O cinema de Artavazd Peleshian

Os filmes de Artavazd Peleshian, cineasta armênio nascido em 1938, são geralmente classificados como documentários, mas meramente por conta do impulso desnecessário de se encaixar tudo dentro de um gênero. Peleshian usa de fato imagens documentais em seus trabalhos — sejam capturadas por ele próprio ou por outros —, mas o que move sua obra não é o desejo de registrar um dado aspecto da realidade. Capturar de alguma forma a realidade é sem dúvida a preocupação central do cinema de Peleshian, porém uma realidade humana mais fundamental e universal, embora não se ignorem suas particularidades históricas. Essa busca pelo universal é de praxe associada à ficção, e se poderia aqui falar sobre como o diretor confunde os limites que separam o ficcional do documental etc., discurso hoje em dia aplicado a praticamente qualquer filme que não se coloque univocamente de um lado ou de outro. Esse discurso é problemático porque ignora outras formas de se fazer cinema que comportem outros registros e objetivos, formas ensaísticas ou poéticas — que são exatamente as que interessam a Peleshian. O objetivo dele não é, novamente, como em algumas instâncias da ficção, buscar o universal no particular; mas buscar o universal com a consciência de que se está sempre no fio da navalha, que um elemento mínimo pode acabar com qualquer pretensão de se falar de outra coisa que não a própria experiência. O uso de imagens documentais se deve, acima de tudo, ao seu status mais do que evidente: imagens ficcionais são classificadas por tais e tais particularidades, mas a seu status ficcional, embora definidor, raramente se alude de forma explícita; mas qualquer discussão sobre uma imagem documental passa por problematizar o próprio fato de ela ser documental. E esse status evidente estabelece o desafio básico que Peleshian faz a si mesmo, porque cada filme seu só adquire significado como todo, como unidade, e portanto é preciso destruir o que quer que cada imagem diga — ou pareça dizer — por si mesma, sendo que a própria forma do filme passa a refletir, dessa maneira, a busca por significados universais, sempre à beira do fracasso por conta das particularidades.

Assim, em Começo, primeiro filme profissional do diretor, de 1967, temos imagens de opressão seguidas por imagens de multidões insurretas, enquanto a trilha sonora é invadida por disparos tão ruidosos que poderiam estar em um spaghetti western, tudo isso iniciando um filme que parece ser sobre a Revolução Russa e seus desdobramentos — subentendendo-se (tanto pelo título quanto pelo contexto da produção) que foi apenas o início de uma sublevação em escala global que trará o fim da opressão etc. Mas os sentidos que vemos nessas imagens de abertura logo estarão sendo colocados em questão, pela trilha sonora ambígua — não se sabe se a música que acompanha as diversas instâncias de multidões ou grupos de pessoas correndo as tenta enobrecer ou satirizar; em outros casos, a equivalência entre o ritmo da música e o da montagem adquire um caráter inegavelmente jocoso —, pelo fato de que muitas vezes não vemos, afinal, para onde correm. Em alguns casos, simplesmente perseguem um trem, o que passa longe de qualquer subtexto “revolucionário”, uma vez que o destino já está dado e é inevitável. Também não demora muito para que multidões sejam vistas acompanhando paradas nazistas e imagens de catástrofes passem a fazer parte da composição. E, nos momentos mais radicais, Peleshian resolve não apenas colocar o sentido em tensão através da montagem e da relação com outros elementos como o som, mas sim remover todo o sentido literal da imagem, através de congelamentos, cenas que rodam de trás para a frente, depois invertem, depois invertem novamente e assim por diante muitas vezes, de slow motions ou acelerações, até não restar nada senão um arranjo visual que beira o abstrato. Ao final, não é fácil estabelecer textualmente qual seria o sentido do filme — como o próprio diretor enfatiza em uma entrevista —, mas fica muito claro que Peleshian quer colocar em tela uma tensão que não se resolve; a última imagem — uma criança cujo futuro será em grande parte definido pelos movimentos coletivos que vimos — deixa apenas uma pergunta: afinal, começo de quê?

