Festival ECRÃ: Cinemas fantasmas

Cinemas fantasmas

Por Chico Fireman (@filmesdochico)

Seis filmes exibidos no primeiro dia do Festival Ecrã são, pelos caminhos mais diversos, sobre fantasmas. Curtas, médias e longas-metragens que procuram preencher ausências e lidar com os vestígios de alguém ou alguma coisa que sobrevive como espectro.

Aquele que lida mais diretamente com o tema talvez seja “Gargaú”, de Bruno Ribeiro, em que o diretor coloca os amigos num carro e vai para a cidade onde foi criado no interior do Rio. Embora sua avó, Dona Graça, pareça ser a protagonista do filme, a personagem que amarra toda a trama nunca está em cena: a mãe de Bruno, que ele havia acabado de perder. Essa viagem de volta, que ele constrói a partir de uma mistura de documentário de memórias, comédia nonsense e filme de bastidores em que muito é encenado, também se transforma numa forma de se reconectar com sua origem. No média “Aposentadoria ou A Última Casa do Meu Pai”, Julie Pfleiderer inverte o jogo. Ela convida o pai, um arquiteto que terminou colocando a profissão a frente da família, para construir uma última vez. Enquanto os dois fazem uma maquete cheia de detalhes, ela questiona porque a presença dele em sua vida foi tão distante. Acertos de contas diferentes com o imaterial.

O “fantasma” de “Licantropia”, de Janaína Wagner, é um conceito. Alternando diversas técnicas e suportes visuais e sonoros, variando do mais narrativo para o impalpável, ela investiga como o lobisomem, a criatura mitológica que nos assombra serviu para tornar mais assimiláveis os crimes mais grotescos — dos homens. A própria diretora lembra que a concepção fantasiosa que virou doença diagnosticada se desenvolve numa lógica misógina: enquanto mulheres foram queimadas como bruxas, os criminosos do sexo masculino eram tratados como pacientes. Se o curta de Wagner tenta decifrar o fantasma, “Quem de Direito”, de Ana Galizia, quer afastá-lo. Com depoimentos, imagens de arquivo, gráficos que ganham a intervenção de seus personagens, ela remonta a luta de uma população que tenta impedir que uma barragem não transforme sua comunidade numa terra devastada.

Já em “8 de Março de 2020: Uma Memória”, o fantasma está no que (não) vemos. Fırat Yücel se volta para o cenário de uma manifestação que reuniu milhares de pessoas através dos olhos de câmeras de segurança. Um espaço que ficou completamente vazio durante a pandemia, mas que, mesmo fantasmagórico, não deixou de ser registrado, provocando um estranhamento incomum. Quando nossos olhos, treinados para enxergar, vêem nada, para onde olhar? É uma dinâmica completamente oposta da vista em “Espaço Liminar”, que Gabriel Papaléo dirigiu inspirado pelo cinema de ação de Albert Pyun, mas com táticas que criam uma experiência atmosférica que acrescenta diferentes camadas a essa homenagem.

Nesse longa-quimera em que atravessa o thriller sensorial, a ficção-científica B e o romance clássico, o fantasma é uma mulher que desaparece entre dimensões por causa de um fenômeno científico. Papaléo costura esses caminhos tão diversos através de uma combinação de escolhas – cores estouradas, jogo de luzes, trilha atmosférica, realidade virtual – que estabelecem um universo paralelo, um cinema-fantasma que foge à lógica da verossimilhança, mas que não cai no conto do absurdo pelo absurdo por conta da textura afetuosa que faz com que o projeto pulse de uma maneira muito particular.

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Entre o artifício e a performance: por um cinema de ação formalista (John Wick 4: Baba Yaga, Chad Stahelski, 2023)

Por Gabriel Moraes

O quarto filme da franquia John Wick é o projeto mais minimalista e formalista – quiçá até um tanto experimental – da franquia até então. Nenhum outro tinha secundarizado pretensões de drama e conflito tão radicalmente em relação à imensa sofisticação dos set pieces, das grandes cenas de ação quanto este – embora o terceiro fosse já uma guinada significativa no caminho dessa concepção estética. O protagonista fala pouco e todos os personagens à sua volta não fazem muito mais do que o necessário para avançar a narrativa de modo funcional e o esperado para manter em ordem a organização básica dos elementos de mitologia que foram construídos pelos filmes anteriores.

A impressão é de que o filme é um grande laboratório do cinema de ação, uma empreitada pensada para colocar à prova um acervo de especulações a respeito de como uma cena de ação-espetáculo pode ser coreografada, iluminada e decupada. Se o primeiro filme, por exemplo, tinha fortes interesses sobre questões de trama, sobre construção de mitologia e sobre as implicações políticas daquele universo de fabulação, aqui poderíamos dizer que, embora essa mitologia e essa política ainda estejam sem dúvida em jogo, elas são mais ou menos recicladas, não trazem novas ideias. As conclusões que se poderiam tirar sobre ambas neste filme poderiam perfeitamente se fazer a partir dos filmes anteriores.

O que há de particularmente instigante aqui, justamente por isso, talvez esteja na contramão dos instrumentos interpretativos de que se valem aqueles que hoje parecem fazer o coro e a interface da conversa sobre cinema que ocupa majoritariamente as redes. Dizer que John Wick 4: Baba Yaga (2023) é um filme superficial nos termos que se convencionou usar essa palavra no contexto de leitura dos filmes não é nenhum absurdo. A questão mesmo seria lidar com a noção de que ele não é menos brilhante por conta disso. Afinal, se os critérios de “superficialidade” e “densidade” são tão decisivos para um modelo de interpretação que se dá sempre exclusivamente pelo texto e pelas temáticas, o que significa supor a potência de uma obra pela chave do seu suposto negativo? Em primeiro lugar, neste caso, seria dizer que o problema é da ordem da forma, do estilo, da poética.

O filme tem uma lógica narrativa que habita algum lugar entre os jogos de videogame e uma atualização hipermoderna de um cinema de atrações. O protagonista está constantemente passando de fases e derrotando chefões, motivo pelo qual os materiais narrativos que fazem as ações se encadearem são tão mais abreviados do que as ações em si. É algo também evidenciado pelo fato de que o protagonista aparentemente não carrega seus ferimentos de uma sequência à outra, diferente dos filmes anteriores – como no primeiro, em que ele precisava de um refúgio para se recuperar do custo físico das batalhas. Aqui ele é uma máquina de combate imparável e, em cada set piece, está inteiramente renovado em relação ao anterior, ainda que tudo ocorra, supostamente, em um curto período de tempo.

Outro elemento que John Wick 4 incorpora dos jogos e se apropria para pensá-lo como um método para se fazer e encenar cinema é a maneira com que situa a ação dos personagens em relação aos espaços diegéticos. Algumas cenas são exemplos chave disso, como a da boate e a que ocorre nas ruas de Paris em pleno movimento, próximo ao Arco do Triunfo. Em ambos os casos, os ambientes estão em um plano de realidade distinto do da ação. Ao mesmo tempo que produzem interações reais com os personagens – o protagonista esbarra com as pessoas na boate, é atropelado por carros na rua – os ambientes são configurados para existir e funcionar de forma completamente impassível diante das ações que se desenrolam neles. São paisagens com elementos pontuais de interação: a violência na boate, com lutas e tiroteios, não gera quase nenhum alarde instantâneo nas pessoas ao redor, que continuam a dançar de maneira tão sincronizada que parecem mesmo personagens não jogáveis de um videogame – em contraste com o primeiro filme, cujas cenas de combate na boate geravam espanto imediato no espaço. Igualmente, os carros continuam passando na rua como se nada de extraordinário estivesse ocorrendo, ao invés de ter uma paralisação do trânsito, o que seria o resultado mais óbvio.

Quando as pessoas de fato saem da boate em bando – e John Wick tenta se misturar na multidão –, é uma resposta diegética tão atrasada e distante do calor da ação anterior, que é até desconexo, quase cômico, e percebe-se, por esses gestos, que o filme há muito já jogou quaisquer concepções de “realismo” ou “verossimilhança” pela janela. As pessoas saem naquele momento porque é o que é conveniente ao filme, porque a narrativa precisa prosseguir e porque não há muita parcimônia ou meias intenções na instrumentalização consistente dos pequenos artifícios com os quais se amarra uma trama. Se em outros filmes algo dessa ordem poderia ser um problema, um sinal de desleixo ou falta de cuidado com a construção da narrativa, aqui tudo faz parte de uma unidade estilística de ambições estéticas bem apuradas.

Como, por exemplo, racionalizar, através dos aparatos de interpretação que operam tão fixamente sobre a coerência do texto, a cena em que John Wick cai da janela de um prédio em cima de um carro – ao ponto de aparentemente destruir o carro –, levanta e continua andando sem grandes dificuldades? Ou, ainda, a cena em que ele rola por centenas de degraus de uma escadaria e se levanta para subi-los todos de novo deixando mais alguns corpos pelo caminho? Qualquer coluna teria sido arrebentada bem antes do fim da queda. À certa altura, é preciso assumir que o filme não só é inteiramente consciente do tipo de leitura que está suscitando, mas que está ativamente jogando – diria até zombando com elegância – com as expectativas que se produzem a partir dela. Que o impacto do corpo sobre o carro seja tão plasticamente tátil ou que a cena se delongue tanto no protagonista rolando lance após lance de escada por longos segundos mostra um pouco do sistema de prioridades no qual o filme se apoia: por mais que o contexto narrativo ao redor da ação tenha pouco “realismo”, coerência ou verossimilhança, a ação é sempre muito sentida, sempre acontece para existir nos limites do seu impacto possível.

Basta pensar em uma cena filmada em plano zenital – com a câmera paralela ao chão, olhando diretamente para baixo –, na qual o protagonista elimina diversos oponentes com uma arma de efeito explosivo e que é axiomática dos pontos de partida e dos protocolos do filme. Se, por um lado, poderíamos dizer que é uma cena concebida a partir de uma estética específica dos jogos – e que, por esse motivo, manifesta tão limpidamente a ferocidade com que o protagonista enfrenta obstáculos e vai do ponto A ao ponto B –, por outro é também a enunciação do jogo performático: a ação, vista por cima, através de falsas paredes, de um teto falso, com os dispositivos ilusionistas à mostra sem pudor, não poderia ter mais cara de estúdio, de artificialidade. Quando o filme corta entre esse plano e a decupagem mais convencional ou “realista” no interior da mesma sequência e forma unidade a partir disso, os dois – a imersão e o artifício – passam a ser complementares e não opostos. Colocar o maquinário ilusionista a céu aberto não subtrai a experiência ou barra as potenciais relações de engajamento com a ação, mas sugere especialmente o contrário: que o prazer com os set pieces, com essa ação cheia de fisicalidade e valor de produção típica do cinema de ação é, acima de tudo, estético.

O vilão Killa, interpretado por Scott Adkins, é bastante representativo desse lugar de tensão que o filme tenta ocupar entre o que se presume que ele deveria ser e o que ele é. O arquétipo que o personagem de Adkins é, a princípio, desenhado para corresponder, é o do vilão frágil que se faz poderoso pelos seus recursos. A cena que o introduz não sugere tanto uma ameaça física significativa quanto uma personalidade sagaz. Por isso, o que se segue, quando os personagens sentados na mesa de pôquer se rebelam, é que o vilão tenta fugir a todo custo justamente porque seus recursos – no caso, os capangas – estão em crise. Quando ele não só enfrenta John Wick como o derrota em um primeiro momento, é chocante pelo mesmo motivo que não se esperaria ver o Pinguim trocando socos com o Batman.

Em seguida, uma outra camada de surpresa surge através do seu estilo de luta, que não corresponde ao arquétipo com o qual ele estaria se associando a partir do início da luta contra o protagonista – o do vilão que usa o perfil de fisionomia como o seu para estabelecer poder, dominância e hierarquia. Uma comparação óbvia é uma figura como o Rei do Crime, vilão dos quadrinhos do herói Demolidor, cujo porte físico se assemelha ao de Killa. Não é difícil perceber como o estilo de luta de Killa difere daquele de um Rei do Crime, notoriamente mais bruto do que técnico, que investe menos na desenvoltura dos golpes do que na potência e na precisão. Killa, por outro lado, usa chutes elegantes com rotações em 360 graus e luta de maneira técnica – não é por acaso que o personagem é interpretado por Adkins, um mestre das artes marciais.

Tudo isso sinaliza o quanto o filme é atento à natureza das expectativas que se dão em torno das referências estéticas e dos códigos de gênero com os quais trabalha. Assim, se o filme faz diversas sequências de ação das mais variadas formas, cada uma com sua identidade estética – uma quase toda em plano zenital, outra quase toda em plongées e contra-plongées, na cena da escadaria, e por aí vai –, é porque opera de maneira ao mesmo tempo laboratorial e muito performática, avaliando e investindo nesse campo das possibilidades estéticas de representação e encenação do cinema de ação, do espetáculo.

O que faz de John Wick 4: Baba Yaga um grande filme não é da ordem do discurso, da interpretação, da mensagem. De fato, não é uma obra de ideias grandiosas sobre o mundo, sobre a vida, sobre a arte ou sobre os tópicos políticos que fervem o zeitgeist. Ora, para que serve? Para nada. É um filme que não se resume ao debate depois da sessão, mas que pulsa vigorosamente no corpo a corpo com as imagens e com os sons, que convida à atenção na receptividade da experiência estética. E se, como bem sabemos, apesar disso é uma obra bem passível de cair nas valas das leituras de superficialidade, falta de trama e ausência de problemas políticos, é porque os seus problemas são, afinal, uma questão de estética – e, por isso mesmo, incondicionalmente políticos.

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CINEMA ANIMAL

por Natália Reis

Pensar nas relações que podem ser traçadas entre o cinema e os animais é o tipo de empreitada que por si só parece compreender a essência cinematográfica nas suas acepções mais profundas. Historicamente, animais e animalidades despontam como vetores de atração dos desejos mais primitivos de registro da imagem em movimento, desde o javali de oito patas de Altamira e as cabeças de cavalo pareadas de Chauvet, passando pela “captura” do olho/câmera, que assume primordialmente a forma do pássaro dentro da gaiola do taumatrópio, do cavalo sequenciado de Muybridge até experimentadores radicais como Chris Marker e seus gatos, Brakhage e suas mariposas. Por meio das matrizes ontológicas do cinema buscamos no reino animal – ao passo em que nos excluímos do mesmo, pois são “nós” e “eles” – um ponto de contato com a natureza própria de uma linguagem que escapa à linguagem: é movimento, é voracidade, é habitar os mesmos mundos com outras criaturas e percebê-las nas suas complexidades e alteridades. 

Nessa mesma linha, uma infinidade de desdobramentos – narrativos, estéticos, formais – vão se firmar como possibilidade de concretização do que evocamos aqui como um cinema de bichos errantes, domesticados, ferais ou selvagens que ocupam o centro do quadro com olhos de cores intensas, pelagem densa, escamas e barbatanas, asas, bicos e garras. Seja tratando da problemática da relação humano-animal ou das dinâmicas de poder aí incluídas (A regra do jogo), da exploração dos aspectos mitológicos (Nope) ou cosmológicos (Cinzas e Neve), das metamorfoses ou animalidades (O fantasma) – que Bataille vai descrever como um gesto libertador da humanidade essencialmente burocrática – ou ainda, das relações com o arquivo e a imagem (Experiments in the revival of organisms, Eyes under water), da antropomorfização, da animização e da experimentação total, estamos falando de obras que se abrem num leque de temáticas abundantes e variáveis dentro de uma cinematografia animal. 

Partindo dessas ideias iniciais, a proposta dessa edição da Multiplot! é explorar os meios pelos quais o aparato cinematográfico se vale para produzir aproximações (ou distanciamentos) entre seres vivos de espécies distintas. E ainda, pensar a representação animal e os fatores que a atravessam num sentido crítico e filosófico, olhando com atenção para as mediações entre homem e natureza, no cinema e suas reverberações. 

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Nope (Não! Não olhe!): O retorno triunfal

Por Luiz Soares Jr.

“A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade”

Nietzsche, Genealogia da moral, segunda dissertação.

