Vamos às imagens e sensações do fim do mundo, os símbolos místicos, religiosos e mágicos da tradução dessa terra devastada. À tentativa de diálogo para investigar aonde e como foram destruídas as ideias e as terras. Se não há vislumbre de ação nem organização política diante do fascismo, talvez o verbo agressivo da profecia seja o caminho para o revide. A questão que fica latente logo no ato I de Avá – Até que os Ventos Aterrem, no entanto, é que as intenções de destruição e apoteose são quase opostas ao trabalho de câmera e montagem, mais filmagem de peça e registro pouco pensado de performance que propriamente o desencadeamento de imagens fílmicas que almeja. Partir de dois níveis no plano do palco, o alto da deusa e o baixo do humano, para não diferencia-los em imagem e nem localizá-los no espaço, acaba uma boa ideia implodida sem muitas delongas nos 62 minutos do longa.
A encenação não é adaptada para uma lógica cinematográfica, e continua presa à uma ideia de espetáculos teatral – sem o hibridismo de formas da qual a Mostra encoraja nas justificativas curatoriais; o que sobressai é uma cobertura audiovisual do texto e das atuações, com a câmera nunca soando ativa nas decisões narrativas do filme. Existe esse esforço de articulação principalmente no como as realizadoras lançam mão das imagens encontradas e das texturas experimentais que adentram uma pictorialidade na destruição em tela, mas nunca parece tensionar nas disruptivas, e sim nos termos reiterativos. A cada palavra, uma imagem equivalente; não de antítese, não de complemento, mas de equivalência.
Não por acaso, os créditos finais apresentam “Dramaturgia”, no lugar de argumento ou roteiro, porque a vontade de Avá – Até que os Ventos Aterrem parece sempre honrar uma tradição dos palcos, tradição do incômodo proposto pelo histórico do Teatro Oficina. Nesses créditos, homenageiam os atores e diretores que passaram pelo teatro, além de homenagear também os povos indígenas nas suas lutas por dignidade e por suas terras, um ativismo político que, apesar de comentado em tela, nunca ultrapassa a barreira do comentário de rede social sobre os assuntos desesperadores que aparecem nas nossas telas. No campo das profecias, sobram explicações e reflexões, faltam místicos e chamados à ação.
A opção pela crônica do fim do mundo, reduzida a um soldado num ambiente sitiado e destruído que encontra a transcendência ao buscar o contato com a carne – uma trama que já soa uma alegoria cansada e reducionista de cara – encontra pouca inovação numa encenação que não ilustra espacialmente o desafio da distância física entre soldado-entidade, pessoa-deusa, humana-natureza. As atrizes se valem do texto como dá, mas a dimensão política soa como manifesto aos ventos, pouco articulada além da impressão básica do desgoverno, do descontrole pandêmico, e do ataque às minorias a qual o Brasil passa atualmente. Sobram os trocadilhos com vacina e com guerra, falta o corpo presente que o trabalho teatral tanto almeja.
Não ajuda a opção pela lógica estruturada na fala como fluxo de consciência, vomitada pelas entranhas desesperadas, bem ao monólogo de Lucky em Esperando Godot – para trazer o contato que a peça/filme explicitamente busca, como reforçam os créditos citando Beckett; no personagem do dramaturgo irlandês, o desespero é traduzido em sua maior (e quase única) fala, cuja ambição é a pulsão e o caos na falta de coerência daquelas palavras proferidas por um escravo que sonhou com a fuga; aqui, as falas buscam esse desespero em meio a reflexões políticas muito rasas e um mapeamento de possibilidades do que constitui esse mundo imaginado, quase uma consciência una que se comunica por diversas vozes.
Fica sempre a sensação de que falta ao filme a dimensão desse espaço do futuro obliterado que versa sobre, as limitações do palco que funcionam tão bem no teatro, e que aqui soam como rascunhos distantes. É tocante que se pense numa utopia, na melhor sequência do filme perto do final, e na fúria e graça regeneradoras duma natureza agora sem prestar contas a ninguém – mas é também o refúgio mais direto e insuficiente que os supostos retornos ao primitivismo, a empostada ideia simbolista de primeira mão, desenham sem ao menos desconfiar de sua disposição acidentalmente apolítica.
Após ficar 10 meses sozinho em quarentena, Francisco quer transar. Francisco, como muitos de nós, é adepto de procedimentos capilares radicais feitos no banheiro de casa e recorre de vez em quando às propriedades paliativas dos cristais, óleos essenciais, tarô e meditação. Ele lê os últimos estudos sobre as respostas imunológicas da vacina, taxas de mortalidade, reações medicamentosas. Segue os protocolos, não sai de casa por razões banais, sabe qual é o melhor modelo de máscara, mas não sabe qual é o plural de “álcool em gel”. Julga quem compartilha as escapadas do isolamento no Instagram e acaba sendo criticado por isso. Francisco não sabe, mas é a pessoa mais bonita do mundo.
Já faz um tempo que venho me questionando sobre o sentido de um incômodo que tenho com a ideia de “filme pandêmico” enquanto gênero. Ainda não consegui chegar a uma conclusão quanto a isso, mas, conversando com um amigo, levantamos alguns motivos prováveis dessa cisma: “pode ser que esse filme já nasça um tanto datado, fixo num momento histórico” ou ainda “se aproveite de forma leviana do tema para conquistar certos espaços”, ou como gostamos de chamar (venenosamente) “filme espertinho”, o tipo de obra consciente dos mecanismos aos quais vai recorrer para arrematar o maior número possível de respostas positivas. O filme de Fábio Leal não é um filme espertinho, é um filme esperto. De uma esperteza tamanha que me deixou por quase 48 horas pensando nele, com medo de começar um texto que não desse conta nem de parte dessa esperteza. É esperto porque é sincero, engraçado, dolorido e se vale de personagens totalmente adoráveis e palpáveis nas suas neuroses e desejos. Também não merece ser descrito apenas como um “filme pandêmico”, pois ainda que a pandemia seja esse acontecimento de proporções globais, seus efeitos devem ser individualizados para não nos tornarmos dormentes. Acredito que as aflições compartilhadas pelo protagonista interpretado pelo próprio diretor vão além do momento atual. A vontade, e muitas vezes dificuldade, de se relacionar, de encontrar no outro uma companhia ou mesmo o gozo rápido, são sentimentos que acompanham a história da humanidade. Sentimentos terrivelmente humanos.
Seguindo todos os protocolos (2021)vai narrar a saga de Francisco, homem branco, gay, classe média, em busca de uma transa que não ofereça riscos de contaminação por Covid-19. Passado quase um ano de quarentena, a necessidade de estabelecer contato físico vai se tornar uma grande questão na sua rotina de cuidados e preocupações que ocasionalmente extrapolam em paranoia, e nos encontros nem sempre satisfatórios com outros rapazes, quer sejam no ambiente virtual ou no seu apartamento bem decorado. No desencadeamento de um processo de autoficcionalização, tão bem sintetizado na obra truth, fiction de Leonilson na parede de Chico, Fábio nos presenteia com momentos de humor genuíno, sem apontar dedos ou se amparar em críticas pontuais. O humor aqui é muito mais um meio – pelo qual as contradições e insatisfações de seus personagens podem vir à tona – que um fim. Em poucas palavras: tudo é muito sério e ao mesmo tempo nada é sério.
Oscilando entre tópicos dolorosos que perpassam a conjuntura pandêmica, como o afastamento dos vínculos afetivos ou o medo de contágio que se desenvolve em ansiedades mais profundas e a precarização do trabalho, e instantes de leveza, de uma intimidade construída na perscrutação dos corpos masculinos e um erotismo arrebatador digno de Robert Mapplethorpe, o filme vai desembocar numa comédia sensível, rendendo cenas memoráveis de interação entre personagens tão prismáticos que podem transitar pela brutalidade e o enternecimento sem nem nos darmos conta. A sensação que fica é que, ao trabalhar a distância e a solidão na impossibilidade do toque, estamos diante de uma obra que se avizinha bastante de um filme como Un chant d’amour de Jean Genet. Se Genet faz uso do encarceramento para tratar desses temas, Leal vai pegar alguns dos maiores temores da nossa geração e moldá-los para que caibam numa história sobre os embaraços da reaproximação e da insatisfação sexual na quarentena, ao mesmo tempo que resguarda – como um segredo prestes a ser partilhado – a esperança e a possibilidade de expurgo dessas mazelas num gesto tão singelo e libertador quanto um passeio de moto pelo quarteirão.
Os Walsh e os Ludwig do auge da era clássica nos deram instantes privilegiados, elegias encarnadas no lusco-fusco evanescente de tantas inolvidáveis obras de ourives; para os modernos, restou a desolação câmera na mão e atalhos de zooms descontínuos pelas crateras da cidade arruinada pela guerra: o neo-realismo e a nouvelle vague não falaram de outra triste Venise; e os pós-pós, aqueles que erigiram sua obra de linguagem sobre os escombros da obra diegética, acmé fascinatória e litúrgica quando clássica e cinema verdade ladeira abaixo quando moderna?
Godard, Kluge, Fassbinder maneirista, Kurt Kren actionista…inauguraram uma enlutada posteridade, nossa História aziaga do significante flutuante, do lugar de fala, do dispositivo e do simulacro; neste filme quase-caseiro mas com ambições narcisistas demiúrgicas (o seu ‘objeto’ Brendo, pelo menos, é devedor desta exaltação enlutada, desta excitação mortificada, desta paradoxal chama que nasce das cinzas do confronto com a ninfa Eco e em O dia da posse com a tela virtual da TV), Allan Ribeiro fala da percepção maníaco-depressiva dos BBBs desfolhados antes da primeira floração (digo: paredão) e dos presidentes tirados a fórceps do Poder antes do decisivo decreto’ para entrar na História, hebdomadária e mítica; não, não se trata de má poesia, de elegia avant la lettre ou de metáfora segundo o espírito, de metonímias desfiguradas pela totalidade que falta, pois aqui o objeto jamais vai ser reconstituído por inteiro, uma vez que, como o próprio sujeito da enunciação fracassada exprime, “quando diante de uma câmera jamais conseguiremos ser nós mesmos”; O dia da posse, que passou e transbordou de maniera povera por todos os codex do cinema pós-pós acima enumerados, nos fala desta ruptura instransponível, desta falha, desta fratura, impossibilidade de ser que trafica o fantasma pelos meios assombrados da imagem documental de base, sua morada senão ideal pelo menos possível, à mão: a grande épica, como o kammerspiel intimista encantatório, jamais pertencerão a Brendo, porque, tardio dentre os tardios, é um personagem elaborado pela retórica niilista que sabe que o rosto jamais vai coincidir com a máscara e que a persona humana é a invenção a posteriori de plenipotências de teatro e de elocução, de gesto e de quadro encimadas por ninguém senão as miudezas de um microfone de lapela, uma câmera DV de baixa definição, um Dream’s factory de BBB, panteão consagrado de um último capítulo surrupiado à sua plenitude pelos fac-similes lívidos e canhestros da TV mofo numinosa do youtube; mas voltemos ao fulcro, ao centro, à ribalta do final de Cidade dos sonhos de Lynch: “… o que sei é que ninguém que é filmado por uma câmera jamais consegue ser ele mesmo”.
