Por Vlademir Lazo
Um Lobisomem na Amazônia talvez fosse mais bem considerado hoje em dia caso tivesse sido realizado trinta, quarenta anos atrás. Um hipotético lançamento nos anos 70 ou 80 poderia fazer com que despertasse um interesse maior nas platéias menos preconceituosas da época, contando hoje então com o mesmo status de clássico que ao longo do tempo os filmes mais antigos de Ivan Cardoso mereceram angariar. Que não haja lugar a Um Lobisomem na Amazônia na atual conjuntura do cinema brasileiro (antes tão variado e vasto em suas tendências, hoje circunscrito em poucas divisas, sejam estas comerciais ou autorais), diz mais sobre este cinema agora produzido no país do que supostamente ser esta uma obra datada. Ledo engano: embora não seja uma obra-prima como O Gerente, de Paulo Cesar Saraceni, e Cleópatra, de Julio Bressane, o de Ivan Cardoso é destes filmes vitais que, com acertos e falhas, é um cinema para gerações futuras (ao invés de preocupado com a bilheteria da semana, as resenhas dos grandes jornais, e com Oscar ou festivais), como costumam ser os bons e grandes filmes para os cinéfilos de qualquer época.
Isso porque para um realizador do cinema brasileiro como Ivan Cardoso, a expressão mais importante será sempre “cinema”, e só depois “brasileiro”. Mesmo que não seja genial como O Segredo da Múmia (ainda sua obra-prima), Um Lobisomem na Amazônia, como os demais trabalhos do diretor, é movido sobretudo por uma enorme vontade de cinema. Tomando como ponto de partida o romance A Amazônia Misteriosa (do médico e escritor Gastão Cruls), ficção baseada em A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells e publicada em 1925, o roteiro do lendário Rubens Francisco Luchetti (colaborador habitual de José Mojica Marins e do próprio Ivan Cardoso) atualiza a história com um grupo de jovens (Danielle Winits, Karina Bacchi, Pedro Neschling, Bruno de Luca, Djin Sganzerla) num formato slasher movies anos 80 que se embrenha pela Floresta Amazônica (recriada em cenários artificiais bastante convincentes), tendo a ajuda de um misterioso guia turístico (Evandro Mesquita). Paralelamente, um cientista maluco (Paul Naschy, de clássicos europeus de terror dos anos 60 e 70) faz experiências genéticas com cobaias humanas, auxiliado por seu servo animalesco (Guará Rodrigues) e por uma raça de Amazonas, num local atacado por um lobisomem, o que atrai a investigação de um delegado (Tony Tornado) e um biólogo (Nuno Leal Maia), que formam uma dupla bastante desajeitada.
Florestas costumam ser por excelência um espaço privilegiado para filmes de horror. Um Lobisomem na Amazônia funciona porque os cenários são preenchidos com imaginação e dados concretos, e pela inteligente disposição dos elementos e atores no quadro. Não se trata de um lugar nenhum em que os atores surgem, conversam e as mortes acontecem, como num buraco qualquer no qual muitos filmes de terror naufragam. Ivan Cardoso é um cineasta autoral, mas também um artesão, e esta é uma de suas principais qualidades ao fazer com que todo o talento de seu artesanato tome a tela. Como em Encarnação do Demônio, de José Mojica Marins (também desprezado nas bilheterias, mas com maior visibilidade e culto por causa de um nome forte como Zé do Caixão), há aqui uma quantidade considerável de sangue, cabeças cortadas, torturas, violências em geral, porem é tudo artesanal demais. Não confundir com amador, pois o filme contou com uma produção caprichada e altamente profissional; o estilo de Cardoso que é artesanal, e ai que existe um charme nos efeitos visuais que passem longe da computação gráfica, que não sejam tão perfeitos. A beleza do cinema é saber que a sua magia provém de um truque, da materialização de uma fantasia, o que completa a experiência do filme, ao invés de dominá-lo e esmagá-lo. Uma condição que faz com que outros valores se imponham, em oposição a uma tendência reinante no cinema de horror atual que parece vedar todas as lacunas, nos entregando algo tão hiper-realista onde não há lugar para o encanto e a fantasia. E que valores são estes os de Um Lobisomem na Amazônia?
A primeira meia hora pode sugerir que Ivan Cardoso não conseguiria adequar seu estilo, sua visão ao modelo de produção atual, com suas qualidades de outrora se tornando ainda mais toscas e infames. Mas o filme vai se impondo muito bem. O elenco jovem composto de algumas figuras globais oferece interpretações fracas de acordo com o estereótipo de vitimas prestes a serem trucidadas pelo assassino (no caso, o lobisomem). Por outro lado, ao contrário de novelas ou outros filmes em que está caricato e afetado, Evandro Mesquita surpreendentemente se mostra no tom certo como o herói, com quem os outros personagem mantém uma relação ambígua por não saberem se nele podem confiar. Se Evandro Mesquita (esse ator que comprova que pode ser legal quando bem controlado em cena) não estivesse tão bem, o filme seria arruinado junto com a performance dele.
Um Lobisomem na Amazônia se sustenta muito na tensão entre o clima dos slashers movies aos quais inevitavelmente remete em nossa memória cinéfila, e sua relação com um cinema artesanal (mencionado acima) mais clássico de horror, como os da Universal dos anos 30 ou os de Roger Corman, William Castle e da Hammer nas décadas seguintes. Além de uma presença significativa de elementos do folclore brasileiro, como o das guerreiras amazonas, o lobisomem, etc. E o humor. Muitos podem estranhar este humor no qual existe uma diferença quase ontológica em relação a muitas comédias brasileiras recentes que parecem ter certa nulidade como fim. Um Lobisomem na Amazônia é uma comédia de terror na qual há o cuidado de desenvolver uma linha de raciocínio de acordo com as convenções clássicas dos gêneros aqui trabalhados. Esse humor do filme de Ivan Cardoso não é o mesmo que se encontra nos besteiróis ou os que remetem aos sitcoms, e sim ao que obedece a uma tradição cômica digna das antigas chanchadas brasileiras, no tom, nas situações, nos trejeitos de alguns dos atores veteranos (especialmente Nuno Leal Maia), todos ótimos em cena. A ressonância da chanchada na obra de cineastas como Ivan Cardoso, Rogério Sganzerla e Julio Bressane (todos saídos do dito cinema marginal − Ivan começou como assistente destes dois últimos) merecia ser mais amplamente reconhecida.
Há alguns momentos irregulares, certo desvario que nem sempre lhe faz muito bem, ou piadas dispensáveis como a muito gasta referência à cena do chuveiro de Psicose na abertura. Mas o que Um Lobisomem na Amazônia, dentre outras coisas, possui de melhor, é o sabor de uma velha e boa aventura conhecida. Como a dos seriados antigos que tanto alimentaram a juventude de Ivan Cardoso ou de muitos de nós, as fitas de horror, os filmes B, as matinês. Perto do final, a personagem de Danielle Winits (que não compromete) é sequestrada para substituir a Rainha das Amazonas, sendo lhe repassado um cetro de prata que serve para restituir o equilíbrio da floresta. É quando percebemos estar diante do filme brasileiro mais próximo já feito, guardada às devidas proporções, de Os Aventureiros do Bairro Proibido, com o herói interpretado por Evandro Mesquita como um equivalente ao de Kurt Russell naquele filme, o sujeito solitário saído não se sabe de onde sem nada a ver com a história, tentando resgatar a mocinha de uma intriga milenar e fantasiosa. Filme bacana.