“A História influi no mito”

Alain Moreau, A fábrica de mitos

A abertura de Nope já articula o retorno da animalidade recalcada pelo digital, anátema atual pelo menos como em seus abusos publicitários da história do cinema, como um programa: o macaco da propaganda de luz chapada e ponto de vista único se rebela e assassina os membros da equipe, mas para apurar a elaboração diegética deste crime precisaremos esperar um quarto do filme decorrido. O fato de que Peele o antecipe como um emblema icônico nos créditos de Nope, porém, o mitifica de antemão como a imago-mater que vai estruturar os itinerários desta alegoria mimética sobre a volta triunfal da animalidade à cena do cinema mainstream. Como filme de horror inter-galáctico com seu que de unheimlich pastoral, de vitupério panfletário antirracista também, pois na era que vige tudo é possível amalgamar em uma sincrética síntese alinhavada pelas bordas de filme anfíbio: filme do seu tempo, Nope é exemplar, isso não há de negar, pois volta a assinalar ao plano de cinema, agora em sua vertente de uso e leitura digital, um vetor de revelação. Basta prestar desmesurada atenção, uma atenção de leitura espaçada pela proteção do escudo de Perseu, ou tela de cinema, e tudo te será dado conhecer dos insondáveis mistérios do ser, mesmo o inominável do totalmente outro, como a aparição da Nuvem com n maiúsculo, antecipadora em forma de dejeto sublime da máquina-alimária. É filme eminente do fora de campo também, como  o plano frontal dos cavalos de Muybridge enquadrados em pillarboxing e o macaco assassino da série de TV nos impõem, pois estes só nos serão desvendados em sua função simbólica no filme no a posteriori da revisão orientada.

A pradaria vasta e ressoante onde tudo se dá à triangulação heroica de protagonistas (a que vai se acrescentar um quarto, a ser expiado no arremate do filme, como todo o classicismo de que é imunodependente, com sua câmera contemporânea de Sjostron e Lupu Pick e sua libido aventureira hawksiana), os travellings fulgurantes dos cavalos em fuga, e finalmente a rentrée em Cena do gênero sob sua forma mais espetacularmente canônica  perto do desenlace são demonstrações na carne do filme de que o western tardio é aquele que assiste em crescendo de épica niilista à desaparição da figura humana sob a sombra do inominável, de que é paradigmática a belíssima cena da abdução, num coro de choro e ranger de dentes, da plateia fascinada pelo espetáculo tanatológico; se o western clássico era o lugar onde esta figura lutava bravamente para se impor à atonicidade de Gesta da Natureza indômita (os índios incluso, como fermento orgânico e ethos reativo de dizimação da paisagem pela máquina de guerra), em Nope o processo já está acabado: assistimos apenas a uma espécie de dispositivo fantasmático, diegético (a grande cidade-simulacro encimada pelo cowboy gigante de desenho animado, que vai ser a chave de arremate do filme) e devedor de fora de campo tópico, com o en abîme do filme foto-montado como um legitimamente etiquetado “Documentário” dentro do filme; se é documentário o que se alardeia aqui com ênfase de programa, a razão, supomos, está em que o objeto a ser descrito pelas agruras cinema verité do gênero inaugurado pelos Lumière é inverossímil, inacreditável, inimaginável, da ordem de tudo aquilo que não pode se encaixar sob a rubrica do documentário ou possuir pretensões de preenchê-la: “Não é uma máquina, não é um navio, não é uma nuvem; é um bicho, e  territorialista”.

Este semi-western tardio (coetâneo do sitcom e dos constructos organogramáticos de jogos virtuais) assombrado pela aspiração, efetivada sob a égide da montagem embora, da verossimilhança lumièriana a qualquer custo é um compêndio sobre as teratológicas armadilhas fenomenológicas do tête à tête do ser humano com o sublime. Temos duas condições que Nope preenche exemplarmente, e ambas sob a tutela do tratamento da figura: o esqueleto de western sepulcral, com seus tropos e rubricas de cooptação do cenário natural pelos idioletos do texto-arquetípico da história do cinema, como os cavalos espavoridos que, decalcando a natureza sobrenaturalmente romântica de Nosferatu, pressentem a iminência do horror, além da referência um tanto quanto atropelada na fala de Emerald Haywood à irmã entertainer até aos cavalos de Muybridge, que comparecem na sequência de créditos do filme.

Um estudo mais propriamente centrado nos atalhos e nas rotas de fuga pregnantes da figura humana: com seus sustos-raptos pré-ensaiados (há uma moça que se esgueira por trás de Angel, o rapaz de cabelo descolorido do magazine, assustando-o quando surge), suas crianças fantasiadas de ETs delgados,  seus cavalos flamejantes e sua espectadora desfigurada pela experiência acidentada do sitcom na cena da abdução coletiva, Nope é antes de tudo um filme que problematiza a figura humana e seu pano de fundo como o recôndito reduto da monstruosidade, como a possível massa de modelagem do interdito, de que o monstro enquanto tal vai consistir na espoliação grandeur Nature de suas potências de incorporação extática, um tanto como lá está na descrição da Medusa de Francis Ponge na Defloração das flores. Medusa esta símbolo falocrático eminente para se ativar a rede de correspondências miméticas e fenomenológicas de que o filme vai haurir sua potência mitológica: “(…) aquela que efetiva uma reverência extasiada a todas as suas bordas. Em Nope, estas bordas possuem invólucro duplo, reversível, e se imantam respectivamente: elas são humanas e naturais e urdem um filme que nos atinge pelo tempo (o sitcom , o digital como registro atual, sem grão e presença) a partir de grandezas e de escalas muito essencialmente da origem, entendendo-se esta como a percepção primeva do ser humano em confronto com o mundo da, aí; do fundo vítreo de seu enfrentamento com a perigosa tarefa que consiste em dar conta de um mundo, natural e cultural, na clareira da representação, Nope arregimenta distâncias vertiginosas de oráculos definitivos ou processuais, históricos para entender o que se passa durante o regime de virtualidade a fórceps do nosso tempo, e neste recuo acidentado recupera o clássico, mesmo que talvez em sua última aparição epocal. De Eurípedes ao Sartre do Imaginário, de Lumière e Chomon às texturas excremenciais dos filmes de ação de Kurt Kren, Nope, talvez sem dizer expressamente mas segundo um regime de analogias de que a crítica deve se servir em seu processo de decifração hermenêutica, nos conduz, pelo menos em seu núcleo central concernente à ideia de um eterno retorno do recalcado da natureza no seio asséptico do digital, o filme de gênero grandiloquente em tempos pós-grandiloquentes não deve fazer olvidar.

Para o Theodor Adorno da Dialética do iluminismo, o recalque da animalidade foi uma das causas secretas para o anti-semitismo que vicejou na Alemanha de forma cataclismática no século 20; Hitler, não por acaso, se referia aos judeus como ratos sujos, e talvez sem querer acertava com uma intuição profunda em demasia para seu narcisismo de pintor naïf barato: o rabi, ensimesmado demais com as reflexões talmúdicas sobre D’us e seus labirintos, certamente não tinha tempo nem ocasião para coisas comezinhas, como fazer a barba ou tomar banho; a visão terrífica da Natura em estado naturata deveria parecer ao soldado de caserna, ao oficial prussiano, ao burguês escrevinhador da Alemanha profunda um passaporte perceptivo para o inferno; esta é uma intuição de natureza sofística, pois eleva aos cimos da investigação filosófica aquilo que deveria ser reservado aos baixos: os trabalhos subterrâneos da pulsão, as intermitências da Força e sua ressonância fantasmática, mas para a arte, lugar onde a Verdade se revela no sensível ( Febo), ela se revela de vertiginosa validade.

Nope é um filme que reflete en abîme, tematicamente sobre este exílio que atualmente é nosso: com a chegada do digital, com o advento histérico do culto à virtualidade das imagens quaisquer (e não, como no classicismo, do plano de cinema, com suas mediações características: chiaroscuro, montagem teleologicamente orientada, contracampo litigante para a sobranceria do campo como locus de manifestação), alguma coisa de muito nobre e muito vetusto se perdeu: a presença, o ser aí do mundo capturado no in vitro da lente, a empreinte de verité fotográfica baziniana; é claro que os meios de captura e processamento da imagem permanecem , em termos de princípio, os mesmos, mas a tendência da imagem digital ao aparato de limpeza excessiva, de equilíbrio das gradações e de perda do grão- em suma: de propreté publicitária, ameaça destruir o laborioso Geschik (destinação heideggeriana) de uma arte tardia que pela primeira vez na história humana (Michel Mourlet) soube conservar a realidade capturada por suas mediações com os meios da própria realidade, sem adotar os artifícios da saturação cromática (pintura), da harmonia contrapuntística (música), da metáfora (literatura), e portanto teve com a realidade um contrato, um contato, um conatus mimético, um realismo primordial que nenhuma fantasmagoria digital vai conseguir romper.

Nope nos fala desta terrível ameaça epocal, mas tem o gênio de reverter a seu favor os novos meios, de subvertê-lo de dentro, com a força impulsiva de seu próprio dynamos. Vejamos a cena primordial para mim em que a plateia do espetáculo é devorada viva pelo monstro, configuração do retorno do recalcado (da presença, da animalidade, da essência da experiência inexperienciável do sublime) em chave espetacular que paradoxalmente deixa para a suspensão e o vazio da expectação frustrada (coisa natural, uma vez que o sujeito trocou de lugar com o objeto, e agora é sua presa) a parte do leão. A forma de Peele filmar o sublime, durante o grande espetáculo kamikase coletivo, implica um uso absoluto da contra-plongée (ponto de vista do mestre de cerimônias, aterrado diante daquilo que vê), pois o homem agora é um espectador na plenipotência da impotência para as forças miméticas que se desencadeiam, e  um contracampo quântico já nos situa dentro das vísceras do monstro. Momento de terrífica beleza rilkeana, para o cinema e tudo o mais que existe além; a anamorfose da espectadora do Potemkim de Eisenstein, aquela que com o guarda-chuva dá a largada para o grand guignol da escadaria manchada de sangue, aparece com esta moça desfigurada (é uma sobrevivente da carnificina do macaco), que estrutura em rima de verso branco este processo de abdução totalitária da figura humana pelo Infigurável cósmico, que no entanto nunca esteve tão próximo de nós. As vísceras latejantes de jaculatórias sanguinolentas absorvem a matéria humana com torpor e vigor, e os entretons cor de carne do desfigurado dejeto alimentício deixam-se apreender pela percepção intersticial do espectador, que deve agora aprender a recitar a Gênesis (Carne de tua carne…) segundo um projeto narcísico menos centrado no homem, porque agora este foi descentrado e no buraco negro de sua erosão surgiu uma alimária de sangue coagulado, cujo propósito tantálico e endócrino consiste em consumir Aquele cujo projeto hediondo consistia em consumir o mundo; morceau de bravoure de ideação figurativa magnífico!

Falei mais acima em mitos primordiais, em irradiação extática, falei em Medusa; ela é o mito ocluso-manifesto intersticialmente que estrutura a experiência do Sublime descrita aqui. Todos sabemos que foi o escudo espelhado (que alguns chamam de representação) dado pela deusa Minerva a Perseu que o defendeu do olhar abjeto do monstro, matando-a: i wear my sunglasses...

O monstro sempre teve o seu quinhão de abjeção para crianças insones, mas para a sapiência dos talmudistas de todas as eras e esferas ele também foi sintoma de saúde eminente; o que seria da Beleza sem a cabeça da Medusa? O fascinum do olhar do basilisco é o fora de campo assombrado de toda a luminosidade classicista; “Não olhe para ele”.

O homem inventou a tela de cinema, mediação reflexiva, para não ter de olhar diretamente para Ele (e lembremo-nos também da pedra que protegeu Moisés, quando do cortejo da eternidade que passava, no monte Sinai); como disse ainda, Nope é um filme muito próximo de nós que anamorfiza, convoca refigurando, satura pervertendo e relê tardiamente um sinal das origens que sempre esteve aí, mas para ativá-lo é necessário (desta vez) olhar de volta para ele, emblema da aura benjaminiana; não será nosso último meeting. 

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O arquivo animal

Por Natália Reis

O Internet Archive é hoje provavelmente a coisa mais próxima da utopia ingenuamente profetizada no surgimento da internet. Pilhas infinitas de documentos, livros, filmes e imagens convertidas em terabytes de livre circulação compõem um tipo de bioma utópico, provido por um fluxo crescente de coleções de bibliotecas públicas, cinematecas, arquivos nacionais e toda a sorte de memorabilia. Fundado por Rick Prelinger, o Prelinger Archives vai despontar desse meio como uma subpartição dedicada aos “ephemeral films” – “filmes realizados para fins específicos em momentos específicos, como publicidade, filmes educativos, institucionais e amadores” – derivados de uma compilação extensa que já ultrapassa o número de 60.000 itens reunidos por Prelinger no decorrer de mais de 30 anos de pesquisa e coleta. São cerca de 8.500 filmes atravessando décadas de imagens caseiras, propagandas de TV, conteúdo erótico, filmes educacionais sobre o perigo das drogas e do sexo na adolescência, informativos, documentários científicos e mais uma infinidade de temas e abordagens que podem ser, por sua vez, agrupados a partir de filtros e palavras-chave como: “1920s”, “animação”, “guerra fria”, “saúde e higiene”, “vida rural”, “trabalho”, “famílias”, “astronomia” e assim por diante.

A ideia de “filmes efêmeros” parece ganhar uma força contraditória quando estas imagens de existência limitada sobrevivem na condição de arquivo.  Se o arquivo pressupõe um desejo (ou necessidade) de conservação e revisitação, ocupando uma “topologia” privilegiada, na qual “a lei e a singularidade se cruzam no privilégio” segundo nos diz Derrida, o acervo de Rick Prelinger implode esse contexto acatando imagens enjeitadas – “vulgares”, “menores” –  que ao serem abrigadas num repositório aberto excedem o valor memorialístico e se fazem disponíveis para reprodução e reutilização: alcançam uma sobrevida. Ouso afirmar que as imagens de arquivo também se enquadram num tipo de espectralidade. No caso dos ephemeral films, o retorno do passado é a negação de seu propósito inicial (a efemeridade) e a garantia de uma forma de continuidade enquanto presença vaporosa, distorcida pela ação do tempo. Pessoas e animais se tornam aparições organizadas por período, ordem alfabética e número de visualizações. Em meio a esses ecos é possível observar uma fauna espectral se manifestar: bichos usados para experimentos ou observados à distância na natureza adquirem uma existência volátil, que percorre tanto o limiar do ressurgimento enquanto imagem quanto o risco de desaparecimento enquanto espécie. São os animais imateriais que habitam os arquivos de Prelinger, prontos para serem reanimados a qualquer momento. A seguir, dois exemplos distintos desta proposição:

Experiments in the Revival of Organisms

Uma das imagens mais assombradas com a qual pude ter contato quando a internet era em parte definida pelo acesso irrestrito a fotos de acidentes de aviões e de fantasmas em lugares abandonados foi o vídeo da cabeça decapitada de cachorro mantida viva por meio de aparelhos. A imagem estourada e a baixa resolução encobriam tudo com uma camada de horror e veracidade que para mim era inquestionável: uma cabeça canina se movia vagarosamente, abria e fechava os olhos e a boca, levava a língua ao focinho, tudo isso ligada a um tipo de máquina diastólica que simulava um coração bombeando sangue diretamente para a caixa craniana. Para além da imagem perturbadora, o que mais me assustava ali residia no fato da figura do animal morto-vivo se passar tão bem por uma criatura vivente, que na minha concepção fora destituída de sua alma –  sua “anima” – e mantida nesta condição por pura crueldade. Somos condicionados pela natureza animista do movimento a associar mobilidade e vivacidade. Marionetes, desenhos, ou mesmo as folhas de uma árvore chacoalhando na brisa leve podem se tornar portadores sobrenaturais de força vital se assim acreditarmos, mas aqui o movimento resguarda uma contradição perversa: é a predição da morte inevitável cristalizada na sua própria duração. 

Mais tarde eu descobriria numa visita aos Prelinger Archives que o vídeo na verdade se trata de um trecho de Experiments in the Revival of Organisms, um curta-metragem de 19 minutos realizado em 1940 pela Agência Cinematográfica Soviética, e que, segundo nos informa as cartelas de abertura, era “exibido pelo Conselho Nacional de Amizade Americano-Soviética e distribuído pela Sociedade Médica Americano-Soviética em Nova York”. O filme nada mais é do que um registro dos avanços tecnológicos e experimentos empreendidos no campo do transplante e ressuscitação de órgãos feito pelo Instituto de Fisiologia Experimental e Terapia, e por Sergei Brukhonenko (cujas experiências com cachorros incluem não só a supracitada decapitação como também quimeras de duas cabeças), desenvolvedor do “Auto Jetkor” (um tipo de máquina coração-pulmão), e ainda é um momento raro de cooperação entre duas potências antagônicas –  propaganda soviética com o aval estadunidense. Se a guerra fria também representou uma disputa imagética que trouxe consigo um fluxo incalculável de imagens hostis de ambos os lados, com vilões de sotaque russo e capitalistas de sorriso diabólico, a visão dos créditos hoje nos arrebata com uma imagem impossível, um arquivo de proporções quase mitológicas. 

