompanhamos o dia desta protagonista e sabemos que ela está numa manifestação, mas o que importa para a câmera é como um diário é construído. É na produção de interação com as pessoas, como Aïnouz escolhe um plano que favoreça a presença da protagonista no quadro e não de uma mulher que solta gritos potentes pedindo liberdade, por exemplo. E é com a câmera que Nardjes divide seus temores, ainda que Aïnouz tente deslocar sua personagem usando a voz off como saída.

O filme cresce quando Nardjes se aproxima dos seus, cantarola ou até mesmo dá foras nos homens mais interessados em outros fins por um motivo simples: a câmera não está com a protagonista como centro. Nardjes está de costas em boa parte dessas ações e o caráter de um diário vaidoso se dilui, mas estes momentos geralmente são entrecortados por este caráter modernoso do diário da menina engajada.

Quando enfim o protesto se dispersa após a construção de uma grande comoção popular, o que resta é mesmo o rosto de Nardjes, que divide suas preocupações entre os amigos e como serão suas próximas horas. Curiosamente este espaço, uma espécie de apêndice do filme, um espaço livre, é preenchido pelo anticlímax: temos o ápice do perfil autocentrado de Nardjes A., um momento que coloca em cheque todo o percurso supostamente engajado do filme. Trata-se de um povo ou de uma só face? Apesar do filme ter um nome próprio, a dúvida segue pulsante.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema: Para Onde Voam as Feiticeiras

Por Pedro Tavares

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Há um trunfo simples e muito funcional em Para Onde Voam as Feiticeiras: a noção e intenção de desajuste. O filme de Beto Amaral, Elianne e Carla Caffé é de múltiplas abordagens e formas que notoriamente é paralelo ao seu tema. No caráter investigativo que remete aos trabalhos de Sylvain George, o filme se mistura às distintas abordagens como análise da sociedade.

Tão frontal e necessário quanto Cabeça de Nego (Déo Cardoso, 2020), também presente na seleção do Olhar de Cinema, Para Onde Voam as Feiticeiras é um filme-óvni de intensas interpelações documentais e de performance: o desejo de alguma clareza pela aproximação dos corpos – que esbarra nos transeuntes, vendedores, pregadores e moradores de rua– ao espaço delimitado para performances. Espaço este que não é respeitado, ele toma proporções maiores que uma simples delimitação para um expurgo frente às câmeras.

Neste ponto, o filme torna-se uma grande reação aos temas abordados por seus personagens: se há o espaço para alguma revisita ao passado, na mesma medida ele coloca minorias em confronto direto àqueles que os acurralam socialmente. Das imagens de arquivo às discussões sobre as reais posições na sociedade, do desejo sexual à crise que assola o Brasil, o que se vê é um panorama volumoso em temas e interpelação que reflete a complexidade de um país que afunda diariamente.

Com este sentido de um desajuste fílmico para os ditos desajustados sociais, a pulsão é vantajosa como um manifesto. É com ela que o filme abraça a posição de filme político, mas capaz de respingar no campo existencial.  Nele sim as performances fazem seu sentido verdadeiro – conhecer os personagens com mais um panorama, como uma apresentação de uma trupe. A trupe é de artistas, mas para a sociedade, são tão perigosos como uma gangue pela simples existência. “Quero acordar, existir, não ser nada, sem peso”, diz um deles. O peso demonstrado por Beto Amaral, Elianne e Carla Caffé é real e a resistência é urgente.

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Olhar de Cinema: Crônica do Espaço

Por Pedro Tavares

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A ausência como disciplina do saber. Um aprendizado a fórceps criado na base das lacunas. Crônica do Espaço é um filme essencialmente contemporâneo a pensar nas palavras de Serge Margel que o contemporâneo representa uma forma traumática de reconstrução do presente comum.