O documentarista pós-Coutinho, pós-Lanzsmann e Flaherty, pós-Annales, pós-Histoire(s) du cinema sabe que o seu objeto nunca é totalmente documental pois, desde a falsa ou secundária contraposição (desmascarada pelo Godard da boutade ‘fim de caso’ “Toda ficção é um documentário sobre a sua própria confecção”) entre Lumière e Méliès, sabemos nós também que a captura do Real pela câmera de filmar jamais conhecerá a integridade de um olhar sobranceiro que nos guia e significa senão com o auxílio da inervação fantasmática da ficção; e o que é o Fantasma, senão o arquétipo daquilo que se atualiza numa imagem, inervada, como em todo cinema, por mediações invisíveis (montagem, cadre adstringente, luz, raccord), ou pelo fora de campo? o Fantasma necessariamente vai desaguar numa Imagem, pois como ela o seu significado é consanguíneo a mediações infra e supra visíveis, à saturação pelo fora de campo; as imagens quaisquer, comezinhas “achadas” ou duramente resgatadas à lixeira do youtube de O dia da posse ( cadre do cadre do celular, vista à janela, corpo que flutua sobre as águas em plongée alucinatória, o corpo tumefacto e o gesto evasivo de Brendo falando direta, frontalmente para nós) são devedoras do Fantasma daquilo que Brendo persegue como um bico-de-pena ao gesto do sfumato de Da Vinci e Manet: à Fama, a mais irrisória das quimeras de nosso tempo, seu fetiche e obsessão; todos os filmes, infra ou supra ficcionais, de primeira mão ou superestruturados, primeiros e últimos, originários ou tardios, devem ao Fantasma a sua inspiração-mor, mas jamais a sua execução, que é sempre obra de um manejo ultra-mediado dos significantes e materiais; O dia da posse não aposta na sofisticação dos codex linguísticos do cinema do simulacro e da enunciação diferida, de perífrase ou citação, do dispositivo e do lugar de fala devedor de fora de campo, mas em sua simplicidade frontal e dialógica com o personagem que o obceca como a Fama ao garoto da periferia do Brasil ele nos ensina algo extremamente atual sobre a potência, comum às pessoas marginalizadas politica ou geograficamente, de se servirem da infra estrutura tecnológica para permitirem ao sonho um meio de se engendrar artefato, de se materializar numa imagem, talvez o meio mais poroso às fantasmagorias alucinógenas do devaneio que habita sob as armadilhas do desterro cotidiano; o que é afinal sonhar, pensava o Freud da segunda teoria das pulsões ( 1918), senão imprimir à experiência cotidiana rememorada segundo um continuum de significantes evasivos ou refigurados por ordem temporal outra, um diapasão frenético ou em câmera lenta, ao gesto uma beatitude extática, à causalidade uma tinta de delírio intempestivo, e assim atualizar todas as camadas superpostas do id massacrado pelo prático-inerte da necessidade e da utilidade do dia a dia, dando-lhe enfim a chance de advir à superfície? o sonho de ser ator de novela, BBB ou presidente da República é indiferente, pois depende, como pensava o Deleuze de Diferença e repetição e o Kojève que leu Hegel para os existencialistas, do delírio psicótico impresso no corpo do Desejo pela época (nossa época onívora de sintomas, de grandezas e diapasões energéticos suspeitosos necessita talvez desta tríade de poder para satisfazer seu élan megalômano), mas o essencial a se reter aqui são ao mesmo tempo a insistência sintomatológica de sua expressão ( expressa pela morosidade ou repetição de certos planos), a grandeza histérica do gesto e a simplicidade neutra da fala com que desejos que atingiram os cimos da volúpia do id em se apoderar do ego se apoderam agora do quadro e da frontalidade expositiva; os clássicos sempre foram frontais, simples ( jamais simplistas: o simples acumulou em sua trajetória a imensidão das mediações do percurso fenomenológico, arregimentou vertigens e potências), porque haviam passado pelo abismo e sublimado sua potência maligna, mas sem o abismo jamais haverá suprassunção; em um livro autobiográfico, Mankiewcz nos diz de seus personagens intelectuais, como na obra prima A quiet american, que quanto mais potente a loucura mais espessa deve ser a máscara da razão; Brendo não é louco como o personagem de Redgrave no filme de 1958, mas um dia chega lá: o delírio de nosso tempo consiste em chegar à Fama sem passar pelo Trabalho, ou em termos filosóficos pela categoria hegeliana do Reconhecimento; desta erosão da experiência pelo delírio já generalizado demais para estar vivo de que Brendo é o intérprete e porta-voz Alan Ribeiro tira a experiência possível dos momentos em suspensão ( no tempo) e dos espaços prenhes de afetividade, como a mãe ao celular e os pés na maré que sobe; o personagem talvez não tenha olhos para ver, mas o diretor solicita ao espectador que complete o circuito invisível de uma vidência impossível ao campo estreito daquele rapaz um tanto deslumbrado demais para poder ver que o evento mais suntuoso de que será testemunha reside não numa tela de tv, e sim ao alcance de sua mão e de nosso olhar; a experiência, no cinema primeiro (guloso e escatológico) e no pós-guerra, sempre foi o ouro do pobre; as festas infinitas do plano sequência e locação ou o uso onívoro da profundidade de campo encapsulavam o presente num maravilhoso escrínio de tempo e espaços puros, a perder de vistas; um respingo desta oferta voluptuosa do milagre ao alcance da percepção cotidiana, agora um milagre para olhos que sabem finalmente ver (lembram-se da cega de Chaplin, ao final? “agora, eu posso ver”, ali eticamente, pois ela podia enfim adivinhar sob as vestes encardidas e rasgadas do vagabundo o grande homem que ele fora sempre) salpica a duração linear de O dia da posse com um rastro de revelações que certamente o post do Facebook ou a foto do Instagram já surrupiaram para o seu códex reminiscente, memorialista de registros hebdomadários efêmeros, mas que numa tela grande de cinema, arte monumental (monumento fúnebre, como nos ensinaram Godard e Daney, também está valendo, pois continua a ser um desvairado in memoriam), subitamente se reerguem das poeira citadina dos dias quaisquer (registrados por registros quaisquer, e esta banalidade do mal arendtiana não nos deve escapar nunca da vista inocente dos registros cotidianos, pois a exceção do Mal, do delírio ou do sonho sempre habitaram o cerne da dita normalidade, uma vez que afinal com que material se engendraria a negação do Real senão com as hastes precárias e fecundas do próprio Real?) e se postam diante de nós; o encanto e a surpresa pelo encontro com rastros de vida vivida aqui e ali nos surpreendem talvez ainda mais por ser, como dito no início deste texto, um filme quase-caseiro, um filme registro, um filme que recupera o frêmito e o tremens do Real capturado tão sordidamente pelo cadre miniaturizado do celular; em sua pequenez e condensação, em sua negação senão frontal pelo menos subliminar da escritura em sua totalizante abdução da percepção nua, O dia da posse recupera recônditos tesouros perceptivos, que talvez mais do que idos e vividos estejam ainda por vir.
Tendo em mente que “panorama” é um termo que diz respeito à vista privilegiada de uma paisagem, ou ainda uma visada geral do entorno, a Mostra Panorama, que teve início neste domingo, dia 23, configura uma espécie de cartografia diversificada das manifestações cinematográficas emergentes em território nacional. Reitero a definição da proposta curatorial porque o que se apresenta para nós nessa primeira sessão são obras que se relacionam intimamente com a geografia dos locais onde foram desenvolvidas, e com os sentidos de existência de indivíduos nesses territórios.
A começar por Transviar(2021), de Maíra Tristão, um retrato, realizado em película, de Carla da Victoria, artesã e mulher transexual residente de Vitória, Espírito Santo. De maneira sensível, o filme de Maíra vai lidar com questões que perpassam as relações familiares recondicionadas pela transexualidade e o trabalho manual enquanto um dos fatores constituintes da identidade. No processo intrincado de fabricação de panelas de argila, Carla se pergunta sobre o lugar que ocupa numa tradição compartilhada já por quatro gerações de mulheres da família, ao passo que o rio e o mangue se abrem como cenário acolhedor para essas e outras indagações.
Em Dois bois (2021) de Perseu Azul, Joana retorna à casa da família após a morte da mãe para encontrar um lar hostil e um irmão atormentado pelo comportamento nocivo do pai. Ambientado no pantanal matogrossense, Dois Bois busca desenvolver uma ideia de insurreição feminina que se perde em meio a personagens planificados e situações derivativas que não vão além das oposições arquetípicas (feminino/masculino, autoridade/insubordinação) retratadas como mero jogo de força bruta. Ainda que possa contar com uma fotografia apurada e um entendimento extensivo das articulações da linguagem cinematográfica, o filme de Perseu não consegue ser feliz na direção dos atores e muito menos no desenvolvimento da alteridade dos seus protagonistas, que não conseguem ir além de uma trajetória limitada, feita de heróis e vilões.