Para além do teor histórico, há algo essencialmente sinistro no didatismo de Experiments in the Revival of Organisms e talvez por isso seja tão difícil classificá-lo. Imagens monocromáticas de um coração canino pulsam em variações contrastantes de cinzas metálicos e de um preto profundo e viscoso, pulmões que parecem balões de papel inflados se expandem e contraem sobre uma bandeja enquanto são entrecortados por planos do maquinário que garante seu funcionamento fora do corpo. Tubos, engrenagens, sangue, vidro e metal observados de perto ao lado de tecido orgânico fazem as vezes de um sistema frio e eficaz. Tudo isso numa proximidade impiedosa que será reafirmada pela imagem da cabeça zumbificada de um cão branco e peludo, provavelmente um “Laika”, nome genérico dado a um tipo popular de cães do norte da Rússia e da Sibéria e também à cadela enviada ao espaço morta pelo superaquecimento da Sputnik – ambos unidos pela ética questionável anunciada em tom monótono pelo Professor J.B.S Haldane no início do filme: “Como vocês podem imaginar, técnica é tudo!”. 

Ainda que se trate de uma farsa –  questionada inúmeras vezes por usuários comprometidos na sessão de comentários –  o filme soviético manifesta uma aura que só pode ser descrita pelo pavor que acompanha o interdito com o qual muitas vezes já nos deparamos online. É um filme de terror no sentido em que nos confronta com práticas científicas que beiram o sadismo, quer sejam reais, quer sejam construídas pela ação da montagem e de outros mecanismos cinematográficos. Em determinado momento vemos uma sangria ser realizada em outro cachorro, dessa vez de pelagem escura. A narração explica que para se confirmar a eficácia do experimento é preciso dessangrá-lo completamente, o som de batimentos cardíacos é transposto sobre um registro dos sinais vitais até parar completamente; o cão é dado como morto logo em seguida. Vemos as últimas gotas de seu sangue caírem num vasilhame como num gesto sacrificial, seus últimos suspiros, e o olho, estático, aberto, ser espetado. A narração explica que após decorridos dez minutos o sangue é bombeado de volta e o cachorro é ressuscitado. A morte lenta e auxiliada é um obstáculo sem maiores impactos a ser superado com a ajuda de uma elipse. Na cena seguinte vemos três cães diferentes brincando com um cientista, o narrador revela seus nomes e o tempo que cada um teria estado morto antes do processo de reanimação. 

Revisitando essas imagens e principalmente aquela que mais me causava repulsa, percebo que o tom geral do filme não escapa à noção de fabricação das circunstâncias ali apresentadas. É difícil não duvidar. Mas a sensação que perdura é a de que estamos diante de um objeto atroz, cuja trajetória sempre vai desembocar numa demonstração do triunfo da técnica e da perseverança do homem contra sua própria finitude sobre a vulnerabilidade das espécies que não podem se pronunciar. Ainda que tenham nomes, a violência com que morte e vida são banalizadas por meio de uma decapitação ou pela retirada de todo o sangue de um corpo saudável, faz com que esses cães se tornem meros props, objetos de cena exploráveis com tempo de vida programável – criaturas autômatas. A existência e a persistência de suas imagens nos arquivos é um portal que se abre para o mundo material e outras ressonâncias no tempo. Visualizados, incorporados a novos discursos e outras percepções, tais animais passam por um processo contínuo de regeneração, adquirem um corpo anacrônico para além daquele cuja circulação se limitava à propaganda e à mortificação. Perduram.

Eyes under water

Em seu texto sobre O mundo do silêncio (1956), documentário oceânico fruto da parceria de Louis Malle e Jacques Cousteau, André Bazin vai começar afirmando que qualquer crítica do filme de certa forma seria um gesto irrelevante, uma vez que suas belezas “são antes de tudo as da natureza e criticá-lo seria o mesmo, portanto, que criticar Deus”. Bazin prossegue dizendo que obras como essa “são a única novidade radical no documentário desde os grandes filmes de viagem dos anos 20 e 30. Mais precisamente uma das duas novidades; a segunda sendo constituída pela concepção moderna dos filmes sobre a arte; porém, tal novidade se deve à forma, enquanto a dos filmes submarinos pertence (…) ao fundo. Um fundo que nos é próximo”. Nesses dois momentos distintos o crítico vai evocar tanto o aspecto místico do universo marinho quanto a qualidade de se relacionar intimamente à natureza humana mais profunda, retratando o mundo submerso como um elo sobrenatural entre o mundano e o espiritual. 

Eyes under water é um curta de 1949 sobre a vida marinha feito para TV, e integrou o programa John Kieran’s Kaleidoscope, que consistia numa série de pequenos filmes educativos dos mais variados assuntos narrados e apresentados pelo jornalista e naturalista entusiasta John Kieran. O episódio acompanha um escafandrista com uma câmera no fundo do mar para fotografar peixes, crustáceos, esponjas, corais, cavalos marinhos e “múltiplas formas de vida estranha”, como nos informa a descrição do vídeo na página do Prelinger Archives.  Conforme o mergulhador se desloca com a câmera e o tripé de ferro pesado fornecido por outros mergulhadores, acompanhamos na penumbra cardumes agitados e outros mais morosos nadando na imensidão negra como se nadassem no vazio, florestas reduzidas de corais, moluscos que se camuflam nas texturas e matizes aquáticas, mexilhões gigantes e caranguejos minúsculos parecendo pequenas aranhinhas pálidas. 

O fato de que o filme tenha sido produzido pelo casal Paul F. Moss e Thelma Schnee (Thelma Moss) acrescenta ainda mais uma camada fantástica: Thelma, atriz e produtora, mais tarde ficaria conhecida por seu envolvimento com parapsicologia e fotografia Kirlian (ou Kirliangrafia), técnica na qual uma placa fotográfica conectada a uma corrente elétrica revela um “halo luminoso” ao redor de um objeto fotografado, tido por alguns – inclusive Thelma –  como a representação da “aura” de um corpo ou de outros atributos espirituais do orgânico e inorgânico. Pode-se dizer que o aspecto geral de Eyes under water segue nessa mesma direção: é um filme de propriedades fantasmáticas. As imagens são tomadas por uma estranheza característica da opacidade de domínios insólitos, a luminosidade do sol raleada pelo peso da água turva que cria nuances de brilho e escuridão total, os animais que parecem criaturas projetadas numa câmara escura. São etéreos ao mesmo tempo que, na superfície porosa da película e do mosaico de pixels do arquivo, afirmam com aspereza sua presença. 

Havia um tempo em que uma TV pouco se diferenciava de um aquário, ou que fantasmas poderiam ser avistados e contactados através das telas grossas que ocultavam um tubo de raio catódico em seu interior. Jeffrey Sconce em Haunted Media vai afirmar que “a introdução da visão eletrônica trouxe consigo novas intrigantes ambiguidades de espaço, tempo e substância: o paradoxo de mundos visíveis, aparentemente materiais, presos em uma caixa na sala de estar e ainda assim conjurados a partir de nada mais do que eletricidade e ar.”. O telégrafo, o rádio, a TV, são mídias que na sua trajetória foram usadas na comunicação com o supranatural, mensagens, vozes, rostos, vestígios do contato entre mundos materializados através de estímulos elétricos e ondas magnéticas hoje dispersos por tecnologias mais avançadas: telefones, monitores, câmeras digitais, realidade virtual. Se tratando da virtualidade dos arquivos é possível levantar a questão: em que medida a reprodução (e apropriação) dessas imagens pode ser relacionada à materialização de visões diretamente do éter?  
O que Eyes under water e os outros registros representam com suas particularidades e aproximações é a possibilidade de transmutação dos propósitos e meios com que foram concebidos. O tempo erode, mas também transforma e reinterpreta esses objetos. Documentos históricos podem ecoar como obras experimentais e vice-versa, invocados por meio de uma interface amigável e procedimentos quase ritualísticos que incluem acessar, clicar, filtrar e selecionar a qualidade da reprodução. Desse modo, fazemos contato com imagens de vidas passadas e, nesse caso, com criaturas passadas que ora exercem sua corporeidade enquanto sacrifício (cachorros russos e métodos de ressuscitação) ora se tornam sombras aquáticas num universo espectral. Um processo arquivístico de conjuração.

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O pau duro do Chacal

por João Lucas Pedrosa

Gosto de pensar o cachorro como uma criança que não cresce. Eles aprendem coisas com os anos, a partir da experiência nas ruas ou dos limites que os seus donos estabelecem. Eles compreendem sistemas simples (que se latir perto da cambuca de comida ou de água, os donos vão enchê-la; que se cutucar um humano com a pata, recebe carinho), e geralmente só assim conseguem assimilar o mundo, dialogando com as superfícies táteis (como o cachorro que sofre abuso e estrutura sua defesa generalizando tipos abusadores; White Dog, de Samuel Fuller, nos lembra como isso pode ser instrumentalizado com o cachorro que aprende a odiar negros). Não há diferença entre a tevê, o reflexo do espelho ou o espaço: virtual e concreto são um só. Mas, durante o desbravar espacial, existe sempre algum cheiro de novo escondido em meio ao familiar. O cheiro é o primeiro sentido que se tem dessa nova coisa antes de encostá-la no focinho e metê-la boca adentro ou esfregar-se nela com o corpo. A criança faz a mesma coisa, talvez com a diferença que tende a atrair-se antes pela visão ao invés do olfato. Boa parte das ações não carrega sentido além da possibilidade de sentir, da excitação do próximo sentido primário que o contato direto com coisa ou ser trará. Se é líquido, eu posso beber; se é coisa, deve ter gosto; se cabe na boca, eu posso comer; se a sensação é boa, eu posso continuar. Há uma mistura de ingenuidade com invencibilidade (ou, nesse caso, o desconhecimento de uma vencibilidade) pela ignorância do limite: o pular de uma altura grande demais, ou o morder, mastigar e engolir de algo não-comestível, ou o destroçar de um objeto valioso pelo prazer de senti-lo quebrar. 

Nos créditos iniciais de “O Fantasma” (2000), de João Pedro Rodrigues, um Doberman atravessa um corredor para tentar entrar num quarto fechado. Ele bate com a pata na porta e gane por alguns longos segundos. O plano seguinte é dentro do quarto, um detalhe traseiro do nosso protagonista em roupa de látex comendo um cara pelado. A roupa tem uma abertura em zíper na parte da bunda. Vemos apenas nádegas e coxas, além das mãos algemadas do passivo. O terceiro plano da cena é um close, e o protagonista está mascarado atrás do passivo, segurando com força um pano sobre sua boca. Humanos, enquanto seres deuterostomados, temos no processo de multiplicação celular que formará o feto o ânus como primeiro orifício gerado, para apenas depois ser aberto o que virá a ser uma boca. Pois bem, deste protagonista também é apresentado ao mundo antes o cu, e depois a boca. Em “O Fantasma”, o ato de expelir – para que, a princípio, serve o cu – e o ato de comer – para que, a princípio, serve a boca – são muito próximos e se confundem num ciclo vicioso, cumulativo. Talvez uma imagem explícita da penetração pudesse trazer a inversão gráfico-simbólica de um cu que come (nesse caso, come o pau do ativo), mas perderíamos o protagonista como agente do “comer”. E seu apetite voraz é o que move o filme.     

Esta primeira cena é entre quatro paredes, num ambiente íntimo e fechado onde nem o cachorro entra. Mas o filme é sobre uma criatura da noite, que ronda as ruas. Já vemos, na cena que se segue, o rosto de Sérgio (Ricardo Meneses), o homem antes vestido de látex, num quintal brincando com um cachorro. Duas mãos femininas tapam seus olhos e o fazem adivinhar quem é. A adivinhação vira um joguete erótico em que Sérgio explora com as mãos o rosto e cabelo da mulher, a fareja para identificá-la. Parece ser apenas uma performance de flerte, uma desculpa para o contato, mas viremos a perceber que assim é como ele (re)conhece tudo no mundo: pelo tópico, pelo que lhe excita de imediato. Ele pega, investiga, usa, descarta, vai embora. A surpresa pode fazê-lo subitamente defensivo. Antes de destampar seus olhos, Fátima (Beatriz Torcato) o beija na boca, e ele se afasta abruptamente, xingando-a e rosnando se ela se aproxima. Então finge-se de morto, ganindo quando ela lhe chuta tentando “acordá-lo”. 

Seu comportamento pode não ser tão estranho a priori porque reconhecemos ser ele um homem. Quando o vemos transando com outros de seu tipo em banheiros, vielas e cantos isolados, sabemos que é algo comum em seu sexo. Sabemos que homens tendem a aprender a não repressão de seus desejos, a liberação de seus ímpetos onde necessário for. Se moralmente vistos como sujos, então na sujeira serão liberados. À medida que não nos é estranho que a animalidade desenfreada do protagonista encontre consumação fácil nos lugares comuns de encontros sexuais entre machos, e que facilmente apareça um homem novo a fodê-lo, isso parece nos dizer algo sobre os homens em geral deste filme (ainda que não todos, ao menos a maioria). Sérgio também sente tesão por Fátima, que lhe desejava, mas ele a destrata depois que transam, e mais tarde tenta estuprá-la. Ele faz mais sexo com homens porque é mais fácil encontrar um disposto a transar onde quer que seja e sob qualquer condição, não precisando de mais que um olhar faminto e um lamber de beiços. Homens são acostumados ao ciclo de utilitarismo sexual, ainda que isso os machuque – e o olhar de alguns dos amantes de Sérgio dirigidos a um extracampo sem retorno marcam contraste com a frieza do protagonista.

Sérgio também não vê moral nem poder barrando-lhe o desejo, ele habita e age no mundo sem noção de hierarquia. Quando vê um policial amarrado e amordaçado numa viatura abandonada, masturba-o e o abandona gozado e imobilizado. O policial não resiste; ao contrário, reaparece no filme como uma presença de forte tensão e desejo sexual recíproco, que nunca volta a ser consumado porque sempre surge um colega ou uma sirene convocando-o de volta ao extracampo. Apenas restrito do poder da farda – e mesmo dos seus movimentos -, teve o prazer liberado. Este policial, na verdade, é um escravo; Sérgio, enquanto fera indomável, é anárquico. 

Ainda na primeira parte do filme, o protagonista fica obcecado pelo cheiro que sente numa moto na casa onde vai pegar eletrodomésticos quebrados – ele trabalha na limpeza urbana local, o que muito dialoga com seu conforto pelo que é descartado. Sérgio passa a perseguir João (Andre Barbosa), o dono do cheiro: revira seu lixo, masturba-se vestindo uma sunga sua rasgada que achou na lixeira, masturba-se num vestiário lambendo a parede onde sente seu rastro. Invade sua casa, mija em sua cama. É essencial lembrar que Sérgio, apesar de animal, não é criança nem cachorro. Tem corpo, força, gana de homem crescido. Não é um frágil projeto de gente, ou o melhor amigo do homem. Sérgio é um predador, e sua presa é João. Enquanto criatura, não tem noção alguma de valor ou de higiene. Sua afinidade com a “sujeira” moral é exatamente a mesma que com a sujeira física, com o fétido. No último ato, depois de transar novamente com o homem algemado do início (e com a mesma roupa preta), tenta sem êxito raptar seu objeto de desejo usando a violência. Acaba fugindo da polícia no caminhão de lixo, e no lixão é descartado. Come frutos podres, bebe água barrenta. Aqui chego na mistura entre o comer e o expelir comentado na cena de apresentação, pois aqui está o protagonista vestido assim como quando nasceu a nossos olhos: como criatura de látex. Mas, agora, diferentemente, não só está jogado no mundo, como chafurdado na merda pelo mundo expelida. Vive uma extensão hiperbólica de como já vivia: sustentado pelas sobras, pelo que já passou pelo consumo das gentes e dos vermes. Estamos vendo um filme sobre um homem pré-histórico no meio do capitalismo tardio; a única coisa que separa um do outro, afinal, é esconder sua podridão. 