O filme de Akshay Indikar narra um tempo de mudanças repentinas na vida do garoto Dhigu e como este trauma, em forma de diário (ou anotações ou crônicas, como o título entrega), constrói um ritual de sobrevivência inconsciente. Primeiro pela idade de seu protagonista, ainda incapaz de assimilar certos eventos-traumas e principalmente como o passar dos dias, a criar uma sensação incômoda, não encontra o presente. A realidade para o garoto é paralela.

Neste tipo de licença poética que Indikar encontra um caminho certeiro para todo tipo de introdução lúdica aos sentimentos do garoto, de seus desejos à relação com a família em um local inóspito para ele. Crônica do Espaço, portanto, é um filme sobre um ideal intocável. Os desejos de Dhigu, na mesma medida que se tornam imagens, viram lacunas. Espaços preenchidos por lamentos que Indikar aposta num uso geométrico, seja pela posição da natureza como dos personagens em cena – em ambos, a sensação é de ausência, da noção de um vazio nos espaços e nos corpos filmados.

Crônica do Espaço é também um filme contemporâneo por sua abordagem: dos tempos mortos, da ideia de imagens autônomas, da certeza que a medida do olhar é exata para captar sentidos e sentimentos maiores dentro do escopo apresentado. Dhigu é uma representação, milhares de lares ali colocados com certa pompa de seu êxito estritamente afetivo. Não é bem sucedido em todo o processo, ainda que suas tentativas sejam convenientes.

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Olhar de Cinema: O Que Resta / Revisitado

Por Pedro Tavares

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No texto Imagens do (nosso) Tempo, Peter Pál Pelbart lembra como Paul Virílio analisa nossa instabilidade em habitar o agora e como ele se evapora num tempo sem espessura e sem perspectiva. Este raciocínio de Virílio aclarado por Pelbart vem em choque ao filme de Clarissa Thieme, O Que Resta / Revisitado.

Entre a ideia de resgate e sequência, Thieme constrói a crença nas imagens e o que ganha é a essência do verbo quando curiosos olham param  para analisar seus frames impressos em formato de banners e suportados pelos assistentes da diretora. O filme, que teoricamente se resume à fórmula do retorno aos mesmos locais filmados há dez anos para análise do tempo na Bósnia-Herzegovina em locais que protagonizaram crimes de guerra nos anos 90 está mais para blocos de lembranças particulares, como se Thieme colocasse uma cadeira em algum lugar público e esperasse alguém disposto à uma sessão de pura nostalgia.

Não há grandes mudanças nos últimos anos desses locais com as imagens dos banners, o que é um bom indicador comparando com o que fora visto nos anos 90 e que encerra frontalmente a navegação política de Thieme – não a expelindo por completo e são nestes resquícios que o filme tem alguma força, pois o tempo ganha outro sentido de compreensão. Se antes ele funcionara como amálgama do quadro dentro de outro, como se estes dez anos que separam o “grande quadro” do “pequeno quadro”, agora ele está salpicado, entrecortado e interrompido por essas conversas.

A pureza da revisita, como se guarda no título é abortada; Thieme tem em suas mãos o acaso do “grande quadro”, ou seja, do plano geral captado pela câmera e a certeza que seus banners criarão algum tipo de resposta ao mesmo ambiente que está ali suspenso em formato de fotografia. Dos transeuntes, sejam turistas, antigos ou jovens moradores, todos ali têm um reflexo imediato às imagens. Poucos guardam reações adversas ao que é mostrado e a principal liga entre imagem e “público” é o resgate, como se a proposta inicial de Thieme estive em pleno funcionamento, porém o que está no plano maior contradiz por completo esta ideia.

Fiel ao formalismo, Thieme mantém-se distante e dá o trabalho da proximidade ao captador de som, que corre até aqueles que se aventuram a falar. A câmera obscura é um grande caminho para que as pessoas não se curvem perante ao dispositivo e criem assim suas teorias sobre o tempo, um tempo que não criou muitas mudanças e que possibilita para Thieme um exercício sobre o passado, este sim um tempo com espessuras e perspectivas.