Nós, segundo filme de Peleshian, se coloca como um desafio mais complexo. Diferente de Começo, feito quase inteiramente com imagens de arquivo, Nós foi na sua maior parte filmado pelo próprio diretor, e sua escolha por imagens menos “anônimas” que as que usou anteriormente é ao mesmo tempo ousada e perigosa: em Nós vemos paisagens, rituais religiosos, a câmera se aproxima muito mais das pessoas, dos rostos marcadamente étnicos — e até mesmo na trilha há um exemplo de algo que soa bastante como música regional da Armênia. As particularidades se impõem aqui com muito mais força do que em Começo, e pode-se argumentar que Peleshian faz exatamente o movimento de tentar extrair o universal do particular; no entanto, trata-se novamente de amplificar o status de registro das imagens (e a música étnica, que acompanha por sua vez o grupo mais étnico de cenas, faz parte dessa amplificação) para reduzi-lo com o uso da montagem e de manipulações da velocidade e da direção de projeção. O aspecto que se destaca é que, apesar de a matéria-prima ter mudado de imagens captadas por terceiros a imagens captadas com um propósito, a performance de Começo segue intacta em Nós, e é nesse ponto que emerge outra marca típica do cinema de Peleshian (talvez sua marca determinante, que irá encontrar sua plena expressão em Nosso Século):trata-se de um processo de curadoria — ou, como se disse, a performance desse processo, nos filmes posteriores a Começo —, de uma antologia de imagens juntas para expor algum sentido. Uma antologia feita, no caso do primeiro filme, a partir de um arquivo provavelmente muito grande; e, no caso dos demais, de um arquivo virtualmente infinito de imagens, sem existência concreta, mas com uma existência virtual, formado por todas as imagens que o diretor não utilizou e, sobretudo, pelas que não chegou a filmar. Daí se extrai a máxima que rege o cinema de Peleshian: as imagens estão aí, basta saber selecioná-las e organizá-las de forma a descobrir algo, de forma a extrair algum sentido do ruído generalizado. O sentido que Nós busca é ainda menos textual e mais fugidio que o de Começo: afastando-se das pretensões ensaísticas do filme anterior, o filme, como o título sugere, se apresenta como um painel poético do ser humano, seus movimentos vitais — funerais, partidas, retornos, intempéries —, suas relações com o que o cerca — o espaço, as máquinas. Nesse sentido, Nós é muito próximo de Nosso Século, possivelmente a obra-prima do diretor; mas também lança as bases para as duas obras seguintes e suas reflexões sobre a relação do homem com a natureza na formação da identidade, Habitantes e As Estações.

Em Habitantes, isso não fica muito evidente, já que os animais dominam o filme e os humanos aparecem em uma única cena, e como meras silhuetas, que em poucos segundos perdem seu significado para dar forma a mais uma das composições abstratas típicas do diretor. Acompanhada por sons de disparos como os de Começo e colapsada entre cenas de migrações em massa e debandadas de animais, é uma cena que se pode julgar como uma afirmação mais niilista a respeito de nós do que as ambíguas, porém esperançosas, vistas anteriormente — mas é preciso lembrar que anteriormente também estavam presentes multidões em movimento, às vezes com propósito, às vezes não, e na maior parte do tempo difícil ou impossível saber, e os papéis são intercambiáveis, acrescentando mais camadas de ambiguidade e tensão quanto ao significado último do filme. É outra característica marcante de Peleshian: se os filmes se constituem como unidades dotadas de sentido (ambíguo, por certo, mas ainda assim sentido), que não se realizam nas imagens por si próprias, sua obra como um todo também pode ser vista dessa forma; é uma abordagem que tem suas limitações, dado que não se pode negar aos filmes seus sentidos particulares como se nega às imagens, e que dizer que a obra como um todo é “uma reflexão sobre o ser humano” ou coisa parecida é o mesmo que não dizer nada, mas há linhas de tensão que reaparecem filme a filme, algumas em todos, atravessando a totalidade da produção do diretor de modo contínuo.

No filme seguinte, As Estações, a questão da natureza como definidora da identidade é determinante. A cena inicial, de um camponês tentando atravessar um rio levando consigo uma ovelha e resistindo à correnteza, se presta a todo tipo de metáfora, inclusive as mais óbvias, sobre a relação do homem com a natureza impessoal etc., mas devemos nos lembrar de que é um filme de Peleshian e é preciso ver o todo (não que essa observação não esteja presente, mas há mais e ela não é estabelecida unicamente pela imagem inicial); é preciso passar pelas cenas que se seguem, por pastores de ovelhas, por montes de feno, por um casamento, pelas chuvas, pela neve, pela passagem das estações que define de forma expressiva a vida dos camponeses retratados. As Estações e Nosso Século são filmes que fazem um uso notavelmente menor de música que os anteriores, e aqui isso parece se alinhar à irredutibilidade da natureza como tema central. É, por assim dizer, o filme “falho” do diretor, não no sentido qualitativo, mas no sentido de ter essa natureza irredutível como objeto, de ser o momento em que o cinema de Peleshian busca o impossível dentro de seu método. Que tipo de seleção, de montagem e manipulação de imagens pode extrair uma verdade — ou sentido — fundamental da natureza? Werner Herzog, um diretor de estilo e métodos completamente distintos dos de Peleshian, e que também busca uma espécie de “verdade estática”, como ele mesmo define, é outro a admitir a irredutibilidade da natureza: a resposta, para ele, é exacerbar essa característica, é filmá-la como um mundo alienígena e desconhecido.