Uma embarcação avança pelas águas esverdeadas de um rio parcialmente dominado pela vegetação costeira. Mais à frente, avistamos uma casa sustentada por colunas que se elevam sobre a maré. De lá desponta uma criança uniformizada segurando com cuidado os sapatos e o material escolar. Na cena seguinte, um grupo de alunos na faixa dos 8 anos de idade, já reunidos no interior do barco a motor, interagem animadamente. São alunos do 3º ano da Escola Sítio Porto Alegre, situada no pequeno município de Curralinho, na Ilha do Marajó. Uma escola no Marajó (2021) é o nome do belo documentário de Camila Kzan que acompanha a rotina diária de uma pequena escola de comunidade ribeirinha. Valendo-se de uma abordagem um tanto wisemaniana, Camila observa com primor as dinâmicas institucionais que contribuem para a estruturação desse espaço (como a preocupação da diretora com o combustível do barco fornecido pelo governo e as limitações de transporte), vez ou outra flagrando instantes encantadores de brincadeiras e interações das crianças entre elas, e entre a turma e seu professor.
Em Curupira e a máquina do destino (2021), de Janaina Wagner, a noção de progresso defendida inescrupulosamente pelo regime militar na construção da Rodovia Transamazônica faz parte de uma história de fantasmas e outros ecos de um tempo distante. Se no filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna Iracema é uma prostituta de 15 anos entregue à sorte, aqui ela retorna como uma aparição nas estradas que levam à cidade de Realidade (AM), numa busca constante pelos mistérios ancestrais que habitam a mata. Partindo de um ritmo desacelerado em que imagens pujantes se arrastam, Wagner vai nos contemplar com a promessa de redenção do passado e do futuro resguardada no encontro da entidade sobrenatural “a curupira” e a menina Iracema, que invoca sua presença como quem chama uma velha aliada.
As redes de apoio, o conforto para facilitar, melhorar, e tornar mais visível a convivência com pessoas trans e travestis, são fruto da escuta e da vontade de grupos que abraçam sem desmedidas a franca ação direta. Como no curta Corre das Marmitas, também presente na Mostra de Tiradentes, Germino Pétalas no Asfalto faz do retrato de ações sociais o seu panorama de resistência contra o desgoverno atual. No filme de Ricardo Pretti e Phillipe Urvoy, o elogio experimental ao poder do movimento; aqui, no filme de Coraci Ruiz e Julio Matos, a opção pela escuta na câmera, pelas entrevistas e relatos. É um campo já coberto anteriormente pela diretora ao retratar em Limiar a transição de gênero de seu filho Noah, aqui também presente como um dos amigos do protagonista Jack, um menino de 15 anos que tem seu processo de transição filmado pelos diretores por anos. O que promete no seu primeiro plano uma investigação do amadurecimento, de um corpo e de uma personalidade, se torna um coral de demonstrações de afeto para se fazer presente diante de quem precisa de apoio ao tomar escolhas que infelizmente ainda soam tão incômodas a uma sociedade retrógrada.
É um filme que propõe o olhar para as alternativas, para as formas de organização e união que surgem como parapeitos para pessoas que são rejeitadas nos meandros mais normativos sociais no Brasil – religião, política de situação, relação afetiva, família. Nesse campo, visitamos um encontro mediado por Victoria, personagem que se identifica como “travesti feiticeira”, e que cria rodas de conversa e escuta para compartilhamento das experiências, suas e alheias, sobre sua identidade e como ela se insere no social. É através dela que o filme se permite passagens mais performáticas, focadas no misticismo dessa nova religião travesti, uma revisão de ícones de religiões outras para propor visibilidade diante do apagamento. É um jogo narrativo tendendo a transgressão mas que é montado como causa e consequência das mais básicas, mesclando essas alternativas afetivas com a violência do bolsonarismo e seus tentáculos, o que sublinha demais as ideias propostas pelos diretores.
O detalhamento na estética do cinema observacional, mais atento aos processos e comportamentos, acaba conflitando com a disposição pontual de criar uma disparidade com a violência dos relatos trans e homofóbicos dos homens da extrema direita que têm seus palcos nas igrejas e nas sessões parlamentares. Essa disparidade é reforçada até a exaustão, tanto na montagem quanto nos grafismos que volta e meia tomam a imagem, animações que propõe uma “sensibilidade”, uma “pureza” desses gestos que se espalham pela cidade (como o título propõe), mas que acabam domesticando e trivializando um tanto essas ações de pertencimento. Os glitches na imagem, que surgem como dizendo que as representações estéticas estão em crise, também soam gratuitos e afirmam mais ainda que o forte do filme é na temática e nos personagens que retrata.
Em certo momento, uma pessoa toma o microfone no encontro da UNA para falar sobre como a pós-modernidade aceita que as mudanças de estrutura social podem ser feitos dentro do próprio sistema heteronormativo, e como ter essa visão é algo perigoso e insuficiente para dar conta das vontades e anseios da comunidade que representa. Essa fala não apenas evidencia bem toda a disposição do filme em focar nos rituais alternativos, uma questão moderna por excelência e que serve bem ao senso de coletividade despertado por essa transformação pessoal de Jack e seus amigos, como também preenche lacunas que o filme infelizmente deixa, ao apostar mais num panorama um tanto genérico das trocas necessárias para se confrontar essa dura realidade de enfrentamento.
É complicado pensar nos termos de forma e conteúdo em filmes como esse, não só porque seria um reducionismo estético separar as duas margens que nunca deveriam soar dissociadas, como também se argumenta que fazer isso é cair no binarismo que a própria natureza temática do filme critica – mas a desconexão entre as boas intenções e a articulação estética sobre elas fica bem evidente. A câmera parte de um relato de amadurecimento, das incertezas e da identidade na formação de jovens, para se contentar com o que se espera do registro afetuoso tantas vezes vistos sob temas sensíveis e atuais – não por acaso presentes com frequência em Tiradentes. Fica a torcida por um alcance maior de público para elucidações acerca do tema; é a limitação e a vontade de Germino Pétalas no Asfalto.
A 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes começou deixando um gosto agridoce na boca de quem foi pego desprevenido com a notícia, quase às vésperas do festival, do cancelamento das exibições presenciais. Entre momentos preciosos da abertura transmitida no Youtube – como uma homenagem à colossal Elza Soares, que nos deixou essa semana –, a presença da montadora Cristina Amaral comentando sua relação com Adirley Queirós e as vinhetas rememorativas realizadas a partir de antigas entrevistas com figuras essenciais da mostra (como um muitíssimo jovem Francis Vogner dos Reis), sobra ainda espaço para o lamento pela inevitabilidade de uma situação pandêmica que violentamente nos priva de instantes tão recompensadores quanto a conversa acalorada na mesa de bar após uma sessão, ou ainda, tendo em conta a classe dos realizadores, a possibilidade de ter seu trabalho atravessado pela experiência coletiva de uma plateia reunida em frente à tela grande do cinema. Se por um lado o formato virtual representa uma forma de democratização do acesso e de priorização da saúde pública, por outro é bem provável que ele pode ainda facilitar certos processos dispersivos e de carência das condições ideais de exibição. Parte desse lamento reside no fato de que não há muito, na verdade quase nada, a se fazer. Resta celebrar à distância a persistência de um evento que há 25 anos oferece um espaço único de acolhimento e florescimento do cinema brasileiro, apesar de tudo.
No primeiro dia de festival, decidi focar nas três sessões independentes de curtas-metragens: Mostra Regional, Mostra Foco Minas e a Mostra Temática: Cinema em Transição. Seguem as obras (diversificadas entre trabalhos de veteranos e iniciantes) que mais ressoaram por aqui:
O que eu gosto de fazer é ter nascido no mundo (2021) de Monique Rangel – Mostra Regional
No filme de Monique, conhecemos Maria da Conceição Rangel, Aparecida Rangel e José Rangel, três familiares que realizam juntos um gesto de imersão nas memórias de um antigo centro de umbanda na cidade de Leopoldina, outrora regido pela matriarca da família já falecida, e hoje uma espécie de depósito de imagens sacras que perecem pela ação do tempo. A relação com a diretora (que compartilha do mesmo sobrenome) não é posta de maneira clara, mas é notável a cumplicidade que ela exerce enquanto ouvinte que acompanha atentamente os relatos dos protagonistas, pontuados por temas que envolvem fé, misticismo e questões de raça. A crença em milagres, as lembranças narradas de um lugar de assombro e a confiança mútua que vai permitir a abertura e o compartilhamento sincero faz com que O que eu gosto de fazer… se concretize como uma experiência encantadora, que deixa claro ainda o papel da história oral na superação da morte e do tempo.
Ácaros (2021)
de Samuel Marotta – Mostra Foco Minas
O curta-metragem é um formato que por si só pode garantir experimentos interessantes, que ultrapassam a simples necessidade de concatenar uma ou mais cenas em um curto espaço de tempo. No caso de Ácaros, em pouco menos de 5 minutos Samuel Marotta realiza um jogo de revelação que se vale de exercícios concretos de escala, aproximação e distanciamento para desvelar uma imagem maior e assustadora. É um filme sobre ruínas que podem abrigar outros mundos (ou seres vivos, além de ácaros), e nada mais certeiro que o uso da trilha de Rebeldes do Deus Neon de Tsai Ming-Liang, um cineasta que, entre outras coisas, sabe localizar e trazer à tona a pulsão de vida que emerge das paisagens decadentes.
Corre de Marmita(2021)
de Luiz Pretti e Philippe Urvoy – Mostra Foco Minas
No filme de Pretti e Urvoy uma câmera dinâmica acompanha e assimila o “corre” envolvido na coleta e doação de alimentos e materiais de higiene pessoal pela Kasa Invisível, uma ocupação anticapitalista e autônoma de Belo Horizonte cujas áreas de atuação se estendem a ações de cunho social como a distribuição de marmitas para a população em situação de rua num momento de grande vulnerabilidade como a pandemia. A montagem acelerada, os enquadramentos fragmentados de braços, mãos, corpos sem rostos e as vozes determinadas dos integrantes do coletivo condicionam uma fisicalidade e movimento a Corre de Marmita que nos cabe reconhecê-lo como um elogio da ação direta.
Rua Ataléia(2021)
de André Novais de Oliveira – Mostra Cinema em Transição
O cinema de André Novais é um cinema conhecido pelo tratamento dado à intimidade e cotidiano familiares como catalisadores do extraordinário que por vezes percorre subterraneamente o ordinário. Nesse filme, gravado há mais de 10 anos e só agora recuperado, Novais mergulha na escuridão total de um apagão na rua para encontrar seu irmão e seus pais como habitantes de uma noite infinita, respingada por uma ou outra fonte de luz. A textura granulosa da imagem que deixa os contornos tão turvos, não restando nada além de cabeças flutuantes, parece enviar uma mensagem codificada de algum lugar do passado: a memória é essa coisa viva que vai tentar se fazer visível quando menos se espera, nesse caso, em uma brincadeira de reconhecimento de fotografias de um antigo álbum de família.