A aparência de Ricardo Meneses ticar cada caixinha do padrão de beleza clássico e hegemônico dificilmente é coincidência: é um corpo que desperta o tesão aprendido, e que, no filme, é movido por um tesão inerente, bruto, quase intransitivo. Pode ser até que nos excitemos, que nos toquemos ao longo do filme. Mas o que se faz do nosso tesão quando Sérgio ataca violentamente o rapaz que desejava e o abandona, com mãos, canelas e boca constritas de fita adesiva, na rua? Quando, com a roupa de látex manchada de esgoto seco, come lixo? O corpo trajado de fetiche, radicalmente despido de sua humanidade – e agora também da forma humana -, não hesita. Vaga, fareja, come, fode, no meio da rua ou no meio do lixo. Mas nós sentamos e o observamos. Em enquadramentos estáticos, alongados; planos entregues à contemplação do gesto cru, porém também possíveis eretores do ruminar quando a duração esgota o estímulo direto do gesto. Sérgio não questiona seu desejo, mas nós questionamos o nosso o tempo todo. E, em algum momento, nos dá o estalo: olhamos Apolo, mas vemos um chacal. 

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Um passeio sobre as cenas de caça no ambiente francês

por Roberta Pedrosa

O caçador descansa, recostado em uma árvore, na penumbra, pensativo. Em oposição a sua  introspecção, no primeiro plano, os cães de postura ansiosa encarnam a agressividade e a fisicalidade do ato de caçar. Em frente aos cães e em uma linha diagonal com o caçador, a gazela morta, por sua vez, também se apoia na árvore, mas de ponta cabeça, com as genitais voltadas para cima, sem nenhuma dignidade, em uma posição bastante artificial.

Na pintura A Pedreira (1857), Gustave Courbet faz da figura do caçador seu autorretrato, literalmente, na reprodução de suas feições, mas também, em certa medida, metaforicamente. Pintando, o pintor-caçador está em contato com a brutalidade; ao terminar,  guarda as mãos e descansa na sombra, enquanto a gazela é exposta violentamente sobre a luz.

A Pedreira (Gustave Courbet, 1857)

O Senhor Eugène Pertuiset, caçador de leões ( Manet, 1881)

 Ao contrário do caçador de Courbet, o caçador de seu contemporâneo Édouard Manet, O Senhor Eugène Pertuiset, caçador de leões (1881), não representa ele próprio, mas um amigo colecionador e comerciante de arte e de armas. Se em A Pedreira o caçador esconde as mãos, aqui elas seguram a arma em primeiro plano com firmeza, mas também com ternura. Como é de praxe para Manet, os detalhes da mão não são esmiuçados e as pinceladas se fazem visíveis na construção da superfície da pele, as mãos parecem a parte do quadro onde a luz e a sombra são consideradas com mais cuidado. O leão morto ao fundo, assim como o homem que se ajoelha em nossa frente e nos encara diretamente, parecem pertencer a um ambiente onírico, não parecem presos ao chão – até porque a cor azul do fundo nos remete mais a um céu ou a um lago do que a uma floresta.

Caçar uma gazela é simbolicamente muito diferente de caçar um leão: a gazela, apesar de ser um animal de grande porte, é comum à própria fauna francesa, enquanto o leão é um animal exótico que não se encontra naturalmente na Europa do século XIX. Se as cenas de caça, anteriormente a Courbet e Manet, foram um gênero decorativo popular para a aristocracia francesa, é porque o ato estava também enraizado nessa cultura. 

Em seu filme A Regra do Jogo (1939) Jean Renoir retrata um grupo de amigos de uma aristocracia decadente, ou de uma burguesia com ares aristocráticos. No filme de Renoir a caça aparece de duas maneiras: para os empregados e para população rural ela é um trabalho ou um meio de sobrevivência, enquanto para os proprietários da terra ela é um esporte. Na caça aristocrática, a caça é feita por homens e mulheres, e os caçadores e caçadoras ficam separados a uma distância segura de suas presas, enquanto os funcionários espantam os pequenos animais, aves e coelhos, para um campo aberto onde eles possam ser atingidos pelos tiros das espingardas.

A caça aqui não tem uma vítima específica, não é esse ou aquele coelho, mas qualquer um: quando um morre outro vira alvo. O final da caça é estipulado não pela conquista de uma presa específica, mas pelo cansaço ou tédio do caçador. Essa multiplicidade de presas é também, para a A Regra do Jogo, uma repetição da estrutura do filme, da multiplicidade de pequenos conflitos que o estruturam.

A filmagem da caça é feita mais próxima dos coelhos do que dos caçadores. Os planos detalhes dos coelhos fugindo dos funcionários e se escondendo entre as folhas, criam uma empatia desconfortável entre o espectador e a presa. Os coelhos e aves correm e voam para todas as direções, mas em um dos planos os funcionários caminham afugentando os coelhos em nossa direção, passando pela câmera e criando um extra-campo atrás de nós. A sensação é como se estivéssemos no meio do “campo de batalha”.

A filmagem dos animais tem um ar documental e o abate deles também é filmado com certa objetividade. A câmera espera o rabinho do coelho parar de se mexer e segue a caída dos pássaros que vão do céu ao chão. Quem recolhe os pequenos cadáveres são os funcionários, e um cão que pega casualmente a sua parcela. A cena de caça no filme é longa, mas o filme segue casualmente sem se abalar por ela. É apenas no final que vemos a caça se repetir, agora entre um marido ciumento e o amante da esposa. Na “caça” entre humanos as personagens também se confundem de presa, e em certo sentido elas também se comportam como coelhos – ou pelo menos no quesito da vida sexual dos coelhos, que é tida como muito ativa. A vítima final acaba sendo, por um acaso completo, André Jurieu, que começa o filme voando e, como os faisões caçados, acaba o filme na terra.

Para Jean Renoir, a caça, a morte, as relações humanas, parecem sempre regidas pela casualidade. Já no caso do último filme de Patricia Mazuy, Boliche Saturno (2022), o tema da caça na cultura francesa é atualizado pela individualidade psíquica e familiar do protagonista, que acompanhamos se tornar um serial killer, como herança da caça de animais selvagens herdada de seu pai. Em uma cena central do filme, os amigos caçadores do falecido pai se encontram no boliche para lembrar as conquistas individuais e a memória do falecido amigo. Nas paredes são projetadas as filmagens amadoras das viagens de caça no continente africano, que incluem animais selvagens dos mais variados.

A caça no filme de Mazuy é uma prática social excêntrica que beira a seita, o culto religioso ou as organizações de extrema direita, e remete não apenas às práticas de caça da aristocracia francesa, mas ao passado colonial do país. De maneira direta, a caça é aqui uma prova de poder e pertencimento em uma sociedade na qual a impotência é regra.

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A ferida, na pele, é uma fresta & Quem tem medo do folclore da mulher?

Por Maria Trika

A ferida, na pele, é uma fresta

As miçangas, de Rafaela Camargo e Emanuel Lavor

Orixá cujo  corpo são frestas entre a pele e a escama, o macho e a fêmea, a água e a terra.

por ser tudo, torna-se o nada para então ser pura cor: é ciclo.

que uma vez se fez cobra para escapar pelo espaço restante entre a certeza e a violência.

O início do filme é ótimo, porque é estranho:

vemos dois corpos abraçados, tremendo, se picando e se juntando.

salto:

Vemos duas figuras com cabelos ´joãozinho´ e roupas esfarrapadas em um carro.

uma vai abrir o portão.

um grito rompe a imagem:

agora elas correm na mata

e tomando banho de rio

enchendo galões d’água.

pulo:

uma porta se abre.

elas entram em  uma casa meio largada sem luz e sem água

seriam as duas gatas ´sapatão de sítio´?

Gosto da forma das transições do filme:

Elas funcionam como buracos, que fazem a narrativa ter que saltar de um ponto a outro sem preenchê-los por inteiro.

Quando a narrativa ou a fala não buscam preencher por inteiro uma cena, uma brecha se abre, onde o mistério pode se infiltrar, gerando uma sensação de vertigem no espectador e o forçando a, também, desapegar

e saltar em seus pequenos abismos

meus olhos tentam resistir,

buscando o sentido das coisas

e tentando revelar o laço entre elas

existe uma linha sendo tensionada,

um afeto intenso pulsando entre os corpos

só que na imagem nada se rompe.

desapegue:

tudo aqui são dois, que logo, descobre-se três.

a trama continua crivando pontos soltos

se transmutando a cada certeza.

assistir torna-se um exercício de suspensão.

algo bonito acontece aqui:

O tema central é transmutações e a forma do filme torna-se expressão daquilo que se busca dizer.

me parece um bom caminho: ao invés de traduzir didaticamente ou escancarar, pingar todos os pingos em todos os i´s, ele apenas espelha, incorpora o que procura, torna-se ciclo, corpo-cobra. E esse gesto estende-se a nós, que vemos

e agora escrevendo ergo, também, um espelho. 

acompanhamos o mistério do processo

esquecemos aquela vontade do início  de tentar  entender – fluímos com as imagens, com a dor e o que as pequenas pistas apontam.

até que (qual é o som de uma transformação?)

tudo se apresenta de maneira mais evidente:

a narrativa, a personagem, o corpo

a transmutação se completa

se faz outra

mais uma vez.

Arroboboi!

Quem tem medo do folclore da mulher?

Infantaria, de Laís Santos Araujo

o filme é composto por uma colagem de arquétipos

fusão de uma mitologia nacional com o olhar e projeção  do exterior:

a ausência do pai (fantasma do fora de campo)

a mãe forte que dá conta de tudo sozinha

o sonho de ser princesa

o sonho de ser mulher

o principezinho no cavalo branco

a arte carregada e quase artesanal formando uma reprodução do imaginário (e também folclore) de um olhar exterior para o que seria “uma estética do terceiro mundo” ou, em termos mais contemporâneos, um brazil/latin aesthetic como vemos a rodo no Pinterest.

que compõem os inúmeros “tableau devir”[1]do filme

o aborto

a primeira menstruação

a infância (?) – que está sempre em risco aqui (resiste na fábula, na artificialidade, no místico que vez ou outra surge, na imagem posada para ser fotografada, na quase inocência da aniversariante, e se perde em todas as outras).

Pela definição comum “ Por folclore” entendemos as manifestações da cultura popular que caracterizam a identidade social de um povo. O folclore pode ser manifestado tanto de forma coletiva quanto individual e reproduz os costumes e tradições de um povo transmitido de geração para geração”.

INFANTARIA dá a ver o peso da parte do folclore submersa. O folclore que todo corpo-mulher sabe porque está ali, projetado em todo olhar sobre nossas imagens, aquela mitologia que já trazemos no sangue desde a infância e que carrega a violência de todas as nossas que vieram antes.

por que fabular?

e por que não a fábula e a imaginação para dar conta disso tudo?

quais são as imagens possíveis

para essa infância?

Tudo se perde, fortalecendo e recriando as imagens que projetam, revelando os seus avessos.

e o filme se mantém nesse limiar podendo, a qualquer instante, escorregar da defesa ao ataque.

o filme

a tira.


[1] que reproduzem imagens que poderiam ser, sabe aquela imagem que nos dá a sensação de que já foi vista ou que poderia ser um quadro?

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Trem fantasma: João Paulo Campos conversa com Bernardo Oliveira e Saskia sobre Caixa Preta, 2022.

No dia seguinte à exibição de Caixa Preta no Cine Tenda durante a 26º Mostra de Cinema de Tiradentes, me reuni num bar no centro de Tiradentes com Bernardo Oliveira e Saskia para conversarmos sobre o média-metragem da dupla e a sessão acachapante da véspera. Saskia se ausentou no começo da conversa, mas logo voltou à mesa para trocar ideias e compartilhar tragos de whisky. Saskia é diretora, montadora e também foi responsável pelo som da obra. Bernardo Oliveira é diretor e produtor.

por João Paulo Campos

João Paulo Campos: Ontem (na apresentação do filme no Cine Tenda) vocês mencionaram que o Caixa Preta vem de um projeto mais amplo, chamado Ciranda do Gatilho. Queria que vocês falassem como surgiu o Caixa Preta e comentassem esse outro projeto.

Bernardo Oliveira: Quando foi 2020 o Sesc Santo Amaro me convidou pra fazer uma programação musical durante a pandemia, ou seja, uma programação musical que pudesse ser disponibilizada de forma remota. Eu chamei a Saskia e o (Negro) Leo pra gente fazer uma coisa juntos e obviamente que no momento da conversa, o Leo e a Saskia são pessoas assim muito explosivas de ideias, né? As ideias vão explodindo, vão estourando, espocando de alguma maneira, e aí a gente começou a pensar nessa ideia de ciranda e de gatilho. Ciranda do…vamo fazer uma ciranda do gatilho. Então a gente começou a rir dessa ideia, mas percebeu que podia ser um bom método de trabalho. Eu produziria um pacote de informação, de dados, de imagem, som, entregaria e teria a função de engatilhar a Saskia. E a Saskia a partir desse pacote produziria um outro pacote, que por sua vez entregaria ao Leo e a gente ficaria girando nessa ciranda, engatilhando um ao outro. A ciranda é evidente que era uma roda, certo? Mas o gatilho o que seria? A ideia de que você pode utilizar essa expressão que foi meio que decodificada dentro dessas ideologias identitárias mais norte americanas no sentido de deflagrar uma espécie de desconforto afetivo, desconforto psicológico. A gente gosta muito dessa ideia de um gatilho psicológico mas que não necessariamente vai te levar pra uma situação de ansiedade, de baixa de energia, de baixa de vontade e tal. E aí começamos a entender que o gatilho também poderia ser esse disparador de uma situação, um chamado a situações, contextos, possibilidades não só expressivas mas também de alguma maneira táticas. Eu acho que o Leo… A Saskia nem tanto, mas o Leo é um artista muito ligado com essa ideia… O Leo é esse cara que tem muito mais uma preocupação com a noção de tática do que propriamente com a noção de experimentação formal. Então a gente começou a fazer essa ciranda. Eu preparei um pacote com informações, passei pra Saskia, a Saskia preparou outro, passou pro Leo, e a gente entregou tudo pra Mariana Mansur, que seria a designer do projeto, no sentido de criar um site. A gente gostou muito dessa ideia também de pegar e reunir tudo num site, tá entendendo? Porque o site é uma tecnologia antiga. Quase arcaica (risos). Eu lembro de a gente ficar perseguindo os sites de uma empresa inglesa chamada Hi-res. Um escritório de design avant garde do início do século XXI responsável pelo site do David Bowie, do Amon Tobin, e era um barato navegar naquele site porque era uma experiência nova, e o site ficou uma coisa obsoleta de alguma forma, né? Então a gente se animou com a ideia de fazer um site. A Mariana criou uma página preta com várias pedras, como se fosse um jogo de búzios, como se fosse um jogo de runa, sei lá, alguma coisa assim que você joga a pedra e vê alguma coisa. E você vai clicando nas pedras e vai levando pro conteúdo, só que cara… quando Mariana produziu o site a gente reparou que faltava muito conteúdo. Aí começou a loucura. A gente reparou que esse movimento da ciranda do gatilho precisava ter antes um arquivo. Vamos dizer assim, um manancial aberto de informação que de alguma forma se relacionasse com África e diáspora mas que também tivesse alguns matizes de problematização mesmo, de não pegar uma imagem óbvia e afirmar a potência dessa imagem em toda sua completude; pensar também que existe uma imagem, um som que por causa do tempo mesmo, vai faltando informação, tá entendendo? Vai se esmaecendo, vai apodrecendo, ou então vai se renovando. Então pegar também o movimento dessa matéria. Aí, cara, aí começou a loucura mesmo. A gente fez alguns HDs com mais de 30 tera de material. E fizemos o site. O site teve uma boa visitação, mais de 10 mil pessoas em, sei lá, 3 meses. A gente se empolgou, o Sesc também se empolgou, então vamos fazer a ciranda dois. E a ciranda dois foi mais sinistra, porque é uma página toda preta, com os búzios novamente, vocês podem reparar que no filme mesmo aparecem as pedrinhas. Só que cada vez que você clica numa pedra, o jogo reabre. Às vezes você reabre o jogo, às vezes você vai pra um lugar. Então você clica assim e reabre. Então imagino que pro tipo de velocidade da navegação hoje em dia esse site não foi bem compreendido, mas essa era a intenção mesmo. A pessoa clicava, não acontecia nada, ela passava, né? Mas se ela insistisse um pouquinho ela ia encontrar um disco de duas horas e meia que eu, Saskia e Leo fizemos. Um disco. Tem um disco dentro dessa ciranda dois. Bom, o desdobramento natural disso é fazer um filme, porque a gente tinha muita imagem de arquivo, muita imagem de pedaços de filme, gravações de filme. Bom, o Felipe Hirsch convidou a gente pra fazer uma intervenção no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, dia da língua portuguesa, e aí eu e a Saskia achamos que seria uma boa, o Leo não tava podendo porque ele tava fazendo uma ópera com a Juçara Marçal e com aquele ator maravilhoso, negro, homem, mais velho… o Carlos. Mas a gente tinha os arquivos dele falando, das ideias, e tal. E aí eu comecei a estruturar o filme na cabeça, comecei a mandar muito material pra Saskia, a Saskia já tinha material… Cara, e assim, impressionante porque em 3 dias a Saskia estruturou o filme. Em 3 dias. Muitas das coisas que vocês viram aí ela preparou e pum, foi direto. Eu tive muitas ideias: Caixa Preta, a ideia da Caixa Preta com os áudios, a pastora Ana Lúcia, mas o grosso do filme, a lógica do filme, a própria articulação ela foi criada pela Saskia. Então é isso, a Ciranda do Gatilho tem um site, um disco, e agora tem um filme e a gente tá pensando em fazer outro filme, agora tem outras possibilidades pra Ciranda do Gatilho. A gente também é um grupo de pesquisa, pesquisa não só por informação mas por essas táticas expressivas, acho que o Juliano (Gomes) fala isso num texto para o catálogo do Forumdoc[1]. Ele fala que é um recenseamento de táticas expressivas que já acumulam uma sabedoria popular que é quase que negligenciada. Então vamos dizer, uma mixtape sonora pra sala de cinema. Coloca em jogo a sala de cinema mas ao mesmo tempo tem ali uns elementos que podem causar disjunção. O som alto, por exemplo. As pessoas se incomodam. Tinha gente tampando o ouvido ontem na sessão. O fato de ser média também é um problema. Não sei por que, mas é um problema. É isso.

