Arquivo

A natureza é um templo: As paisagens inquietantes de Emily Richardson

por Natália Reis

Não se trata de uma questão de “natureza”. A “natureza”, tal como é mais frequentemente entendida, é uma abstração, assim como a ideia de o homem estar perante ela. O que é real é a terra, o mar, o céu, a areia, os pés no chão e a respiração, o cheiro da grama e do carvão, o crepitar da eletricidade, o enxame de pixels… Não há real a não ser a terra, com todos os seus cantos e recantos  (“Paysage avec dépaysement”, Jean-Luc Nancy)

“Para que a montanha possa representar o papel de Monte Análogo é necessário que seu pico seja inacessível, mas a base acessível aos seres humanos, tais como a natureza os fez. Ela deve ser única e deve existir geograficamente. A porta do invisível deve ser visível.”

Quando soube que não poderia mais praticar alpinismo, paixão recentemente adquirida através do irmão, René Daumal decidiu escrever sobre a busca de um grupo de aficionados como ele por uma montanha impossível. Tuberculoso, o poeta deu início ao manuscrito de O Monte Análogo: Romance de Aventuras Alpinas, não Euclidianas e Simbolicamente Autênticas em 1939, mais ou menos quando recebeu recomendações médicas para desfrutar do ar da montanha, mas abdicar das escaladas. “Se não posso escalar as montanhas, irei cantá-las daqui de baixo”, e assim fez até sucumbir à doença em 1944, deixando o livro inacabado. 

Segundo o narrador de Daumal, o Monte Análogo é um elo entre o mundano e o divino, seu cume se eleva para além do céu e sua base se ramifica pelo mundo dos mortais, oferecendo “uma porta visível para o invisível”. O conto, entre tantas outras coisas, é uma alegoria simbólica sobre a ascensão espiritual e o desapego material, mas penso nesse visível que se abre ao invisível para além da montanha: é possível acessar o imaterial através da paisagem? 

Jean-Luc Nancy vai dizer que a paisagem é o lugar do distanciamento e da estranheza. Não pode ser povoada por deuses, entidades, forças políticas ou teológicas, pois deixaria de ser paisagem para se tornar “cena”. Nessa dissolução de presenças, ela passa a ser toda a presença em si, convocando o que Nancy chamou de “sentido da paisagem”, uma sensação ou sentimento de ausência “justamente porque aqui, neste ‘aqui’ da paisagem, ele não consiste em si mesmo, mas na sua abertura” – um esvaziamento que “se abre sobre nós”, colocando-nos não diante da paisagem, mas dentro dela.

Tente se lembrar se alguma vez já sentiu a desolação inexplicável e inescapável proporcionada pela visão de um horizonte distante, o céu pálido se derramando sobre o relevo ao cair da noite, ou ainda, pelo rumor vegetal da mata fechada numa manhã silenciosa. Essa inquietação (quem sabe próxima do unheimlich freudiano) vem à tona quando tomamos consciência de que, superada a representação, a paisagem é pura suspensão. O trabalho da artista visual e realizadora inglesa Emily Richardson pode ser descrito como um prolongamento desse gesto de constatação. 

Em seu primeiro filme, Redshift (2001), Richardson vai estabelecer o leque de procedimentos que a acompanham desde então, como o uso da bitola 16mm, longas exposições, câmera fixa, planos longos e técnicas de animação em time-lapse. É um cinema rítmico, dos desdobramentos da luz, do tempo e do movimento, mas para além disso, é um cinema da natureza assombrada e viva. 

“Redshift”, ou “desvio para o vermelho”, é um termo usado na astronomia para descrever o cálculo da distância de objetos (como estrelas) através da distorção do comprimento da onda de luz que eles emitem. No filme de Richardson, esse tema é replicado nos corpos celestes distorcidos pela longa exposição e pelo time-lapse, que faz com que pareçam halos ascendendo (ou descendendo) pelo firmamento. Massas densas de névoa e de nuvens se movimentam sobre a silhueta de uma escarpa e pontos luminosos atravessam de um lado para o outro na linha do horizonte enquanto a trilha sonora de Benedict Drew, colaborador de longa data nos trabalhos da diretora, vai compor com ruídos e estática a imagem de um mundo eletrizado, desperto na escuridão. 

Leio a descrição do filme que fala em tentar “transmitir a vasta geometria cósmica do céu noturno e fornecer uma perspectiva alterada da paisagem”, mas acredito que há algo em Redshift que não pode ser sintetizado por palavras como “geometria” e “perspectiva”, por mais que consiga enxergá-las ali. É algo do domínio sensorial e sobrenatural – um ritual animista dissimulado pela técnica. 

O mesmo ocorre em Aspect (2004), terceiro filme de Emily Richardson. A luz do sol escapa por entre folhagens e galhos de um bosque lembrando as intervenções de Brakhage respingadas quadro a quadro. A câmera paira sobre a vegetação para logo em seguida penetrá-la obstinadamente com movimentos de zoom, e é quase subjetiva, como se incorporasse uma presença criatural. Aqui a passagem do tempo vai conduzir os efeitos práticos de Richardson. As sombras projetadas dançam, árvores se agitam num cenário que acomoda tanto a fábula quanto os primeiros experimentos no cinematógrafo. O desenho de som, mais uma vez de Ben Drew, foi realizado a partir de “fragmentos de sons florestais tipicamente não registrados, formigas no formigueiro, o vento varrendo o solo da floresta e o estalar de um galho”. Amplificados e reconfigurados, esses registros sonoros contribuem para a atmosfera de horror folclórico que parece percorrer a superfície de Aspect.

No conjunto de sua obra, Emily Richardson vai ainda lidar com outras configurações de paisagens como ruínas, ruas desertas, campos de petróleo, instalações militares abandonadas e conjuntos habitacionais. A presença humana nesses filmes é quase nula (salvo os moradores de uma antiga torre residencial londrina em Block, de 2005) e é anunciada através de vestígios mais ou menos visíveis, desde as luzes ectoplasmáticas de faróis em Redshift aos escombros de um radar experimental usado na Guerra Fria em Cobra Mist (2008). 

Quis falar de Redshift e Aspect porque acredito que são filmes de manifestações do invisível no visível. É difícil nomear as sensações que mal se traduzem no decorrer da minha experiência com as duas obras, mas fico com o “inquietante” porque diz respeito a um “desassossego que impede o repouso”. Richardson nos coloca em estado de alerta, mas também em contemplação. A montanha, a névoa, o céu noturno, o chacoalhar de galhos e os ruídos mais profundos da terra, tudo pode ser assustador e maravilhoso ao mesmo tempo, se prestar bastante atenção. 

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Ma Ê Dami Xina – Já me transformei em imagem (Zezinho Yube, 2008)

por Geo Abreu

“Como é que a gente fazia pra viver antigamente?”

Arquivo é a palavra-chave deste filme. Seja na ideia que permeia a própria produção, pensada como herança às novas gerações do povo Hunikui, seja pelo uso de imagens antigas, revisitadas para ilustrar a narrativa (através da chamada “montagem de atrações) ou para ganhar novos sentidos a partir de uma leitura de dentro, até a busca por documentos vivos, pessoas que não só contam a história de seu povo, como a tem marcada na pele.

O filme começa com dois homens adultos, sentados ao pé de uma árvore de tronco robusto. Um deles pede atenção ao que vai ser dito dali em diante, com postura de autoridade: “Nada de virar os olhos!” Mas, apesar do tom, o que vem a seguir é o relato da existência da etnia Hunikui no tempo, com reflexões sobre tempo histórico, memória, imagem e arquivos. “Como é que a gente fazia pra viver antigamente?”, pergunta um deles.

Os Hunikui dividem a história em cinco períodos: tempo da maloca; tempo da correria; tempo do cativeiro; tempo dos direitos e tempo presente. O diretor-narrador, Zezinho Yube, nos conta que, para falar do tempo da maloca, quando todos os hunikui vivam juntos de seus parentes, é preciso chamar os mais velhos, aqueles que guardam a memória daquela época. 

No processo de rememorar esse tempo antigo, examinam-se também as técnicas de pesca, de caça e de fazer fogo. Como podiam os mais antigos pescar e caçar usando apenas flechas, sem os facões e terçados que os brancos trouxeram? Relembram também o episódio que gerou o nome dado a eles pelos nawá (aqueles que não são índios), no desentendimento mútuo: duas crianças matavam morcegos e os nawá perguntaram o que elas estavam fazendo, ao que os meninos responderam “kaxi (matar), nawá”. O resto é história.

Na linha de produção de documentos vivos, a floresta que os Hunikui vem reconstruindo à sua maneira no tempo presente se une aos antigos do tempo do cativeiro, que tiveram a pele marcada pelo dono do seringal em que trabalhavam. Como bois, como propriedade, aquele senhor hunikui que mostra o braço marcado e parece irritado quando conta que todos os nawá pedem que ele mostre aquela marca, é respondido no fora de quadro: “é porque esse é um documento forte”. Quando a canoa no ancião se afasta, vemos a câmera montada num tripé, dentro de outra canoa.

Aliás, os Hunikui estão muito conscientes sobre como e porque é importante produzir imagens, tanto quanto um dia foi importante produzir livros (Zezinho conta que escreveu de seis a sete deles). É desse entendimento que vem a frase que nomeia o filme, quando o pajé diz que já virou imagem e está espalhado e sendo visto pelo mundo, sua consciência sobre a importância do audiovisual e da sua transformação em imagem diz muito sobre o lugar que o cinema ocupa naquelas comunidades.

