O lamento nosso de cada dia: Tonsler Park

Por Pedro Tavares

Se eu tivesse escutado a minha mãe, estaria em casa agora.

David Perlov

HOLY MOTORS

Uma postura corriqueira na carreira de Kevin Jerome Everson: assumir a ambição de construir, pela observação, o diagnóstico geral de uma nação. Em oito de novembro de 2016, Everson registrou em closes o curso das eleições presidenciais em Charlottesville, Virginia. De certo que o olhar de Tonsler Park é dos seus mais frontais e diretos acerca do separatismo americano, até então mais silencioso que os dias atuais e utiliza do trabalho para este comentário incisivo.

Em entrevista ao Jornal do Brasil em março de 1993, o crítico Ismail Xavier comentou sobre como diagnósticos gerais abrem campo para o privilégio das alegorias e como este reducionismo é arriscado: “(…) permite condensar muitos aspectos da experiência em poucas figuras e situações”. O questionamento de Everson resvala nas bordas da afirmação de Xavier. O que se vê é, pela estrutura, na repetição de gestos do trabalho manual, como a esperança se esvai conforme a experiência torna-se mais intensa – quanto mais tarde fica e quão perto está o terror. Nos corpos negros que mantém a ordem para que a votação corra nos conformes, fica nestas poucas figuras, justamente, o desconforto da postura daqueles que votam e que levará a América a um novo rumo social e econômico.

HOLY MOTORS

Este pensamento de 80 minutos está sob molduras, o limitando a um período, como um recorte para o estudo do todo. Por outro lado, é um filme de transparências óbvias que sinaliza na reiteração da ordem o passado dos Estados Unidos. Cabe o pensamento de Hal Foster ao comentar o “erro” de O Estádio do Espelho de Lacan:

No entanto, esse sujeito blindado e agressivo não é simplesmente qualquer ser da história e da cultura: é o sujeito moderno na condição de paranoico e até fascista. Pairando nessa teoria está uma história contemporânea que tem no fascismo seu sintoma extremo: uma história de guerra mundial e mutilação militar, de disciplina industrial e fragmentação mecanicista, de assassinato mercenário e terror político. Perante esses acontecimentos o sujeito moderno se blinda contra a alteridade interior (…) e alteridade exterior (para o fascista isso pode significar judeus, os comunistas, os gays, as mulheres); todas essas figuras do corpo despedaçado, do corpo entregue ao fragmentário e ao fluido ressurgem. Esta reação fascista está de volta? Chegou a desaparecer?

Seguindo o protocolo da edição, chama atenção no pensamento de Foster, fora o óbvio manifesto, o do funcionamento industrial. De volta ao filme de Everson, o trabalho aqui está além dos gestos mecânicos: o olhar daquele que espera na fila é imperativo e para aquele que o acompanha desde o início do dia ganha um valor completamente distinto. É na simples troca de palavras que a força histórica se constrói, a pensar no resultado da eleição. Se para a equipe filmada seus gestos são puramente funcionais e protocolares a serviço da nação, é evidente que para Everson o caminho é oposto. Como pode a ordem manter-se no ápice dos gestos políticos?

HOLY MOTORS

George Orwell, em artigo escrito em 1940, vê Jonas, o personagem bíblico que é engolido por uma baleia como um homem moderno, inquieto, impolítico e que busca abrigo da realidade na barriga da baleia. Embora o voto nos Estados Unidos não seja obrigatório, o mecanismo que reside no ato registrado por Everson é latente:  carrega em si questões morais direcionadas ao sujeito em si e não ao país como unidade, ou seja, uma fuga da realidade. O “fazer sua parte” não está no campo da serventia à pátria e sim ao patrão, enquanto aqueles que controlam o espaço para que a moral seja exercida estão jogados ao contexto histórico a cada voto.

Tonsler Park, portanto, é a observação do não-ordinário costurado pela rotina: a eleição não acontece diariamente, mas a desigualdade de todos os dias segue estampada no quadro. Esta duplicidade carregada de lamento coloca o filme como o ápice de um movimento do dia-a-dia, tão inconsciente quanto acordar, levantar e trabalhar. E para isso Everson tem uma resposta mais certeira: “Este é o meu trabalho. Trabalho de 40 a 50 horas semanais fazendo filmes”.

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