Anotações sobre Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, de Érica Sarmet

Por Geo Abreu

 Mais uma edição da Mostra de Cinema de Tiradentes vai terminando. Apesar de nunca ter participado presencialmente, pude acompanhar a mostra nos últimos anos por consequência das medidas sanitárias de combate à Covid-19 e do pouco que pude observar até aqui, a força dessa 25ª edição deve muito ao cinema queer.

Se o cinema negro – aqui, entendido em amplo espectro – esteve à frente das experimentações mais interessantes produzidas pelo cinema brasileiro recente, agora é o cinema queer, despontando em bando e apresentando temas e formas de abordar a realidade que nos entregam muito, e não só em discurso.

Em Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, curta dirigido por Érica Sarmet, que vem fazendo carreira por festivais, inclusive os internacionais, fala sobre o encontro entre duas gerações de mulheres, lésbicas e não-binárias. A liberdade do grupo de garotes impressiona a mulher mais velha, que faz um paralelo entre a atualidade e a cena lésbica de uma Niterói de trinta anos antes, quando Vange Leonel ficou conhecida pela música que é tema do filme e que também já foi tema de novela. Nessa dinâmica de por em relação a experiência de mundo de cada grupo, o filme trabalha com a ideia de invisibilidade a qual as vidas lésbicas foram mantidas por tanto tempo, esse tempo da paciência selvagem de que fala o título.

Interessante que, ainda que essa necessidade de ser invisível seja pontuada, a abertura do filme postula o justo oposto: usando imagens de arquivo em que mulheres se apresentam nas mais diversas situações, entre festas, atos públicos e composições de mesas (de bar e políticas),elas apareçam vivas, felizes e ativas, no que o filme desenvolve seu melhor argumento: a necessidade de catalogar referências e discursos para as próximas gerações.

 Há um chamado explícito a isso que o curta desenvolve em toda sua duração: do monólogo inicial de Zélia Duncan até o jogral que finaliza com Lorre Mota chamando a próxima conversa, o que se apresenta é essa indiscernibilidade entre gozo e luta, entre festa e protesto, entre cinema e vida que lembra Dyketactics e Women I Love, curtas de Barbara Hammer, cineasta que conheci através de Érica e de uma mostra sobre a cineasta norte-americana acontecida no Rio de Janeiro em 2017 e para a qual fui atraída pelo chamado a um cinema lésbico experimental feito num tempo anterior ao meu. Aliás, essa ideia de uma geração anterior ou posterior é bem trabalhada no curta de Sarmet: se estamos vivas – ainda que menos novas do que já fomos um dia -, esse não deixa de ser o nosso tempo, o tempo de estarmos vivas e desejantes.

Fonte de referências de modos de agir, reagir e filmar, Uma Paciência Selvagem nesse sentido faz par com Vênus de Nyke, curta de André Antônio lançado em 2021 que, traçando o perfil psicológico de um rapaz em relação com sua terapeuta, fala sobre a descoberta da sexualidade, infância queer e fetiches, inventariando referências – filmes, sites, músicas, livros – e estabelecendo um corpus de pesquisa sobre o universo gay masculino. Assim como Paciência, Vênus fala às crianças queer, aquelas que Paul Preciado diz ter seus cuidados e escolhas negados pela sociedade patriarcal[1], indicando caminhos de pesquisa e criação de comunidade para atravessar o caminho até o vale.

A paixão que o curta apresenta entre as tantas possibilidades de encarar a vida a partir de uma vivência dyke/quer/não binária contagia e reverbera, e faz coro com O Nascimento de Helena, Tito, uma videópera pop do cerrado mineiro em chamas, Sad Faggots + Angry Dykes Club e Seguindo Todos os Protocolos, todos filmes que compõe a Mostra de Tiradentes nessa 25ª Edição.


[1] “Quem defende as crianças queer?” – texto de 2013 escrito por Preciado na reação a uma marcha do tipo orgulho hétero ocorrida na França no mesmo ano.

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