Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Cozinhar F*der Matar

Por Camila Vieira

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Para explicitar a espiral de violência perpetuada por masculinidades tóxicas dentro das relações familiares no longa-metragem Cozinhar F*der Matar (Cook F**k Kill, 2019), a diretora eslovaca Mira Fornay conduz a narrativa por sucessivos jogos de inversões de poder. A trama começa com o desespero de Jaroslav, um motorista de ambulância, que está sofrendo uma crise de relacionamento com Blanka. De início, ele parece ser o bom pai de família, que está realmente preocupado com seus três filhos pequenos, que foram deixados na casa da avó. Jaroslav alega que sua esposa o está chantageando para conseguir o apartamento da mãe, a intimidadora Dorojka, que reclama ao filho: “Não sabe cuidar de sua própria esposa, sem ela intimidá-lo?”.

Dorojka está morando com Gustav, pai de Blanka, em um mísero apartamento estreito no subúrbio, em que mulheres do bairro cercam Jaroslav e ele quase é atingido por uma jukebox que é jogada da janela de um vizinho – essa cena inclusive será repetida algumas vezes, com pequenas variações dos instantes prévios à queda do objeto. Quando Blanka é vista pela primeira vez em cena, o filme desvela quem realmente é a vítima de toda a tragédia. Gustav diz a Jaroslav que não deseja ver o genro tratar Blanka da mesma forma que ele trata Dorojka. Então, começa o relato de uma cena de violência doméstica que aconteceu no passado em que Gustav espancou a mãe de Blanka. Só que, no presente, o relato de Blanka é concretizado cenicamente como uma reconstituição em que Jaroslav é espancado por Gustav.

Gustav e Jaroslav são os agressores de Dorojka e Blanka. “Amei sua mãe, mas tinha medo dela”, diz Gustav. “Eu a amo exatamente como você amava a mãe dela”, diz Jaroslav. As duas frases declamadas pelos principais personagens masculinos de Cozinhar F*der Matar são a expressão máxima da manutenção do relacionamento abusivo, que intimida, chantageia, violenta e mata mulheres. Ao virar a chave do filme, a diretora Mira Fornay parece lançar o desejo de denúncia da estrutura de poder do patriarcado, cujas violências são perpetuadas de geração para geração (e aí faz sentido entender como o filme se modela a partir das repetições).

No entanto, é justamente por recorrer ao jogo de sucessivas cenas de agressão que o filme inclusive coloca as mulheres à mercê de encarnar no próprio corpo a monstruosidade da violência. E quando Fornay opta por fazer isso, Cozinhar F*der Matar parece estrangular a si mesmo com a própria estratégia almejada.

 Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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