Por Daniel Dalpizzolo
O diálogo sobre preservação da memória do audiovisual brasileiro foi o carro-chefe da Mostra de Cinema de Ouro Preto, que aconteceu de 20 a 25 de junho na cidade histórica de Minas Gerais. Nada mais natural então que, além dos seminários para discussão de políticas públicas e técnicas de preservação, decorridos ao longo do evento, também sejam apresentados em sua programação resultados já conquistados na área, com duas obras cinematográficas montadas a partir do desejo de resgate de imagens de arquivos pessoais: A Mulher de Longe, de Luiz Carlos Lacerda, e Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília, de Andréa Prates e Cleisson Vidal. Filmes que, se nem sempre bem resolvidos, nascem fundamentais por trazerem imagens jamais vistas anteriormente, salvando os materiais do desgaste do tempo e devolvendo-os ao local para o qual foram originalmente produzidos: o projetor de cinema.
Em seus aproximados 70 minutos, A Mulher de Longe apresenta uma reconstituição narrativa com pretensões líricas sobre a restauração de um filme perdido e inacabado do escritor mineiro Lúcio Cardoso, autor de importantes obras da literatura nacional, como Crônica de uma Casa Assassinada, adaptada para o cinema por Paulo Cesar Saraceni – com quem também contribuíra com outros roteiros, como Porto das Caixas -, e também parceiro de Lacerda, diretor do longa, em filmes como O Enfeitiçado e Mãos Vazias. Filmado em 1949, este seria o primeiro e único trabalho de Cardoso como cineasta, mas foi interrompido por falta de dinheiro, sem jamais ser retomado. O material estava arquivado junto à Cinemateca Brasileira e foi recentemente descoberto, motivando Lacerda a, mesmo sem o roteiro original e munido apenas de fragmentos imagéticos, tentar montá-lo à sua maneira.
Há uma relação direta entre o cineasta e o escritor que dá a este A Mulher de Longe uma atmosfera de admiração passional. Além das imagens originais, Lacerda filma tomadas complementares – com um trabalho de câmera muito distante da proeza dos registros de Cardoso – e distribui pelo filme cenas do processo de restauração das películas originais e também de outros trabalhos roteirizados por ele. O desejo aparente é de fazer uma grande reverência ao escritor, que apesar de não concluir seu único projeto de cinema também canalizou sua expressividade artística na pintura. No ano em que completaria seu centenário de vida, o lançamento do filme presta uma homenagem a Lúcio Cardoso – apesar de a oportunidade de conferir as imagens registradas por ele ser bem mais interessante do que o filme de uma forma geral.
Já em Dino Cazzola – Uma Filmografia de Brasília, as imagens resgatadas pertencem ao cinegrafista italiano Dino Cazzola, que acompanhou a construção e os primeiros anos de Brasília. É o segundo filme da programação da Mostra a abordar a conturbada construção da capital nacional e suas cidades satélite – sendo o outro A Cidade é uma só?, com o qual o filme rende paralelos interessantes. Uma Filmografia de Brasília nasce a partir do delicado processo de restauração dos arquivos de Dino – as imagens iniciais em que latas dos filmes são abertas e vemos a maior parte do material completamente podre e inutilizável são particularmente fortes, mais ainda dentro de um contexto como o deste festival – e apresenta imagens também inéditas, guardadas há anos na casa do cinegrafista, e que mostram um recorte deste período fundamental da história recente brasileira.
O documentário intercala a história do próprio Dino com imagens de Brasília, sua construção e primeiros anos, todas elas sob a perspectiva do cineasta – apesar de alguns fatos serem trazidos ao filme através de materiais da imprensa da época, especialmente para contextualizar a ascensão da ditadura militar, sob a qual Dino operaria a partir de 1964. O trabalho de Andréa Prates e Cleisson Vidal possui um mesmo tom de veneração e contemplação também presente em A Mulher de Longe, fazendo um documentário limpo, com uma narrativa preocupada essencialmente com a prestação de serviço de resgate – o que de certa forma pode limitar a discussão daquelas imagens tão emblemáticas, tornando o filme mais importante como acesso a estes registros históricos do que como princípio para um debate político sobre a cidade e o período retratados. A restauração, porém, está feita.
Visto na 7a Mostra de Cinema de Ouro Preto