Peleshian não vai tão longe, mas o olhar para o desconhecido entra em sua obra no filme seguinte, provavelmente o seu melhor, Nosso Século, crônica da era espacial e de nossa época (outra tradução possível do título) de maneira geral, do homem diante do que é incógnito. Há imagens de experimentos primitivos de aviação, de lançamentos de foguetes, de treinamento de astronautas, mas também de explosões atômicas: como de hábito, nada vem sem sua contrapartida, nenhum avanço vem sem seus desastres, e a era espacial que o filme parece a princípio festejar também é a era nuclear, a ponto de as imagens se intercalarem de tal forma que chegam a se confundir, nesse que é o mais longo dos filmes do diretor, e o primeiro a se construir como algo próximo a uma narrativa, com o treinamento dos astronautas e o lançamento da nave espacial ordenados cronologicamente. Essas construções quase-narrativas estarão presentes também em Fim e Vida, os dois filmes seguintes e últimos de Peleshian, em que a passagem do tempo se torna uma das questões centrais (embora se possa dizer que As Estações tivesse uma construção próxima a essa, não se deve esquecer que há uma organização cronológica que aponta para um ciclo, diferente dos outros três, em que o passar do tempo leva a um momento de consumação); no caso de Nosso Século, há tanto a micronarrativa dos astronautas quanto uma narrativa global que se debruça sobre a solidão, o anseio pelo desconhecido, a tentativa humana de se transcender a si mesmo e a natureza (outro tema caro a Herzog), numa oscilação entre fracasso e êxito que atravessa todo o filme, e numa completa dúvida sobre quando é melhor o fracasso e quando é melhor o êxito, até seu final ambíguo em que não se distingue um de outro.

Fim e Vida, que encerram a carreira de Peleshian, foram idealizados para exibição em conjunto e nessa ordem, sugerindo uma volta ao tema cíclico de As Estações, mas não é bem o caso. Em Fim, como que espelhando o primeiro filme, a imagem do trem retorna, mas dessa vez ninguém corre atrás dele; todos embarcaram no trem, incluindo a própria câmera, todos novamente vão na mesma direção, e o uso de música é mais uma vez mínimo, deixando o ruído do trem dominar a trilha. Haverá alguma diferença de status entre a situação nesse filme e a em Começo? Peleshian não procura responder, nem mesmo insinua se há ou não uma resposta: a câmera se limita a observar os passageiros, a paisagem pela janela, culminando numa longa cena em que o trem atravessa um túnel e o clarão ao final encerra o filme e nos joga para Vida, o último e mais curto filme de Peleshian, em que um parto é filmado com closes do rosto da mulher que dá à luz, enquanto soam batidas de coração. A imagem final, com a mãe e a criança fitando a câmera, faz um paralelo com o encerramento de Começo: novamente, olha-se para o futuro à espera do que pode vir pela frente. Como já dito, a sequência de projeção definida por Peleshian pode sugerir uma interpretação cíclica aos filmes; após a representação da morte em Fim, há de novo o nascimento, e a vida continua. À luz dos trabalhos anteriores do diretor, porém, é difícil atribuir um sentido unívoco: Fim e Vida juntos representam a tensão existente em todos os outros, apenas na chave mais declaradamente poética de toda a filmografia de Peleshian, entre vida e morte, entre um destino ainda em aberto e um já definido e inexorável.

É possível extrair um sentido da desordem geral, mas ele será ambíguo, ou fugidio; talvez seja essa a lição deixada por Artavazd Peleshian, e é bom lembrar novamente que ele insistia que os filmes — e sobretudo os dele — não podiam ser reduzidos a palavras, do contrário não haveria necessidade de serem filmes. Se há um sentido, ele nunca será textual, sempre beirará o incompreensível e por isso mesmo está sempre disperso, precisa ser forçado a aparecer de alguma forma, ainda que imprecisa, ainda que breve; os filmes de Peleshian são construções em que podemos contemplar o que pode ser uma verdade fundamental sobre nós mesmos por algum tempo, antes que ela se disperse novamente quando a projeção termina. Nós não a compreendemos completamente, nem conseguimos expressá-la — mas também não a esquecemos.

Filmografia

Começo [Skizbe; URSS, 1967]. 10 min.

Nós [Menq; URSS, 1969]. 24 min.

Habitantes [Obilateli; URSS, 1970]. 9 min.

As Estações [Vremena goda; URSS, 1975]. 28 min.

Nosso Século [Mer dare; URSS, 1983]. 50 min.

Fim [Verj; Armênia, 1992]. 10 min.

Vida [Kyanq; Armênia, 1993]. 7 min.

Há ainda Lernayin parek (1964) e Mardkants yerkire (1966), feitos por Peleshian enquanto estudava no instituto VGIK, em Moscou, e Zvyozdnaya minuta (1972), de Lev Kulidzhanov, em que Peleshian colaborou.

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