Quando o filme se ocupa de descrever o tempo presente, o que vemos é uma espécie de making of: o microfone sendo revelado, o set das entrevistas sendo filmado de dentro, uns ensinando aos outros como operar a câmera, a comunidade reunida para assistir videoaulas e, principalmente, esse retorno a imagens antigas nas quais eles podem revisitar costumes, como por exemplo fazer fogo a partir da fricção de duas varetas numa superfície de madeira. “Assim já sabemos o que fazer quando o isqueiro acabar”, foi uma das frases que mais marcou ao assistir esse filme.

Chama atenção o movimento narrativo, que parte do tempo das malocas em que se vivia sem o conhecimento da existência dos nawá, seguido pela vida em fuga do tempo da correria, até a fixação forçada do tempo do cativeiro, que desmobilizou os parentes e foi gradativamente os fazendo esquecer de suas festas e de sua língua; daí então para no tempo dos direitos, lá pela década de 1970, encontrarem na ideia de organização do trabalho dos brancos a força para reivindicarem seu território; e então o tempo presente, que voltou a movimentar e reaproximar os hanikui, visando a recuperação de suas antigas formas de sobrevivência.

Esse movimento de produzir uma linha do tempo, atravessada por imagens produzidas pelos nawá, agora ressignificada pelos hunikui através do manejo das técnicas de produção e montagem com imagens, é o grande prazer deste filme. É o que nos move a acreditar que o audiovisual como assunto da educação popular é algo urgente e necessário. E que pode sim nos ajudar a produzir outras versões de histórias tão (pouco) conhecidas como a dos genocídios dos povos originários e sua luta pela retomada de suas antigas formas de viver no mundo.

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A Planície das Afinidades (Il Pianeta Azzurro, 1981)

por Felipe Leal 

É comum que vejamos se atribuírem às lentes concernidas com os “mundos à margem do humano” a categoria de POÉTICAS, ou ainda de SEMIDOCUMENTAIS, como se a desvinculação das tramas do desenvolvimento das emoções-ação, cujo centro é o indivíduo, significasse, como no mundo medieval, uma inclinação lunática aos pormenores astrais ou elementais capaz de desviar o olhar e o pensamento (e consequentemente a alma e o raciocínio social) em direção aos signos embriagados do mundo fenomênico. Mas um cineasta preocupado com a chuva, com a confecção de sinfonias geométricas citadinas, com a microscopia das algas ou com a população mística das neblinas não está mais próximo de um “cineasta experimental” porque a sequência de suas relações com o filmado pressupõe um fio conceitual-sensorial que melhor o alocaria num museu, galeria ou festival documental.

Ainda que não neguemos que o cinema é arte massivamente atada ao desenrolar mais ou menos concreto de episódicas humanas, isto não significa que o empréstimo de seu olho ao que indivíduo algum (que não tenha intenções estritamente científicas) se debruça, modo comum, a contemplar, lhe confira um princípio “passivo”, de registro funcional-informativo, onde nas imagens moram os espécimes fantásticos, e nos espectadores a recepção antropológica-boquiaberta. As operações do close-up, do plano de longa duração, da câmera-xamânica (simulação da vista de animais), dos ângulos improváveis, gloriosos ou arriscados, alados, todas essas tecnologias pontífices ao mundo que não alcançamos podem, com efeito, ATRIBUIR UMA VIDA ao que se (a)credita ter autonomia, repulsões, necessidades, meios, aptidões, desejos por si só concentrados na selvageria de sua existência.   

N’O Planeta Azul (Il Pianeta Azzurro, 1981), de Franco Piavoli e (sua mulher) Neria Poli, a hipótese de que haja uma AÇÃO DESEJANTE inerente às substâncias todas da Terra, seus animais, elementos, fenômenos físico-ou-químicos, suas horas, “acidentes”, ritmos e estações, faz do enquadramento desse “lugar onde o olho não para para olhar” uma prece ao querer metamórfico e autônomo dos viventes que são infinitamente mais populosos que nós, nesta Terra. Com uma sonoplastia psicodélica de bolhas espaçadas que logo nos mergulha num aquário epitelial em que tomadas oceânicas, close-ups de rochas sob a luz lunar ou de superfícies saturadamente safiras remetem à falsa imobilidade alienígena de tais submundos à vista comum, os diretores nos implantam um aviso de boas-vindas tão sentencial quanto àquele que figura no Inferno de Dante: (parafraseamo-lo) “Deixai todo o saber até aqui conhecido sobre as tecnologias de vida, vós que entrais na dimensão azul”.

Ainda mais impressionante que sua catalogação das maneiras de preservação, reprodução, invenção e entropia inerentes à multiplicidade arrebatadora de organismos (captadas como se um burburinho de vivacidade por ali percorresse, incitando micro-primaveras de fecundação e renascimento) é a semelhança que essas formas de vida se instalam no nosso reconhecimento de processos físicos intimamente ininterruptos à fisiologia humana, trazendo ao olho que tudo aquilo assiste em velocidade e sons selvagens um “entendimento” de fato menos racional que pelas entranhas, uma acoplagem da força natural (de satisfação à sua própria natureza-crescimento) à nova linguagem das forças de nossos órgãos e membros, cujas realidades sabemos cada vez mais sem a necessidade integral do alcance ocular. 

Em outras palavras: o filme se passa TAMBÉM pela conexão-nascimento de outras faculdades de nosso corpo entre si. Filme-molecular.

O “azul” a que ele se refere é, ademais, o do encaixe misterioso que se tece entre uma semântica de desejos que modularão as propriedades analógicas de seus corpos no encontro do percurso à coisa que os magnetiza. Todos os seres que o casal filma estão em movimento de saciação, de devorar, na plena languidez que mais os caracteriza justamente por pulsarem numa caça vocal, espaçosa, aparecidos e indômitos. Como se a câmera assumisse o papel de “madrugada”, ou ainda de luar, fomentadora das delícias subcutâneas – é de se perguntar como muitas das intimidades foram alcançadas, mesmo com o zoom –, ritos de transações cifradas em seus movimentos mas claras em suas voluptuosas arquiteturas irrompem, os músculos e geometrias cantarolando um hábito quem sabe quase indecente, não porque contenha obscenidades, mas porque não lhe acontece dar vez a nada que seja de ordem pública, traduzível.

O corpo humano desvela boxeadores vulcões, como se expelisse gases involuntários que não são tão literais… mas antes contestações-contrações oriundas de habitantes nada coadjuvantes daquele interior. A tecelagem de bandos de minhocas entre folhagens demonstra curvaturas que advém de impulsos-choques capazes de lhes percorrerem o corpo inteiro, tão ondulantes e potentes quanto as curvaturas do mar. Aos 37 minutos., uma fileira altiva de patos desfila tranquilamente sob o sol, diante de uma bodega em qualquer interior italiano. 8 minutos depois, aquele bar, que servia de banco de prosas entre dois idosos, se transforma num relâmpago de encontros barulhentos entre camaradas, jogadores, amantes e políticos, e sob a noite e madrugada adiante os destinos se repetem e se diferenciam, engenhando histórias que são próteses incandescentes de seus heroísmos enquadradas pelo jorro de luz e vocalidades que os mantém bem-aventurados.

Os diretores se evadem de maneira inquietante da presença da câmera sobre a matéria-filmada, mesmo se cogitamos aquelas que, simulando no olho da lente um olho de peixe-morto, se entregam ao corpo estranho em “radicalidade”. 

A câmera d’O Planeta Azul parece fazer parte do ar. Assume nível microbial. Pior: ela é o tempo. Assume uma estase cristalina, um retrato de certa eternidade, e simultaneamente demonstra ser o alimento que traz a voracidade inventiva ao corpo, à língua, às afinidades litúrgicas que o balanceiam com suas outras naturezas na transitoriedade. Não há, entretanto, adesão ao fanatismo hiper-criativo de uma mãe-gênese: a umidade do planeta água demonstra os suores, os escorregos, os uivos e lágrimas, os saboreares descontrolados, as excreções, emulsões protetoras, os ácidos e névoas – estes seres extravasam as emergências que conduzem ao casulo que os trará, em seguida, de volta a travessia à certa totalidade liberta. Seus líquidos podem assim o ser pois são como lamentos pela inteireza que os falta, ainda que sejam cindidos por uma pele traiçoeira, oposta à unidade que deveriam performar, membranosa demais para que sejam isolados.

O hermetismo atuante dessas orquestras à beira da luz, não solar, mas da razão que implicitamente afirma os objetos a que é necessário emprestar o olhar, prolifera “visões sem os olhos”, tatos que enxergam, equilíbrios feitos por ecolocalização (projeções sonoras que sobrevoam e são devolvidas ao emissor, anunciado distâncias estrategicamente), cotovelos que medem o impulso de escavação. Um corpo de poderes dentro, ou melhor, por toda a extensão do corpo põe em orgia as fantasias mutantes com que somente o gênero da ficção-científica ou da ação podiam sonhar. Quanto mais de perto se permite assistir à procissão dos membros díspares de nossos corpos (de habitantes do Azul), mais uma sazonalidade propícia à cada mistério por trás de tantas partes para tão pouco tempo assegura essa “assemblage” (montagem) de corporeidades empilhadas numa intenção de ser só. Somos mais quiméricos do que qualquer especismo possa separar.

