Há algo de mítico na noite que motiva cineastas a trabalharem este simbólico período do dia, além de cenário, também como licença poética ou até mesmo personagem (há exemplos que vão desde Aurora, de F. W. Murnau, a Um Tiro na Noite, de Brian De Palma, isso sem falar em pelo menos um terço da filmografia de Jacques Tourneur, entre muitos outros). É o caso de Todas as Noites, o longa de estreia de Eugène Green, praticamente uma elegia à noite e seu poder de nos envolver em conflitos intensos, por vezes existenciais ou oníricos — seja em vivências ou através de pensamentos e sonhos, tanto os que temos com os olhos abertos, encarando o teto do quarto antes de dormir, quanto os que ganham vida inconscientemente durante o sono. Nos versos que abrem o filme, e que sonorizam um plano da lua que surge quase como elemento sobrenatural na imagem, ouvimos uma voz feminina entoar versos de contemplação e celebração à noite, captando com precisão a atmosfera em que se envolve o filme: “Desde que a noite é para mim o tempo mais precioso em um sonho, meus pobres olhos, para que eu não deixe de sonhar, dormem todo o dia”. Mais que uma canção, o que ouvimos ali, imediatamente, é um convite para viajarmos por um delicioso delírio cinematográfico que, com sua estranheza estética e história de motivações por vezes aparentemente incompreensíveis, carrega uma magia que se assemelha muito à de um bom sonho noturno.
Todas as Noites existe em um universo à parte de qualquer classificação genérica massificada ao longo destes anos todos de cinema, o que nos leva àquela sensação inenarrável de estarmos diante de um filme de Eugène Green, de uma arte que ignora realidades e aspectos formais que não somem à sua linguagem particular, permitindo-se desprendimento da verossimilhança que imagina-se existir em filmes tão centrados em experiências humanas. Desta forma, embora exista em tela algo a ser expressado, não se trata necessariamente de uma ação, mas muito mais da representação de sensações que fortaleçam ou estejam ligadas aos sentimentos dos personagens — o que possibilita, por exemplo, não haver necessidade de classificar imagens em diferentes níveis de origem (como ações “reais” ou imaginação, sonhos, metáforas etc.), já que ali tudo pode coexistir através da realidade artística — algo que se tornaria mais evidente em seus filmes seguintes, mas que está presente aqui com grande força. Green, como alguns outros cineastas (que têm se tornado cada vez mais escassos à medida que o público parece perder o interesse por desafios cognitivos e, em contrapartida, compra picaretagens babacas como tal — é, estou falando de A Origem), compreende a arte como um campo simbólico e único, e não se restringe a filmar baseado na “surda” inteligência humana, como bem classifica o próprio diretor no arrebatador diálogo final de A Ponte das Artes, a homenagem dele à música e ao poder conectivo e sensorial da arte.
A partir do momento em que a música da abertura encerra e somos apresentados aos dois jovens amigos, o que vemos não é um registro banal de uma relação humana, mas uma busca por capturar algo próximo à sua essência, dar uma forma ao envolvimento de ambos com suas questões existenciais e à interferência que as experiências vividas têm na maneira com que lidam um com o outro e consigo mesmos. Desde a primeira cena, em que observam uma garota selvagem nua banhar-se em um rio, a fábula de Todas as Noites instala-se em uma realidade em que os dias parecem intangíveis, e as noites o grande palco das ações consumadas e dos principais conflitos vividos. “Vamos esperar até o anoitecer. O único momento em que se pode ser feliz é a noite” é o que diz Jules, o personagem de Adrien Michaux, quando cogitam abordar a moça do rio para tentarem perder suas virgindades com ela. E o pensamento representa mesmo o que se vê daí em diante — com ela, pela não consumação do ato, mas também com outras mulheres que passam por suas vidas: na primeira investida de cada um, a tentativa de conquista só funciona com Henri, que, depois de deixar a cidadezinha em que viviam para estudar em Paris, seduz a mulher de seu professor convidando-a a ir ao seu quarto à noite — Jules tenta pela primeira vez com uma angelical atriz durante um passeio vespertino pelo bosque, e o máximo que consegue arrancar são lágrimas, dela e mais tarde suas.
É a escuridão da noite que abriga os principais conflitos e contatos do filme, como se o diretor fechasse os olhos às possibilidades de consumação na presença do sol — as cartas e declarações platônicas, por sua vez, são recebidas com belos planos do parque e das ruas, iluminados por uma luz radiante. Assim, Todas as Noites atravessa duas décadas da vida de Jules e Henri, passando por períodos importantes da história francesa, como a revolução juvenil de maio de 68, e situações constantes das relações humanas (perda da virgindade, amor, casamento, etc), mas sob uma ótica bastante particular e que, conforme os anos avançam, vai se mostrando cada vez mais extraordinária — o desfecho da relação de Henri com a mulher de seu professor, o destino da personagem e a forma com que Green ao final faz uma conexão entre os três personagens principais formam uma história teoricamente inusual e meio maluca, mas o incrível mesmo está em como, na ficção de Green, soluções aparentemente insanas ou inverossímeis se tornam bastante funcionais por aquilo que representam, pelo sentimento que carregam em cada detalhe da encenação, das atuações, e pelas sequências de força descomunal que essas coisas geram quando combinadas. E não seria absurdo se, ao final, ambos despertassem ainda com 17 anos, deitados no bosque, esperando a noite cair para baterem à porta da loura selvagem. O sabor de um sonho bem sonhado é a sensação deixada por esta pequena pérola de Eugène Green.