Yãy Tu Nũnãhã Payexop: Encontro de pajés (2021)
de Sueli Maxakali – Mostra Cinema em Transição
A realocação de aproximadamente 100 famílias tikmῦ’ῦn-maxakali da reserva de Aldeia Verde em decorrência da pandemia é o motivo que norteia o filme de Sueli Maxakali. Mas, sem se ater aos aspectos práticos que envolvem o deslocamento e o isolamento da aldeia, a diretora traz, por meio de cenas absolutamente poderosas de conexão imediata com a terra e de celebração com cantos e danças, um vislumbre da força vital que transborda de suas imagens: a ritualização da esperança.
Quando me deparei pela primeira vez com filmes de vanguarda no início dos anos 60, os trabalhos que achei mais interessantes foram aqueles que estavam desenvolvendo uma linguagem única para o cinema, uma linguagem em que o próprio filme se tornou o lugar da experiência e, ao mesmo tempo, era uma evocação de algo significativamente humano. Comecei a perceber que momentos de revelação ou vivacidade me vieram da maneira como um cineasta usava o próprio filme. Mudanças de luz de um plano para o outro, por exemplo, podiam ser muito viscerais e eficientes, comecei a observar que havia uma concordância entre o filme e nosso metabolismo humano, e a ver que esta concordância era um terreno fértil para a expressão, uma base para explorar uma linguagem intrínseca ao filme. Na verdade, as propriedades físicas do filme pareciam tão sintonizadas com nosso metabolismo que comecei a pensar no filme como uma metáfora, um modelo direto e íntimo, para nosso ser. E senti, na medida em que pude mergulhar nesse modelo e tê-lo nos representando de forma direta e profunda, que o próprio filme tinha o potencial de ser transformador, de ser uma evocação do espírito, e de se tornar uma forma de devoção.
Convidado a falar das afinidades que podem ser traçadas entre cinema e religião, o cineasta experimental Nathaniel Dorsky trata em seu livro Devotional Cinema de um fator que acredita estar diretamente ligado à crença e à devoção: a capacidade do cinema de provocar respostas físicas no espectador, de se relacionar tão intimamente com nossa fisiologia que estabelecemos um vínculo devocional com alguns filmes. Dorsky ilustra isso no começo do livro relatando uma memória marcante da infância, uma experiência pós-sessão na qual, aos 9 anos de idade, depois de passar quase a tarde toda na matinê, sairia do cinema num estado entorpecido, observando o mundo que se apresentava como que constituído de cores, texturas, luzes e sons insólitos, alienantes. No caminho de volta para casa, a rua lhe pareceu um lugar estranho, e por um momento seu próprio lar também.
Todos nós, de certa forma, e em maior ou menor grau, já sentimos esse entorpecimento. As luzes se acendem e os rostos na sala se tornam confusos, lá fora a claridade injeta a retina com uma realidade ainda distante. Francesco Casetti, em seus estudos sobre o terror que o primeiro cinema provocou nas plateias pouco acostumadas (chamado apropriadamente de “cinefobia”), vai trazer exemplos de indivíduos que diante do evento cinematográfico foram tomados por uma comoção sobrenatural:
Ontem à noite eu estive no Reino das Sombras. Se você apenas soubesse como é estranho estar lá. É um mundo sem som, sem cor. Tudo ali – a terra, as árvores, as pessoas, a água e o ar – é mergulhado em cinza monótono […] Não é vida, mas sua sombra. Não é movimento, mas um espectro sem som. (Maxim Gorki)
Uma cabeça de repente aparece na tela e o drama, agora cara a cara, parece dirigir-se a mim pessoalmente e transborda com uma intensidade extraordinária. Eu estou hipnotizado. (Jean Epstein)
Esse tipo de testemunho me faz pensar nas minhas próprias experiências de arrebatamento, para além do choro mais ou menos contido ou dos pelos do braço arrepiados numa cena que seria revista inúmeras vezes mais tarde tentando reproduzir essas sensações. Um episódio específico talvez tenha me marcado de forma incomum: meu corpo retesado na cadeira desconfortável sendo tomado por uma descarga de medo e maravilhamento, um calafrio na espinha seguido pelo coração agitado e o sangue gelado, a certeza de que minhas pupilas se dilataram tentando absorver toda a luminosidade emitida da tela naquele instante. É difícil descrever o que se passa nessas horas, porque assumir o poder que a imagem em movimento tem sobre você é também um relato de aparições e de mundos transfigurados. E é disso que se trata essa exposição: uma história de amor e de fantasma.
Raúl Ruiz falava de um cinema com a capacidade“de nos deixar viajar até os limites da criação através da simples justaposição de um pequeno número de imagens trêmulas”. Segundo o diretor chileno,“neste impressionismo radical, o nunca visto estaria ao nosso alcance. O cinema se tornaria o instrumento perfeito para a revelação dos mundos possíveis que coexistem bem ao lado dos nossos”. Parte desejo parte projeção, acredito que esse aspecto revelatório do qual falava Ruiz pode manifestar um tipo de presença fantástica/fantasmagórica que por muito tempo esteve confinada aos domínios das habilidades mediúnicas e dons extrassensoriais. A fotografia e mais tarde o cinema não só trouxeram outros mundos – invisíveis – à tona, mas nos tornaram capazes de replicá-los e reproduzi-los, um tipo de registro partilhável que de certa forma democratizou o ato de ver e acreditar no extraordinário.
Minha história de assombração não é minha, é uma livre adaptação de Kenji Mizoguchi e do roteirista – e seu colaborador de longa data – Yoshikata Yoda de dois contos diferentes tirados de uma compilação de fantasia escrita por Ueda Akinari, Ugetsu monogatari – Contos da lua vaga por aqui. Mesclando temas que remetem à avareza e cobiça masculinas (considerando também a inclusão mais branda na lista de referências do conto “Condecorado”, de Guy de Maupassant) em oposição à benevolência e parcimônia de suas personagens femininas, Contos da lua vaga (1953), dirigido por Mizoguchi, narra a trajetória de dois aldeões de Nakanogo, na província de Omi, durante um período de guerra civil no Japão do séc. XVI, e as circunstâncias que envolvem a dissolução de seus respectivos universos familiares.
Genjuro, casado com Miyagi e pai do menino Genichi, é um ceramista habilidoso que aproveita a escassez de suprimentos ocasionada pela guerra para vender suas peças de cerâmica na aldeia vizinha. Tobei, por sua vez, é casado com Ohama, irmã de Genjuro, e sonha em um dia tornar-se samurai. Certa noite, Nakanogo é invadida pelo exército de Oda Nobunaga, forçando os camponeses a fugirem. Genjuro consegue salvar a última fornada de suas peças, e, juntamente com Tobei, decide atravessar o lago Biwa com suas esposas e filho, na tentativa de levar a mercadoria para ser vendida em outro lugar. No meio do caminho, eles são avisados de que piratas e saqueadores estariam por ali. Miyagi e Genichi saltam do barco e voltam, ficando acordado que, após conseguir arrecadar dinheiro o suficiente, Genjuro retornaria para a família.
Na cidade, os dois homens rapidamente alcançam certa notoriedade. Com os ganhos, Tobei adquire uma espada e armadura, tornando-se samurai, mas negligencia Ohama, que é estuprada por membros do exército e acaba se tornando meretriz. Genjuro é abordado por uma jovem da nobreza, Wakasa, e sua acompanhante idosa, em busca de peças de cerâmica para seu palácio. O ceramista vai até a residência e descobre que ambas foram as únicas sobreviventes de um massacre. Seduzido pelos modos ostensivos com os quais é constantemente tratado, Genjuro se aproxima de Wakasa e, após um período vivendo juntos, ele é avisado por um sacerdote de que na verdade tanto a jovem quanto sua serva se tratam de espíritos amaldiçoados.
Um ritual de exorcismo é realizado, e os dois fantasmas, assim como o palácio, desaparecem na manhã seguinte. Genjuro retorna para casa e encontra mulher e filho o esperando. Ele é tratado com cuidado e afeto, adormece e, quando desperta, descobre pelos outros aldeões que sua esposa havia sido morta há certo tempo tentando proteger de um soldado seu único alimento. Por fim, vemos Tobei e Ohama juntos, de volta à vida simples. Genichi corre até a sepultura da mãe com uma tigela de arroz num gesto honroso, e ouvimos a voz etérea do espírito de Miyagi. Um movimento de grua faz a câmera ascender aos céus.
As leituras de Contos da lua vaga passeiam pela propaganda anti-guerra, pelos efeitos destrutivos da ganância encarnada na figura masculina e da bondade misericordiosa e reparadora das personagens femininas. O crítico Robin Wood viu ali uma situação na qual as mulheres, apesar de estarem sujeitas sacrificialmente a um mundo de sofrimento provocado pela dominação patriarcal, “causam uma impressão tão forte na vulnerabilidade de sua situação social que nunca as esquecemos, mesmo quando elas estão ausentes por longos períodos de tempo de tela” . Para além das oposições de gênero e entre o material (a multiplicação dos ganhos, os objetos de cerâmica que assumem o estatuto de arte refinada ao serem adquiridos por uma nobre, o desejo de ascensão de classe) e o espiritual, o filme de Mizoguchi também lida com o amor como essa força transcendental capaz de curar feridas e conjurar espíritos. Tobei encontra com Ohama na casa de meretrício, mas está disposto a abandonar uma ideia de “honra”, enquanto samurai e enquanto marido, para ter de volta a vida pacata que viviam. Wakasa, por sua vez, não consegue partir para o além-vida porque nunca pôde experienciar o amor de um homem. Por fim, Miyagi, a esposa que olha pelo filho e pelo marido uma última vez antes de evanescer definitivamente.