A intensificação da sonoplastia quando nos deslocamentos rente aos olhos de sapos acasalando ou a centímetros do festim de uma aranha sobre sua libélula-presa, essa umidade das fusões, golpes e proporções que nos remontam ao “artístico” dessas peles e patas muito antes da arte “nascer” termina por cruzar de vez as barreiras da razão, reforçando a estridência mágica quase insegura deste cinema, posto que seus coaxares, zumbidos, grunhidos e pios ganham dimensão invasiva cada vez mais enlouquecedora ao espectador que não se disponha a ser rachado para deixar outras comunicações penetrarem seu campo de possíveis. Tudo o que a memória computa, afinal, a ela é instrumental.

Mesmo quando as cenas se deslocam das naturezas animais às climáticas, humanas ou domiciliares, o apreço à invasão dinâmica dessa força de assimilação entre sons, texturas, umidades e luminosidades cria fantasmáticas e povoamentos às matérias mais sonâmbulas ou esquecidas. Piavoli e Poli dão justa vida aos acúmulos catárticos de chuva sobre vidraças, desertos de poeira historiográfica, musgo, fungos gráficos, ferrugens esfomeadas, objetos abandonados de aura totêmica, uma estratificação de sobrevidas tão interativas entre si, que seus ressoares criam um “invisível visível”, uma clareza territorial mais vestigial e mais elétrica, mais extática e condutora que qualquer arsenal de fiação em curto-circuito.

Uma vida cogitada continuando muito além de nossa humana extinção fica perfeitamente plausível, mas melancólica, se não há quem as capture, buscando nelas o mínimo interferir. Um esplendor que somente nossa simulação astronauta pode abraçar: pois terá nos considerado (ficticiamente) estranhos a esta heterogeneidade (contraditoriamente homogênea) azul.

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Apaixonar-se e fundir-se à paisagem: Undine e Afire

por Carolina Azevedo 

Afire

Do fogo que incinera e da água que engole os amantes – é a natureza que consome o amor nos dois últimos filmes de Christian Petzold. Undine e Afire misturam o real com o fantástico para assombrar paixões imprevisíveis, cujo inescapável destino, no entanto, é o de se fundir, tragicamente, à paisagem natural. 

Mesmo que por acaso, a própria estrutura dos filmes de Petzold emula os mistérios da natureza: da premissa inicial – seja ela o absurdo de uma mulher que diz precisar matar o parceiro que tenta acabar o relacionamento ou o clichê dos amigos que vão passar um verão à beira mar – a narrativa muda de direção sem mais explicações. Mudam também o ritmo e o tom: entre a repetitividade de uma rotina que ocupa a cidade cinzenta e a monotonia do escritor que, rodeado de belezas naturais, se limita à tela do computador, de repente, explode a tela em sopros de romance e rajadas de tragédia. 

Em Undine, Berlim até parece ser protagonista: historiadora, a personagem de Paula Beer conduz visitas guiadas por pequenas maquetes da cidade, que, evocada a todo momento, pouco ocupa o foco da câmera. Entre as visões dos cartões-postais da capital, que só aparecem enquadrados pela janela de Undine, é no resquício de pântano logo ao lado que a magia do conto se constrói. O caminho estreito e os trilhos dos trens que o casal  percorre com um andar sincronizado – e, rapidamente, apaixonado – leva a uma paisagem bucólica mas não menos acinzentada que a cidade. 

Entre as árvores, uma barragem industrial aonde Christoph leva Undine para um mergulho. O absurdo de um encontro nas profundezas de um rio cercado por concreto se transforma em fantasia quando o bagre gigante – apelidado por Christoph e seus colegas de Big Gunther  – aparece ao lado de uma inscrição do nome da própria protagonista em uma coluna submersa. Todo mistério é pouco para Christian Petzold em Undine

Undine

O cenário de Afire é menos excêntrico, misturando clichês da tradição dos cinemas de verão. Uma dupla de amigos se vê perdida, com um carro quebrado, em uma floresta desconhecida, há alguns quilômetros da casa de praia onde passariam as férias. Terror adolescente: os sons silvestres se aproximam quando o mais inquieto da dupla é deixado sozinho no meio de uma mata prestes a incendiar-se. Quando, finalmente sãos e salvos, chegam à casa, o drama que se instala é mais próximo dos contos morais de Éric Rohmer do que dos contos fantásticos em que se inspiraram o filme anterior. 

A diferença é que as praias do diretor francês não serviam muita função além da cenográfica. Em Petzold, no entanto, a tragédia ambiental é anunciada desde o título – que, em sua versão original, Roter Himmel, traduz-se literalmente como “céu vermelho”. O som dos helicópteros de bombeiros que não se veem instalam a agonia do que estaria prestes a acabar com os dilemas morais e casos amorosos que calmamente surgiam ali. 

Quando os personagens se dispersam na mata incendiária, é novamente na figura de animais que o mistério da tragédia em curso se personifica. A imagem dos dois pequenos javalis queimados talvez seja a mais memorável do filme, sem que seja necessária uma interpretação grotesca sobre a metáfora que Petzold certamente não estava tentando criar ali. Como no poema The Asra, de Heinrich Heine – recitado pela Nadja de Paula Beer e recebido com surpresa pelo Leon de Thomas Schubert – aquele seria o destino dos amores recém formados: a terra “daqueles que morrem quando amam”. 

Quando Undine é engolida sem retorno pelas águas do rio em que vivera o amor com Christophe, a fantasia se desfaz em uma realidade sombria, em que paixão não é o bastante para transformar em realidade o ser mágico do mito que dá nome ao filme. Assim como a tragédia do fogo não é o bastante para reacender a breve paixão de Nadja e Leon. O que resta é a lúgubre magia do amor, que se foi, e a paisagem, que fica, impressa nas imagens de cada filme.

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Intervir com a câmera: Herzog e a natureza

por Pedro Tavares

Do cinema de Werner Herzog a relação intrínseca com a natureza é uma de suas maiores características, tanto na construção ficcional a usando com as mais diversas representações, como em sua ampla filmografia como realizador de documentários. Herzog, independentemente do dispositivo que parte, cria relações do etéreo com o material de formas que vão do sobrenatural à radicalidade selvagem. Apesar de servir como referência-máxima para o uso de diferentes metodologias no cinema do diretor alemão, é sempre pertinente lembrar da relação cruel de poder e violação que envolve transpassar um navio por uma montanha em Fitzcarraldo (1982). Em A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), o olhar para a pré-história e as formas de comunicação analisadas originalmente em experiência 3D completa a proposta do uso do que é natural unido ao corpo – do que escreve e do que assiste – para a comunicação feita por desenhos à priori, mas que ao longo dos tempos ganhou a forma de gesto. São diversos os exemplos de relação entre Herzog e a natureza e seus eventos (extra) ordinários como em The Fire Within (2022), Aguirre (1972) ou Lessons of Darkness (1992), porém em alguns de seus trabalhos Herzog mostra-se dono de uma crueldade singular quando rechaça a força da observação naturalista do espaço e seus personagens.

É do tempo, dos mais complexos meios dimensionais de nossa existência, que o diretor parte para a relação com seu assunto e seus protagonistas. Um díptico produzido no início da década de 2000 representa muito bem este caminho tomado pelo realizador: The White Diamond (2004) e O Homem Urso (2005), este último exemplo de retorno inesperado para Herzog, o que nos leva à relação do humano com o trágico, com a morte.  A natureza do humano é estudada por este meio. Herzog, assim, usa sua câmera como o principal recurso para a quebra geral de funcionamento do tempo, da vida, do espaço. Da mesma maneira que Eduardo Coutinho sinalizava certa distância de seus entrevistados (ou seja, de sua matéria-prima) afim de evitar um desvio comportamental, como mostrado em Apartamento 608 (Beth Formaggini, 2009), Herzog o leva para outro extremo. Porém, não se trata de manipular o conceito de um filme, mas sempre de questionar o que se fala e o que se faz, uma ação sugerida tanto para quem vê e ouve como para quem fala. 

Timothy Treadwell, o “homem urso” por si quebra a natureza da observação. Como operador da câmera e ciente do destino que suas imagens terão – seus documentários -, mudava a dinâmica do real ao apertar o “rec.”. Se tornava, antes de tudo, um performer. A mistura de apresentador de TV e uma estrela pop. O longa de Herzog parte da morte de Treadwell para entender, em retrospecto, o comportamento do protagonista nos últimos treze verões na natureza selvagem até o fatídico dia que Treadwell foi atacado por um urso, este que também vitimou Amie Huguenard, namorada de Treadwell. A dinâmica do natural é mudada tão radicalmente que Herzog questiona se a vítima de alguma maneira preservou a câmera para que ela registrasse o seu fim, ou seja, que o espetáculo continuasse mesmo que seu corpo fosse destruído. E, obviamente, empurra o espectador e seu gosto pelo mórbido contra a parede. Não se trata de questões moralistas, pois Herzog nunca tomara este caminho. 

Grizzly Man,' multiple award winning documentary, screens Thursday in  Middlebury - The Mountain Times

O Homem Urso (2005)

A metodologia de White Diamond e Homem Urso é a mesma: o comentário de Herzog se dá no silêncio e como ele também é inerente à natureza como uma forma de comunicação. Quanto maior o silêncio, mais incisivo é o comentário do realizador, e em boa parte das vezes maior é a necessidade dos personagens de agir em frente à câmera graças ao desconforto criado pelo diretor. 

