Desta para uma melhor: Cow (Andrea Arnold, 2021)

Aqui o objeto é simplesmente isolado, qualificado, extraído do ambiente, projetado em um novo mundo; o pedaço de real não tomado para ser confrontado com as partes manuais da obra, ele é tomado “para ser tomado” e não adquire essa virtude, essa eficácia singular senão pelo fato de ser destacado do resto. [1]

Michel Leiris

Por Pedro Tavares

Resumido como um retrato íntimo de duas vacas, o documentário de Andrea Arnold produzido pela BBC traz dois caminhos conflituosos acerca do objeto e o espectro que o circunda. O isolamento claro e simples em um curral e como Arnold o descontextualiza. Este destaque/isolamento segue a norma de Leiris, de um destaque para a convenção e com ela os fantasmas do senso de falseamento tomam a tela.

Primeiro em uma escada voyeurística numa espécie de câmera-olho (um pouco longe da versão vertoviana e próxima da literalidade) por muitas vezes grudadas ou muito próximas aos animais. E em segundo, conforme o registro de uma rotina óbvia de tratamentos e funções primeiras relacionadas à produção de leite, o filme de Arnold distorce os objetivos dos animais filmados. Como Michel Leiris diz acerca do objeto escolhido, “do fato de ser destacado do resto” traz “eficácia singular do objeto fabricado”. O corpo-tema segue tanto pela ideia de uma eficácia singular (a do destaque) quanto a de um objeto fabricado. A manobra de Arnold que não se dá pela proximidade da câmera e sim pela montagem, é como nos aproximamos destes animais durante o registro rotineiro.

E neste caminhar de repetições de tarefas que o falseado é corroborado como um filme de observação, de distanciamento, de destacamento. Rupturas simplórias sobre o valor dos gestos de seus cuidadores, das ações mais simplórias quanto as mais tenácias sobre a “função” do objeto, ao menos em tela. Quando Serge Margel comenta as palavras de Leiris sobre o isolamento do objeto, ele diz: “Isso já é a descontextualização ou deslocamento do objeto, que perde seu valor de uso, que se separa de seu produtor, de seu lugar de origem, de sua função primeira, para não ser por ele mesmo”.[2]

No caso do filme de Andrea Arnold, conforme se isola estas duas vacas do restante pelas bordas da imagem ou no registro atividades que necessitam apenas de seu cuidador e o animal – como o cuidado com as patas ou até mesmo um parto – mais deslocados eles estão no sentido de seu valor e mais inseridas no contexto afetuoso, seja pelo esgarçamento da narrativa com ações repetidas que o filme ganha ares de uma proto-narrativa, de uma personagem estabelecida a criar uma representação clara para quem a assiste.

Porém, há um escape em Cow: se o filme se desenhara por toda sua duração como uma questão sobre o objeto, seu deslocamento, seu valor e transformara tudo em fantasmagoria, deste mesmo falseado cria-se a subversão. Destrói-se o afeto rapidamente numa ação fria e que traz o fantasma do sentido benjaminiano[3] mais para perto. A vaca, que recebe o nome de Luma, deixa de ser Luma, mãe de um bezerro, produtora de leite e transforma-se no que Arnold filmara por todo o filme. Um objeto assombrado, que se destaca do resto para a produção capitalista e também para a moldura da imagem. Luma é uma tag de identificação presa ao corpo e, antes de tudo, um fantasma.


[1] Artes e ofícios de Marcel Duchamp, 1992.p. 131-132.

[2] Arqueologias do fantasma (técnica, cinema, etnografia, arquivo), 2013.

[3] O conceito de fantasmagoria surge no século XIX, como resultado das mudanças fundamentais nos modos de produção e no modelo econômico.

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