Já o amor que transborda na devoção da qual Dorsky fala, para mim vai se manifestar numa cena cujos efeitos físicos já foram mencionados aqui. Mais ou menos na metade do filme, após receber a proposta de casamento de Wakasa, sem ainda saber tratar-se de um fantasma, Genjuro participa de uma espécie de celebração na qual a jovem dança em movimentos lânguidos inspirados no teatro Nô, e canta uma canção envolta por uma aura incomum. A voz suave fala da efemeridade das mais belas sedas diante das juras de amor eterno, é doce e cálida. Entretanto, pouco a pouco, novos instrumentos, extradiegéticos, podem ser percebidos e um ritmo assíncrono se apodera do ambiente. Wakasa demonstra temor e o que acontece em seguida é uma das sequências mais aterrorizantes e belas que já pude experienciar numa sala de cinema.
Uma voz masculina irrompe num canto gutural e nesse momento toda a mise-en-scène é feita refém do tom lúgubre que recai ali como uma sombra aniquiladora. Wakasa recua lentamente, acompanhada pela câmera, as luzes diminuem de forma que ela passa a ser engolida pela escuridão. Uma panorâmica vai revelar a antiga máscara de samurai de seu pai, um daimyo – senhor feudal – morto na invasão do exército, e cuja presença assombrada agora é materializada no seu canto e na imagem bestial da máscara. Wakasa se refugia nos braços do amado com horror, e explica que essa é a voz de seu falecido pai, enquanto sua serva exclama com admiração que ele parece estar contente:
“Por causa de Nobunaga Oda, aquele detestável Nobunaga Oda, a casa de Kutsuki foi dizimada. Os únicos sobreviventes foram Lady Wakasa e eu, sua criada, mas o espírito do falecido mestre permanece no palácio, e canta assim toda vez que minha dama dança. Não é uma voz esplêndida?”
A cena toda dura menos de cinco minutos, mas é incontornável. Parte do horror vem do fato de que até agora os fantasmas (Lady Wakasa e as criadas) se apresentaram como seres mundanos, que podem ser tocados e sentidos, nos mantendo alheios à sua existência, mas nesse ponto do filme somos surpreendidos com a possibilidade do oculto se revelar sem ser anunciado, com certa violência até. Dizem que o medo é um mecanismo de defesa, mas aqui ele funciona como um chamamento das coisas extraordinárias que podem habitar os limites do real e da imagem. A imagem, por sua vez, quando assombrosa e perfurante, acredito que pode impregnar, possuir um receptor. Eu jamais consegui me desvencilhar do espanto sentido nesse instante: relembro os detalhes como se tivesse o poder de invocá-los e eles tivessem poder sobre mim. Ver rostos na janela de uma casa abandonada, divindades na infiltração da parede ou um ente querido que já partiu na mancha de uma fotografia faz parte dos encadeamentos poderosos aos quais submetemos a visão e a crença. Os fantasmas de Mizoguchi não são só assustadores, estão aqui presentes agora reassegurando minha fé e meu amor pelo cinema:
Pascal Bonitzer costumava defender que o sucesso do cinema estava relacionado àquilo que, em essência, ele era capaz de reproduzir: o movimento e a vida. Ou seja, todo e qualquer procedimento que surgisse depois do registro original significaria uma alternância ou uma mancha diante do momento áureo e verdadeiro da captura. No fundo, a questão que realmente estava em jogo era nada mais nada menos que uma espécie de disputa entre realidade e mentira frente ao que se convenciona chamar de acontecimento. Isto é, se chamava-se o cinema de uma arte primeira voltada às atrações, era justamente porque a ele se devia a capacidade do aparato técnico da câmera em registrar o que de mais espantoso guardava o mundo. (Efeito esse, aliás, que passado um século da invenção cinematográfica, perdura até hoje: independente de códigos ou razões mecânicas, pouca coisa em cinema supera a sensação do espanto — de Mèliés a Ford ou Shyamalan, toda a aparição registrada com louvor será sempre uma hecatombe).
No entanto, retornando ao dilema de Bonitzer, é possível ponderar que as diferenças da superfície-vídeo e da “superfície-grão”, a “imagem verdadeira”, chamemos assim, sejam muito menos relevantes do que uma revelação que reside no princípio de seu próprio raciocínio: antes de mais nada, a câmera, o ecrã, é a fonte primeira da captura da realidade. À sua própria luz nada escapa, e tudo que emerge diante do registro (aquele que não é adulterado ou modificado, claramente) pode ser lido como verdade. No fundo, a experiência cinematográfica é sobre isto: estar diante de uma janela intransponível, de um feitiço inalcançável.
Considero por bem relembrar tudo isso antes de começar a discorrer sobre o cinema de Ricardo Alves Jr. para que esteja claro que toda e qualquer presença analisada em seus filmes é resultado de um conjunto de fatores humanos que corriqueiramente são carregados até o limite da captura dos planos. O que significa dizer, em essência, que aquilo que existe, aparece, saltando diante dos olhos. E isto se dá não graças a uma trucagem posterior ao procedimento, mas sobretudo devido ao desejo de investigação conferido pelo plano frente aos rostos e corpos de sujeitos tão severamente enigmáticos. Sujeitos estes que, frente à câmera, são incapazes de repelir, transbordando através de faces, marcas e feições uma gama de sensações que dizem respeito ao indefinido.
Em palavras mais simples: de Material Bruto (2006) até Elon Não Acredita Na Morte (2016) o que se estabelece na obra do cineasta diz respeito a um jogo de fantasmas, de corpos que são capazes de estarem diante do ecrã mesmo parecendo não estar. Dentre estes personagens, pode-se rememorar o convidado que nunca chega à mesa de refeições de Convite Para Jantar com Camarada Stalin (2009), passando pelos corpos inertes e calados de Permanências (2010) e chegando aos personagens de Elon — seja do próprio Elon Rabin de Tremor (2014), que assim como o cavalo do filme persegue espaços vazios e escuros a procura do nada, até o próprio Rômulo Braga, na versão mais longa da narrativa, que crê estar atrás da esposa quando na verdade caça incessantemente o espectro de um corpo já morto.
No fim das contas, o que existe de mais reluzente na obra de Ricardo é uma capacidade bastante singular de estar a capturar a presença humana, tanto a do corpo quanto a do espírito, oferecendo ao espectador uma operação que privilegia o enigma, o não-visto que acaba por se revelar na concepção fotográfica de seus filmes. Neste contexto, duas obras de sua filmografia mostram-se essenciais na interpretação destes paradigmas: Material Bruto, seu primeiro filme, e Permanências, média-metragem realizado em 2010. Em ambos os casos, o contexto do filme se relaciona diretamente com o local cujas obras transcorrem: centros habitacionais de Belo Horizonte, locais simbolicamente abandonados ao léu pelos órgãos públicos da cidade e que estimulam o embate entre corpos deixados para trás e espaços em ruínas, prevendo assim um ambiente fértil para que haja uma trepidação da realidade. Em suma, o que este par de filmes dá conta de demonstrar é que a vida humana nestes espaços costuma orbitar um outro regime de tempo e de sensibilidades. Como se os sujeitos passassem a fazer também parte das pedras, das paredes e do tempo de uma localidade em específico, permitindo a estes corpos que sejam eles também uma espécie de habitação.
O primeiro detalhe resultante deste contexto que pode ser observado através do cinema de Ricardo Alves diz respeito ao trato com a pele, além da atenção que a câmera obtém quando procura capturar os rostos. Tanto em Material Bruto quanto em Permanências, o tempo transcorre de modo lento, a fazer com que essas marcas da vida (cicatrizes, rugas e olhos constantemente marejados — que, aliás, dizem muito também sobre onde estes filmes se passam e sobre quem são estes sujeitos), adquiram outras conotações através da dilatação dos planos.
Em Material Bruto, cada bloco do filme é dedicado ao esforço do realizador em aproximar-se cada vez mais do potencial de delírio destas habitações: há o personagem de Elon Rabin (o mesmo de Tremor e Elon Não Acredita na Morte) que durantes longos minutos performa uma espécie de surto diante de câmera, como se estivesse a estar possuído. Logo após, temos a presença de uma moça, que sentada em uma cadeira centraliza toda a ação de seus braços como se fosse guiada por uma força oculta, que não provém diretamente da concepção daquele corpo. Ao filmá-los, Ricardo é capaz de revelar um enigma importante: as imagens que forja não se revelam pelo que contém necessariamente de visível, mas sobretudo pelo que emulam e sugerem ao espectador. Não são imagens dadas, denotadas de certeza. São todas imagens oferecidas, operadas para que a presença ou a aparição se faça presente no campo da imaginação. Para que o espectro (o invisível dos espaços) possa também ter um lugar na janela da transparência que é o cinema.
Permanências é também uma obra que opera neste mesmo espírito, mas que diferentemente da catarse física oferecida por Material Bruto (essa presença invisível que possui os corpos e faz com que se choquem), privilegia a extensão do silêncio através da contemplação espacial das habitações. Num sentido mais amplo, permanecer diz respeito não apenas aos corpos que lá estão como também a cada movimento (lembremos de Bonitzer e do que falava sobre a essência do cinema) que a vida humana opera nestes recintos. Acima de qualquer outro, há um longo plano em Permanências que considero mais marcante que os demais: o de um homem mais velho a fumar um cigarro enquanto encara as lentes de Ricardo. Como disse, jamais será factível dizer que há ali uma presença ilustre, a tal imagem fantasma, mas o que o cinema revela a quem o assiste (ao homem e ao filme) é a certeza de que algo pulsa naquela presença, algo de carne, osso e matéria. Algo que se constrói através do agudo da chuva, da densidade da fumaça e dos olhos bem abertos, mediante espaços ocos e compartilhados, onde o filme procura rastejar — sempre na altura dos sujeitos — em busca da emulação de uma memória, essa lembrança indistinta que não se sabe bem o que é, mas que se sabe que existe.
Por outro lado, esse aspecto do fantasmagórico permanece presente também nas obras com apelo ficcional produzidas pelo realizador. De certo modo, é como se o cinema de Ricardo Alves Jr. funcionasse perante uma lógica da perseguição destes fantasmas dos corpos e dos espaços, que se penduram em uma linha muito tênue entre vida e morte. Tremor e Elon Não Acredita Na Morte são exatamente sobre isso: sobre perseguir o indefinido. Impossível não lembrar que Rômulo Braga percorre toda a cidade de Belo Horizonte andando sempre em círculos, passando por locais de grandes circulações, tentando se agarrar a toda e qualquer materialidade que lhe traga de volta à amada: das portas que chuta e arromba até as paredas nas quais sempre passa a mão, é como se este fosse também um personagem que emergiu da imaterialidade dos, e que reconhece a capacidade animada das coisas em se comunicarem com os sujeitos.