JPC: Você falou aí duas palavras que me chamaram a atenção, que são arcaico e arquivo. Mas há um trecho do filme em que há todo um certo ensaio discursivo que aponta pro futuro, né? “Eu sou o terceiro milênio…”. Queria que você comentasse um pouco essa relação do arcaico, do arquivo, com essa projeção de futuro, esse choque de tempos que o filme de vocês produz.

BO: É mais um choque de tempos e de uma multiplicação de temporalidades do que propriamente um filme sobre o futuro. Quando eu digo “eu sou o terceiro milênio”, eu falo muitos nomes ali, as pessoas lêem como homenagem, e não são homenagens. São pessoas que estão destacadas nuns pontos muito diferentes da minha experiência com elas, de alguma maneira. Tem amigos, tem pessoas que eu admiro de longe, tem pessoas que de alguma maneira, enfim… Beatriz Nascimento, né? O paradigma do vaso estilhaçado. Você tem uma certa liberdade de poder recompor, você, o afrodiaspórico, o desterritorializado, o desterrado, ele tem uma certa prerrogativa em relação ao seu arquivo psíquico, mental, familial, coletivo. Então, como é que você recompõe o que que produz uma história? Eu acho que no caso do negro norte americano isso é muito mais complicado, os caras não tem Ogum, não tem Xangô, sobrou nada da cosmologia deles, eles tiveram que tirar tudo do zero, e tá lá, tá tudo lá. Tá lá a igreja, tá a roda, tá o transe… de alguma maneira eles recuperam, é um processo de “retrieval information”, recuperar informação. Então é menos um filme projetado para o futuro do que propriamente uma chamada pra pensar essa multitemporalidade possível, onde inclusive o passado pode ser vanguarda, a depender da forma, e vice-versa, o futuro pode ser extremamente retrógrado. Então eu não vejo uma preocupação em relação ao futuro. Sobre o arcaico e o arquivo. Primeiro, o arquivo é qualquer coisa, tudo é arquivo. Até a experiência do tempo presente ela tem de alguma forma uma densidade própria do arquivo. Senão você não teria história do tempo presente, Marc Ferro, esses caras… História do tempo presente lida com a possibilidade de que o próprio presente forneça desde já possibilidades de se ressignificar a experiência, ressignificar a informação. Então acho que é isso, não é bem um filme de futuro, é mais um filme pra explorar essa possibilidade… nem é um filme de vanguarda, não é um filme experimental. É uma grande brincadeira, se fosse um filme experimental, todo funk é experimental, todo bregafunk é experimental. Caixa preta é mais pulso e ritmo do que narrativa.

JPC: Você pensaria numa categoria como cinema ensaio?

BO: Também não, é uma mixtape, pra dormir, pra dançar, pra levantar, às vezes pra deixar tocando. Pra incomodar. Pra fazer coisas que são potências próprias do cinema. Muita gente que assistiu o filme disse que ele seria interessante como uma exposição, uma instalação, uma performance, um teatro. Mas é um filme. A caixa preta. A tela preta. Os efeitos gerativos, pô. O Fábio (Andrade) me mostrou agora um texto do Andrew Uroskie, ele fala de como é que o próprio cinema vai de alguma forma recuperando certas estratégias do museu e vai se formando enquanto espaço de exibição[2]. E de certa maneira eu sinto que a gente tá não negando ou desconstruindo isso, mas dando outras possibilidades. Ó: também é possível que você tenha um desprazer sonoro dentro de uma obra da Janet Cardiff. Certo? É possível que cê tenha desprazer e tensão e dúvida e sensação de perigo diante de uma obra, sei lá, do Herman Nitsch. São possibilidades também a serem exploradas que de alguma forma envolvem essa suposição de que o lugar do espectador é um lugar de uma quietude, de uma ausência de conflito. Hoje é uma coisa que me irrita muito essa ideia de entregar, entregou, deliver. A gente tá completamente americanizado, os termos, essa coisa de entregar. O Caixa Preta não entrega, literalmente, não faz o seu deliver. Eu acho que é um pouco por aí.

JPC: Pensando ainda essa coisa do antiquado. Você me disse antes dessa conversa que o Caixa Preta é um filme do século XX. E aí eu lembrei da ideia de estética das atrações. Essa coisa do mostrar, do apresentar, não representar, mas uma máquina de mostrar, uma caixa de mostrar coisas. E aí eu lembro de um texto do Tom Gunning sobre o cinema das origens e a estética das atrações, o espectador do primeiro cinema, em que ele fala de uma estética do espanto[3]. O Caixa Preta me lembrou isso por parecer estar próximo mais da ação, você falou de tática, do que da representação. Tem uma provocação, e nos leva ao espanto, a gente remexe. As pessoas estavam dançando na sessão, de fato. Eu tava me mexendo, todo mundo tava mexendo. Uma amiga falou que estava querendo ir pra frente dançar, e aí eu te pergunto como você acha que esse filme trabalha essa questão da ação, dessa intervenção na nossa experiência corporal. Porque eu sinto que é um filme que bagunça nossa experiência, pra gente se deslocar de alguma maneira. Vocês tavam pensando nessa coisa de realmente provocar o espectador a deslocamentos – que é dança, no final das contas?

BO: Sim, teve isso. Teve muito a ideia de disjunção, aquelas pessoas no Guanabara se matando e eu cantando uma letra onde o Arlindo e o Nei Lopes descrevem a excelência de uma topologia do sambista. Mente aberta num corpo fechado, contra plágio, seja criativo, tem carteira de trabalhador, você tem ali um modelo de virtude né? E de alguma forma contrastando com as cenas do Guanabara, mas sobre essa questão das atrações que você falou, acho importante frisar isso. Se há uma proximidade do Caixa Preta com o cinema de atrações é muito mais do ponto de vista da sua realização técnica e material do que propriamente da relação com a estética. Saskia é uma montadora nata e nunca ninguém chegou pra ela e falou: você é uma montadora. Embora ela monte. Embora você tenha aí uma juventude toda usando celular como um trabalho de raccord, de corte, as pessoas cortam e cortam muito bem cortado, isso é muito louco. Severino Dadá que não me ouça, mas assim, realmente é muito surpreendente às vezes o resultado que cê vê numa baboseira no Tik Tok. Então assim, eu sinto realmente que tem uma proximidade com esse cinema demiúrgico das atrações, das cavações, como se falava no início do século XX em referência ao que Arlindo Machado chama de pré-cinema, mas é o cinema brasileiro do início do século passado, é o cinema de cavações, ou seja, você vai cavar aspectos que interessam ao espectador. Ou o patrocinador. Geralmente quem tá pagando. Então eu sinto que tem muito mais uma proximidade com a ideia de que você vai usar o equipamento pra experimentar mesmo, explorar aquilo ali. Quando você fala cinema de atrações, eu concordo, mas tô sempre pensando nesse momento que a gente falou “vamo fazer um filme?”. Eu que nunca fiz um filme, Saskia também nunca fez. Já participei, produzi filme, mas fazer um filme, ser responsável pelos cortes, pelo que vai entrar, como vai, tomar conta daquilo tudo, sendo marinheiro de primeira viagem, eu me senti realmente, e ela também, desbravadores, como se a gente tivesse fazendo um negócio totalmente fora da expectativa. A gente não imaginava fazer um filme esse ano. A gente mandou o projeto pro Sesc, o Sesc não aprovou. Então assim, no momento em que a gente decide fazer, o espírito é esse: caralho, a gente tá inventando cinema, vamo que vamo… (pausa, pois Saskia chega ao bar).

Saskia: Olha, eu acho que tudo que eu faço tem uma não consciência consciente, acredito. Porque, eu tava conversando agora, vindo pra cá, com Mariana (Queen Nwabasili) que tá fazendo a curadoria e ela tava falando sobre a relação, a comparação entre fazer música, fazer cinema. Eu acho que eu orquestrei esse filme do mesmo jeito que eu faço os meus arranjos em música, tanto pra trilha quanto pra faixa, quanto pra uma construção poética. Parte pelo mesmo princípio, do improviso consciente. Eu deixo a história se fazer também um pouco. A narrativa vai se construindo um pouco sozinha.

BO: E literalmente, né? Porque foi um negócio que eu tava contando pra ele que você chegou com o filme 80% pronto. Três dias depois do início. Foi um processo meio mediúnico, sei lá, meio acelerado…

S: É, me tranquei no quarto e eu mergulhei nesse filme. Mergulhei. Eu só pensava nisso. Foi a primeira coisa que eu editei com as minhas monitoras maravilhosas, então foi eu descobrindo também a sonoridade daquela potência, nunca tive monitor então aquilo mudou a minha cabeça. Eu acho que eu comecei pelo áudio, eu acho que o filme é uma tradução um pouco do que tava sendo construído na Ciranda Sonora, o movimento dois, Ciranda Sonora (o disco).

BO: A exibição aqui em Tiradentes foi realmente impactante pra mim. Pra mim foi um impacto terrível, no bom sentido, de ver até onde a sonoridade desse filme poderia ir. Um elemento físico do som, da imagem, tudo aquilo, como é que funcionaria numa situação ideal? Eu acho que ontem a gente teve essa experiência aqui e eu acho que o volume sobretudo foi um problema, de certa maneira… mas um problema que a gente optou por isso, a gente optou por esse volume. Por uns momentos eu me senti desconfortável, mas eu acho que o gatilho, ele é um desconforto, que tu não sabe se tu ri, se tu chora, e o som tá físico, a distorção. A diferença pra imagem é que a imagem, a luz, se você bota sombra, se você tapa a luz, você não vê. Se você tapa o olho, você não vê. O som não tem como fugir. O silêncio praticamente não existe. Estar num lugar que tem silêncio total? Tem o som dos teus órgãos, então o silêncio ele não existe, eu gosto de brincar com o poder do som. Ele é abusado, ele entra sem ser convidado. Ele atravessa as paredes. Treme os vidros tudo. Ele corta barreiras. E é legal essa física, uma física que cê não consegue pegar, o som você não pega, ele te pega.

S: Existe essas salas que são super isoladas, que são poucas, mas o que acontece é que você escuta o som dos seus órgãos, da sua respiração. Ou seja, o silêncio não existe, é um imaginário.

JPC: Bernardo falou que esse filme é uma espécie de mixtape e me veio à cabeça que existe alguns filmes, sendo que um dos cineastas mais interessantes dessa tendência é o Lincoln Péricles, que criam montagens à luz do remix. Tanto na imagem como no som. Sobretudo na relação da imagem e som. Queria que vocês comentassem essa ideia da mixtape e do remix. De som e de imagem e da mescla do som e da imagem.

S: Eu gosto da ideia de remix como a ideia do sample. O sample é uma coisa que é criada uma narrativa, aí você recorta ele pra ele se transformar em outra coisa. E eu acho que a gente tá numa saturação de dados infindável da humanidade, então quando você pega esse monte de coisa que tá aí escondida nos meandros da nuvem digital e reutiliza elas você passa a recriar uma narrativa a partir delas: vida continua, como se tirasse um morto de um caixão e botasse ele pra falar de novo. E eu adoro tirar as coisas do contexto e montar contextos, entendeu? Embaralhar tudo e montar uma imagem nova. É meio que infinito, traz uma acronia pra imagem que tá no passado. Você reutiliza ela, bota ela num não-tempo. Passa a ser acrônico. Eu vejo esse filme assim e pra mim ele não parece começar e terminar, parece estar vivendo, acontecendo e reacontecendo. Você sai com uma sensação de que vai vir de novo, de que a Ana Lúcia vai vir te assustar no banheiro, vai vir te assombrar.

BO: E mais do que isso, quando você desenterra, quando você exuma o corpo esse corpo tá modificado, são outros modos de existência. Então acho que uma coisa que o filme traz bem forte é essa sobrevivência dos arquivos. Eu acho que a gente trabalha com dois eixos, o eixo número um é o dessa relação muito direta com a própria condição gerativa do cinema: a caixa preta. Som. Imagem. Luz. Porque a imagem negra nunca deixa de emitir luz. Vai botar um preto assim na tela, se você ligar o projetor, um preto vai iluminar a sala.

S: Inclusive a tela já é branca, né? Esse filme foi feito pra ecrã. As telas pretas. Quando a tela tá preta a tela tá preta, inclusive foi a primeira vez que o filme passou legendado e eu entendi como é a influência da legenda na tela, que no momento dos apagões, dos blackouts, era um momento de tensão onde a pessoa não sabe se ela olha pra tela, se ela fecha o olho, se ela conversa, se ela presta atenção. Ela perde ali a estrutura, o apoio psicológico da imagem ali pra pessoa. E com a legenda daí ela já tem no que se segurar. É como se fosse uma cordinha pra se segurar. E aquela legenda branca, ela já ilumina as pessoas, a sala já fica completamente iluminada.

BO: Mas a gente fez de propósito, né? Tem vários dribles ali da legenda. Que eu não sei se o pessoal reparou, mas é obrigado a ter uma legenda. Aí eu pensei: pô, foda-se. A caixa preta vai ter um outro modo de existência com a legenda e vamo que vamo. Agora, outro eixo, um eixo seria pensar aí nesse sentido do cinema das atrações, dos aspectos gerativos, aspectos geracionais do cinema. Aquilo que é não exatamente função mas suporte do que pode ser o cinema. O cinema só se realiza através de determinado conjunto de suportes. Colocar isso em jogo, certo? Número um. Número dois é essa forma com que a gente trabalha hoje o cinema de arquivo, só que duas pessoas negras trabalhando arquivo eu acho que tem outro sentido. Tanto no sentido da Maria Beatriz Nascimento de se pensar o vaso estilhaçado e a liberdade de reconstituir os pontos, as informações, os dados desse vaso estilhaçado sendo que foi estilhaçado por um processo histórico que se prolonga até os dias de hoje; há um outro aspecto também que eu acho muito bom porque o arquivo da Ciranda do Gatilho é uma espécie de atlas mnemosine da diáspora e da cultura africanas. Se você recupera o Aby Warburg, a ideia de Atlas Mnemosine, o barato justamente é que as misturas, e aí falando de sample, elas são facultadas à pessoa que tá de alguma forma mexendo naquilo ali, então ressoa um pouco a ideia da Maria Beatriz, de vaso estilhaçado. E por fim, a ideia de que esse arquivo tem gradações, são fases, o arquivo é é um ser que tem fases. E essas fases elas vão obedecer aos mais diversos princípios relativos ao modo de existência. Vou dar um exemplo: VHS. A gente assistiu Império do Desejo e Tchau Amor na sequência…

S: E o Corpus Callosum, na sequência.