White Diamond exibe também uma característica de Herzog como realizador que é o de estar na experiência e não somente registrá-la. O dirigível construído por Graham Dorrington parte de um trauma particular e por pouco não cria mais um, com Herzog a bordo quando ambos, de certa maneira, prestam tributo ao cineasta alemão Dieter Plage que faleceu em um experimento com um protótipo de dirigível para filmar pela floresta da Sumatra. Já Treadwell por si cria o ritmo da obviedade: por treze anos tratou os animais como seu resguardo, mas comportava-se como um super-herói. A Herzog basta montar, contextualizar e trata-lo com respeito.

A empolgação inicial de Dorrington, que abraça rapidamente a posição de protagonismo em White Diamond para sua aventura na Amazônia, logo revela sua insegurança pelos métodos de Herzog ao falar sobre a tragédia que vitimou Plage. A dualidade de uma nova chance e a culpa do passado vira apontamento certeiro por Herzog justamente pela elasticidade do tempo. Ao dar toda atenção para o protagonista, ou seja, dar a câmera e seu tempo para ele, a matemática do cinema é fissurada quando o corte não aparece no tempo que lhe fora instituído pela linguagem clássica. O corte é o sinônimo da veracidade das palavras, da seriedade de um assunto e, principalmente, a impossibilidade de questionar o tema, o personagem, o diretor e o filme. 

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White Diamond (2004)

É necessário seguir e, portanto, não há porque questionar. Ao emitir o que planejara para a câmera, Dorrington é traído pelo o que não planejara. Desta maneira, o protagonista transparece uma insegurança cavalar através de comentários bem-humorados ou rápidos passos de dança para representar seu ânimo para a nova viagem. O método não é o mesmo para todos os filmados e entrevistados por Herzog, o que mostra a antecipação do realizador alemão na feitura das entrevistas, porém, se a natureza prevalecerá, o acaso é capaz de intervir em qualquer modelo. A intimidade de Herzog com a natureza selvagem lhe dá cancha para proceder de maneira que respeita o que filma da mesma forma que registra a beleza do que não é concedido pelas metrópoles. Este é, entre tantos outros, um exemplar de como Herzog busca, de diferentes formas e visões, quebrar o que nos é mecânico e se aproximar da pureza dos gestos e das palavras, da mesma forma que suas paisagens são retratadas. 

Marco Polo Film AG: Produktion

Herzog e o diamante branco.

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O atalho, de Kelly Reichardt (2010): O deserto do deserto

por Luiz Soares Jr.

A Bíblia, livro do pioneirismo quaker por excelência, é citada no início de O Atalho, filme introspectivo inspirado por Deus, o Diabo, Moisés, Emerson e Thoreau; trata-se daquele trecho da Gêneses no qual, com apascentada fúria, Deus expulsa Adão e Eva do te deum de seus olhos benevolentes e os condena a lavrar a terra com o suor de seu rosto: aqui (no versículo), está tudo consumado, como diria a Medea finalmente sacerdotisa no final do filme de Pasolini; mas para a obra-prima de Reichardt este é apenas o dístico de um duro, áspero, cadenciado aprendizado perceptivo sobre a terra, os rios, as colinas, as texturas e a profundidade de campo a desbravar neste que tem por objeto a proto-comunidade em vilegiatura no deserto, que agora também é uma casa ressoante de cumeeiras ao vento; o método está dado desde o princípio de O atalho: a diretora inventaria corpos humanos e naturais, enquanto que na banda sonora homens cochicham e mulheres sussurram, à espreita pelo que virá; as paisagens contempladas por Reichardt são possuídas pelo pneuma não mais do sopro de Deus, e sim da respiração humana solicitada pela fala diligente, sistematicamente empenhada em conhecer a topografia do lugar que lhes serve de abrigo temporário, mas cujos sulcos e cicatrizes já possuem a presença humana em sua integridade; o barbudo pioneiro de pele bronzeada (o sr. Meek do título original), que nos interpela no meio da escuridão como um rabino de Rembrandt, nos revela que “eu não estou apenas neste mundo, eu vivo inteiramente nele”; eis a chave ou révelateur da tática de Reichardt: o comentário onipresente religa o homem à terra (religare) e o homem ao homem, assim como os passos das bestas de carga, os archotes e as rodas da carroça; tudo é de indispensável valia para nos restituir a parousia deste mundo antigo, cravado na escuridão ou saturado pela ardência dos raios de sol, em todo caso modesto e humilde, andarilho mas saudoso de Casa, como nos mostra esta moça de traços desenhados a crayon magenta que recusa o guisado mas fica com o naco de pão: “Basta-nos”; o cinema de Kelly Reichardt, romântico, indômito e telúrico (mas tudo isto segundo o pianissimo do gesto esquivo que volta a figura humana para dentro, abdicando de seus contornos em nome de um sfumato cismarento de Vermeer em locação natural), é antes de tudo uma épica perceptiva que deve reconduzir o personagem à paisagem como seu habitat apofântico eminente; mas esta aventura não é mais fordiana ou hawksiana, pois se interiorizou; soterrada sob estas colinas arquetípicas, desvela para o homem o seu lugar e o seu tempo videntes: o sostenuto do ritmo, o découpage lento e adstrito ao movimento furtivo do quadro e do corpo, o contracampo distante: o corpo paradigmático não é mais a entalhadura áspera do resiliente Monument Valley, e sim o abscôndito do pastor que recita Daniel, da senhora do rebanho e do filho pródigo, talhados na pedra da colina crepuscular e do versículo vaticinante; o western revisitado por Reichardt é antes de tudo a chance de um aprofundamento ensimesmado da experiência, de um tao absorto na pegada da vaca e do companheiro de jornada, recordando-nos com suas aquarelas devaneantes que o homem, em qualquer horizonte espaço-temporal, será sempre o mesmo, o menino que é pai do homem e a errata pensante, ou a natura naturans processual de Spinoza que Klee retomou numa palestra em Iéna.

Vejamos um exemplo pontual de seu propósito: em um plano decisivo pelos trinta minutos de O atalho, Reichardt desafia a centralidade clássica para nos revelar uma personagem que corre na extremidade do cadre 1:33, resgatado do uso bárbaro que a TV, herdeira genealógica das matinés do passado, havia imprimido a ele: ela viu um índio armado, e  se precipita na direção contrária, para fora do centro que os antepassados haviam eleito como a perspectiva ideal para o aparecimento da figura humana; neste trecho, a démarche, os meios e a teleologia do propósito de Reichardt como cineasta aparecem de forma paradigmática: a eclosão da ação acontece por intercessão da aparição da figura humana ou figura tout court, porque para seu olho atento à grandeur nature do detalhe revelador, tudo o que aparece no plano deve ser levado em consideração: cinema epifânico do campo aberto, do confronto entre presenças segundo a noção do contracampo primitivo (Lourcelles) como choque frontal; as consequências, no entanto (na contramão dos raccords sensório-motores do cinema paradigmático clássico) serão anti-climáticas, minimalistas, enviesadas e difusas, e vão se espraiar pelo corpo do filme como uma espécie de infiltração sempiterna cujas coordenadas serão devidamente dadas pela trajetória, um tanto capturadas segundo a norma impressionista de uma empreinte figurativa, das rondas, das pistas e dos rastros digressivos do que nos aparece, dos personagens ao longo de sua peregrinação sobre a cratera do deserto; como as falas entre irônicas e impertinentes de sr. Meek, que atormentam para saborear sua fúria tímida a Emily Tetherow (a garota que viu o índio), os versículos da Bíblia murmurados pelos personagens entre uma siesta e a amarelinha com o invisível da criança comentam, agora numa chave sub species aeternitatis, os acontecimentos narrados para projetá-los em um solilóquio com a prece, e Reichardt talvez seja a mais adequada cineasta para filmar pessoas em contato com a palavra inspirada: em primeiríssimo plano de apoteose silente, um homem lê Jeremias para escapar ao peso morto da duração estagnada, e todo o mundo se reúne em concêntrica compunção para escutar com ele; como o marulho da pedra sobre a água serena, o evento traumático (ou dramaticamente construído, pático) é capturado em suas repercussões intimistas, em um alheamento anti-climático de que as deambulações no cadre, leitmotif magistral do filme, vão estabelecer a norma de ritornello; o índio será capturado, mas as consequências narrativas interessam a Kelly Reichardt como o banho no jardineiro de Lumière ou as aparições do Diabo, metteur en scène à onipotente espreita, em Méliès: a luz, o ritmo sorumbático, o sotaque anasalado do sul e a ação inerte como um escombro na rota das alvíssaras serão a decisiva pedra de toque deste tao destinado às rondas centrípetas de uma terra abandonada pelos favores de Deus, seu amante absconditus que só nos é dado ouvir pelas linhas tortas: a sensação figural, condensação entre percepção e intuição não-categoriais que Deleuze viu em Bacon, seria antes o moto de tudo; mas estaria sendo infiel a Kelly Reichardt se não observasse com atenção as arcadas e limiares com que nos presenteia em plena locação, lugar malfazejo para a escolha de cadres: O atalho é também uma ode plástica à Natureza, uma prova decisiva de que o corpo humano é a matéria figurativa de argamassa mais elevada de que o cinema dispõe, como neste sobre-enquadramento figurativo dos pioneiros na captura abaixo.