Não deixa de ser curioso, ademais, que Elon seja uma espécie de segurança ou guarda noturno, pois é justamente nessas horas mais escuras que o indefinido faz morada, visto que a imagem já se torna incapaz de registrar com uma definição mais aguçada a verdade. Existe uma cena específica do longa-metragem em que o personagem vai de andar em andar em um prédio vazio à procura de algum sujeito ou de um invasor. Em nossa memória, fica a sensação de um indefinido, como se não fosse impossível que Madalena (Clara Choveaux), sua esposa, estivesse por lá, o assombrando. Em meio à busca, a lanterna de Elon vai jogando luz às paredes abandonadas, e quanto mais o sujeito procura por algo menos é capaz de encontrar uma materialidade concreta daquilo que o atrai. A grande verdade, é que tudo isto não está mais lá, mesmo que esta sensação se faça constantemente presente. Curiosamente, ElonNão Acredita Na Morte é um filme sobre uma mulher que nunca aparece de fato. Aparece seu espelho — no caso, sua irmã gêmea de cabelos louros — e aparece também o seu fantasma, materializado em um belíssimo plano onde Clara Choveaux passa os grãos de café no rosto, como quem tenta provar que é uma superfície verdadeira.
No fim, tudo se descobre como uma grande assombração. Pois tanto Madalena quanto sua irmã nunca estiveram lá verdadeiramente: estava lá, sim, uma presença, um acontecimento, que habitava possivelmente nas tantas sombras que rodeiam este personagem. Se aquilo que existe, aparece, em um sentido mais lógico, então, é factível conjecturar que Madalena talvez sequer tenha existido como um corpo concreto naquela realidade. Pois a imagem de Ricardo não revela nada de legível ou real que não faça também parte do universo da sugestão. Elon não persegue a amada, mas sim a miragem dela, o seu legítimo fantasma. Se é fato que o personagem não acredita na morte, isso se dá justamente por estar muito mais perto do mundo das sombras e dos espíritos do que deste mundo carnal, onde todo e qualquer café que se esfregue no rosto é tão volúvel quanto água. E a única certeza que existe na obra de Ricardo é unicamente aquela de Bonitzer, que perpassa todos esses filmes citados anteriormente: o que o cinema registra, está lá verdadeiramente. Já o que está no extracampo, que faz com que esses olhos, peles, rostos e espaços pareçam tão distantes e distintos, é apenas uma sugestão. Uma tentativa mais clara de aproximar o gesto do cinema a estes corpos e lugares habitados por fantasmas.
O fantasma pode bem ser a imagem que os olhos deixam escorrer pelos dedos, mas que o espírito a ele com tudo se agarra. Sua raiz etimológica está no que se “faz mostrar” ou se “faz ver” (phantázein); enfim, uma aparição (do “aparecer” phaneín). E uma aparição não é uma imagem que se anuncia; é uma imagem que invade. Que desestabiliza, que estremece o local de surgimento. A aparição se impõe do vazio aos nossos olhos, torna-se o centro de toda atenção e, quando se esvai, fica gravada na mente, voltando quando quer, pulsando em vida própria dentro do espírito. O fantasma é a vida da visão assombrando a vida dos que veem.
Naturalmente, no cinema, tudo é fantasma. É imagem que passa na tela e invade o espírito. Podemos recorrer à reprodução da imagem novamente mas, muitas vezes, o gosto está na memória da visão fazer do concreto uma tela às retinas do lembrador. Sem Título #1: Dance of Leitfossil, de Carlos Adriano, é essa experiência feita estrutura fílmica e, por isso, é, ao mesmo tempo, um filme de fantasma, de memória e de cinema.
Adriano abre o curta assumindo o movimento retroativo já com a primeira legenda em fundo preto: “apontamentos para uma autocinebiografia / (em regresso)”. Entra, então, a imagem icônica do sorridente Vassourinha com um indicador levantado em frente à boca, como pedindo silêncio enquanto começa a faixa Desfado, de Ana Moura (o show está começando). Corte para o preto e, junto com os acordes do violão, entram Ginger Rogers e Fred Astaire, dançando na também icônica sequência de dança em Ritmo Louco (George Stevens, 1936). Os movimentos deles combinam perfeitamente com o tempo do fado de Moura.
A escolha por essas duas imagens, em suas texturas rasgadas pelos grãos do tempo sobre papel e celulóide, confere ao filme o tom de colcha retalhada (imagens velhas, reaproveitadas como panos velhos na formação de um novo conjunto). A foto de Vassourinha, por si só, parece uma referência ao mais celebrado filme do diretor, A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998). Um filme em cima da dificuldade de acesso à figura e à história do fenômeno sambista dos anos 1930 e 1940, precocemente morto no auge do sucesso. Ele se mantém por artigos de jornal e documentos legais mal conservados, discos arranhados de sua música: o contato com Vassourinha é necessariamente mediado pela degradação. A imagem usada em Sem Título #1 é cartaz de A voz e o vazio (e o referencial visual à obra mais comumente usado por sites de crítica ou cinéfilos), uma sorte de imagem simbólica associada a Adriano, e que parece adequada para abrir, sob reapropriação e ressignificação, uma série autobiográfica de filmes. A extensa pesquisa para A voz e o vazio foi auxiliada por Bernardo Vorobow, companheiro de décadas do diretor e então já falecido. O acesso a este amado partido, como o filme virá a mostrar, tem um rumo analogamente tortuoso.
Desfado é uma música vibrante e bem-humorada cujo eu-lírico sente tristeza por estar feliz demais para fazer seu fado: “Ai que saudades que eu tenho de ter saudades / saudades de ter alguém que aqui está e não existe / sentir-me triste só por me sentir tão bem / e alegre, sentir-me bem só por eu estar tão triste”. A dança de Ginger e Fred ao som de Moura se estende num longo plano inteiro, e é interrompido pela tela preta no verso: “e lamentasse não ter mais nenhum momento”. É a primeira fratura de um plano até então sem nenhum corte, que consiste no hipnótico dueto corporal da dupla de dançarinos mais celebrada da história do cinema. O plano estava azulado, e agora retorna esverdeado. O procedimento de colorizar o enquadramento inteiro era muito comum no cinema narrativo dos anos 1910. Sem a existência do technicolor ou tempo para colorização à mão, a indústria recorria a um filtro de cor que tonalizava a cena num todo em tentativa de conduzir sensorialidades que condizessem com o tom do enredo.
A imagem será novamente interrompida após o fim do número, com a saída dos dançarinos por uma porta, e um lampejo menos de 1s de Bernardo Vorobow rindo invade a tela em tom esverdeado (como um fragmento perdido da cena de dança que acabara de ser cortada) exatamente no verso “que aqui está e não existe”. Agora a cena do filme de 1936 retorna rosada e contrastada, mais quente e receptiva após a visita de Bernardo, para depois ser interrompida pelo preto e pelo lampejo agora azulado do riso de Vorobow. O posicionamento dos cortes mais significativos da primeira metade do filme (a interrupção de Ginger e Fred, o surgimento de Bernardo), necessariamente quando a música fala de fim e de ausência, prenuncia o encaminhamento da segunda metade do curta.
“Não repetir / Apesar do bis”, diz a legenda entre as metades do filme. Retornar, mas de outra forma sempre, como o rumo caótico da memória. Ginger e Fred retornam agora no tom prateado originário, e seus movimentos não duram mais de 2s antes do corte para o preto. Como a luz da lâmpada marcada na retina quando olhamos demais para ela, o último frame da dança antes do surgimento do escuro se repete em nossos olhos após o corte, tornando Ginger e Fred espectros mentais encantados. Eles não mais são interrompidos, mas invadem eles mesmos a estabilidade do vácuo com sua cadência mágica. O lampejo de Bernardo passa pelo mesmo processo; agora, quando surge, tem a mesma duração que os dos atores dançarinos, e o inclinar de seu riso é quase um movimento de dança (surgindo exatamente em “ai que saudade”, “e não existe”, “que aqui está”). A unidade corrente da música vira a liga das três imagens fragmentadas em pirilampos. É a feliz dança dos mortos, que cintilam porque apagam.
Daí a analogia com o “fóssil de idade” do título: quando mais se passa o tempo, e mais se dissolve a ossada, mais gravada em pedra fica sua forma. No lugar da pedra, o filme grava em psique. A interrupção da imagem é o que a faz durar um tempo a mais no olho e na alma. Sua fragmentação a torna mística: o curto inclinar de Bernardo em riso solto é imagem tatuada e mágica como o flutuar do vestido e dos cabelos de Ginger, dos braços esticados de Fred. Assim como a falta viabiliza o fado de Moura, ela permite a Adriano um lampejo mais longo do amado; o fantasma de Bernardo é a bênção de sua presença. Sem Título #1 é a saudade feita cinema estrutural. E, provavelmente, a mais linda declaração de amor que nós temos.
O invento da fotografia e do cinema desenvolveu na arte aquilo que há de mais fantasmagórico em seu universo, um desejo presente desde as primeiras manifestações humanas através do rito: a conservação da vida pela representação. Toda a arte, se quisermos pensá-la sob uma possível perspectiva ontológica, é uma expressão desse desejo primitivo de conservação. É nesse sentido que Bazin afirma, em seu Ontologia da imagem fotográfica,que “A morte é senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida”. Cria-se, então, um paradoxo, porque à medida que reafirma a vida e sua conservação, a arte torna flagrante a presença da morte, e é aí que ela cria os seus fantasmas. Para exercitar uma análise psicanalítica desse dado, podemos pensar nas fotografias do século XIX, dos entes queridos falecidos posicionados ao lado dos parentes como se ainda estivessem vivos; pensar também naquele primeiro cinema no qual a imagem funcionava como espetáculo mágico, quando a narrativa e o realismo ainda não haviam dominado o espaço do cinema de massas.
Ao longo da história, o cinema, como que negligenciando a sua essência de registro desinteressado da realidade, procura desenvolver pela inserção da dramaturgia tradicional uma recepção que mergulhe naquela “segunda realidade” e esqueça, através da transparência, que se está diante de projeções espectrais. Se o primeiro cinema teve como sua força propulsora a imagem em seu sentido mágico, logo ele se transformou em narrativa, de modo que ficou submetido aos imperativos da construção cênica, com suas tramas e personagens.