BO: E o Corpus Callosum, que é Michael Snow. A gente assistiu esses três filmes e fomos reparando como o VHS vai dilatando, ele vai perdendo informação. VHS você perde informação e altera a imagem por essa perda de informação. Mas não dá pra dizer que não é outra imagem. É uma outra imagem. Então tem também um aspecto aí do arquivo que é aparentemente contraditório, às vezes a degeneração leva a uma outra imagem – a uma outra visão. O arquivo digital já tem outras questões, você pode trabalhar com resoluções, você pode trabalhar com sintonia fina dos parâmetros, iluminação… Então a ideia era explorar essa polidimensionalidade do arquivo, dessa ideia de arquivo. E o Arthur Jafa foi uma influência grande nesse aspecto. Eu acho até que a gente foi um pouco mais radical que ele. Aquele filme, por exemplo, das pastoras cantando em VHS, que ele distorce o som das cantoras e o som vai ficando distorcido…

S: Isso foi uma coisa muito interessante, eu agora, terminando de almoçar, tomando meu cafezinho, um cara veio, se apresentou, “Caixa Preta ontem foi muito massa, queria te fazer uma pergunta”. Achei incrível a pergunta. Vou ter que colocar. Ele me perguntou se na última cena da pastora Ana Lúcia o som era uma colagem. Que é o único momento onde o som não é uma colagem. Eu parei pra pensar que é o único momento, na verdade, onde o som não é colado. Mas é aquela colagem que é o Brasil, o Brasil é uma grande colagem. O roteirista do Brasil, ele tava bem louco.

BO: (risos)

S: Ele saiu montando, saiu fazendo o que eu fiz com o Caixa Preta, as coisas vão se sobrepondo, criando outros significados, outra raça, outra espécie. Outro plano. Outro plano.

BO: É uma cantora negra, neopentecostal, numa igreja neopentecostal em Caxias, cantando com músicos negros, em sua maioria ostentando repiques de mão, tantans, instrumentos geralmente associados ao samba. Uma batucada…

S: Um axé inevitável.

BO: Um axé, um axé que vai acelerando, vai acelerando e ela vai puxando aquilo, e aquilo é uma expressão extremamente atravessada pela presença da música negra no Brasil e ao mesmo tempo ela tá gritando: “quebra o alguidar, quebra o alguidar. Tranca rua vai foder com a tua vida”.

S: É um momento onde o gatilho não consegue, você se deixa levar pro axé e você se deixa ser abençoado, queira você sendo apostólico, ateu, agnóstico…

BO: Todo mundo é abençoado e amaldiçoado (risos).

S: Todo mundo é abençoado naquele momento. Geral bateu palma.Dá vontade de se levantar, sabe? É irrefutável, você não precisa pensar sobre ou estudar ela, até entender o que ela tá dizendo. Você se sente libertado no mesmo momento, e o filme é uma preparação pra isso também, né? Vai te botando na caixa, te botando na caixa, daqui a pouco abre.

BO: Tinha gente dançando no final da sessão.

S: (risos).

JPC: Uma pergunta que eu gostaria de fazer tem a ver com a experiência e transe. Porque eu senti que muita gente embarcou na sessão. Parecia  um transe coletivo. E aí a Saskia tava falando que ela gosta de fazer essas montagens que inventam uma nova coisa a partir dessa rearticulação. Vocês podem falar dessa relação do transe com o filme?

S: Eu acho que quando eu digo pras pessoas pra elas fazerem a própria sinopse é porque é isso, cada pessoa vai experienciar uma coisa diferente ali, eu não tô dando uma história pra pessoa aprender. A pessoa vai aprender um sentido novo, eu acho que na música eu faço isso, eu tento colocar as pessoas em estados que perpassam a vergonha, passam pela graça, até chegar numa liberdade onde a pessoa pode realmente gritar, entendeu? Às vezes a gente tem uma potência ali dentro que a gente não usa porque a gente tá dentro de códigos. Eu acho que o cérebro humano funciona todo por códigos e comandos. Eu acho também que a arte pode quebrar um pouco isso, em vez de eu te dar um novo código eu vou te limpar, vou limpar a caixa inteira. Vou limpar o código inteiro, limpar a frase, limpar o java. Você Você não tem nem o teclado agora. Que que cê faz? Que que é a palavra antes de cê aprender a palavra? Eu acho que eu tentei fazer isso, tentei fazer o que eu já faço na música, que é botar as pessoas em estado de exagero, sabe? Quando não é mais sobre raiva, sobre desconforto. Sobre textura. Já sai da estética, entendeu? A música tá muito atrelada à imagem hoje. Eu acho que fazer música é mais sobre a imagem do que sobre o som, daí eu fiz o inverso no filme. Fiz um filme que é mais sobre o som do que sobre a imagem. Inclusive as próprias imagens já são um som. Por exemplo, quando eu boto um monte de formiga em espiral com sons de instrumentos que ninguém sabe nomear porque o artista criou os próprios instrumentos, que som é aquele? O que é aquela imagem? O que é aquela textura? O que é aquele movimento? Pra onde você tá indo naquele redemoinho? Quando a gente vai descrever algum sentimento, alguma sensação, a gente já tá preso a uma linguagem. Já tá preso: isto é amor, isto é raiva, isso é desconforto. Acho que esse filme é pra criação de novas palavras.

JPC: Por isso que você pediu pra gente gritar antes da sessão, talvez?

S: Aham, eu fiz isso, né?

JPC: Eu berrei.

S: Você berrou! É dos meus, é dos meus. Pra botar pra fora, pra cuspir. Alguém vai ter que arrotar na mesa, né? Vai ter que arrotar na Santa Ceia.

JPC: (risos)

S: (risos)

JPC: Isso é bom, porque a gente precisa ser desconcertado. Você falou que tentou inverter essa relação entre imagem e som da música para o cinema. E isso tá muito na tua montagem. Porque o filme tem uma cinética, uma contracinética dos arquivos. Vai meio que contra uma montagem preocupada na comunicabilidade dos arquivos, né? Bagunça teu entendimento das imagens e sons.

S: (risos) Quem me conhece sabe que eu não sou de agradar.

JPC: Se nós viéssemos com expectativas bem comportadas da montagem dos arquivos, da compreensão, da explicação, do lançar luz às imagens, você como uma boa surrealista ia frustrar nossas expectativas.

S: (risos) Aham, aham. Pretendo frustrar.

JPC: Eu queria que cê falasse sobre frustrar expectativas.

S: Estou aprendendo a quebrar expectativas. A expectativa é muito difícil de ser quebrada e muito fácil de ser montada novamente. Então no próximo filme eu vou quebrar expectativas de novo, vai ser lindo.

BO: Eu acho que quebra expectativa, que pode até causar desconfortos e tal, mas é um filme também que eu acho bom ser média, acho que tem um tempo bom. Eu acho que tem ali essa pegada mixtape mesmo, é como se você tivesse naquele bode da festa aí daqui a pouco você volta pra festa e é muito mais uma experiência que você vai atravessando do que propriamente um registro que você vai interpretando, entendeu? Não é bem uma interpretação. Muito embora tenha uma narrativa no filme. Pouca gente fala do letreiro do início, é o letreiro mais importante, porque vai falar do código. Fala da impressionante probabilidade de que a gente exista, né? (risos). Começa dizendo isso. Então acho que não é tanto um filme pra você interpretar o sentido do que um filme que você vai passar como se tivesse numa festa, você tivesse num, sei lá, num…

S: Num trem fantasma.

BO: É, numa viagem mesmo. As coisas vão acontecendo.

S: Eu acho que é bastante um trem fantasma porque inclusive era… É exatamente isso, você brinca com todas as sensações ali, isso é divertido pra caramba, sentir é divertido, né? Que o filme teve esse começo, esse princípio. A gente tendo os dois primeiros movimentos da ciranda, a gente queria fazer um trem fantasma. Aí ia ser o nosso primeiro filme, eu acho que isso acabou intrinsecamente entrando na minha forma de montagem.

BO: Caraca, Saskia, tu lembrou agora de uma parada que eu tinha esquecido, o nome do filme ia ser Trem Fantasma.

S: Aham!

JPC: Vocês acham que o Caixa Preta tenta traçar planos, mesmo que provisórios, no caos?

S: Uhum. O filme não termina nem começa.

BO: Sim. A ideia é essa. Tanto é que a gente quer fazer o segundo logo. O tempo todo a gente tava olhando pra um horizonte, vendo alguma coisa sem saber o que que é.

S: Uhum.

BO: Mas vendo. Vendo. Tendo visões.

S: Aquela nébula. Aquele monstro atrás da névoa.

BO: É, é. Tem um negócio lá, tem um negócio lá. Vai fazendo, entendeu?

S: Desbravando esse trilho.

BO: E aí, por exemplo, eu não quero de forma nenhuma baratear a experiência do transe. Tomar muito cuidado com isso. Eu até tenho um texto que eu supostamente tentei induzir ao transe, mas eu não conheço a experiência do transe. Agora, a gente não fala do transe de uma maneira leviana. Nem irônica. A gente não colocou as imagens do mundial, da guerra lá do supermercado Guanabara pra ironizar aquelas pessoas. Não é deboche! E aquela sequência em que eu falo das pessoas, aquilo não é uma homenagem, aquilo ali é o terceiro milênio. E o terceiro milênio vai ter que se ver com toda a história da humanidade e antes dela, por isso que o filme começa com aquela epígrafe. E aí nesse sentido é preciso reconstituir um pouco do que seria essa narrativa do filme, do caos absoluto, completo, para a pastora Ana Lúcia em Caxias, entendeu? A história da Ana Lúcia é curiosa, porque assim que ela apareceu na internet eu publiquei no Facebook dizendo “olha que coisa impressionante e maravilhosa”. O Calbuque, Carlos Albuquerque, jornalista na época que trabalhava n’O Globo, ele viu e também ficou muito impressionado e foi lá em Caxias entrevistar a Ana Lúcia. E fez uma matéria no segundo caderno. A pastora Ana Lúcia tava na capa. E o pastor lá não gostou não. Porque cara, dali ela ia com certeza pro estrelato (risos). Entendeu? Ela realmente foi muito impressionante.

S: A pessoa tenta segurar o axé da pastora Ana Lúcia mas o axé é que nem o som né, ele não pede licença, ele sai entrando em você até você levitar. Eu levito no final desse filme.

JPC: Como assim levitar?

S: Levitando, levitando, porque o filme é movimento, ele é dança, ele vai te jogando pra cá, pra lá, dança lenta, dança rápida e daqui a pouco tá pulando, cê sua durante o filme. E quando chega Ana Lúcia, pra mim é um grande domingo, é um recesso, você relaxa. Eu relaxo com a Ana Lúcia, eu relaxo com esse axé irrefutável, que ninguém consegue segurar, ninguém precisa explicar ou estudar pra sentir. Daí eu me sinto levitada, porque eu acho que ela fecha um ciclo que não existe.

BO: Não, e tem o fato de que ela estaria imbuída desse axé ao lado de irmãos negros tocando percussões negras e ao mesmo tempo gritando em êxtase pra quebrar o alguidar e pra se livrar do exu Tranca Rua. De qualquer maneira, eu não quero facilitar as coisas dizendo que isso é um retrato do Brasil, não é isso.

S: Mas a nomenclatura ela não fecha, não tem como tu dizer que essa palavra ela vai segurar a ideologia inteira do que é uma sensação espiritual, do que é um transe. Você não consegue…

BO: não vai resumir, né. Claro.

S: não pode botar isso resumido numa palavra só, entendeu? Cê tem que recriar uma palavra pra isso. É um axé que vem do…

BO: Mas tem axé, né?

S: Oxe, pra caralho.

BO: Oxe (risos). Sinistro.


[1] O texto se chama “Só o capeta linguará”.

[2] O texto se chama “Between the black box and the white cube”.

[3] O texto se chama “O cinema das origens e o espectador (in)crédulo”.

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Recusa aos monumentos: conversa entre João Paulo Campos, Amanda Devulsky, Pedro B. Garcia e Luisa Marques sobre Vermelho Bruto, 2022.

No dia seguinte à exibição do longa-metragem Vermelho Bruto (2022) na Mostra de Cinema de Tiradentes, me reuni no gramado do Centro Cultural Yves Alves com parte da equipe do filme, que integrou a Mostra Aurora. Uma chuva nos levou para um bar em frente ao Cine Tenda, onde terminamos a conversa tomando umas cervejas. Amanda Devulsky é diretora e montadora do filme, Luisa Marques é montadora e Pedro B. Garcia é diretor assistente e produtor. 

Por João Paulo Campos

João Paulo Campos: É o seguinte: o cinema contemporâneo tem usado cada vez mais imagens de arquivos de variadas fontes. Mas os arquivos são plurais. Eu gostaria que vocês falassem um pouco sobre a forma que vocês optaram, ou os caminhos que vocês conseguiram trilhar com os arquivos, sobretudo nessa trama entre arquivo e memória, que eu acho que é algo importante para o filme de vocês.

Amanda Devulsky: Eu acho que a postura que eu proponho quando começo a realizar o filme, de olhar pra esses materiais domésticos, tem a ver com uma trajetória prévia, que aí é uma questão pessoal mesmo, mas que eu acho importante falar porque tudo que envolve esse filme traz muitas questões pessoais e íntimas. Eu cresci em Brasília e sempre senti que essa relação com o espaço do Plano Piloto me afetou muito, de maneiras que talvez eu precise de décadas ainda de reflexão pra entender por completo, sabe? Mas essa questão do espaço vazio e rarefeito entre os pontos, entre os prédios, os monumentos, e esse foco muito grande numa certa ideia espacial, visual, sensorial de representação, de onde não tem nada e onde tem tudo. Eu sinto que isso ficou muito forte nessa experiência de vida mesmo. E aí tem a questão também de que eu sou dessa geração de pessoas que começaram a existir e se enxergarem enquanto pessoas – tô falando, sei lá, dos meus 10, 12 anos de idade –  no momento em que a internet começava a ser uma coisa um pouco mais popular. Em especial os protótipos de rede social, de participação nesse universo do digital em que você tem a oportunidade de construir a sua própria imagem. Nesse sentido eu acho que o Brasil foi bem vanguarda em relação a muitos outros países. Eu acho que até no debate do filme na mostra eu citei o Fotolog, o Orkut, mas tinha uma coisa por exemplo, que eu acho que como a gente tá falando de Brasília é importante mencionar. Era um negócio que chamava Agitos BSB. E cara, isso é muito louco, porque (risos)… 

Luisa Marques: Agitos BDSM (risos).

AD: Não, Agitos BSB. Cara, isso aqui era o Facebook, e tipo, 2001, 2002. Você tinha um perfil, e eu tenho arquivos disso, porque eu fui atrás naquele internetarchive.org, saca? Que dá pra você encontrar páginas que nem existem mais, mas que existiam, sei lá, em 2003. E aí é meio que uma descrição assim da sua personalidade, você pode deixar mensagem pras outras pessoas, as pessoas podem deixar mensagem pra você, as pessoas podem te dar nota de 0 a 10 e isso era um rolê dentro do mundo do Distrito Federal. Muito antes do Facebook, num nível bem regional, bem específico. E aí esse processo pra mim foi fundamental pra estabelecer mesmo uma relação com a imagem. Antes até duma relação com essa ideia de cinema, do cinemão, do cinema na sala de cinema, enfim, de tudo que depois chegando mais na vida adulta e na universidade começou a se estabelecer. E isso pode ser usado como uma crítica, pode ser visto no sentido negativo. Mas eu não acho que é não (risos). Eu acho que é positivo. Essa relação com o cinema através de uma outra construção, tipo, de uma outra experiência com a câmera e tals. E eu acho que hoje em dia a gente tá vivendo isso de um modo já totalmente generalizado. E você perguntou sobre relação com arquivo…

JPC: Uhum, mas tá fazendo sentido, pode continuar. Fique à vontade.

AD: Eu acho que é isso, o meu interesse ali pra pensar os arquivos vem disso, dessas duas coisas que eu citei. Uma experiência com cinema que se estabelece a partir de dispositivos domésticos e amadores e de uma experiência com a cidade, uma cidade que parece que tá muito evidente o que que é importante e o que que não é, sabe? O que é representação e o que não é, o que é figura e o que não é. O que é central e o que não é. É isso.

