Por Marcus Martins
Tangerina é a última incursão de Sean Baker nas histórias de amizades em meio a universos e situações pouco usuais. Depois do emigrante chinês trabalhando em delivery de Take Out, o vendedor de muamba na Broadway que tem sua vida desestabilizada por uma chegada inesperada em Prince of Broadway e do encontro inusitado entre uma atriz de filmes pornográficos e uma idosa solitária em Uma Estranha Amizade chegamos às perambulações de transexuais negras que se prostituem nas ruas de Tinseltown. O filme acompanha uma delas que acabou de sair de um período na prisão no dia de Natal e sua amiga que lhe ajuda na procura de seu cafetão/namorado e de uma possível rival que teria tomado seu lugar.
Os filmes de Baker são o epíteto do filme indie descompromissado, filmados em digital com poucos recursos e condições técnicas, roteiros construídos muitas vezes em colaboração com os atores e abordagem semi-documental. Tangerina ganha ainda o chamativo de ter sido filmado com câmeras de telefones móveis. Apesar disso o filme tem especial apuro técnico e foram utilizados todo tipo de suporte para estabilizar a imagem.
O título do filme deve-se provavelmente à cor alaranjada que ganha destaque em especial nas cenas externas durante o fim de tarde. O uso de celulares se justifica pelo ponto de vista documental do filme, que se pretende como registro das situações que muitas vezes parecem transcender a encenação e pleitear o status de flagrante. Dentro de toda a limitação e exaustão da tola fronteira entre o ficcional e o documental, Baker consegue transmitir dignidade e respeito a seus personagens.
Mesmo que seja bem sucedido o uso dos celulares e que o artifício encontre alguma justificativa no que se representa, o interesse e trunfo de Tangerina é saber usar o documental como forma de dar espaço aos personagens.
As transexuais possuem uma das mais assimiladas formas de auto-ficção do mundo contemporâneo dentro de sua própria identidade, pois não apenas constroem sua identidade de gênero como no jogo das ruas encarnam suas personagens como se nada mais houvesse. Isso termina por não apenas gerar cenas cômicas e em aparentes improvisos de grande vigor como na cena culminante do filme quando do bate-boca dentro da loja de donuts, mas especialmente na cena da lavanderia. As questões de amizade nos três filmes anteriores de Baker giravam em demonstrações de amizade onde não eram esperadas e dos efeitos muitas vezes libertadores disso. Aqui ele parece seguir nesse mesmo sentido quando uma guinada inesperada traz novas possibilidades para as histórias de amizade e a mudança de tom do epílogo do filme faz imaginar que podemos esperar bastante dos próximos filmes dele.
Se Tangerina não alcança a mesma força narrativa de Uma Estranha Amizade, as atuações de Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor como verdadeiras co-autoras do filme eleva o filme ao emprestar vida a suas personagens com uma riqueza que nenhum roteiro poderia. Não é apenas o fato de dar voz a personagens transexuais, mas a não lhe negar dignidade e um rosto. O que pode parecer pouco em termos de ficção, mas que seria impossível alcançar esse nível de naturalidade documental com atores profissionais encenando transexuais.