Em certo momento perto do final, O atalho, filme tecido com as agruras digressivas de uma duração impossível (de Deus ou do Diabo: a escolher, caro espectador) nos testemunha o desregramento de todos os sentidos e de todos os signos de que o deserto, lugar da aparição de Deus e das tentações de Asmodeu, é capaz: uma desterritorialização semiótica absoluta; em que sentido? Os pioneiros veem o índio falando alto e em tom trôpego, muito agitado, e concluem que está se comunicando com outros, com estes mesmos outros que virão para trucidar a troupe de Yavé; mas um intérprete benfazejo desfaz o equívoco: ele está rezando, como todos ao longo do filme; pelo raccord da direção do olhar e posição do índio no cadre, qualquer pessoa ainda humana se aperceberia de que ele fala a ninguém, ou a este Totalmente Outro que os incautos podem tomar pelo Nihil, ou Deus; perdidos no deserto, os personagens, porém, não podem ver como são vistos, e se equivocam ao confundir uma prece entoada com fervor com um plano terrorista de fuga ou invasão: o que se dá aqui, induzido pelo cansaço, pela paranoia deambulante e pela digressão extática é uma total incomunicabilidade, a ausência de totais coordenadas que talvez seja a coordenada mor: aquela que nos conduz aos deuses, extravio ontológico por excelência; em seu livro já clássico sobre profetismo judaico “A essência do profetismo”, André Neher nos comprova com índex míticos e místicos cabais que Deus (ou D’us: o impronunciável, interdita a imagem mesmo do significante) é alteridade radical; e como ele colocou esta irredutibilidade sem remissão, este no man’s land sem saída? A cada profeta D’us exige uma tarefa totalmente contrária a seus penchants subjetivistas, como por exemplo: a Ezequiel, muito higiênico, solicita que cozinhe um frango na merda e o coma; a Isaías, muito pudico, pede que saia de cabelos desgrenhados de fúria santa e nu pelas ruas de Israel, para proclamar sua prostituição; etc.

Deus é a alteridade do deserto, do mar negro e profundo, do olhar do cão e da prece do índio, aquilo que necessariamente me exclui (ergo, cogito, no caso ocidental, branco, americano, etc); para os herdeiros quakers, leitores dos profetas excluídos da ceia pascal do Egito, Kelly Reichardt acha uma forma de instituir uma exclusão da exclusão, e nos representa o deserto em seu nec plus ultra místico como o lugar do não-lugar (ou da digressão extraviante, à toa e qualquer): o Deus do frango cozido na merda encontra aquele que o cinema americano sistematicamente se empenhou em legar ao hors champ (o autóctone): temos uma paulada política de cinema tardio que, devidamente encoberta pelo brilho do roteiro de Jon Raymond (com as elipses certas para centrar o descentrado, ou revelar agora no centro aquilo que não víramos nas bordas) e pela mise en scène e découpage de elípticas ocultações e desvelamentos, sem a necessidade de nenhum discurso, panfletismo ou clin d’oeil grosseiro para nossas plateias politicamente corretas; séculos de exclusão são invocadas e evocadas com pertinência, elegância e decoro, de acordo com esta semiótica do miserere que espera os quakers na Terra prometida do extravio divino: a Diferença também pode ser representada numa arte materialista como o cinema, e aqui trata-se da eminência de Deus e seus oxímoros escandalosos: a Diferença da Diferença; O atalho antecipa First cow, penúltimo filme de Reichardt que faz tabula rasa do balbucio anencéfalo de majoritário presente do cinema para lançar as devidas cordas e liames de nossa relação, até hoje pouco esclarecida em sua profundidade de révelateur, com o passado opressor; mas o passado, ao contrário do que certa histeria de esquerda hoje possa pensar, não é apenas o lugar da exclusão, da diferença irrecuperável, da maldição (pós-metafísica) da Origem; ele é também o lugar da Origem como destinação do presente e imagem pela qual inventamos os deuses e fotografamos o ser nas empreintes de verité das palavras (relevância absoluta da etimologia, aliás); em Intolerância, filme épico do Griffith que viu o cinema nascer, temos Lilian Gish embalando um berço imemorial ao som do ritornello do Totalmente Outro, História carnívora e Mesmo padastro; o passo para trás heideggeriano de First cow e O atalho se reapropria do passado como a imagem-mater desta paternidade clássica, tantas vezes terrível mas necessária para se fazer o luto, que nos viu nascer e morrer novamente; não é pouco para os tempos intempestivos que nos atropelam.

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Video-ensaio: Luz nos Trópicos de Paula Gaitán

“Em 2020 pude assistir Luz nos Tópicos 3 vezes, em diferentes festivais, que na época estavam acontecendo em versões online por conta da pandemia de Covid-19. Imediatamente soube que para falar sobre ele, eu precisaria remontar, criar a partir dele outras imagens, destacar algumas delas, mexer com a carne do filme. E foi o que tentei com esse video-ensaio, um dos meus primeiros. 

Fazendo pensar em Lucrecia Martel e Video nas Aldeias, Luz nos Trópicos produz imagens poderosas sobre a criação da América, sobre a natureza experimental dos encontros que deram origem a esse projeto de colonização, que segue sendo atualizado, às expensas dos povos do Sul Global.

Como na cena em que um passarinho é dissecado, me senti convidada a intervir no filme para tentar dar conta do quanto fui impactada por ele.

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Editorial: Cinema e natureza, paisagens em perspectiva

por Gabriel Papaléo

“Aqui do alto, contemplo o campo, que se estende como uma pradaria sem fim. (…) Paisagem estática, desoladora. Bem longe, um homem atravessa os campos. (…) A verdade caminha por si através dos bosques.”

                           Caminhando no Gelo, Werner Herzog

Dos registros de população e máquinas urbanas do final dos anos 1890 às sinfonias de cidade soviéticas e europeias dos anos 1910 e 1920, o cinema investiga sensorialmente sua ligação intrínseca com a cidade e seu movimento. No entanto, o oposto do trânsito constante citadino encontra diálogo na investigação de diversos realizadores que imaginam, retratam, debatem e evocam, a natureza e seu tempo próprio – e como os registros dela são realizados, quais procedimentos utilizados.

A natureza filmada em locação, sob diferentes códigos de uma paisagem, é das bases mais sedimentadas de cinemas como os de Peter Hutton e Apichatpong Weerasethakul, que flutuam entre a sideração e a palpabilidade da concretude natural de uma vista, do fluxo de um rio ou da neve que cai, da floresta que respira ou do mar à espera. Nessa mesma disposição pela locação, dois italianos com códigos muito particulares (e semelhantes) filmaram natureza: Roberto Rossellini criou em Stromboli uma grandiosa representante do tumulto interno de sua protagonista à espera de uma experiência de estupefação, enquanto Michelangelo Frammartino fez em As Quatro Voltas e Il Buco um desencadear de acontecimentos místicos nas ações mais mundanas, linhas mais simples e diretas da comunhão sagrada entre o humano e o natural, um continuação do outro. Ambos sob a visão de uma névoa que a natureza deixa pra trás após agir.

Também temos a natureza hostil, filmada como ameaça, palco para violências imensas e alegorias políticas. John Boorman em Amargo Pesadelo cria um filme de guerra em microcosmo, com seus homens da cidade que vão à caça. Já Nelson Pereira dos Santos e Jim McBride em Quem é Beta? e Glen e Randa propõem utopias de novas organizações amorosas diante do pós-apocalipse e da terra arrasada, como se a falta da suposta civilização da cidade nos liberasse para lidar com a vida sem tabus. Kelly Reichardt, entusiasta do retrato natural como seu mentor e amigo Peter Hutton, filmou em O Atalho um velho oeste de travessias nada explosivas, que vencem pelo cansaço, cujo sobrevivente mais apto será aquele que entende a história da terra onde pisa.

Há também diretores que preferem filmar a natureza artificial, recriada e filmada em estúdio, para diversos efeitos – seja realçando a ilusão, como Powell e Pressburger em Narciso Negro com suas construções impossíveis e planos cuja magnitude da natureza, evocativa das pinturas de paisagem de artistas românticos como Caspar David Friedrich e mesmo revisionistas como Turner; seja para um controle maior da estrutura de produção, como Erle C. Kenton em A Ilha das Almas Perdidas, e no tanto que essa escolha se reflete em tela, do filme como resultado estético desse modelo de filmagem, da selva domada do estúdio servindo de palco direto para um cientista que cravou uma cicatriz a seu desejo no meio da natureza intocada, reflexo direto do colonialismo tratado pelo filme – assunto esse também tratado por Chantal Akerman em A Loucura de Almayer, mas sob o calor da locação, que encarna o natural como um pesadelo do colonizador em febre, a umidade sentida na pele, nas embarcações ruindo.

James Benning já filmou a natureza indo de um extremo de humor ao outro em filmes diferentes, das paisagens alienígenas de Sogobi à aridez se Equinócio de Outono, enquanto Herzog geralmente concebe esses extremos dentro do mesmo filme: em Aguirre, a grandiosidade contemplativa da paisagem rivaliza diretamente com sua implacabilidade, a loucura megalomaníaca do humano que brinca de Deus numa natureza indiferente. Em Claire Denis, a natureza desértica do passado de Bom Trabalho contrasta diretamente com o movimento da cidade do presente. Em James Grey e David Lean, essa megalomania do ego que se estende para conquistas da natureza ganha uma dimensão mais épica, cuja escala e aparato cinematográfico buscam a vocação (e construção) clássica dessas jornadas.

São formas que se interpolam e dialogam entre si, sempre sob um véu de dúvida e mistério, como exemplos da nossa própria comunicação tortuosa com a natureza. Buscando entender o idioma desconhecido do que o vento fala, ou o comportamento de quem passa por aqueles lugares, cineastas ao longo do século apontam suas câmeras para o mundo natural atrás de perguntas. Essa edição propõe investigar algumas delas.