Visto no Olhar de Cinema

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Olhar de Cinema: Los Lobos

Por Pedro Tavares

los lobos still

Los Lobos abre com uma interessante amálgama de cores entre as estradas que separam o México e os Estados Unidos. Nela, o azul da bandeira americana se desbota e nota-se que o tom esverdeado ganha notoriedade. Lúcia chega ao território americano e assim o filme ganha contornos novos para abordagens de filmes sobre imigração.

A mais forte delas é que o diretor Samuel Kishi opta por exibir o contracampo do que outrora fora a coluna de um melodrama social. É na rotina dos meninos Leo e Max, entre a ideia de um cativeiro e a segurança para que a mãe trabalhe, Los Lobos cria assim um parâmetro para essas vidas. O sonho americano adormece já nos primeiros minutos. Ele está há muitos quilômetros de distância, um sonho inalcançável e que por diversas vezes o diretor ilustra como ele engole estes corpos necessitados por realização.

O que o filme faz, portanto, é medir o tamanho do “sonho mexicano”. Um sonho que já nasce com limites estipulados, funções básicas e que precisa de um tipo de assistência geral. É quando Kishi muda o formalismo de um filme de cativeiro para ser um filme de comunidade, seus contornos melodramáticos são mais evidentes e transparecem necessidades mais urgentes para estes imigrantes, mesmo que exista uma política de boa vizinhança, regras constantemente são infringidas.

Mesmo com um tema denso, Kishi opta por uma abordagem lúdica, amenizando a tensão na discussão dos temas – o que lhe deu a grife de melhor filme da mostra geração do Festival de Berlim deste ano – e assim, Los Lobos ganha o caráter introdutório ao contracampo filmado. A história daqueles que saem de casa para trabalhar e diminuir-se perante a bandeira americana é conhecida; basta sabermos como é a rotina daqueles que ficam e se adaptam ao novo sem conhecer o que está ao redor e tampouco como esta nova vida funcionará.

Entre o peso do desconhecido e a imaginação da novidade Kishi orquestra um tipo de horror juvenil – o que escapa de monstros e que enfrenta a solidão e o tédio à fórceps e que aprende que nem todos são confiáveis, mesmo quando o verde se confunde com o azul.

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Olhar de Cinema: Victoria

birds of prey

Por Pedro Tavares

Na rapidez que a cobertura de um festival de cinema exige até mesmo na produção de textos, um pensamento recorrente vinha ao pensar em Victoria: o cinema como vínculo entre distâncias. Um pensamento a partir do que Rancière escrevera em As distâncias do cinema a partir do prisma do que é inalcançável e a partir disso criar um diferente estado do real.

O que o filme de Sofie Benoot, Isabelle Tollenaere  e Liesbeth De Ceulaer faz, de certa maneira, é construir um western para os anos 2010. A ideia do progresso feito com asfalto e crescimento vertical encontra a ruína quando um projeto retorna ao seu princípio. Para California City ser um deserto de um homem só, antes houvera um deslocamento de diversas camadas – do leste para o oeste, de planos, perspectivas, afim de um recomeço.

Recomeçar parece uma palavra-chave na composição de um filme para os anos 2010 a julgar pelo momento de apogeu desta necessidade que passamos em 2020. A ideia de recomposição sucumbe à rotina de tratar supostamente o que é intratável. Curiosamente não há um tipo de desespero como reflexo. Contemplar e seguir segue como melhor caminho, na mesma maneira que sinalizar ruas inexistentes para que ninguém as atravesse. O único eixo concreto de Victoria está na sugestão de que houvera um caminho percorrido e certo alinhamento com a nostalgia que é brilhantemente nivelada com dispositivos modernos como o Google Maps.

Em Victoria, o cavaleiro solitário não está só, tampouco necessita de meios de transporte ou de assertividade social. Estas bordas nascem definidas fantasgoricamente. Sua luta é com o espaço e com sua memória que podem ser engolidos a qualquer momento, seja por um novo projeto de cidade ou pelo esquecimento.