Mas ainda é possível um cinema que procure seguir o caminho inverso dessa forma de representação transparente e se volte, novamente, para o valor primevo da imagem. Em sentido dialético, já que a inocência do primeiro cinema não é mais possível, abre-se a possibilidade de um cinema capaz de desenvolver uma linguagem que envolve a consciência primitiva da morte e, por isso, do desejo do registro, daquilo que só se faz relevante porque, justamente, foi capturado antes de seu total desaparecimento no devir. Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, filme de Apichatpong Weerasethakul (ou simplesmente Joe), pode ser pensado como esse cinema. Nele, vivos e mortos (ainda que seja difícil estabelecer esse dualismo) convivem tranquilamente em um ambiente que é um limiar entre realidade e fantasia. Se quisermos encontrar algum gênero para o filme, precisamos ir à literatura latino-americana e classificá-lo como Realismo Mágico, já que nele se cria uma junção desinibida entre o absurdo e o banal.
Essa ambientação, saturada de realidade e fantasia, acaba por revelar relações (extra)humanas tolerantes e amáveis, justamente porque cria um elo em que vida e morte são representadas sob o mesmo valor existencial, como se fosse possível encontrar o sentido ético da vida (e da morte) através de um encontro com um espírito. Esse campo aberto não apenas une vivos e mortos, mas converte o humano em macaco, como acontece com Bongsong que se tornou aquilo que perseguia com uma máquina fotográfica; da mesma forma que faz surgir um bagre falante e com poderes mágicos. É como se toda a natureza, orgânica e inorgânica, fosse capaz de se integrar em um mesmo nível de vida e consciência, ideia reforçada pelas matas e cabanas que ambientam o filme.
Por outro lado, esse naturalismo fantástico não apenas nos coloca diante do inusitado em relação aos personagens e suas interações, mas contamina todo o filme com uma aura mágica em que a presença do espectro, da penumbra, do extremamente escondido e do extremamente iluminado surgem também como imagem primitiva e essencial. Por isso a luz e a escuridão são tão importantes no cinema de Apichatpong, elas parecem querer sintetizar o poder do contraste diante dos nossos olhos, um jogo com as bases elementares que constituem o cinema: luz e escuridão. Nesse sentido, tão importante quanto os personagens é a luz que recai sobre eles, ou a escuridão que os oculta.
E Tio Boonmee não está de todo despossuído de uma narrativa, aquilo que é narrado, para além da evidente ternura de um cotidiano, também se desenvolve como discurso político, todo ele relacionado a essa realidade fantasmática: passado, memória, destruição e recomeço. A encarnação e a lembrança de vidas passadas, dado pertencente ao universo mítico tailandês e de uma cultura apartada do mundo ocidental; a presença da fábula (um gênero de um passado literário) que evidencia a busca de uma beleza que nos faz pensar na opressão da estética do Belo instituída pelo ocidente; do exército do futuro, capaz de fazer qualquer um desaparecer com sua máquina de projeção, mais uma possibilidade de pensar sobre o olhar colonizador que se apropria e refaz a história segundo a sua própria cultura.
Esses aspectos, ainda que desenvolvidos sob algumas referências diretas, como acontece com os soldados do futuro que remete ao conflito entre Tailândia e Laos, ocorridos entre 1987 e 1988, estão embebidos por esse olhar que converte o místico em algo comum, nos fazendo pensar em um cinema que tem na imagem o seu fundamento primeiro, deixando que uma nova forma de vida (e de morte) se manifeste livremente no plano. Todas as formas fantasmáticas estão presentes e convivem de maneira quase que com total naturalidade, como se tudo pudesse se integrar porque, afinal, são apenas fantasmas, apenas luz sobre a escuridão, apenas cinema, e por isso não precisam representar o realismo da vida, não há mais essa obrigação, aliás, nunca houve.
O cinema é a morte não no sentido de algo que se perdeu para sempre, mas de uma ausência que se faz presente e que se torna suficiente como aparição, como imagem. Consciente disso, Apichatpong constrói um cinema de fantasmas, de seres místicos, de entrecruzamento e dobras porque sabe que o cinema é o único espaço em que isso pode acontecer plenamente enquanto imagem, já que é, por essência, projeção-fantasma do mundo, de um mundo submetido a estritas leis naturais, mas que se desdobra e se refaz diante da objetiva. Ao romper com a natureza do mundo, o cinema de Joe cria uma nova natureza para os nossos olhos, um campo em que se é livre porque não se tem medo da morte.
Saber exatamente o que este som (ou esta imagem) vem fazer aqui.
Robert Bresson. “Notas sobre o cinematógrafo”.
A máquina infernal (Francis Vogner dos Reis, 2021) é uma fábula sobre o universo laboral e existencial do operário sob as forças do capitalismo contemporâneo. Trata-se de um curta-metragem cujos recursos formais nos levam tanto ao universo do cinema de horror norte-americano quanto ao teatro épico brechtiano. A obra aposta na construção de uma atmosfera de terror rarefeita capaz de nos fazer sentir a ruína dos corpos e espaços em cena. Mas como isso ocorre na prática?
Em correspondência com cineastas como John Carpenter e George A. Romero, sobretudo os universos apocalípticos de filmes como The thing (John Carpenter, 1982) e The crazies (George A. Romero, 1973), para ficar com apenas dois exemplos, o filme de Francis Vogner dos Reis elabora de forma extremamente sofisticada um inimigo invisível e inominável – verdadeira força do extra-campo que assombra a fábrica e seus trabalhadores. Fantasma cuja presença nos é comunicada pelos seus efeitos na mise en scène, este inimigo vai tomando conta da narrativa aos poucos, até efetuar a completa implosão dos corpos e máquinas. Uma das aparições mais emblemáticas da obra é, sem dúvidas, a convulsão que acomete os personagens na escuridão da fábrica.
Frames de A máquina infernal (2021)
Este é um filme sobre o apocalipse da classe trabalhadora, o que significa também a destruição de seu ambiente de trabalho. Em termos narrativos, isso quer dizer que a obra vai tecendo aos poucos a destruição dos personagens e das máquinas que, em cena, gritam de agonia – um sofrimento visceral nos é dado a sentir no decorrer do curta. O desespero se impõe através do inimigo que navega entre os trabalhadores, possuindo seus corpos para dilacerar suas entranhas num processo mudo – o que distancia essa obra de, por exemplo, O exorcista (William Friedkin, 1973). Este é, com efeito, um filme sobre as entranhas do mundo do trabalho contemporâneo sob a égide do filme de horror.
Há no mínimo cinco elementos do filme que contribuem para sua beleza inestimável. O primeiro diz respeito à fotografia de Alice Andrade Drummond e Bruno Risas. A máquina infernal é um filme de fisionomias – humanas e maquínicas -, o que o aproxima da forma com que Robert Bresson explora a plasticidade de seus personagens ou, em seu vocabulário, seus modelos. O filme de Francis Vogner dos Reis estabelece uma relação de superfície – o que não quer dizer que esta é superficial – com o cinema de Bresson. A máquina infernal apresenta um esmero bressoniano a partir do qual tudo possui o seu lugar na fatura da obra, pois todos os elementos estão bem inseridos nas malhas do filme. Na sessão, o público pode compreender, para voltar à epígrafe deste ensaio, o que cada som e cada imagem veio fazer aqui.
A forma de filmar os corpos e os espaços da fábrica nos leva a pensar que o importante, nesse filme, é a interação entre os dois elementos, o que faz da fábrica decadente muito mais do que um mero cenário. A relação tecida entre corpos e máquinas elabora a ideia da fábrica como uma das protagonistas do filme – lócus do horror e destruição. Os closes dão substância aos personagens que, na penumbra, adquirem uma beleza sorumbática. Além disso, as escolhas de decupagem deixam com recorrência um ponto de fuga no quadro, o que cria imageticamente o caminho para imaginarmos as ações do espectro demoníaco que ataca pelo fora de campo.
O som produz o medo. É primeiramente pelos ruídos que o demoníaco vai marcando sua presença no filme. Há uma cena em que assistimos uma assembleia entre os trabalhadores da fábrica e os patrões. Estes apresentam uma proposta de trabalho inaceitável aos primeiros, o que gera a rebelião de alguns operários. Escutamos os discursos inflamados dos personagens, mas o bate-boca é interrompido por um ruído monstruoso em crescendo. O barulho vai tomando conta da cena. Isto incomoda os personagens que, diante da paisagem sonora desenhada na escuridão, tapam os ouvidos num gesto defensivo, ainda que ineficaz. É também pelo trabalho de sonoplastia realizado por Guile Martins, portanto, que a atmosfera de horror e destruição é tecida, trazendo para perto as distâncias demoníacas do fora de campo.
Frames de A máquina infernal (2021)
Trata-se de um filme de ecos e interrupções. Um bom exemplo disso é a forma com que o autor trabalha o desejo sexual na obra. A cena em que o homem do braço mecânico se engaja numa pegação com sua colega no carro é realizada através dessa orientação cênica. A mão robótica acaricia a mulher enquanto assistimos os beijos do casal. Amor ciborgue – corpo e máquina se entrelaçando calorosamente diante de nós. No entanto, a montagem efetua uma interrupção brusca do tesão em cena para voltarmos ao claro-escuro das relações laborais entre os trabalhadores.
Outro importante recurso da obra é a sobreposição de imagens. Quando o primeiríssimo plano da protagonista é sobreposto à imagem de uma fábrica sendo demolida, o curta cristaliza um sentimento de ruína que atravessa o filme e, também, termina por fundir o rosto da personagem com a fábrica destruída. Por meio dessa operação corpo e espaço se transformam em uma só aparição compósita.
Frame de A máquina infernal (2021)
Mais do que simples dispositivo narrativo, a possessão adquire um caráter reflexivo na obra. No início do texto mencionei que A máquina infernal é o encontro do cinema de horror norte-americano com o teatro épico brechtiano. As convulsões dos personagens, em ressonância com os corpos em agonia de Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970), estão intimamente ligadas ao contexto sócio cultural do qual o filme é expressão. No entanto, no filme de Rogério Sganzerla a convulsão que acomete os atores tem a ver com o transe de gira de candomblé dos morros cariocas, enquanto o filme de Francis Vogner dos Reis apresenta a possessão como somática e demoníaca no contexto das relações de trabalho de operários do ABC paulista.