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Natureza do Desaparecimento: Parallel I-IV, de Harun Farocki

por Waleska Antunes

When I speak of time, it’s not yet
When I speak of a place, it has disappeared
When I speak of a man, he’s already dead
When I speak of a time, it already is no more
– Raymond Queneau

Nós somos fascinados pelo fantasma de uma realidade integral, pelo alfa e ômega da programação digital. O real é o leitmotiv e a obsessão de todos os discursos. Mas não somos muito menos fascinados pelo real do que por seu desaparecimento, sua inelutável desaparição?
– Jean Baudrillard

Uma das grandes questões que afligem a arte de modo geral desde o princípio e perpassam gerações de pintores, teóricos e até mesmo espectadores é a questão de verossimilhança da imagem. Seja em movimentos como o suprematismo ou o cubismo, nas artes, seja com o cinema experimental ou com a poesia concreta, a necessidade de uma representação de mundo tal como ele é, é uma porta entreaberta, um mistério sem solução. Afinal de contas, tudo depende do interlocutor e de como vemos. O mundo, em geral, é formado de grandes mistérios imagéticos e cabe a nós sabermos interpretá-los.

Há quem se confronte com as peculiaridades entre o mundo real e o mundo imaginário, o natural e o humano ou o real e o virtual. Esses questionamentos tem tido uma grande prevalência no cinema atual, principalmente com o advento do digital como matéria primordial de fazer fílmico. Fomos do assombro em captar o movimento das folhas ao fundo em O Almoço do Bebê pelos irmãos Lumière em 1895 até ao assombro da recriação do movimento das folhas e das paisagens em videogames com um grau de realismo exacerbado. Na fronteira entre o real e o maquínico, se encontra Harun Farocki, cineasta alemão que se põe em frente às máquinas para botar a câmera em cena, como uma espécie de figura anônima em uma estrutura mecânica; uma engrenagem em uma máquina.

Nesse caso, em Parallel I-IV (2012-2014), há um ciclo de filmes com foco na construção de um simulacro de mundo real em meio a ambientes virtuais, como os videogames e representações gráficas. Não é novidade que o confronto entre o homem, a máquina e o mundo das coisas é algo presente em grande parte dos filmes de Farocki; no entanto, o questionamento quanto à representação do mundo natural como simulacro e a interação entre simulacro/realidade e espectador é uma fórmula essa que vai se repetir em outras instalações, principalmente nas obras derradeiras (como em Serious Games e Eye/Machine). [1]     

Em Parallel I-IV, a historiografia apresentada vai desde as primeiras formas de animação até os últimos avanços dos videogames, como a jogabilidade e a interação com o espaço se tornam figura central de questionamento do aparato cinematográfico; tanto os Lumière quanto Farocki almejam a mesma coisa, buscar um retrato do mundo, mas a intenção do segundo é questionar se, no realismo simbólico da natureza construída pelos jogos, uma árvore representa de fato uma árvore, apesar de não ser feita da matéria orgânica. Afinal de contas, na voz de Antje Ehmann por entre as paisagens computacionais, se torna a regra a emulação de mundo através da animação, oferecendo uma possibilidade de superação do cinema como retrato do real. No entanto, ela nos diz: Nos filmes, há os ventos que sopram e os ventos que são produzidos por um ventilador. Nos mundos animados, o vento sopra em uma única direção. E como considerar um mundo construído como algo natural? Ao mesmo tempo, como não dizer que aquele não é um mundo?

O que rege Parallel I-IV é a noção de que a representação natural de mundo pelo cinema e pela virtualização da natureza e das paisagens é uma espécie de retomada ao ímpeto inicial renascentista – onde a técnica e a ciência estavam à serviço da arte. Parece uma afirmação bastante controversa; porém, considerando um mundo em que a água se torna mais reluzente e as árvores são colocadas em coordenadas e tudo, absolutamente tudo, é formado por pontos e vírgulas e coordenadas cartesianas, talvez não seja de tão absurdo. Afinal, o plano achatado e o nada além da superfície das coisas é uma noção pré-helênica de mundo.   

De toda forma, essa espécie de mistério representacional do mundo e da natureza, a água composta por algoritmos, um horizonte plano infinitamente finito e um mar sem fundo ou função causa um assombro. Quantas vezes, ao ver um retrato de um videogame ou de uma emulação, não se diz ‘isto é mais real que o próprio real’?   
Será mesmo?  Se este é o mundo real, ele deixa de existir quando eu não o vejo? Onde é que esse mundo termina? E esse é o ponto central de Parallel: A natureza virtual é composta de um vazio e pontos de fuga inexistente. O mundo que se vê pode parecer, mas não o é e sua ideia de infinitude e o que há além do alcance mostram que talvez não tenha sido o movimento das folhas ao fundo do quadro que interessem nas emulações do mundo, mas sim, o seu desaparecimento. Queremos saber o que há por trás da montanha, para além do mapa, fora do horizonte. É uma necessidade sobre-humana: Alcançar o inalcançável.

Disse Jean Baudrillard: ‘Por trás de cada imagem, algo desapareceu. E isso é a fonte de sua fascinação. Por trás da realidade virtual em todas as suas formas, o real desapareceu. E isso é o que fascina a todos. Segundo a versão oficial, adoramos o real e o princípio da realidade, mas — e isso é a fonte de todo o suspense atual — é, na verdade, o real que adoramos, ou seu desaparecimento?’  

De fato, o desaparecimento é a única constante real e virtual de mundo e Parallel I-IV reforça um mundo fadado ao constante desaparecimento e que tudo isso flutua no vazio.

Isso só evidencia que a diferença entre o mundo dos jogos e o mundo vivente é a regra primordial da finitude; se na Terra tudo nos é finito e regido por leis da física, no mundo virtual, a noção de infinito no simulacro só define o quão limitado é a existência dos seres nas telas e nos filmes. Isso possibilita infinitas representações de mundo dentro de um só local; no entanto, o horizonte é oco. O fundo do mar é o vazio. As criaturas são regidas pelas suas próprias regras, mas ao mesmo tempo a sua existência é somente entre si próprias, sendo eles mesmos obliterados por um poder invisível. A natureza que as cerca transpõe barreiras anti-naturais, obstáculos invisíveis. Tudo desaparece, até mesmo o infinito artificial.


[1] No caso de Serious Games e Eye/Machine, o questionamento da imagem cinematográfica vai além da simples manipulação imagética, mas sim, das implicações sócio-políticas de um mundo virtualizado; afinal de contas, segundo Farocki, na representação da guerra o sol somente brilha em tanques e personagens animados americanos, enquanto os personagens do Oriente Médio até de sombra são desprovidos, dada a desumanização entre invasor e invadido. 

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Eu também não gozei (Ana Carolina Marinho, 2024)

O gozo das outras

Por João Campos

Falar de maternidade e gozo no cinema é um ato disruptivo. Encarar essa problemática com responsividade pode significar muitas coisas, mas todos os caminhos passam pela contradição. O longa-metragem de estreia de Ana Carolina Marinho elabora uma jornada que segue Letícia Bassit, performer e escritora de São Paulo, em seus caminhos depois de uma gravidez não planejada. 

Eu também não gozei (2024) é realizado numa pegada investigativa ao estilo “documentário observacional” que bombou nos festivais recentemente – para o bem e para o mal. No entanto, o filme evita fragilidades típicas desta tendência contemporânea, como a falta de uma ideia ou gesto de montagem capaz de criar caminhos de fruição para os registros. Aqui entra a força da montadora Cristina Amaral nesta obra.

A premissa do documentário é simples: a personagem descobre que está grávida e não sabe quem é o pai de Pedro, o neném. Esta situação dispara toda a movimentação: a mãe resolve buscar o pai biológico da criança. Para isso, realiza testes de DNA, processos que a documentarista segue de perto. São quatro possibilidades de paternidade. Quatro homens surgem no fora de campo através de seus diálogos com Letícia por telefone.

A fala tem um lugar central nesse documentário. O longa procura dar voz à sua interlocutora, ao mesmo tempo que a persegue em suas passagens entre prédios institucionais, espaços domésticos e o interior de carros em movimento. Apesar de ser um filme que busca seguir os movimentos de Bassit em São Paulo, a cidade não aparece. Isto revela um desinteresse do filme em dar forma à relação entre o corpo da protagonista e o ambiente que ela rasga com seu vai e vem. 

Impossível não falar dos dedos de Cristina Amaral nesta fita. A montagem bagunça tempos, sentimentos, temas – traço caligráfico do trabalho de Amaral, como vemos em Serras da Desordem (2006) e Mato Seco em Chamas (2022). O material fílmico e sua cronologia são redimensionados em espirais, o que cria um magnetismo em torno do encadeamento das cenas – seus intervalos e seu ritmo. 

Mas, ainda assim, algo causa frustração no espectador. Apesar de dar voz ao discurso de Bassit em torno de problemas que são cotidianamente escamoteados na sociedade brasileira, o filme não consegue criar uma imagem expressiva desta vivência. A protagonista fala com clareza e transparência, com controle da cena. A impressão é que, ao mesmo tempo que o filme acolhe a personagem, também a enclausura numa redoma.

Não falta coragem à Eu também não gozei, mas falta estranhamento. Dar a voz significa dar forma? Em seu esforço por criar uma instância acolhedora para fazer ecoar a voz da experiência, acerta a transparência e a clareza – a comunicabilidade “universal”. Fico pensando o que seria desta obra se as cenas em que Bassit quebra a moldura da Razão com performances e improvisos tivessem mais espaço. E se o filme se perdesse um pouco no caos e no delírio? Aqui, a voz não vira cena. 