LM: O que é arquitetura e o que é, sei lá, algo que se desenvolve ali de uma outra forma, não planejada. O que é cidade e o que não é, o que é urbano e o que não é. Pensando no Plano Piloto, especificamente, Brasília é uma cidade que não é construída mesmo pro plano humano. Como se não fosse uma cidade pra pessoas. É como se fosse uma cidade pra monumentos. E é claro que isso é subvertido o tempo inteiro, mas essa tensão existe.

Pedro B. Garcia: Vocês tavam falando disso, eu fiquei pensando também como o processo do filme, ele é distinto de um certo processo de Brasília. Porque Brasília parte de uma ideia pronta pra depois colocar as pessoas lá. O filme não. O filme eu acho que é uma negação disso. Não sei se negação é muito a palavra, mas acho que ele parte da relação, desse encontro pra construir as imagens, pra construir sua estrutura. Ele não tem uma estrutura pronta, que às vezes é demandada. Isso estranha: não tem uma estrutura pronta. Onde se encaixou essas imagens? Não. A estrutura vem da relação com as imagens e com as pessoas.

LM: É, eu acho que a gente trabalhou principalmente com três tipos de material: material que foi gerado por cybershot pelas protagonistas, o material de arquivo pessoal delas, e entrevistas de áudio, que eles fizeram longamente várias entrevistas. Então todo material gerado depende absolutamente dessas pessoas retratadas no filme. Elas geram essas imagens, esses sons, essas palavras.

AD: Eu não gosto nem de chamar de entrevistas… Porque eu acho que tinha uma questão que era essa: são pequenas agonias que eu tenho às vezes com palavras.

LM: Sim, sim. Sim.

AD: Mas tipo, no sentido de permitir que essa conversa seja guiada por elas mesmo, porque às vezes a ideia de entrevista… talvez seja um preconceito com a ideia de entrevista, mas que esse fio possa ser tecido ali na relação, sabe, não imposto.

LM: Sim. O Pedro e a Amanda tão no projeto há muitos anos, eles têm uma produtora juntos, eu cheguei mesmo só pro processo de montagem.

AD: Só? (risos).

LM: Eu cheguei, sei lá, cês já tinham muita coisa levantada ali. E eu entendi ouvindo essas conversas que realmente era uma relação muito de intimidade que vocês criaram com elas. Então eu sentia que elas se sentiam muito à vontade com vocês, até pelo tom de fala de vocês. Acho que tanto você quanto o Pedro criaram essa relação com elas. Então isso é importante pra essas falas, sem dúvida.

JPC: Será que essa forma de relação com a alteridade pelas imagens de arquivo tem alguma coisa a ver com o gesto da colecionadora? Tem alguma coisa de coleção, assim, nesse processo? 

AD: Que que cê acha? (pergunta para Luísa Marques)

LM: Eu acho que não. Eu vi os curtas da Amanda e a gente trabalhou juntas nesse processo, eu acho que eu teria que pensar melhor sobre, mas eu não consigo muito te ver como colecionadora (se referindo a Amanda). Porque eu sinto que você não vai arquivando as imagens, sabe? Eu acho que cê vai se encontrando com elas e usando elas e trabalhando elas e se afetando por elas. Então eu acho que é uma coisa que se movimenta mais do que o ato de colecionar. Tem um encontro ali, e tem uma coisa assim de escavar e tal, mas eu não acho que é exatamente colecionismo.

PBG: É, eu acho que às vezes a ideia de coleção, pelo menos, acho que talvez não fosse isso que cê tava falando (se referindo à João), mas me passa uma ideia de fixidez, sabe? 

Ad: Não, mas existe, é. Eu acho que existe isso.

PBG: Eu acho que o processo do filme, seu processo, Amanda, o processo do filme em geral, ele não tava interessado em deixar aquilo estável, né? Tava interessado em olhar pro resíduo, olhar pra passagem de tempo ali naquela imagem, e não tinha essa preocupação de que aquela imagem tem que sair intacta desse processo. 

AD: Sim. É, isso é importante.

LM: Eu acho que não tinha também muito a preocupação de catalogação. Porque eu acho que às vezes pra colecionar uma coisa, pra você conseguir dar conta de uma coleção você precisa ter um certo ato de catalogar, pra organizar.

AD: Que a gente precisou fazer, mas que não era como se fosse um passo do método pra chegar num outro lugar. (…) O colecionador é como se fosse um arquivista independente, né? Se a gente tá pensando nas instituições de arquivo privadas e públicas elas têm uma importância, mas nessa rede de preservação o colecionador tem um papel importante também. E ele é uma espécie de curador das imagens. Mas eu de fato não me vejo tanto nesse papel, e aí quando a Luisa fala esse verbo escavar, eu gosto… Mas aí eu tenho ressalva que eu não gosto dessas coisas muito… 

PBG: Da profundidade.

AD: Eu não gosto da profundidade, eu gosto do superficial. Eu gosto da superficialidade. Não no sentido pejorativo que as pessoas costumam usar. Nos outros sentidos, que também não vou falar disso agora. Mas uma coisa que me lembrou isso que a gente tava falando é um termo que se chama ativação. Ativação dos arquivos. É um conceito da Giovanna Fossati, que é uma arquivista. É um termo que ficou muito importante nesse rolê dos arquivos. E que ajuda a fazer uma diferenciação também entre o gesto de preservação e o gesto de ativação, porque às vezes não é suficiente você preservar uma coleção de imagens. Tipo assim, cê preserva… Tá, você tem uma cinemateca, você tem um quarto, você tem tipo uma gaveta. E aí você coloca as coisas lá. Tudo bem, elas tão meio que à salvo, mas o tempo continua passando e elas estarem ali fechadas… enfim, isso não dá conta de tudo. E os arquivos precisam de um contexto pra existir, eles precisam de uma ação pra existir, eles precisam de uma relação pra existir de um jeito que honre eles de alguma forma. Existem vários jeitos, não é só um. Então, eu acho que talvez tem a ver com esse termo. Tipo, quais são as formas que a gente tem de ativar os arquivos que existem, pra que eles não fiquem só guardados?

JPC: Quando você fala dessa ativação, tem a ver com movimento? Luisa falou que seu processo com os arquivos tem a ver com uma questão de afetação. Você acha que essa afetação entra aí, nesse nó que você mostrou, quando começou a falar?

AD: Sim, esse conceito de ativação, eu não tenho pretensão de dar conta dele, porque ele é muito amplo e tem muitas pessoas falando sobre como que isso pode acontecer, inclusive institucionalmente, pensando nos arquivos mesmo, nas cinematecas e tal.  Mas falando aqui no nosso espaço do filme, eu acho que essa experiência tem a ver com presença, eu gosto dessa palavra. Tem a ver com a experiência de estar presente com as imagens. E isso significa visionamento, mas um visionamento… não só uma vez, significa compreender e sentir o contexto no qual elas passam a existir, e o contexto no qual elas continuam existindo ao longo dos anos. Acho que é importante que seja a partir disso que um trabalho de movimento com elas, talvez mais explícito assim de corte, de montagem, de definição, da estrutura do filme possa ser realizado. Porque se não eu acho que corre o risco de acontecer uma coisa que eu não gosto, e que a gente não gosta, que a gente conversou bastante sobre isso, que é uma instrumentalização dos arquivos. E acho que quando a gente tá falando especialmente sobre arquivos domésticos, arquivos íntimos, arquivos amadores, isso chega ali num problema ético, sabe? E infelizmente isso acontece. Principalmente com filmes órfãos, filmes que não têm dono, que tão num arquivo que ninguém sabe. A gente vê isso no audiovisual de hoje. Você precisa de uma imagem que expresse uma família feliz, sabe? E é isso: um uso totalmente instrumentalizante dos arquivos pra compor um discurso.

LM: Tipo o gettyimages, né? Um banco de imagem.

PBG: Stock images, é.

AD: A famosa… como é que é? Que falaram uma vez pra gente. Imagem de…? 

LM: Imagem de cobertura?

AD: É, brigada. Muito tempo atrás, quando a gente tava começando a fazer o filme e tentei explicar um pouco o que que a gente tava fazendo, falaram: “ah, que legal, mas cês vão usar os arquivos como imagem de cobertura?”

LM: (risos)

AD: Que que é isso? (risos) 

PBG: (risos)

LM: Pensando nisso tudo que a gente tá falando e também na sua primeira pergunta, eu sinto que, trabalhando com a Amanda, eu senti que ela tava sempre confrontada pelos arquivos, pelas imagens. E nesse sentido eu acho que se afasta um pouco do ato de colecionar. Pra mim o colecionismo soa um pouco como se aquela coleção, aquele arquivo tivesse um lugar de passividade. E eu acho que no caso do Vermelho Bruto, no caso da relação que a Amanda, ou pelo menos o que eu vi a Amanda travando com os arquivos, com as imagens – e eu usei a palavra afetação -, eu acho que existe uma agência dos arquivos e das imagens sobre o processo de trabalho da Amanda, é isso.

AD: Sim.

LM: Nesse sentido que eu acho que colecionismo soa como algo que deixaria aqueles arquivos passivos…

AD: Ou pelo menos hierarquicamente colocados em relação ao colecionador, né?

LM: Eu acho que tem a ver sim com o arquivo estar lá parado e ele poder ser usado…

AD: Sim, o colecionador tá aqui e o arquivo tá aqui…

LM: Então eu vou pegar esse arquivo aqui pra usar pra essa coisa, e eu acho que no seu caso cê se deparou com aqueles arquivos e eles te afetaram de um jeito, tiveram uma agência sob você que te fez fazer esse filme.

JPC: Isso que vocês dizem é fantástico. E me veio o filme todo de novo na cabeça. Você falou uma coisa, Amanda, que me chamou a atenção. O que te interessa é a superfície. Em que sentido? Eu achei isso muito curioso.

AD: A questão da superfície tem uma relação mesmo de querer pensar a imagem não só enquanto uma coisa que faz referência a outra, um índice de uma outra coisa, ou algo que leva a um outro significado, mas pensar imagem enquanto materialidade mesmo, nas suas diversas materialidades. Nesse sentido, a imagem tem esse caráter de superfície, né? E é um caráter de superfície que coloca em jogo alguns desses valores, dessas hierarquias sociais. Que tendem a colocar a valoração a partir da profundidade. E a partir da penetração de algo. Você tem que penetrar em algo, ir fundo em algo. E aí, enfim, dá pra pensar em muitos sentidos, que tem essa coisa mais de pesquisa teórica mas também artística e tudo ao mesmo tempo. Uma coisa de ir fazendo e tudo. E dá pra pensar um valor que não tá na profundidade, que não tá na figura da penetração, que não tá na arma. Que tá no valor que reside mesmo na superficialidade, sabe, e não atrás dela. Não a superficialidade como um véu, a tela não como uma coisa que você tivesse que atravessar ela e ir pra trás dela, mas como tem algo ali naquela própria superfície que tem um valor, e que valor é esse, como é que se relaciona com esse valor.

PGM: Eu queria só complementar uma coisa assim que na verdade eu não sei nem se já falei, mas enfim, ouvindo você falar sobre essa coisa da superfície me faz uma relação com as coisas que eu penso sobre a lógica da representação. A imagem sempre como a representação de algo outro. E aí a gente pensar a imagem pelo que ela é, pela superfície dela, eu acho que isso liberta a imagem pra outras possibilidades…

AD: Pela materialidade.

PGB: Pela materialidade, isso. Pela materialidade. Enfim. Isso liberta a imagem pra outras coisas. Isso escapa daquela pergunta: mas o que essa imagem quer dizer? O que tá por trás? Não é… Tipo, essa imagem…

AD: Ela é.

PGM: Isso. Ela é.

LM: O que ela representa, né? E não… acho que em geral se pergunta isso, o que essa imagem significa, o que ela representa… e na verdade ela pode ser muitas coisas antes disso. Ou também, além disso. Ela pode ser um rasgo, ela pode ser uma poeira que tá ali acumulada.  Nesse sentido da materialidade mesmo que eu acho que tem muito a ver com o pensamento de arquivo, como essas imagens de arquivo se comportam com o passar do tempo, como elas são desgastadas, como elas envelhecem, com que cor elas ficam, com que textura elas ficam, como vão desaparecendo. Então acho que o filme tem essa preocupação. E eu acho que o uso que o filme faz das fotos, que são fotos dos arquivos pessoais das personagens, eu acho que o filme tem esse olhar pra essas fotos que é dar esse zoom, esse super zoom, justamente pra não pegar o que aquela foto está representando. Quais são as figuras que tão ali naquela foto, mas qual é a ação do tempo naquelas fotos.

AD: Tipo, não só isso, mas isso também, sabe? Porque as coisas tão ao mesmo tempo, são várias coisas, não é uma coisa simples.

LM: É, ou então um gesto que tá na foto. Às vezes tem um corpo inteiro mas a gente mostra um olho, um dedo, uma mão, um tecido.

AD: Ou o fundo de uma foto. Porque também a memória não funciona nessa lógica que a gente insiste em impor às imagens, essa lógica do representado, da figura, do centro, do que é, do que é informação.

LM: Do que é importante.

AD: E o ruído não importa. A memória é composta, na verdade,  da minha posição pelo menos, cês me dizem aí se pra vocês também é assim, a memória é composta justamente desses ruídos do fundo…

LM: Do não figurativo?

AD: Do não figurativo, de uma cor, de uma luz, de uma matéria que se desgasta. Muito mais do que esse significado que tá ali no alto, essa coisa transcendente que não tá relacionada à matéria. E aí também se a gente for pensar na história da filosofia masculinista e pensar também nas teorias feministas diversas que existem hoje, toda essa ideia da transcendência e de que existe uma coisa, essa ideia da materialidade é uma ideia muito cara ao que foi definido historicamente como o que é uma mulher, tipo, é o conceito político-social, que é uma espécie de ficção, porque a ideia da mulher é uma ficção, é uma ilustração, e que tá intimamente relacionada com vários nós atrelados à materialidade. Tanto a ideia da mulher como uma coisa abstrata e poética que tá além do corpo quanto à ideia que acontece às vezes, que tem a ver também com a branquitude, e quanto à ideia da mulher enquanto apenas algo atado à terra e aos processos da natureza. Esses dois lados tem coisas muito complicadas acontecendo. Então acho que falar dessa materialidade da imagem tem tudo a ver com essa questão.

JPC: Você falou da questão dos monumentos na experiência de Brasília, eu pensei na ideia de contra-monumentos e de contra-ataque. Tem alguma coisa de um contra-ataque numa perspectiva marcada pela matriarcalidade na obra? 

A: Quando a gente tá falando do filme, a gente tá falando de quatro mulheres específicas com histórias de vida específicas também. E eu acho que isso é importante. Mas pra mim também é importante pensar que existe algo em comum, e eu acho que existe porque as pessoas assistem e se identificam. Conversei com pessoas que contavam ver aspectos de suas próprias mães ou aspectos de suas vidas mesmo não sendo mães elas mesmas, por exemplo. Então existe uma coisa em comum. Mas existe também uma parada muito delas, muito próprias. E aí eu tenho o receio de generalizar isso pra falar da condição da mulher, saca? Embora, por exemplo, quando tô falando isso que eu falei agora da materialidade da imagem, isso é uma questão que eu enxergo, e eu também tô no filme, eu também faço o filme. Então essa é a minha visão também que tá em todo momento em negociação com a visão delas. Mas eu não colocaria como uma questão de matriarcado, ou tipo, de um sistema político. Eu não colocaria dessa forma. O que eu colocaria seria, talvez, nesse sentido que você falou, uma recusa mesmo. Uma recusa aos monumentos (risos). Não sei se isso faz sentido pra vocês.

PBG: Faz sentido. Eu acho que até conecta com as questões de Brasília e as questões do filme. Eu acho que faz uma conexão legal porque fiquei pensando aqui que era isso, a gente tava falando de uma certa recusa à representação, um certo valor da superfície, e aí alguém de vocês falou da altura, do filme estar numa outra escala. Ele não é um filme que tá mostrando o Distrito Federal e Brasília pelo drone da Esplanada. Ele tá tocando, ele é tátil em alguns momentos. E aí eu acho que isso faz sentido se pensar que o filme não é uma representação da mulher do Distrito Federal.

Ad: Não, porque não tem como.

LM: Até porque não existe. Não existe a mulher do Distrito Federal.

AD: A representação em geral tem um aspecto de ilusão, mas nesse sentido mais ainda, né? Não existe, assim.

