Por Daniel Dalpizzolo
Madame de… é a protagonista de Desejos Proibidos, Louise, à qual o filme também deve seu título original. É assim que a conhecemos, pois é o máximo de informação que Max Ophüls permite a nós, espectadores, encontrarmos sobre a origem dela em meio às referências visuais e aos diálogos do filme. O recurso, além de uma licença poética que se resolve brilhantemente em muitas cenas, também está ligado ao olhar com o qual o diretor observa o triângulo amoroso formado por ela e por seus dois homens, habitantes dos palácios, das carruagens e de outros ambientes da luxuosa aristocracia europeia do século XIX — um jogo de amor, de pertencimento, de vingança e outros sentimentos distintos, de mentiras, enganações, promessas, muita pompa burguesa, desilusões e abismos, com o qual Ophüls chega ao ápice da sua sofisticação e da virtuosidade narrativa e estética.
A sequência de abertura, em que apresenta nossa protagonista, já diz muito sobre este olhar de Ophüls e sobre a superfície na qual pretende mergulhar com sua câmera inquieta e exploradora. A senhora, mulher do general André, do qual obviamente também não saberemos o sobrenome, procura um par de brincos de grande valor em seus pertences. A câmera de Ophüls ocupa o que seria um olhar subjetivo da senhora, percorrendo gavetas e portas de armários em busca dos objetos. Antes mesmo de conhecermos o rosto dela, sua identidade já nos é revelada através de seus bens, dos belíssimos casacos de pele, dos vestidos, das jóias e chapéus que a vestem para dar-lhe uma personalidade — e, neste vaidoso jogo de aparências, uma posição social. Mas somente após encontrar os brincos — e colocá-los — é que vamos descobrir quem de fato é esta mulher, quando as lentes de Ophüls se voltam a um espelho que emoldura a bela face de Danielle Darrieux em uma imagem que parece saída de um álbum de fotografias muito bem planejado. Porque a primeira imagem de Louise, é claro, tem que ter toda elegância que lhe é permitida.
Isto para, na sequência seguinte, a finesse ser deliciosamente jogada num buraco. Por debaixo da pompa aristocrática de Louise e de seu marido, aquele casal admirado pela sociedade, estão as boas e velhas sacanagens. Endividada e desesperada, ela penhora os brincos para evitar que o marido descubra os problemas em que se meteu, mentindo a ele que os perdeu enquanto acompanhavam uma ópera junto de amigos. A venda dos brincos, para Ophüls, surge como uma irônica quebra do sossego, um ponto de partida para a tragédia que viria a acometer a vida do casal, como se ali, ao se desfazer deles, a Madame estivesse vendendo também parte de sua alma e de sua tranquilidade, que passarão de mãos em mãos até se dividirem entre dois homens: o marido, que compra os brincos de volta e dá para uma amante, e o futuro amor de sua vida, o Barão Fabrício Donati, que coloca as mãos nos brincos para, mais tarde, devolvê-los (sem saber) como presente a Louise, com quem terá um caso.
O insano conflito narrativo de Desejos Proibidos se constrói em pouco mais de 30 minutos de filme, nos quais Ophüls torce e distorce uma alucinante narrativa cíclica (que traria de A Ronda, um de seus filmes anteriores) percorrendo todos os caminhos feitos pelos brincos até eles retornarem, com um novo significado, às mãos da Madame – agora símbolos do verdadeiro amor e do desejo. Nestes 30 minutos, vemos a habilidade narrativa e visual do diretor evidente em cada plano, cada sequência e movimento elaborado de câmera, utilizando os requintados ambientes em que a história se desenvolve para compor alguns dos mais belos quadros de sua obra, seja pela pura plasticidade visual ou pela profundidade que podem atribuir aos sentimentos trabalhados através dos personagens — chegando ao ápice na colagem das valsas dançadas por Louise e Fabrício durante diferentes bailes, quando no uso da elipse Ophüls acompanha a progressão da paixão que nasce entre ambos em uma longa sequência de colagens que merece ser vista em pé.
Mas a visão do diretor sobre o amor, já discutida no texto de Liebelei, surge aqui ainda mais trágica e negativista, mostrando um cineasta cada vez mais amargurado e desesperançoso com a possibilidade da vitória deste sentimento tão puro diante de um mundo tão desprezível, sugado pela superficialidade das aparências e pela baixeza humana. Nos poucos momentos em que Louise e Fabrício têm para mostrarem um ao outro o seu amor, jamais nos aproximamos da doçura e da inocência das representações românticas de Liebelei. As cenas de amor em Desejos Proibidos surgem sob uma atmosfera estranha, opressiva e desoladora, que vai tomando conta do filme à medida que se fortalece a consciência de Louise sobre a impossibilidade de viver por aquilo que sente — como que estando ciente de que sua existência estará indefectivelmente presa à posição social que ocupa ao lado do marido.
Ophüls trabalha em Desejos Proibidos um processo gradativo de letargia. Conforme os conflitos se estreitam, as existências de Louise e dos brincos vão se equilibrando até chegarem a uma relevância quase equivalente na história — dois objetos de posse para um marido de orgulho ferido. Se o controle sobre a esposa é impossível por conta de suas pulsões voluntárias, o general apreende os brincos e, consequentemente, sua alma, e o significado romântico que eles passaram a ter depois de reconquistados por ela é arremessado contra ela própria, que neles projeta a tragédia incontornável e se depara com uma relação de poder e de dominação que só seria destruída pela própria tragédia. A resolução do conflito não poderia ser mais devastadora: disso tudo, resta apenas o corpo de uma Madame que, embora siga no mundo, praticamente faz uma opção pela não-existência, pela própria anulação.
Por mais trágica que seja sua história, porém, não é possível sair de Desejos Proibidos sem estar completamente encantado e maravilhado com o filme. Porque aqui a chave de tudo está naquela palavrinha maldita, hoje em dia presente em 50% dos textos escritos sobre cinema. Sim, é de mise en scène que vive Desejos Proibidos, e por mais que toda obra de Ophüls possa ser vista como um dos mais perfeitas representações do poder e do significado da mise en scène, é aqui que o diretor atinge um patamar sublime de expressividade quase sobre-humana, um requinte visual que não existe em praticamente nenhum outro filme que eu me lembre de ter visto até então. Ao final, naquele lindo quadro de encerramento, não dá pra não pensar em Desejos Proibidos como uma obra-prima máxima, que em toda sua beleza, dor e poesia serve, acima de tudo, como uma recompensa para qualquer amante do cinema.