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Aquele que viu o abismo, Gregório Gananian & Negro Leo, 2024

Laser groove pois eu também sou ciborgue e quero dançar

por João Paulo Campos

Volume é drama.

Tantão. Drama.

O que vemos com os olhos em Aquele que viu o abismo (Gregorio Gananian & Negro Leo, 2024) é um homem que caminha por linhas tortas aqui e alhures. Perambula e vira estátua, para iniciar, novamente, seus passos convulsionados. Entre movimentos e petrificações, duas presenças fortes: o laser e o groove. Acontece uma trama, sem dúvidas, mas me esqueci do que se tratava. Algo entre Alphaville (1965) e Blade Runner (1982), mas com Negro Leo e Ava Rocha e a voz de Clara Choveaux falando coisas entre São Paulo, Xangai e Pequim. Mas o que ficou forte no meu corpo foi a memória do… laser e o groove.

E o que escutamos? O filme vai tecendo ritmos e arranjos no que parece uma jam session dos passos de Negro Leo entre o Brasil e a China. Passarinhos cantam bufadas de trompete e carros buzinam solos de bateria. Rasgando a malha urbana intercontinental, acompanhamos os cortes curtos do protagonista – desmemoriado e neurótico ao estilo film noir -, que performa em escrita-automática através de enquadramentos acrobáticos – pura variação de vistas e escutas. 

A paranoia é esboçada em voice over através de meditações que, amalgamadas a todo resto, sugerem uma fuga contra tudo e contra todos – novamente reforçando a atmosfera do filme de gangster. Alquimistas, os realizadores remontam palavras, música, corpo e ambiente sem compromisso com a comunicabilidade clarividente das grifes artísticas atuais. O performer caminha no (des)compasso da música preta experimental, bagunçando nossos sentidos – na contramão do verniz de universalidade dos labs e incubadoras criativas. Se é Bebop em Xangai ou Free Jazz em Pequim, eu não sei. Mas parece que, depois de quase 10 anos de sua morte, Ornette Coleman performou na China. 

E a luz? O corpo de uma mulher surge no escuro, desenhado por lasers azuis ou vermelhos ou os dois. Ela cai morta e me lembra, de forma inequívoca, uma replicante de Blade Runner, aquela que morre em slow motion na multidão neon depois de levar uma sapatada de tiros de Harrison Ford – clima chuvoso. A imagem retorna em diferentes momentos do filme, tal qual um bug no sistema nervoso de computadores.

Quando o filme começa a ficar maçante e talvez difícil de seguir-sentindo, surge uma aparição: é a personagem de Ava Rocha. Presença que carrega uma energia mística sui generis, a figura aparece para recalibrar o ritmo das imagens e sons – desacelera para depois (re)acelerar a fita. Isso em planos fechados que vão cortando vistas do corpo da performer, ressaltando a vibe ritualística da cena – o rito necessário para encararmos a parcela final da obra.

Coisa louca: o Abismo de Gananian e Leo não é filme para se identificar, mas acabei sentindo empatia pelo protagonista e seu jeito de andar. Já mencionei que não me lembro da trama, mas me recordo da presença de Negro Leo em cena – quebrado, rasgado e operante. Pois eu também sou ciborgue e não sei dançar. Tenho dois pinos de metal no joelho direito, algo que ganhei por me empolgar demais num show de música experimental em Minas Gerais. 

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Maçãs no Escuro (Tiago A. Neves, 2024)

Por João Paulo Campos

Diadema, subterrâneos

Existem pessoas que confundem o futuro com o passado. Isso pode nos deixar tortos no caminhar. Mas tem um charme. Pois o segundo longa-metragem de Tiago A. Neves é torto e destemperado – e parece querer fazer o tempo explodir no caos coreografado em cena. Maçãs no escuro (2024) tem lá seus problemas – som estourado, tremores “meio doidos” de câmera, iluminação “ruim”. É um filme “desequilibrado”, para alguns colegas da crítica. Mas isso faz parte do show dos caras. Vida sem atrito é como pele sem cicatriz – se isso é bom ou ruim, bonito ou feio, cabe ao público escolher.

Numa pegada fantasiosa, o filme investiga a vida e obra de Edson Aquino, dramaturgo underground da cidade de Diadema, no ABC Paulista. Mas para isso, foge completamente do que assistimos em filmes de “retrato de artista” mais tradicionais. Num trato com seu interlocutor, Neves inventa uma história que serve de armação ou “dispositivo” a partir do qual todo o experimento do longa se desenrola: uma dupla de documentaristas estrangeiros, que nunca mostram seus rostos, chegam ao Brasil para fazer um documentário sobre a vida de um importante dramaturgo brasileiro. Toda a obra é um vai e vem caótico por uma Diadema noturna, sempre no encalço de Aquino, que no filme não é underground, e sim VIP. 

A montagem (des)organiza os encontros com Aquino num ritmo marcado por trancos e saltos, bem ao estilo épico já esboçado no longa anterior do diretor, exibido na Mostra Aurora do ano passado, Cervejas no escuro (2023). Tem um caos coreografado aqui, mas que segue a pulsão da rua. Ou melhor, das ruas que o dramaturgo varre com seus passos.

Apesar das semelhanças entre os dois filmes, percebo uma radicalização dos aspectos lúdicos que já haviam sido semeados neste trabalho anterior. Mire veja: em Maçãs no escuro, a doideira é mais pesada. O ambiente também é muito diferente: a cena urbana, asfaltada, morros e becos, sombras e cigarros. As presenças que habitam essa Diadema estranhamente escura também são outras. Uma trupe de teatro que encontra suas formas de existir em cena entre o riso e o luto, o escárnio e a meditação existencial. Dos vultos dessa Diadema entre o pesadelo e o bacanal, a aparição de Edson Aquino dando uma “bongada” em sua maçã na escuridão de seu bunker é a que mais impregnou a minha memória.

Os filmes de Tiago A. Neves parecem surgir de uma obsessão do realizador com cidades e seus habitantes, mas não a partir de uma sociologia escolar, mas da perspectiva do desejo, sonho, delírio. Paraibano que foi viver em Diadema, fez do vai e vem marca estilística. Cada pessoa merece um filme na escuridão. Uma Comédia Humana entre a Paraíba e São Paulo parece estar surgindo nesses filmes baratos e escuros da trupe interestadual de Neves. Tentativas de fazer o riso driblar a morte.

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Lista de desejos para Superagüi (Pedro Giongo, 2024)

Movimento dos barcos

por João Paulo Campos

É impossível levar

Um barco sem temporais

E suportar a vida

Como um momento além do cais.

Jards Macalé. Movimento dos barcos.

Confesso que na noite da sessão de Lista de desejos para Superagüi (Pedro Giongo, 2024) durante a Mostra de Cinema de Tiradentes eu não dormi – fiquei a perambular pelas ruas e, naturalmente, terminei a noite no Vortex. Mas quando finalmente adormeci, sonhei com o movimento dos barcos. No meu sonho, uma senhora me sussurrava palavras que escutei na sessão deste filme. Era Dilma, uma das personagens do longa que, em dois momentos da história, toma a função de narradora. “Antes era melhor…”. Esta aparição sussurrante surge das sombras das praias azuis de Superagüi para enfeitiçar o espectador: “Não me acorda, Superagüi… Ainda tô dormindo”, diz ela baixinho para quem quiser escutar. É personagem ou veio para hipnotizar-nos? Os dois, sem dúvidas. 

O filme dirigido por Pedro Giongo parte do registro da vida na ilha de Superagüi, no Paraná. Mas vai muito além de um documentário informativo, uma vez que consegue construir um universo que amalgama as promessas não cumpridas da Constituição de 1988, tensões do mundo atual como, por exemplo, a destruição do meio ambiente em escala global e, o que só a arte consegue conjurar, um mundo delirante de sonho – os sonhos dos habitantes da ilha azul-vermelho-fogo de Superagüi (sempre que escrevo ou digo ou penso nessa palavra, meu corpo arrepia). 

Isso pois, como lemos na primeira cartela da obra, intitulada Lista de decretos, a vida por ali é fortemente impactada por leis federais, uma vez que a região é, desde a redemocratização do Brasil no fim dos anos 1980, uma Reserva da Biosfera e Patrimônio da Humanidade respaldada pela Unesco. 

Das regras do jogo, ressalto duas: 1. É proibido plantar no solo da ilha; 2. Durante a época de reprodução dos peixes, é proibida a pesca. Isso impacta fortemente a vida na ilha, cuja principal ocupação é a pescaria. A última regra que mencionei também tem um efeito sobre a ossatura formal do filme, que se divide em duas partes. Primeira parte: Abertura da Pesca. Segunda parte: Inverno. Com pesca e sem a pesca. Entre um e outro: o movimento dos barcos e pessoas e seus desejos. 

O filme consegue inventar a partir das idiossincrasias dos habitantes, mostrando muito mais que um registro do cotidiano da região. E o faz desde um compromisso com a beleza que parece nascer das tripas da ilha. O belo toma forma a partir da atenção para elementos da vida que escapam às observações apressadas de pesquisadores e jornalistas, agentes governamentais e turistas. É o jeito de falar e andar, o estilo de sonhar e fazer farra das pessoas de Superagüi que se metamorfoseiam em cena de cinema nesta alquimia sensual de imagens e sons.  São as canções, acordes, batuques, cores, roupas, saberes e histórias que roubam nossa atenção e se infiltram em nossas memórias – verdades e mentiras que tem um estilo de ser e se refazer em filme. 