LM: É… Em vários momentos da montagem a gente discutia sobre usar ou não imagens da Esplanada. Tem uma imagem que você cita no seu texto, João, em que a Fabiana tá filmando do ônibus a Esplanada de noite com uma luz vermelha, então é um negócio meio aterrorizante, estranho, e durante muito tempo a gente ficou na dúvida se a gente usava essa imagem. Porque ela mostrava a Esplanada de um jeito esquisito mas ainda assim era identificável aquele espaço. Então eu acho que isso foi também uma questão pra gente.

AD: Essa questão do centro, né? Porque fica muito marcado quando a gente tá falando de Distrito Federal, Brasília, essa ideia de que ali é o lugar da representação política, da política institucional e acabou. Mas de alguma forma eu sinto que essa cena faz justamente o contrário, eu gosto dela.

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Protocolos (Os animais mais fofos e engraçados do mundo, Renato Sircilli, 2023)

por João Paulo Campos

O universo imaginativo de “Os animais mais fofos e engraçados do mundo” (Renato Sircilli, 2023) é o baixio das bestas. Estamos num motel barato, espaço em que o protagonista trabalha como camareiro. O mote do curta é interessante: um trabalhador, já idoso e malandro, tem um negócio paralelo que mescla empreendedorismo, loucura e fetiche. É um filme de protocolos rituais num campo limítrofe entre o prazer e o trabalho que, na história elaborada por Sircilli, se imiscuem.

O negócio clandestino é o seguinte: o empregado registra sons das transas que escuta pelos corredores e quartos desocupados do motel em que trabalha. Ele vende os áudios para um senhor, com um extra. Numa cena de sexo fetichista, o camareiro do motel descreve as cenas dos áudios enquanto masturba seu cliente. Em seguida: sexo. O problema é que existe outro protocolo envolvido em “Os animais…”, que diz respeito a padrões de comunicabilidade e agradabilidade que têm contaminado o campo do cinema contemporâneo. É um problema de atitude.

O que acabamos por estranhar nesta fita é sua falta de imaginação diante deste mundo tão maluco. O realizador não conseguiu expressar em termos espaço-temporais o barato que seu argumento nos prometeu. 

Em outras palavras, a mise en scène e a montagem linear planificam o que parecia ser um universo caótico e mais interessante do ponto de vista estilístico. É um filme que força a barra na estilização, mas lhe falta estilo. Esse sintoma atravessa as cenas do curta, desde a espacialização do motel até a cena de sexo entre os dois personagens.

Enxergamos o interior do motel, mas não o sentimos. Sua figuração se dá a partir de uma série de planos fixos em ângulos que clarificam de maneira frontal o espaço. A cena da ronda no corredor, por exemplo, nos mostra o protagonista andando com o carrinho de limpeza em direção à câmera. Apesar do movimento do personagem, a cena não se mexe – e isso tem a ver com as variações cromáticas da cena, em particular, e a fatura do curta, no fim das contas. Os ambientes são coloridos com o mesmo tom sépia que puxa uma frieza impessoal típica de certo cinema paulistano – que, obviamente, tem seus exemplos fortes. O controle dos gestos e expressões faz das presenças em cena algo protocolar e bem comportado que parece fora do lugar num espaço marcado por arroubos, segredos e farras.

Fetiche e mistério não encontram ferramentas cinematográficas capazes de os expressarem em “Os animais…”. Diante de um universo nebuloso, Sircilli optou pela clareza classicista. É como se o artista tivesse jogado as luzes de um holofote num nevoeiro. E na arte o que me pega é a névoa

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Rastros e Palavras: O Canto das Amapolas (2023, Paula Gaitán)

Por Ana Júlia Silvino

Presumindo as operações da memória como gestos de fabulação e considerando as imagens como regimes de visibilidade que constroem ficções na realidade, o filme O Canto das Amapolas (2023) dirigido por Paula Gaitán é uma espécie de ensaio sonoro e visual que trabalha as operações da memória como rearranjos de signos, imagens e sonoridades. O som de uma conversa em extracampo entre Paula e sua mãe, Dina Moscovici, é o fio condutor de uma narrativa que aposta nos ruídos semânticos – quando o falante e o ouvinte têm interpretações distintas do sentido de certas palavras – e nas vibrações como estratégias de visionamento. A dificuldade em identificar na conversa quem está falando ou a veracidade do que está sendo dito é um instrumento não para conservar uma memória, mas para criá-la a trancos e barrancos, incorporando opiniões contrárias e jogos de palavras que deslocam os temas históricos de seus lugares pré-estabelecidos.

Indo na direção contrária de uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo em que a voz em extracampo é usada como um mapa em busca de memórias familiares, Paula não está preocupada com uma elucidação adequada pela fala ou de trabalhar uma poética através de uma voz doce e feminina que apenas comenta o que está sendo mostrado pelas imagens. Em O Canto das Amapolas, na ausência de imagens que localizem o que está sendo dito, algumas palavras acabam se lançando ao vento. A impossibilidade do diálogo torna-se, portanto, uma proposição que lança perguntas ao invés de respondê-las. As palavras ditas possuem uma profunda fluência, são ideias sem filtro. A montagem intuitiva das manifestações sonoras do diálogo entre Paula e sua mãe está mais preocupada em mostrar o que está sendo dito, do que em sugerir um deslocamento poético ao espectador.

Gaitán se desobriga do compromisso de reprodução do real e da busca pela verossimilhança e causalidade para lançar-se à experimentação como ferramenta para engendrar movimento em tempo e espaço e produzir vestígios que se desdobram para além dos limites da tela do cinema. Ao escolher narrar pelas ausências e lacunas que são intrínsecas à própria noção de memória, Gaitán se dedica ao trabalho artesanal de prolongar a vida de sua mãe através do cinema e de reinventar a si mesma enquanto cineasta (ou como a filha que faz filmes), evocando essas duas corporeidades femininas e as confrontando ao mesmo tempo. Paula se filma em um espelho com a câmera na mão, escolhe inserir-se, corpo e voz, naquele universo como personagem da ficção de sua mãe. As imagens e cenas construídas por Paula Gaitán e Rodrigo Levy parecem traçar rastros nessas lacunas. São como tremores oníricos que se deslocam pelo – e através – do inconsciente da artista.

A cena de um cômodo com as janelas abertas e o vento pairando entre as cortinas é um momento que me remete à janela em Ostinato (Paula Gaitán, 2021), em que no espaço onde Arrigo Barnabé cria suas composições há uma janela com um livro posicionado no parapeito. O vento movimenta as páginas do livro e captura o olhar da espectadora. Em ambos os filmes, as janelas são frequentemente revisitadas pela montagem e operam como uma espécie de véu. Em Ostinato, a janela, ao mesmo tempo em que conecta o músico com o mundo exterior, também o distancia. Delimita o território. No O Canto das Amapolas, a janela é usada tanto para estabelecer um limite entre o espaço público e privado, quanto para suscitar a imaginação. À medida que o vento promove movimento dentro daquele espaço, somos convidadas como espectadoras a imaginar o que existe para além daquela janela. Imaginar Berlim para, só assim, conseguir reimaginar Paula ou Dina. Dar lugar e endereço aos fantasmas da memória que circulam pelo ar.

As mulheres que manifestam-se no filme podem, à primeira vista, parecerem deslocadas do primeiro fio condutor narrativo (o campo de batalha que é o diálogo entre Paula e Dina), mas são uma tentativa de dar corpo ao imaginário, construir uma fantasmagoria que se sobressaia à palavra e se mostre na carne. Esses corpos perambulam pelos espaços e suas posições oscilam entre a identificação e o estranhamento. São fragmentos inconclusos, assim como os discursos entoados pela voz. Não indicam nenhuma direção, apenas nos convidam a observar. Pela experiência e pela fruição de visionamento fica a certeza de que o que vimos é uma ficção ativa e fragmentada, sem o compromisso de se fidelizar ao regime representativo. O filme joga com as concordâncias e discordâncias das imagens e sons disponíveis para fabular sobre uma memória que permanece viva, se desdobrando em cada imagem, música, ruído e silêncio escolhido pela realizadora.

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Só os lokos sabem: a noturna de Belo Horizonte (As linhas da minha mão, João Dumans, 2023)

Por João Campos

Comecei a caminhar no universo do cinema buscando formas de sentir o mundo para além da crise e da morte iminente – superar o inferno pela arte parecia meu desejo. No desespero de viver em ruínas, acabei vendo filmes demais e me tornei crítico de cinema desse jeito: emocionado, desesperado, apaixonado. Digo isso para contar que nessas trilhas jamais encontrei obra brasileira que encontre o sofrimento psíquico com tamanho cuidado e amor – talvez com exceção de Imagens do inconsciente (Leon Hirszman, 1988) – como As linhas da minha mão (2023), documentário de João Dumans vencedor da Mostra Aurora do Festival de Tiradentes deste ano. 

O filme de Dumans elabora um retrato de uma artista da performance de Belo Horizonte chamada Viviane de Cassia Ferreira, Vivi, ou Viva. Além de performer, roteirista e “estrela de cinema”, Viviane tem uma experiência no mundo marcada pelo sofrimento psíquico – algo que ainda é um tabu, apesar de fazer parte da vida de cada vez mais pessoas. Mulher cuja câmera de Dumans, que assina também a fotografia do doc, persiste em seguir em uma série de encontros. O filme é estruturado em sete sequências ou atos, cada qual aparentemente autônomo em relação ao outro.

Mas a montagem de Luiz Pretti constrói a argamassa que junta de forma orgânica os blocos de experiência produzidos pela máquina, fazendo do retrato algo mais próximo de uma colcha de retalhos. Tudo se passa como se Dumans, Viva e seus companheiros e companheiras de trabalho estivessem trabalhando num espaço limítrofe entre o plano e o descontrole – as intenções e o caos. 

E isso se dá nas escolhas formais da obra. Por exemplo: os planos no rosto da protagonista respeitam a duração não apenas dos seus relatos sobre arte, loucura, passado e sonhos, mas também parecem espreitar o improvável, a indeterminação de suas expressões faciais, as hesitações, as miradas que ela dá para o fora de campo – imagens prementes da fita de Dumans. O que ela olha?

Mas a câmera não registra apenas a face de Viva. O documentarista persegue o movimento do pensamento da performer através da escuta e da câmera próxima ao rosto, mas também procura registrar aspectos da cinética de seu corpo. Presenciamos contações de histórias em meio ao centro de Belo Horizonte, bastidores de performances, conversas com amigos como o Douglas, leituras de Nietzsche com seu primo Leo. A forma errática e libertária de Viva pensar encontra afinidades eletivas com seus gestos, movimentos, caminhadas e, por fim, sua performance que encerra a obra sob a luz negra de um quarto que, devido ao enquadramento oblíquo da cena, só podemos imaginar a completude pela força da especulação. Seu corpo cintila através de pinturas corporais fluorescentes na escuridão.

O filme se aproxima do corpo de Viva através de uma observação que utiliza movimentos de câmera para acompanhar as linhas de seu corpo – pele, cabelos, olhos, boca – mas também as linhas de movimento no espaço: os momentos de repouso ou prostração, mas também as situações de excitação. É um filme cuja mise en scène epidérmica nos lembra obras mineiras do passado recente como Sociedade dos amigos do crime (Dellani Lima, 2009) – longa experimental que Dumans participou como ator. 

Para acompanhar uma personagem que caminha no mundo entre a petrificação e a agitação, o documentarista utiliza diferentes operações. Primeiramente, é um filme que só foi possível por um encontro que produziu uma afetação entre as partes – afeto, confiança e, a partir daí, aventura juntos? Outras ferramentas nos levam ao cinema independente norte-americano de outrora em figuras como Jonas Mekas e Shirley Clarke, sobretudo em Portrait of Jason (197): o uso do plano-sequência, os reenquadramentos, zooms, ajustes de foco, isto é, formas de fazer a máquina acompanhar uma figura urbana incendiária – no melhor sentido do termo. A câmera hesita e também brinca, descontrola de leve, se deixa levar numa entrega total ao movimento da vida de sua interlocutora. É um cinema da amizade.

“Estou em movimento… aberrante”, nos diz Vivi. É o movimento de seu pensamento, sua invenção, sua perambulação que o documentarista procura (re)ensaiar em cada sequência. E a trilha sonora entra no jogo não para acompanhar as cenas, mas para criar novos arranjos de imagem e som, driblar um pouco nossos sentidos, produzir um pequeno caos em nossa barriga. É como se o filme se (des)estruturasse por um caos ordenado – um controle descontrolado? A trilha musical faz uma dança com as imagens – dança aberrante. Um equilíbrio instável entre imagem e som.

A montagem de Pretti interrompe nossa fruição dos blocos de encontros com Viva para instaurar um contra-ritmo que nos mostra algo de Viviane que não sabíamos por completo até então: seu ecossistema é urbano. Uma série de fotografias em preto e branco, realizadas pelo artista mineiro Desali em parceria com o próprio Dumans, cria trilhas escuras no meio do filme. Assistimos a uma amálgama de vistas urbanas do baixo centro de Belo Horizonte, zona da bagaceira boêmia da capital mineira. Viva deambula nas ruas, esquinas, bares: bebe e fuma e anda numa espécie de trotoar dissidente. Ela parece caminhar a ermo, notívaga errante, a noturna de Belo Horizonte? Quando o cinema filma bem a cidade, ele encontra sua parte maldita, diria Comolli. Ela veste uma camisa preta escrita: “Só os lokos sabem”.

Podemos dizer que As linhas da minha mão borda uma experiência de encontro entre o cinema e uma personagem urbana que nos mostra faces de sua vida entre a arte e a loucura. Isso acontece por uma observação radical do movimento de seu pensar, criar e caminhar no mundo. Seus relatos sobre os acolhimentos que vivenciou no SUS nos emocionam num tempo de renovação das políticas sociais de saúde e cultura de um país semi-arruinado pelo nazi-fascismo. O filme nos revelou uma presença inesquecível – força do desejo em meio à cidade noturna. Em tempos de reconstrução, é bom lembrar com quais palavras o júri do festival, sob a representação de Cristina Amaral, encerrou o texto de premiação. “Viva o SUS!”. Viva a vida. Viva a Viva.

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ESCOLHER A MORTE: A Última vez que ouvi Deus chorar (Marco Antonio Pereira, 2023)

Por Ana Julia Silvino

A última vez que ouvi Deus chorar (Marco Antonio Pereira, 2023), curta-metragem exibido na mostra Foco Minas da 26° Mostra de Cinema de Tiradentes, é uma alegoria sobre um futuro que não chega. Através da vivência de Maria, uma jovem que se descobre grávida e está em constante fabulação sobre o feto que carrega dentro de si, o filme constrói uma mitologia própria e experimental sobre um momento político onde o presente está abandonado e, por causa disso, as pessoas são roubadas de uma perspectiva de futuro. Em uma cena do projeto audiovisual, um cachorro é caçado e a montagem constrói um looping acerca dessa imagem. Um tiro. Outro tiro. Outro tiro. Mais um. E segue assim por alguns minutos, reproduzindo incessantemente a alegoria da morte como delimitação de um ritmo contínuo. Essa cena é uma das mais interessantes do filme, pois é aí que a narrativa abandona a trama comum de Maria para centrar-se no que mais importa: o fato em que algumas coisas acabam, são destruídas, mas a imagem e o cinema permanecem.

            A transversalidade do corpo social de Maria como uma mulher jovem do interior não é desenvolvida o suficiente para aprofundar a trama. Na realidade, Maria como personagem me parece ser um obstáculo para o próprio filme, por que sempre que a narrativa é lançada ao incerto, a história de Maria a puxa de volta a um lugar comum. Na cena do parto, quando descobrimos que a personagem dá luz a um natimorto, a preocupação com a plasticidade da imagem, quanto ao enquadramento e figurino dos personagens, tira a força do transtorno que é dar luz a uma nova morte e não a uma nova vida. Além disso, os diálogos reforçam uma preocupação excessiva em lançar-se à poesia. Os diálogos forçados e a crítica cristã – como se Maria tivesse gerado o próprio Deus e ressuscitado no terceiro dia assim como Jesus Cristo – dão à personagem uma importância que ela não tem – ou não deveria ter – e esquecem da proposição inicial que parece ser o ponto de partida para compreender as produções do cinema brasileiro contemporâneo, que precisa sempre reinventar-se a partir do caos, narrar pelos ruídos pela falta de recursos. Sobreviver apesar de tudo.

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