Visto no Olhar de Cinema

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Marginal não filma: Ladrões de Cinema

Por Pedro Tavares

“Vejam vocês que desplante. Como se cinema fosse coisa de marginais (…) porque marginal não filma”.

Apresentador de TV em Ladrões de Cinema

Eis a faceta do cinema brasileiro: estar à margem. Fernando Coni Campos segue à margem inclusive na memória do cinema brasileiro com seu Ladrões de Cinema, um filme-epítome da natureza do cinema nacional, enquanto corre em paralelo uma análise espelhada da história do país. André Bazin ao se debruçar na obra de Henri-Georges Clouzot no seu célebre O que é o cinema? afirma que o cineasta francês considerava somente a criação artística como elemento espetacular autêntico, isto é, cinematográfico, porque é essencialmente temporal.[1] Se homens que roubam o material de cineastas americanos e resolvem fazer seu próprio filme na favela – ou seja, a história que o “asfalto” não se interessa em assistir por exibir suas chagas morais – o desplante é o simples ato de co-existir temporalmente com aqueles que estão no lado do privilégio, e que Ladrões de Cinema ignora solenemente.

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É notório que em Ladrões de Cinema a revolta se dá na junção do olhar de Deus, como se os personagens estivessem geograficamente acima daqueles que Coni Campos alveja.  Não é um tipo de obra de vanguarda e de crítica às imagens produzidas por estes homens ou a construção de imagens ideológicas. Lhe interessa subverter a regra básica da subtração urbana: não se rouba ou mata para vender e sim para dar um novo sentido ao dispositivo. A história de revolta de Tiradentes, o filme dentro do filme em paralelo ao processo de filmagem, também exibe as intromissões libertárias dos acontecimentos históricos. Os tais ladrões de cinema dão a esmola obrigatória que os americanos nos solicitam. Enquanto se filma um processo de descoberta dos moradores-atores, o cinema, sua história e mercado são fuzilados ou homenageados por Coni Campos.

Seja pelo português que alinha relações de poder com esta equipe de cinema ou pela simples postura do “diretor” que zomba dos filmes de arte nos primeiros minutos de filme, Brasil e cinema se misturam numa amálgama muito instigante em seu processo que elimina qualquer interação com a marginalidade desses personagens – o julgar está à mercê das duas colunas morais da sociedade: a TV e a polícia. Para Coni Campos a chave está em como esta equipe sairá das arapucas criadas pelo “fazer”, de uma naturalidade impregnada na cultura de sobrevivência do cinema brasileiro sem qualquer abordagem sobre um possível estranhamento às nossas condições precárias.

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Este processo é como um simples curso da concepção – e aqui vale notar como Ladrões de Cinema é completamente ignorado em cursos de cinema, que inclinam-se ao dízimo dos cowboys que Coni Campos ilustra. É a pura e inconsequente tanatopolítica. Vai da ideia na mesa do bar, do roteiro que é uma negociata, à produção que é um eterno exercício de criatividade e de aprendizado. Na mesma medida em que celebra o cinema, sua formulação como um norte de reflexões a respeito da sociedade, Coni Campos pega o caminho inverso e celebra as reflexões como essência deste tipo de arte. Coni Campos optou por não construir imagens de destruição e sim, à moda antiga, narrar a destruição.

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E este caminho segue pelas referências ao cinema novo, dando a ele uma sequência inteira ou pela a quebra total do silêncio entre campo e contracampo numa sugestão de diálogo e uma nova visão destes “marginais”. A visão antagônica é preponderante e corta todo o filme como pensamento alienado de uma classe invisível à câmera, mas que motiva a ação geral de Ladrões de Cinema. A história do Brasil não reside numa persona específica e sim num pensamento geral. Para um país que investe tanto em cinebiografias, é intrigante que este filme continue como um retrato muito atual sobre o país que inibe qualquer criação artística e consequente circulação fora do âmbito aristocrático.

[1] Idem.

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