Os enquadramentos muitas vezes pegam as cores pulsantes entre frio e quente das casas, barcos, roupas, instrumentos, pescados e fogueiras, mostrando belezas insuspeitadas em planos longos, serenos. Não preciso mencionar que é um filme atmosférico, sensorial. Isso sem dúvida nos ajuda a navegar por Superagüi – uma navegação imaginária que lembro ao dormir e relembro acordado. Estarei dormindo ainda?

A montagem do filme merece atenção, naturalmente. Pedro Giongo é, além de diretor, um sábio montador, tendo realizado, neste ofício, trabalhos como Casa Izabel (Gil Baroni, 2022), para ficar com um dos mais recentes. Giongo e Bruno Carboni (que divide a edição com o diretor) tecem ambientes entre a calmaria e a festa, o lamento da tempestade e sonhos de futuro por vida digna e felicidade coletiva. E isso tem um ritmo e também constrói um cromatismo singular. O ritmo acompanha o movimento dos barcos: cinética ondulante que faz subir e descer num flow sereno, mas não sem turbulências. As cores entram numa mistura entre o frio e quente: o azulado das praias entra em confluência com um vermelho incendiário das fogueiras, lanternas, cigarros, crepúsculos. O vermelho da aurora. Um esfria-esquenta gostoso de sentir.  

A interrupção e o desvio encontram lugar na Lista de Desejos. De repente, a sombra vira luz. Um gesto de montagem interrompe a imagem em movimento e faz aparecer uma série de fotos em 35mm de quadros esculpidos de animais. As artesanias logo dão lugar para uma farra muito louca: uma música efusiva embala retratos de gente jogando cadeira pra cima, abraços e beijos, bebidas e saltos. A felicidade toma o filme de assalto para voltar ao claro-escuro do presente. Depois, um álbum de família, uma saudade bate forte. Sinto que os personagens da ilha são nostálgicos, de certa maneira: “antes era melhor…”.

Encontramos outros desvios nas cenas em que Martelo e seus companheiros e amigas da ilha buscam, num prédio na Justiça Federal alhures, provar a atividade profissional de longa data do velho pescador diante de um juiz, para que este consiga o benefício da aposentadoria. “Carente ajuda carente”, diz Passarinho para o juiz. Martelo já é velho de guerra, precisa descansar. “Superagüi não me acorda”. Mas talvez o atalho mais bizarro e belo do filme seja o momento em que Martelo conta a história do ouro enterrado muito tempo atrás em terras vizinhas. De repente o filme toma a forma do delírio do pescador. Ele e o comparsa traçam na areia o mapa do tesouro. Os amigos corsários partem na noite azul em busca do malote. “Dividir meio a meio”, repete Martelo para o outro pirata. Mas a cobiça toma conta: num mangue, o homem encontra o ouro cavando um barro-preto-escuro. O jovem dá o calote no velho e desaparece correndo por planos alucinantes na mata. 

Antes de mais nada, Lista de desejos para Superagüi constrói um clima desejado, uma vibe indescritível. Obra que nasce, sintomaticamente, no tempo das catástrofes climáticas. Vem para oxigenar nossa imaginação e, quem sabe, contribuir para a desaceleração do mundo.  Mas, como sabemos, isso já é papel de outros profissionais e o cinema, por si só, jamais salvará o mundo. Uma história criada a partir dos desejos de muita gente – pessoas que sonham e nos apresentam suas listas de desejos em imagem e som, cores, palavras e muita música.

Voltarei a dormir logo mais para, quem sabe, sonhar novamente com a ilha azul-vermelho-fogo. Desejo reencontrar Martelo, Cajá, Dilma e as outras pessoas e ambientes que vem voltando em minhas memórias num claro-escuro que tomou conta de meu corpo desde a sessão deste filme. Dessa vez, vamos encontrar o ouro debaixo da terra para dividir em partes iguais.

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SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO (May December, Todd Haynes, 2023)

por João Lucas Pedrosa

Um dos planos que melhor encapsula o jogo central de May December, novo filme de Todd Haynes, provavelmente é o que mais inspirou os cartazes do longa: um médio conjunto das duas protagonistas femininas olhando para a frente, com a câmera – e, nisso, também o espectador – representando um espelho. Nele, a atriz Elizabeth Berry (Natalie Portman) observa a boleira Gracie Atherton (Julianne Moore), personalidade real que interpretará em três semanas num filme, maquiar-se. Ela reencenará o polêmico início do romance entre Gracie e seu marido Joe Woo (tocantemente frágil na interpretação de Charles Melton), quando ele tinha apenas 13 anos e, ela, 36; um caso manchete de todos os tablóides nacionais à época. O filme de Todd Haynes se passa durante o “processo criativo” de Elizabeth para o papel, em que ela convive com o casal e seus filhos gêmeos em período de graduação enquanto entrevista as pessoas envolvidas e visita os lugares-chave do caso. A tensão é latente desde a primeira vez que Gracie e Elizabeth se encontram porque ambas representam, ao mesmo tempo, o combate a uma narrativa e o seu eterno estatuto de comoção popular. Por mais ambígua que a atriz deixe sua opinião sobre o caso, ela agita o pó da polêmica em âmbito local (a cidadezinha que vira seus olhos à figura da televisão corporificada) e lembra que o mundo logo voltará seus olhos ao caso.

De um jeito ou de outro, as duas protagonistas são mulheres que são imagem pública. Gracie, à sua maneira, é uma sorte de ícone geracional, uma imagem vertiginosamente reproduzida e já fixada no imaginário coletivo como um misto entre o arquétipo lilithiano da corrupção da pureza, e a santa punida pelo seu “amor ingênuo” (a pose quase virginal segurando o bebê de Joe, parido na cadeia, é uma das que Elizabeth tenta imitar de frente ao espelho). E muito interessa que a personagem de Portman seja constantemente mostrada posando em frente a um espelho que é a câmera. Esteja ela conversando ao telefone, esteja ela testando imitações: não vemos o reflexo, a imagem produzida. Vemos a pose deslocada de um crivo de ficção, de um contexto de encenação – vemos a pose em meio ao que entendemos, no filme, como o “mundo vivido”, o extracampo dos tabloides. Elizabeth suga em tempo real sua fonte original e, por isso, sua presença é intrinsecamente vil, vampiresca. Ela habita os espaços à volta do casal como a câmera de um reality show, próxima o bastante para um ângulo privilegiado, mas distante o bastante para abster-se da responsabilidade de sua presença. Seu ofício é o subterfúgio de seu fetiche.

A lacuna é gritante entre a atriz e o casal não só pela sua presença de invasora, mas pelo que ela busca e o que se apresenta em sua frente. Ela revira águas passadas e ressecadas, em busca do contexto para o fogo entre mulher e menor, mas o momento atual é o fim de um ciclo. A iminente partida dos filhos vira em Joe uma melancolia profunda; ele sente o luto do seu objetivo direto de viver até então – as crianças -, e parece perceber que os gêmeos entram agora no início de uma fase que ele renunciou permanentemente por um amor que ele jamais pôde questionar pela integridade pública do seu par. Joe parece tão alienado ao ponto de sequer saber expressar seus sentimentos em palavras; ele gagueja e soluça impotente. Em sua pureza de criança grande, Joe é uma ferramenta tanto para a esposa quanto para a atriz. Para Gracie, ele é um ponto a se provar; para Elizabeth, um objeto de desejo.

É inevitável falar de fetiche ao adentrar um pouco mais em Elizabeth, pois é sua forma de se relacionar com o mundo. A ligação safada com o diretor casado, o flerte muito frontal com Joe em toda oportunidade, a resposta que vira monólogo sexual a um público adolescente em espaço escolar, o sexo simulado sozinha na despensa da loja de animais onde o Gracie e Joe fizeram sexo pela primeira vez. Sua relação com o mundo é fortemente – senão inteiramente – filtrada pelo potencial sexualizante das coisas. Sua relação com o caso que encenará, naturalmente, também é contaminada pelo fetiche, de forma que Elizabeth parece uma potencial reprodutora do comportamento de Gracie (como nos sugere o plano final do filme). Aqui voltamos ao plano comentado no início: ambas estão de frente ao falso espelho. Gracie começa em foco, se maquiando, enquanto Elizabeth apenas observa ao fundo, ligeiramente turva; as duas se olham pelo reflexo implícito do espelho. Então Gracie a convoca ao mesmo plano focal, “é melhor se eu fizer isso em você”. Ambas passam a se olhar de frente e , pela primeira vez, Gracie é quem faz as perguntas sobre o passado de Elizabeth. As duas começam uma troca estranhamente confortável. Os subterfúgios de Elizabeth não conseguem evitar: ambas estão equiparadas.

May December é um filme que poderia facilmente alimentar-se da profusão de reflexos, duplos, e demais jogos de espelhamentos envolvendo as duas personagens principais em suas composições cênicas. Mas a obra parece preferir que elas se manifestem quase unicamente pela sua presença, pelas implicações da trama. Ao contrário, o mundo é que parece um reflexo (a imagem de Joe soltando a borboleta sobre a janela da casa; uma libertação unicamente simbólica, sublimada no insetinho. Só lhe cabe assisti-la.) dos seus mecanismos de manipular a própria imagem. A pergunta que se levanta quando Haynes rejeita o jogo dessas opacidades é “o que sobra dessas mulheres sem as imagens que lhes sucedem e precedem?”.

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