Os personagens são possuídos pelo mal estar terceiro-mundista num período de desindustrialização e fim do trabalho fabril. O apocalipse de A máquina infernal é, portanto, conectado com este contexto de crise global do trabalho. Tudo se passa como se a possessão constituísse verdadeiro gestus social brechtiano: os corpos e máquinas se destruindo provocam um distanciamento que desvela a situação social supracitada. Mesmo sem ordenado e sob condições precárias, os operários seguem trabalhando até apodrecerem vítimas do espectro indomável, gesto que torna esse universo social intolerável quando a projeção se encerra. A fábrica se torna, portanto, o inferno do proletariado. O fim é agora.
É um trem, ou um metrô, que nos traz à cidade. E quando chegarmos é possível sentir no ar o ponto de convergência entre a paranoia política e o niilismo que paira por Paris sob os signos dos intelectuais. Dali em diante, testemunharemos encontros de almas à procura de sentido, a experiência de dobrar um texto às suas vontades (e também limitações), as disparidades culturais na forma de expressar suas dialéticas, e as intrigas e amarguras passadas que vem com a necessidade de conviver num círculo social no qual os rostos, e sobretudo os desejos, se repetem insistentemente.
Jacques Rivette, interessado nos jogos místicos, na performance humana diante dos astros, na fronteira do ludismo mágico e sombrio cujos canais habitantes do realismo se tornam metafísicos, começa seu primeiro longa com personagens espalhados pela dramaturgia, sem curso específico, focado totalmente em comportamento. É a partir das discussões sobre o suicídio de Juan, um elo misterioso entre os tipos que conhecemos, que começa a investigação dessa deturpada sensação de desarranjo que podemos chamar de transição dos tempos. A encenação então coloca Anne pra procurar pelo fantasma de Juan em busca de respostas emocionais para sua desaparição, indo de pessoa a pessoa ouvir seus relatos e impressões, porque à margem de respostas há de se entender esse estranho sabor do suicídio entre os artistas ao seu redor. A investigação pela melodia de Juan se torna uma dialética travada, quase um mapa de influências que o personagem exercia, para descobrir – ou intuir, já que não há respostas unas – onde reside o segredo da alma de quem foi interpretado pelos outros de formas tão distintas. Existe um fantasma à solta, e não sabemos se é o espírito de Juan, ou uma conspiração muito maior. A carpintaria dramatúrgica de Rivette é interessada nos labirintos e nas teorias ocultas, e na forma de dar corpo a essas abstrações é que encontra novas formas de fantasmagoria. Que essa arquitetura se traduza em imagens desconfiadas é uma característica fundamental para que os votos místicos do diretor criem vida.
Ao investigar a morte de Juan, Anne conhece a consciência incomunicável da cidade, e a rigorosa encenação de Rivette parte de interações cotidianas, da declamação da peça encenada por Gerard às confissões ao pé de ouvido nos apartamentos dos personagens, para se concretizar num oblíquo jogo de sedução com o não-dito. A cidade é um coral misterioso, e ocasionalmente interessa ao diretor que acessemos, sempre que breve, esse estado flutuante dos habitantes que desconhecemos – como na sequência em que Phillip narra o nome, idade e ocupação dos seus vizinhos, até Anne o interromper quando reconhece uma das vizinhas.
Essa escolha de retrato fugidio da cidade não vem sem percalços, e se reflete diretamente na arriscada identificação de Rivette com Gerard, o diretor teatral. A forma que o cineasta compra as palavras do diretor, em especial na cena da conversa com Anne na ponte, sublinha muito do sentido do filme sem que haja nessa opção uma fricção narrativa entre os personagens que a justifique. Em imagens e sons percebemos o fio narrativo entrelaçado pela música destoante, pela estrutura dos encontros, a sensação palpável do desarranjo da vida refletido na cidade. É um personagem complexo porque é o único que parece progredir no filme, no processo abrasivo de sua adaptação de Péricles de Shakespeare diante da investigação convoluta de Anne, presa na teia de contradições e paranoias de seus encontros. Quando Rivette compra sua visão de mundo, a do artista em busca de autonomia, não é sob as lacunas fantásticas de alguma obra posterior como Duelle; parece a vontade de tornar discurso falado o que a dramaturgia já dá conta. Paris nos Pertence exala a ansiedade jovem, a pulsão de organizar ideias estimulantes e as deixar acumular sem necessariamente ter precisão, verborrágico e disposto a buscar perguntas além do bom senso; dentro de suas aspirações, um filme jovem, enfim.
Por acaso, ou por tremenda boa vontade do cineasta em se manter aberto ao acúmulo romanesco de comportamentos dos sujeitos que filma, a estrutura dramatúrgica de falência do personagem acompanha diretamente o movimento de desaparições com a cidade. A amargura toma conta do encantamento, contaminada pelo dinheiro, pela influência, pelo exercício do poder até mesmo no mais modesto proscênio; o niilismo se infiltra no místico.
O que é niilismo na França pré-1968 – e vale lembrar como o filme sintoniza movimentos políticos posteriores – também é paranoia diante da necessidade de fuga dos perseguidos políticos; a figura de Phillip Kaufman, escritor aclamado e exilado político, habita Paris como fugitivo da América sem trocar o modus operandi do acossado. Sua relação com Terry, sua ex que também é a viúva de Juan, é marcada pela desconfiança e pela amarga herança do relacionamento. Seu comportamento aos poucos o obriga a se isolar, a duvidar das amizades dali, da hospitalidade antes insuspeita do país que o acolheu. O isolamento e a paranoia andam juntos, mas é na criatividade e na imaginação onde reside a verossimilhança da intriga que alguém propõe para convencer ao mundo da soberania desse comportamento; alguém definido como “brilhante escritor, ganhador do Pulitzer” pelo círculo intelectual que o abriga pode ter em mãos a influência dos deuses.
E o que Rivette imagina é uma profunda e detalhada descrição do fim do mundo, que apaga as luzes dos cômodos confortáveis, que reduz subitamente a importância dos conflitos internos, que traz a urgência da destruição. Terry profetiza nos seus graves monólogos, Phillip destila sua paranóia, e em algum momento a imagem – e irrevogavelmente nós espectadores – passa(m) a acreditar nisso; através da palavra organizações secretas operam nas sombras com suas ferramentas e meandros desconhecidos.
Como se imagina a presença da cidade-título diante da constante sensação de perigo à espreita, refém de forças ocultas, quando a cidade parece exigir ser evitada? Pensemos em Godard em Acossado e Truffaut em Os Incompreendidos, para ficarmos nos exemplos próximos em época, contexto, e de base teórica similar ao cineasta. O esforço de filmar na rua, os personagens transitando por Paris, a esmo ou com objetivos fixos, parte do encanto com as possibilidades da locação, do que o movimento das ruas tem a oferecer para essas novas abordagens estéticas que se ensaiam: em Godard, uma Paris do embate entre o charme do criminoso que pensa a dominar com a turista à procura das aventuras que uma visão distanciada de cidade tem a oferecer; em Truffaut, uma Paris de juventude, de pequenas descobertas, de lugares a frequentar, hábitos a construir, rituais a sedimentar. O que une os dois, a disposição benjaminiana de andar pelos corredores claros e escuros da capital europeia planejada à exaustão.
No entanto, flanar não é uma opção tão viável para Rivette da forma que era para seus companheiros de Cahiers du Cinema. Seus personagens começam ocupando Paris com sua juventude, andando pelas pontes, sentando-se em seus bancos, ensaiando peças ao ar livre. Mas aos poucos, Paris se torna ameaça, e todos os acossados se tornam paranóicos, seja essa paranoia herdada do outro lado do Atlântico Norte ou pela própria articulação pessimista de pensamento doméstica; o filme começa a se tornar um jogo de internas, de conversas em apartamentos, e todo o emocional investido por essas relações veste uma desvelada clausura. A reiteração do estado de paranoia toma conta do filme, na cidade que aos poucos vai sumindo, as internas que se espalham, o mundo dos soberbos consumado até o sufocamento.
A necessidade de se sentir perseguido gerando a tensão do fim do mundo, principalmente na boca de Terry, retorce o místico sob a encenação do cotidiana caro ao diretor. Não são poucas as vezes que se sente que algo está observando a todos, e nisso Paris nos Pertence parece mais uma adaptação mais sisuda, fantasmagórica e realista de Phillip K. Dick que filmes que referenciam o autor diretamente – como Southland Tales, por exemplo. Na magistral ficção-científica de Richard Kelly, aliás, a conspiração política também abraça a farsa e as profecias, sempre buscando na crença no místico e no mágico um lastro para as paranoias de seus personagens – mesmo que o diálogo de Kelly seja com o tresloucado humor satírico e as viagens interdimensionais de Alan Moore e Grant Morrison (como lembrado por Filipe Furtado em seu texto [1] sobre o filme). Kelly retrata estrelas de cinema, policiais e atrizes pornô, com a vulgaridade que se espera de Los Angeles, enquanto Rivette filma Paris com a solenidade na qual os intelectuais que a habitam encaram a cidade.
Diferente de Southland Tales, no final de Paris nos Pertence não há conspiração alguma; é consequência direta de que, para os eleitos gênios da arte filmados por Rivette, como um personagem certa hora classifica, é sem dúvidas mais trivial colocar a causa de suas desventuras no mundo e nas organizações que controlam secretamente as vontades e cursos do planeta que assumir o impacto pelas formas que afetou os que estão ao seu redor.
Que existam tais pessoas, as quais foi concedido o imenso poder da influência cultural e de serem representantes quase oficiais da articulação sociopolítica burguesa, é menos o problema para Rivette que o fato de que é preciso responsabilidade na hora de atrair pessoas para seu círculo, para sua gravidade, o cuidado exigido quando for cuspir profecias por aí. Nunca se sabe quem pode estar ouvindo, e a Paris de 1961 e o Rio de Janeiro de 2021 não tem cenas artísticas tão discrepantes quanto eu gostaria. Não que isso importe; como Peguy diz ao abrir o filme, essas cidades não pertencem a ninguém. É importante lutar por elas.